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Envelhecer

Já passava das 11 horas da manhã e ainda precisava comprar algumas mercadorias para preparar o almoço. Quando entrei no supermercado a procura dos itens, logo na entrada me deparei com uma moça em um pequeno quiosque ajeitando gelo numa espécie de balde. Perguntei o que ela estava oferecendo e ela disse que eram drinks de vários tipos: um de maçã verde, outro de limão e um avermelhado à base de guaraná chamado “Balada”. Respondi a ela que podia me servir o último, “já que tenho cara de quem frequenta baladas todo fim de semana“. Ela sorriu de forma jovial, serviu a bebida e eu continuei a minha saga pelo mercado.

Foram necessários apenas alguns passos para descobrir o que havia acontecido. Um pouco espantado e surpreso, mas, ao mesmo tempo, experimentando uma espécie de súbita lucidez, percebi que a piadinha que eu havia acabado de dizer à moça do quiosque não foi dita por mim. Apesar de ter saído dos meus lábios, não fui eu quem a falou.

Foi meu pai. Por instantes me dei conta que essa era uma das suas tiradas prediletas, um dos seus chistes mais comuns; uma espécie de humor britânico misturado com as piadas autodepreciativas típicas da cultura judaica. Apesar de ser uma pessoa séria e sisuda, ele era um sujeito otimista e bem-humorado, mas de um humor de poucas gargalhadas; mais ironia e menos deboche. Ele passou a última parte da sua vida descrevendo de forma divertida dos percalços da velhice, os desafios da “melhor idade”, a desconsideração da cultura com os idosos, o etarismo e, porque não, o desinteresse das mulheres pelos velhos, a quem consideravam seres  assexuados.

“Já era madrugada quando a porta do elevador se abriu e a moça entrou. Ela apenas sorriu para mim; claro, sentiu-se segura ao lado de um velhinho”, dizia ele sorrindo. Todavia, eu entendia o que havia por trás do seu gracejo. Ele fazia piada com a dor de envelhecer e com a frustração de “manter o desejo quando não mais o despertava”, como ele mesmo dizia. Talvez preferisse que ela tivesse medo; afinal tratava-se de um homem que poderia, talvez, “avançar”. Mas não… ele era considerado, aos olhos dela, totalmente inofensivo. “É diferente ser inofensivo por não querer – o que seria uma escolha – do que por não poder – que é apenas uma limitação”, dizia ele.

Depois dessa reflexão nos corredores do supermercado, muitas das minhas atitudes passaram a fazer sentido. Por mais que lutemos contra a matriz que nos constitui, somos inexoravelmente ligados a ela. Meu pai era antissocial, avesso às festas, introspectivo e sério. Durante minha juventude tentei ser diferente disso, me envolver com mais pessoas, ter amigos, mas ao amadurecer fui percebendo o quanto meu temperamento se aproxima do seu. Por mais que isso possa me incomodar, minha velhice será mesmo muito semelhante à dele, cada vez mais encolhido, menos visível, mais caseiro, mais silencioso… e mais insignificante.

Talvez, como ele, eu morra rodeado de não mais do que três ou quatro pessoas. Ele também dizia, e eu agora confirmo, que “envelhecer é preparar-se para as mortes”. Sim, assim mesmo no plural: são as perdas inevitáveis, as quais somos obrigados a experimentar no percurso da vida: a perda da juventude, da beleza, da atração e das memórias. Depois se vão os avós, pais, amigos, irmãos, parceiros de vida. E no fim, o nosso próprio invólucro de carne sucumbe à degenerescência, mas antes dele perdemos a relevância e a importância para aqueles que um dia nos admiraram. Nossas teses ficam antigas, solapadas pelo novo e pelo moderno. Nossa visão de mundo sucumbe aos acontecimentos e nossos vaticínios se perdem nas encruzilhadas do tempo. É preciso estar preparado para o tanto que se vai, continuamente.

Quando eu tinha por volta de 7 anos os amigos fizeram uma festa na vizinhança, com fogueira, comes e bebês, jogos, brincadeira e cantoria. No meio da festa, o vizinho, um amante da ópera, cantou uma ária; logo depois, outro vizinho tocou acordeon e cantamos todos juntos cantigas italianas. Enquanto isso as crianças faziam corrida de saco, cabo de guerra e se empanturravam de docinhos. Foi tão divertido que 60 anos de distância não apagaram da minha memória. No meio da festa meu pai chegou. Sentou-se em um banquinho e ficou sorrindo acompanhando a farra. Ao fim da festa, quando estávamos retirando os materiais e arrumando a bagunça, eu perguntei, ainda extasiado pela folia, se ele não havia achado aquela festa a melhor coisa da vida. Ele sorriu e sua sinceridade me impressiona até hoje:

“Não. Eu não gosto de festas. Acho bonito ver as pessoas se divertindo, mas isso não me afeta”.

Olhei para o meu pai com horror, uma estranheza como se ele tivesse segurando um sorvete de pistacho na mão e dizendo não gostar. Como assim não gosta do melhor da vida? Como não gostar da alegria sem freios, das piadas, da cantoria e das brincadeiras? Como poderia alguém não se afetar pelas músicas, o colorido, as empadinhas, a algazarra, o alarido dos fogos de artifício e as risadas de quem se passou na bebida?

Hoje eu sei. Percebo em mim a mesma marca, o mesmo feitio de personalidade, avesso aos arroubos de alegria desmesurada. O mesmo gosto pelo isolamento, o silêncio e a reflexão mais elaborada. As conversas com pouca gente, a profundidade dos argumentos, as piadas sutis. Poderia ser uma maldição, mas eu considero uma homenagem. Se tirei do meu pai algumas poucas virtudes, por que deixaria de receber também algumas de suas características menos atraentes? A genética, agora o sei, vem num pacote fechado…

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O dilema dos pais

Escutei de um professor, num passado distante, a ideia de que, para produzir um filósofo, era necessário retirá-lo ainda criança, do conforto do afeto mais poderoso: a presença de um pai amoroso. Se entendemos que a filosofia surge do reconhecimento da falta e da noção da precariedade da existência humana, só será possível produzir boa filosofia quando o sujeito é jogado no vazio, obrigando-o a procurar sentido sem o amparo de um pai. A história nos demonstra que a perda precoce dessa figura foi um marco na história pessoal de grandes nomes desse ramo do conhecimento.

Todavia, quando perguntam aos pais o que pretendem que seus filhos sejam no futuro, muitos (até eu) respondem “espero que sejam felizes”, oferecendo a eles o que podem para terem segurança em seus anos mais frágeis e alegria como consequência. Ou seja, sonegam aos filhos o elemento essencial para a boa filosofia: o vazio, o “pathos”, o poço escuro do desamparo.

Esse é o dilema: ao tempo em que damos proteção e amor aos filhos, tentando garantir a eles uma estrutura emocional centrada no afeto, precisamos jogá-los na noite do mundo, no desamparo, na solidão e na frustração, para que seus músculos emocionais sejam fortalecidos e seus olhos da alma se adaptem ao escuro da vida. Transitar pela paternidade é caminhar sobre a fina lâmina da dúvida e da angústia, sem a certeza de ter feito o melhor para os filhos

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Tempo

Esta é uma verdade cristalina. Nas cinco gerações que tive contato, desde os meus avós até os meus netos, o envolvimento dos pais (homens) na gestação, parto, educação, tarefas, aconselhamento etc. é muito maior agora do que já foi outrora. Meu pai jamais pensou em auxiliar no parto dos filhos, nunca conferia boletins da escola e tinha um contato conosco muito mais restrito. Sua função era de provedor e, na velhice, conselheiro. Eu já fui um pai um pouco mais presente, mas com um papel muito menor do que meu filho e meu genro desempenham na vida dos meus netos. Por certo que falo de um recorte de classe média mas, guardadas as proporções, não há porque essa novidade não se expressar também nas classes baixas e altas. Esse é um fenômeno muito novo na cultura, mas uma tendência sem volta.

Meu pai costumava achar engraçado quando eu falava que os casais iam juntos à consulta de pré-Natal. Para ele isso era uma novidade chocante. “O que um homem tem a ver com essas coisas?”. dizia. Para ele a presença do pai nas consultas e no parto só poderia atrapalhar. Ele me contou que só se preocupava que o seu carro (um DKW) tivesse gasolina suficiente para ir ao hospital quando chegassem as dores. O cuidado com os filhos não era uma tarefa dos homens; eles não poderiam deixar de lado a missão de construir e controlar a civilização para cuidar, alimentar e educar de gente miúda. Já os homens de hoje são muito mais presentes e participativos nas tarefas domésticas e no cuidado de crianças, mesmo as muito pequenas. Fui testemunha disso nas histórias contadas dos pacientes mas também com o que vivenciei na minha casa, comparando com o que testemunhei nas gerações passadas. Por certo que o envolvimento masculino de hoje não é o ideal – até porque jamais será o suficiente, como bem o sabemos – mas não se pode comparar o nível de atuação dos pais atuais ao lado dos filhos com o papel da paternagem que vi a partir dos anos 60.

A realidade contemporânea que hoje temos, quando pela primeira vez vemos os pais (homens) sendo uma fonte de afeto (e não apenas recursos e limites) para seus filhos, é uma novidade no mundo ocidental e, na minha modesta opinião, eles estão se saindo muito bem nesta nova tarefa, mesmo sabendo da dificuldade que a nova distribuição de funções imprime na dinâmica social. Isso se expressa inclusive no número cada vez maior de filhos que optam em morar com o pai depois de uma separação, algo que não existia na minha infância. De qualquer forma é um período de grande aprendizado para os novos pais, e de grandes transformações para o nosso conceito de paternidade.

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Sonho

Hoje eu tive um dos melhores sonhos com o meu pai; pelo menos posso afirmar que foi o mais vívido de todos. É possível que esse sonho seja o reflexo de um pedido mental que fiz a alguns dias, para que ele mandasse o sinal que havia me prometido. No sonho, encontrei-o na sala pequena de uma escola que tinha uma janela de frente para um parque gramado muito grande. Cumprimentei-o efusivamente e começamos a conversar. Perguntei como estavam as coisas e disse que ele estava muito bem. Passei a mão no seu rosto e me dei conta que ele era mais jovem do que eu. Seus cabelos estavam negros, como lembro pelas fotos, e parecia muito jovial. Perguntei o que ele estava fazendo naquela escola, e ele respondeu “Ora, eu trabalho aqui”. Isso seria coerente com sua vida, já que a melhor maneira de definir o meu pai seria como um pedagogo.

“Que bom que trabalhas aqui!!”, disse eu. Pedi a ele que me dissesse algumas coisas sobre o funcionamento do plano espiritual, ao que ele me respondeu de forma jocosa, como que a dizer “Se eu te dissesse tu não entenderias”. Eu traduzi isso como a resposta dada a uma criança de 5 anos que ousasse perguntar aos adultos porque as pessoas fazem sexo. Não faria muito sentido, pois este fato da vida está além da experiência sensorial de uma criança. Logo depois, perguntei pela minha mãe, e alguns amigos que nos deixaram nos últimos anos.

– Sua mãe está ótima. Vamos nos casar em maio.

Também faz sentido. Antes de morrer ele me confessou que pretendia casar com a minha mãe muitas outras encarnações, pois não conseguia imaginar uma companheira melhor. Por fim eu perguntei se aquela cara dele foi escolhida por ele mesmo ou algum mecanismo automático fez com que a conformação corporal adotasse sua “melhor versão”. Ele apenas sorriu….

E eu acordei…

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Carteira de trabalho

Esta foto acima é a carteira de trabalho do meu pai, com a foto da família à época, antes do nascimento dos meus irmãos Roger e Nice Jones. Infelizmente a minha data de nascimento está errada, já que é público e notório que nasci em 1984. Reparem a angulação, ao estilo Hollywood, que a minha mãe se posicionou para a foto, e o bigodinho “limpa-trilho” do meu pai.

Sobre as fotos está o carimbo do IAPFESP – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados Públicos, que eram um dos múltiplos institutos de aposentadoria e pensões que existiam na minha infância. O INPS – Instituto Nacional de Previdência Social – foi criado no ano de 1966, originando-se da fusão de todos os Institutos de Aposentadoria e Pensões existentes à época. Já o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia federal, foi criado em 1977, pela Lei nº 6.439, que instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social.

Por sua vez o SUS, Sistema Unificado de Saúde, foi criado pela Lei 8080/1990 que desde então levou a uma trajetória de muito esforço e desafios enfrentados, diariamente, para proporcionar e garantir o direito universal à saúde como dever do Estado.

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Filhos

São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.

Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.

Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.

Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.

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Velhos

Quem entrasse no escritório do meu pai encontraria na pequena sala do seu apartamento uma arrumação digna de um virginiano. Livros, computador, aparelho de som, quadros na parede, impressora, todos colocados de forma milimétrica e meticulosa. Aliás, quando confrontado com o fato de ter TOC e ser do signo de virgem ele sempre dizia uma frase geniosa sobre o tema: “Não acredito em zodíaco ou horóscopo, mas reconheço que, por coincidência, eu sou a mais perfeita descrição do meu signo”.

Uma coisa apenas chamaria a atenção na obsessiva disposição dos objetos. Na sua mesa, sob um modernoso mouse ergonômico, repousava um “mouse pad” com uma gravura chamativa. Tratava-se de uma voluptuosa nádega feminina em “close up”, que emergia de uma piscina. A primeira vez que a vi dei uma gargalhada e confrontei meu pai dizendo: “Que é isso, pai? Um homem sério, pai e avô, com essa pornografia em cima da mesa? Uma bunda?” A resposta dele veio com uma risada e um levantar de ombros. “Bunda?” perguntou ele. “Nada disso, trata-se apenas de uma castanha. Você está vendo errado”, mas ambos sabíamos do que realmente se tratava.

Anos antes ele havia me falado sobre uma moça que encontrou no elevador do prédio, isso quando ele já havia ultrapassado há um bom tempo a barreira dos 80 anos. Disse para mim: “Era uma moça muito linda, e conversou comigo sorridente, como se eu fosse obviamente inofensivo. Claro, quem temeria um velhinho?”. Quando escutei o relato do breve encontro eu o lembrei da frase do Sartre que dizia entender o quanto as pessoas o percebiam velho, mesmo quando ele assim não se sentia. Ele sorriu e completou afirmando que “a idade chega primeiro para quem nos vê, depois para o espelho, e por fim para nossos ossos e a danada da memória”. Parou um tempo refletindo, sem dizer nada, como a tentar lembrar de um sentimento, ou recordar um sabor delicioso. Por fim me disse esta frase que até hoje habita minha memória: “O desejo nunca nos abandona, acredite. Reconhecemos a falência física, admitimos nossa falta de atrativos; porém ele não morre, não desiste, não se entrega”. Sorriu para mim como a dizer: “Um dia você vai entender, mas só quando chegar lá”.

Meu pai, quando estava na casa dos 30 anos, foi estudar em Gurcy-le-Châtel, uma comuna distante 100 km de Paris, num convênio com as centrais elétricas do estado. Durante os 6 meses que passou por lá foi colega de quarto de um senhor de mais de 60 anos da República do Mali, na época uma colônia francesa que recém havia conquistado sua independência da França. Para ele esta foi uma convivência muito gratificante e reveladora, e durante anos ele me contou das conversas que teve com aquele homem. Uma das que mais me impressionou foi quando, durante as brincadeiras entre os jovens estudantes de várias partes do mundo, este senhor virou-se para meu pai e disse, com ar sério, porém conformado: “É impressionante a desconsideração dos jovens com a sexualidade dos velhos”. Aquela observação marcou meu pai em sua juventude, e deixou marcas na minha também.

Lembro dessas passagens do meu pai porque agora é a minha vez de ficar velho. Eu já ultrapassei os limites da gratuidade do ônibus e já tenho garantido estacionamento mais próximo da porta do shopping, e por esta razão, já posso entender o que meu pai queria dizer. Percebo, como ele e seu amigo africano, que nossa sociedade teima em não reconhecer a sexualidade dos idosos, como se o desejo um dia pedisse as contas e abandonasse nossa alma sem sequer se despedir; como se pudesse criar asas e abandonar sua morada. Não, em verdade ele nunca nos abandona. Enquanto houver algo de vida em nosso corpo ele estará lá, nos impulsionando. Em verdade, talvez sequer a morte física seja capaz de amainar sua energia.

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Elogio, ainda

Quando passei no vestibular, aos 18 anos, marquei de encontrar com os amigos no local onde as listas com os nomes dos aprovados seriam afixadas nas paredes. Fomos então aguardar no Estádio do Inter, onde funcionava um dos cursinhos pré-vestibular da época. Estas cenas, por certo, seriam impossíveis em um mundo como o de hoje, onde a aprovação seria enviada para seu celular em casa. Pois nos anos 70 as listagens de aprovação vinham impressas em papel e os estudantes corriam desesperados para encontrar – ou não – seu nome nas listas produzidas pelo CPD da Universidade.

Na hora em que as listas apareceram corri para a parede da sala e fui um dos primeiros a ver meu nome impresso. Estava ao lado do meu irmão e da minha namorada – também aprovados – e meus amigos, que estavam lá pela farra. Fizemos festa ali mesmo, na hora, com tinta, água e tesoura; não sobrou um fio sequer na minha cabeça. Depois de comemorar brevemente com a turma, voltei para casa, esgotado pelas emoções daquele dia. Ao chegar, foi meu pai quem abriu a porta. Olhou minha cara suja de tinta e minha cabeça raspada e deu um “meio sorriso”, bem característico para quem o conhecia. No disse uma única palavra. Não me deu parabéns e nem sequer tapinhas nas costas. Ficou em silêncio enquanto eu percorria o corredor de casa para tomar banho. Depois jantamos e, mais uma vez, nenhuma palavra foi dita.

Assim como os sonhos são organizados enquanto os descrevemos, as palavras só fazem sentido quando são escutadas. Também os silêncios encontram sua maior eloquência no momento em que deixam imóveis as membranas timpânicas. De todos os elogios que recebi na minha vida, a mudez do meu pai no momento em que eu adentrava a vida adulta foi o mais intenso e significativo. Do vão misterioso que emoldurava sua fala sem palavras brotava a confiança de que esta vitória nada mais era do que algo esperado para quem ele tanto confiava.

Muitas vezes o elogio verdadeiro está em não elogiar…

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Livro

Pode ser uma ilustração de 2 pessoas e área interna

Minha irmã ficou usando o computador do meu pai no tempo em que ele esteve doente no hospital, em especial porque nele estavam os programas do banco para gerenciar seu dinheiro. Depois da morte dele o computador acabou ficando para mim, e é nele que eu passo os dias escrevendo. Não troquei nada na sua aparência ou configuração, apesar de adorar formatar computadores. Quem já trabalhou num computador recém formatado conhece a maravilhosa sensação, como de um banho recém tomado depois de jogar bola na chuva. Tudo fica mais rápido, mais simples, mais otimizado; tudo é limpo e claro.

Mas não fiz isso com o PC do meu pai. Nesse caso decidi manter as coisas dele intactas, em especial o “wallpaper”, uma obra sua baseada em um famoso quadro de Norman Rockwell – desenhista do “American way of life” que ele adorava, em especial pelas expressões dos personagens. Ontem, ao procurar fotos antigas no computador, esbarrei numa pasta “artigos”, que julgava serem coisas que eu mesmo havia escrito. Cliquei e para minha surpresa estava ali escondido o que, para mim, é um raro tesouro.

O livro jamais publicado que ele escreveu.

O título é chamativo: “Reflexões de um Espírita Laico”, o que tem muito a ver com as “Memórias de um Homem de Vidro”, livro que humildemente escrevi há quase 20 anos, provavelmente porque, como ele, queria deixar reflexões sobre minha breve passagem pela Terra. Neste livro meu pai busca as origens do pensamento espírita e estabelece o corte epistemológico do espiritismo laico, modelo filosófico e científico dedicado ao estudo da sobrevivência do princípio espiritual desvinculado das amarras moralistas da religião, em especial o sincretismo espírita-cristão como se observa no Brasil. Muitas das crônicas foram publicadas em periódicos e livros, a pedido dos editores, mas ele se negou a formatá-lo em forma de livro. Por certo que tinha medo da sensação de não gostar de algo que não poderia fazer retoques e modificar.

Apesar de ter se negado a transformar suas ideias em livro, creio que esta decisão não mais lhe pertence. Digo isso porque acredito que as ideias dos homens pertencem ao mundo – aliás, uma frase que ele cansava de me repetir. Caso fossem descobertas agora obras de Heráclito, de Heródoto de Aristóteles e de Parmênides nos escombros da Biblioteca de Alexandria com uma nota na capa escrito em grego “Não Publicar” (“δεν δημοσιεύεται” ou “den dimosiévetai”) e com a assinatura do autor, seria lícito aceitar suas exigências? Seria justo privar os leitores das ideias destes homens por um capricho humano seu? Ou, como meu pai sempre dizia, seus pensamentos pertencem ao mundo? O livro que ele escreveu é uma coletânea de reflexões sobre o espiritismo para o século XXI, muitas delas já publicadas no jornal do CEPA. Portanto, não faz sentido impedir que sejam agrupadas em formato de livro.

Minha reclamação para ele durante anos foi de que suas ideias – inovadoras e desafiantes – no campo do espiritismo jamais foram devidamente publicadas. “Não gosto de escrever, prefiro falar”, dizia ele. A verdade é que as palavras ficam registradas e são, por definição, incompletas na tarefa de cobrir a infinitude das descrições do mundo. Era para ele torturante a simples criação de uma frase, pois seria sempre possível ajustá-la, torná-la melhor, mais abrangente, mais enxuta, mais clara. Mas, inobstante o incômodo pelo perfeccionismo virginiano que sempre o caracterizou, ele escreveu. Ler estes artigos agora, alguns anos após sua morte, é como escutar suas palavras na sala de casa, com sua voz suave e seu jeito meigo de conversar.

Espero conseguir publicar este livro em breve. Acho que devo isso ao velho.

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Sacrifícios

Quando eu tinha uns 10 anos de idade, e estava de férias com a minha família em uma cabana no interior do Rio Grande do Sul próximo à barragem do Salto, começamos a conversar logo após o jantar. Era o que tínhamos a fazer antes dos smartphones e quando as TVs simplesmente “não pegavam” em várias partes do estado. A conversa acabou se centrando no tema dos “sacrifícios”, ou seja, o quanto poderíamos sacrificar algumas coisas em nome de outros valores.

A questão prática era: se você quer ter aulas de violão não pode fazer judô, pois não há como pagar todas essas coisas. Meu pai tinha quatro filhos, não haveria dinheiro para financiar isso para todos. Ele era da “teoria do pirulito”: se você tem 4 filhos e 3 pirulitos ninguém ganha, porque não há como desfavorecer um diante dos outros. Todos são iguais e ninguém poderia ficar em desvantagem. Portanto, haveria que se sacrificar algo para que todos pudessem ter um benefício.

Um pouco contrariado eu perguntei ao meu pai:

– Ok, e você? Que sacrifícios faria pelos seus filhos? Seria capaz de, por e exemplo, arrancar um dedo da mão para nos salvar?

Meu pai riu da minha pergunta e respondeu:

– Um dedo? Ora, eu daria a minha própria vida pelos meus filhos. Eu morreria por eles.

Lembro bem dessa conversa, e penso que a resposta que eu dei para ele é engraçada até hoje.

– Rá, morrer pelos filhos é fácil. Quero ver ter coragem de arrancar um dedo!!

Para mim a morte era algo distante, um acontecimento meramente abstrato. Mas arrancar um dedo – multiplicando a dor de verdade que eu já havia experimentado – isso sim era sofrimento prá valer,

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