Arquivo da tag: sonhos

Propaganda de Margarina

Meu pai era um autodidata, um sujeito muito culto, mas nunca teve a oportunidade de fazer um curso superior. Na sua juventude, esta formação era reservada às classes abastadas da sociedade. Durante toda sua vida foi funcionário de nível médio da CEEE, as centrais elétricas do estado, e quando tinha 35 anos comprou sua casa própria. Quem tem condições de fazer isso hoje em dia? Minha mãe atingiu seus mais altos objetivos na vida através da maternidade e da criação de seus quatro filhos. Formavam um casal típico dos anos 60, quando o mundo respirava um pouco de liberdade depois de um início de século cheio de guerras.

Quando eu tinha 6 anos nos mudamos para a casa nova, um apartamento no bairro Menino Deus que tinha à frente da janela do meu quarto uma praça de 10 mil metros quadrados ao lado de uma escola pública. Se alguém pudesse criar mentalmente um cenário ideal para criar uma família de 4 filhos pequenos, não conseguiria algo tão perfeito como isso. Naquela época as famílias todas ao nosso redor tinham no mínimo 3 filhos, o que nos garantia uma turma gigantesca de crianças com quem brincar. Na escola pública havia a mistura altamente criativa de crianças pobres com jovens da classe média crescente, o que nos oportunizava conhecer um Brasil com maiores dificuldades do que a vida de propaganda de margarina que tínhamos.

Logo meu pai comprou um carro, um DKW azul de teto branco e estofamento vermelho, uma joia da indústria automobilística, com seu motor dois tempos que qualquer um reconhece a quadras de distância. Depois disso veio um marco essencial da modernidade: uma linha de telefone da antiga CRT instalada em casa. No inicio dos anos 70 o supremo luxo: uma televisão colorida, para poder assistir “O Bem-Amado” com todas as cores da obra de Dias Gomes. Nossa infância – e, por certo, falo pelos meus irmãos – é o quadro mais acabado de perfeição, o sonho mais acabado para as famílias da minha geração.

Todavia, como em todo sonho, um dia a gente é forçado a acordar. O meu despertar se deu ao reconhecer a bolha em que nossa vida infantil floresceu. Enquanto vivíamos uma vida de segurança e harmonia havia uma brutal ditadura no Brasil, além de uma crescente disparidade na riqueza do país. O ministro Delfim Neto afirmava que primeiro faríamos o bolo crescer, para só depois dividi-lo, mas esta divisão sempre funcionou como um contínuo “na volta a gente compra” em nível nacional. O que eu passei a reparar foi o número enorme de pessoas pobres ao meu redor, e como o sofrimento delas era visível quando havia disposição para ver. E, naturalmente, eu passei a perceber suas carências, não apenas de caráter econômico e material, mas deficiências de ordem afetiva e simbólica.

Com o tempo percebi que, por mais que houvesse uma tendência em valorizar minhas pequenas conquistas, elas eram fruto direto de uma criação especial, o somatório de inúmeras condições, como uma criação cheia de facilidades, com pais estudiosos, livros nas estantes de casa, escola gratuita, comida na mesa, irmãos para nos ensinar limites, harmonia psíquica e até alguns luxos de classe média. Muito pouco, ou quase nada, é possível encontrar em mim que não seja efeito direto das facilidades que a vida me ofereceu, enquanto sonegava a tantos ao meu redor. Assim, desde muito cedo ficou claro que não há nada de realmente especial em mim, e sou apenas o produto de uma sociedade que me ofereceu inúmeras facilidades, enquanto estas eram negadas à maior parte do país.

Reconhecer o quanto somos o reflexo do nosso entorno e das condições materiais e emocionais que recebemos – ou não – é essencial para reconhecer a necessidade de justiça social e equidade. Quando percebemos o quanto fomos felizes na primeira fase de nossas vidas fica mais fácil entender o quanto essa felicidade deveria ser um direito de todos.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Os idosos

A maioria das pessoas da minha idade são conservadoras na política e nos costumes; isso é um fato que não é difícil de constatar. “Eu gosto desse político porque ele não é radical”, dizem. Ou, em contrapartida, “não gosto do fulano; ele é um radical, e os extremos são sempre ruins”. Quando elogiam uma personalidade pública fica nítido que se deixam ofuscar pela imagem de mídia que é produzida sobre ela, na maioria das vezes fantasiosa, produzida nos laboratórios de imagem das empresas que se ocupam da vida de celebridades. “Ahh, o fulaninho é uma pessoa super simples. Sabe que ele doou 1 milhão para os flagelados?”. Nessa fase da vida é muito comum que os “maduros” comecem a se interessar pela religião, pela morte, pelo cristianismo e coisas afins. Também os coroas se tornam céticos em sua visão política, alguns no nível do negacionismo; tornam-se ranzinzas, rabugentos e não acreditam haver possibilidade de que suas utopias da juventude possam se materializar.

“É sempre a mesma coisa, os políticos são todos iguais, é a roubalheira de sempre”. Via de regra, colocam os problemas políticos como afecções de caráter, máculas morais, não estruturais. Muitos acreditam na ideia de um “messias” no governo, no “bom ditador”, na “censura do bem”, “na ação enérgica da polícia”. Para estes, as pessoas que chegam ao poder político são corruptas, egoístas, espertas e desonestas. Curiosamente, não dizem o mesmo dos banqueiros, dos mega empresários, dos herdeiros, dos rentistas e nem sequer do próprio empresário que corrompeu o político. “Ahh, mas ele só fez isso para sobreviver e manter o emprego dos seus empregados”. Os políticos são sempre os que mais apanham: “Não sobra um, é preciso acabar com tudo isso que está aí, e colocar pessoas técnicas em posição de comando”. Assim, o Ministério da Indústria seria de…. um industrial, o da saúde deveria estar na mão de um médico, o ministério da agricultura, controlado por um latifundiário, etc., mas os coroas não pensam que estas posições sejam ocupadas por um operário, uma técnica de enfermagem ou um agricultor familiar, por certo. Seria radical demais.

Na maturidade o vigor das utopias e o colorido dos sonhos de uma sociedade mais igualitária vão desbotando paulatinamente. Não passa um dia sequer que eu não veja um colega de escola ou faculdade fazendo coro às manifestações mais reacionárias do momento, agindo de uma forma absolutamente individualista, falando de seus interesses próprios e sem qualquer perspectiva para a sociedade. Seu pensamento parece ser “Bem, já que meus sonhos de igualdade não vão acontecer, melhor que eu garanta um pouco de conforto na minha velhice; afinal, quem mais do que eu merece um descanso digno?”

Os antigos já diziam que o grande avaliador da honestidade é ter em mãos a possibilidade de efetuar o delito e mesmo assim recusar (ou recuar), o que me parece justo. Afinal, denunciar o suborno de alguém quando nunca teve sua honestidade realmente colocada à prova é sempre tarefa muito fácil. Da mesma forma eu digo que a grande prova do idealista e do sonhador é envelhecer mantendo jovens e vibrantes os seus ideais, sem deixar-se sucumbir pelo negativismo, pelo derrotismo e pelo cinismo. Manter suas ideias joviais, nutridas pela esperança e pela visão positiva do mundo é o que nos mantém jovens, mesmo quando a carroceria já não tem mais o vigor dos anos dourados. Por isso eu aceito ser comunista, espirita laico, internacionalista, anti-imperialista e ativista pelo parto normal, mesmo tendo plena consciência de que não estarei aqui para ver nenhum dos meus sonhos de adolescência se tornarem realidade.

Tomem aí, meus netos, a semente que vos deixo…

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Vidas comuns

Nos meus sonhos eu frequentemente encontro desafetos que passaram na minha vida. Estão lá, em situações banais e corriqueiras, em lugares onde os encontrei durante a vida: salas de conferências, cafés, restaurantes e até no assento próximo ao meu em um avião. Vejo-os de longe, agindo como sempre agiram, conversando com amigos em comum. Apesar do ressentimento que esse encontro onírico comprova, eu jamais brigo ou discuto com eles nestas ocasiões.

Na verdade eu sinto vergonha ao perceber que, quando se analisam os fatos à distância e com alguma isenção, não há real razão para brigar indefinidamente com alguém, por piores que tenham sido os desacertos do passado. Este tipo de rancor apenas demonstra a incapacidade de enxergar o mundo pelos olhos alheios. No sonho minha reação é evitar o contato, e interpreto essa ação como uma forma de não me defrontar com a dura realidade de suas vidas comuns, contraditórias, desimportantes, miseravelmente humanas e tão iguais à minha. 

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Youtubers

Filhos superstars no YouTube fazendo “unboxing” de brinquedos ou dancinhas da moda são cada dia mais frequentes, nutrindo os sonhos de crianças. Há pouco tempo nosso sonho era sermos jogadores de futebol e professoras e hoje isso pode até soar ridículo perto da ribalta luminosa da Internet. Talvez essa exposição seja tão danosa para o desenvolvimento psíquico infantil quanto drogas ou violência. O sucesso extemporâneo pode ser – e frequentemente é – muito mais destrutivo para as crianças do que a própria privação.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Utopias e Zumbis

Muitos se assombram que Geraldo Vandré tenha se tornado um reacionário na maturidade depois de ter embalado nossos sonhos de justiça e equidade com a trilha sonora da nossa adolescência ao compor “Prá não dizer que não falei das flores”. Essa música era cantada em onze de cada dez acampamentos onde houvesse um violão e a luz flamejante das utopias. Sim, e também garotas…

Eu não me assombro. Vandré tinha 30 anos quando sobreveio a ditadura e 33 anos quando sua música ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção em 1968. Era, na minha perspectiva de terceira idade, um garoto. Quando penso nele lembro muito bem dos amigos de juventude que hoje são reacionários – e muitos deles fanáticos bolsonaristas – mas que na juventude compartilhavam comigo sonhos à esquerda. As idéias dessas pessoas mudaram, ou sua postura revolucionária era tão somente uma máscara a esconder seus medos e angústias?

Fico com a segunda opção; jamais foram de esquerda ou socialistas. Eram inconformados, amedrontados, queriam derrubar “isso tudo que está aí” (como repetiram à exaustão os bolsonaristas também), mas não se conectavam com as bases que estruturam o socialismo. Eram rebeldes, mas não tinham a dureza da luta pela sobrevivência no seu horizonte próximo.

Há uma velha piada da direita que diz que “quem não foi comunista na juventude não tem coração; quem continua da maturidade não tem cérebro”. A piada serve para tentar explicar esse fenômeno: por que tantos abandonam seus sonhos, deixam a esquerda, atiram-se nos braços do conservadorismo e assumem uma posição cínica, utilitarista e desprovida de paixão?

Eu tenho uma perspectiva freudiana sobre o tema. Primeiro, a piada do “coração e o cérebro” é apenas isso: um chiste, uma troça, um gracejo que tenta explicar um fato através do humor – e o humor, ao meu ver, é sagrado. Todavia, essa piada não tem nenhum fundamento na realidade, e expressa o oposto do que se pode constatar cotidianamente. Quanto mais se estuda o capitalismo e suas contradições mais percebemos que a solução é “socialismo ou barbárie“, já que as promessas da Revolução Burguesa jamais foram cumpridas, liberando a classe proletária da exploração e oferecendo dignidade aos trabalhadores. Portanto, a presença do cérebro pode ser mais facilmente constatada naqueles que abraçam posições à esquerda do espectro político, e nunca o contrário.

Aliás, é daí que vem o mito de que as universidades são uma ameaça ao sistema, por serem “antros de esquerdistas”, exatamente porque onde se dissemina a luz do conhecimento, em especial das ciências sociais, mais se descortinam as realidades perversas do liberalismo e do Imperialismo, produzindo naturalmente um contraponto ao modelo social e econômico corrente. Ou seja: o cérebro nos leva à esquerda, não à direita.

Entretanto, o que cede insidiosamente durante a vida é o furor sexual da adolescência e da juventude. Assim como nossas juntas, também nossas paixões enferrujam, tornam-se rígidas, perdem movimento e amplitude. Somos, com o tempo, cooptados pelo sistema e pela necessidade de sobreviver – ou pela garantia de ilusórios privilégios – o que nos dificulta sonhar pelo bem comum. Acabamos nos tornando velhos ranzinzas, que jogam a culpa das mazelas do mundo nos políticos, na corrupção, no “comunismo”, nos vagabundos, etc, esquecendo a importância que o sistema injusto e opressivo ocupa na produção da realidade cotidiana.

Vandré e muitos dos meus amigos de infância, ex-esquerdistas, sofrem da fadiga dos metais, do abandono das utopias, do cansaço do desejo, da fraqueza das convicções e da senilidade de seus ideais juvenis. Mesmo entendendo a maturação de nossas propostas, vejo na desistência dessas motivações uma espécie de “morte ainda em vida”, algo que deve ter inspirado os cineastas a fazer tantos filmes sobre zumbis. Todavia, as utopias jamais morrem; como ervas daninhas elas se recolhem e retornam em solos mais jovens, cujo viço da paixão aduba as propostas de mudança.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Separações

Uma separação é sempre a morte de um sonho. Pode ser um amargo despertar ou o amanhecer radiante para o resto de sua vida. Todavia, não há como evitar o gosto ruim que sobe à boca ao abrir os olhos e ver que aquele projeto tão acalentado se foi.

Milton Frietzmann, “Memórias de uma aurora que está para chegar”, Ed Barracuda, pag. 135

Deixe um comentário

Arquivado em Citações

Sonhos e Piadas

Faz alguns dias eu sonhei que dizia uma piada no sonho que, de tão engraçada eu acordei rindo. Depois de acordado, fiquei repetindo mentalmente a piada e ainda achando graça. Voltei a dormir e quando levantei da cama encontrei meu neto se dirigindo ao nosso refeitório na “Casa Filha”. Enquanto caminhávamos em direção à cozinha eu lhe contei que havia sonhado com uma piada engraçada e queria lhe contar. Aqui na Comuna temos o costume de perguntar os sonhos de todos, e a primeira coisa que pergunto aos meus netos é se eles tiveram algum sonho interessante que desejam contar. As histórias que eles tem me descrito ultimamente são divertidas e curiosas, ligadas aos seus sentimentos, emoções e experiências infantis. Sentei à mesa do café para contar a piada, e eis que….. PUFF. A piada desapareceu da minha memória. Branco total. Esqueci por completo, sem que restasse qualquer vestígio. Pior: percebi que ela está perdida para sempre, pois caiu no abismo obscuro do inconsciente e não há como resgatá-la. Mas eu juro, por tudo quanto é mais sagrado, que ela era muito engraçada!!!

Pois esta noite eu sonhei que estava em Varadero – Cuba, com a minha família de férias. É uma cidade que gosto muito, mas nunca fui. Curiosamente, no sonho eu estava em um restaurante que sempre frequento quando vou lá, apesar de, na verdade, nunca ter ido. Minha mesa ficava bem próxima da janela e com vista para o mar, e eu estava escrevendo um relato no meu blog, “orelhasdevidro.com”. Enquanto escrevia, o garçom serviu o meu prato com uma quantidade enorme de comida, e quanto mais eu me demorava segurando o smartphone, mais ele servia. Foi nesse momento que eu me dei conta que ele só pararia quando eu deixasse de segurar o celular. Coloquei o aparelho ao lado do meu prato e percebi que ele estava me servindo uma comida tailandesa que o meu filho Lucas gosta muito de fazer à base de frango, pimenta e “green curry”. Depois de algumas garfadas o garçom de gravata borboleta, muito respeitosamente, se aproximou da mesa e perguntou:

– Señor, como está el pollo?

Ainda com um pedaço de frango na boca, respondi.

– Muy bueno, pero está muerto.

Quando eu disse isso, o garçom começou a rir, o maître ao seu lado também, e imediatamente todo o restaurante se uniu em uma gargalhada uníssona. Pela janela pude ver que toda a Varadero estava rindo de forma livre, leve e espontânea, nas ruas, na praia em frente e nas janelas dos edifícios clássicos. Talvez, aí é apenas minha imaginação, a ilha de Fidel estava toda engajada nesta risada coletiva e libertadora. Desta vez eu lembrei da piada, mas pensando bem, talvez aquela que eu esqueci deve ter sido apagada da minha memória por uma boa razão…

1 comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Adeus, pai.

Depois de 80 dias internado, em quase todos eles incapaz de se comunicar, meu pai Maurice Herbert Jones descansou hoje, dia 20 de junho, por volta das 18h. Perder o pai – mesmo para um velho como eu – é um processo muito complexo e único. Só agora, depois de tantos anos, eu consigo sentir por completo o que as pessoas me descreviam de sua dor e o significado pleno dessa tristeza.

Falar do pai que acabou de morrer é sempre um risco. Os obituários transitam entre a idealização e as manifestações puramente emocionais e – compreensivelmente – subjetivas. Pretendo me afastar, se possível, dessas narrativas. Prefiro não olhar para o meu pai como o “herói infalível” e desprovido de defeitos. Ele era um homem de sua época, com suas falhas e virtudes, mas soube deixar sua mensagem de racionalidade e coragem. Se posso dizer algo sobre ele, falo apenas que foi o norte que guiou toda a minha vida. Sei que tudo o que fiz foi para, após feito, mostrar a ele e esperar sua aprovação. Sua falta agora retira de mim a bússola, o olhar cuja direção apontava o caminho certo a seguir.

Quando eu ainda era um adolescente ele me contou um sonho que teve, cujo sentido serve a mim também como a melhor imagem para o profundo significado de um pai. Dizia ele que neste sonho seu pai – Samuel Jones, meu avô – ficou impossibilitado de conduzir uma sessão da maçonaria, onde era um reconhecido “Grande Mestre”. Os seus companheiros, diante da súbita falta do líder Samuel, imediatamente se voltaram ao seu filho dizendo “Na falta de seu pai, caberá a você tomar seu lugar. Faça a palestra e conduza os ritos”.

Em seu sonho, meu pai tremia de angústia e medo. “Não poderei jamais tomar o lugar dele. Não posso, não sei como agir; tenho medo”. Entretanto, premido pela pressão de seus pares maçons, assim como pela vergonha de recuar, aproximou-se do púlpito e fez a palestra que esperavam dele.

Ao finalizar temia ser criticado pela má condução dos trabalhos. Liderou o restante dos rituais e deu por encerrada a sessão. Ao descer do púlpito, seus companheiros maçons dele se aproximaram e o cumprimentaram pela fala vigorosa e centrada. Enquanto recebia os cumprimentos vislumbrou a figura de seu pai que, apesar de doente, veio assistir sua palestra. Este o abraçou e cumprimentou, sem muitas palavras, mas com um olhar carregado de orgulho. Meu pai contava da sensação de alívio e genuína felicidade que sentiu no sonho, em especial porque “não envergonhou seu pai”, como tanto temia.

Essa história é para mim a que melhor descreve a conexão que nos liga a figura de um pai. Para ele oferecemos nossas conquistas, e dele esperamos a compreensão pelos nossos fracassos e falhas. Este fragmento de sonho mostra que, mesmo em épocas aparentemente distantes no tempo, somos constituídos dos mesmos dramas psíquicos que guiaram centenas de gerações antes da nossa.

Eu penso que para homenagear um pai basta que se reconheça seu valor e sua trajetória. Meu pai deixou para seus filhos a mensagem de que a fidelidade aos princípios e ideais tem mais valor do que qualquer vantagem econômica. Para ele sempre valeu a máxima “Sê fiel a ti mesmo” e sua vida inteira foi guiada por este princípio.

Durante muitos anos ele me falava da curiosidade sobre o mundo espiritual. Dizia isso em especial quando a velhice chegou, e principalmente quando minha mãe faleceu há pouco mais de um ano. A saudade dela desempenhou um papel preponderante em seu último ano de vida, e por isso tenho certeza que nesse instante, quando ele recém chega no plano espiritual, minha mãe já está a fazer o que tanto gostava: está lá, ao seu lado, carinhosamente enroscada ao seu companheiro de uma vida inteira, aguardando que ele acorde da penosa travessia que acabou de empreender.

Vá em paz meu pai. Obrigado pelas seis décadas de debates, lições, exemplos, escutas e carinho. Em breve estarei aí ao seu lado e teremos, enfim, a eternidade para colocar nossas conversas em dia.

1 comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Passagens

Eu passei a melhor parte da minha vida observando a transição das mulheres – em menor intensidade também a dos homens – em direção à maturidade, como mães e pais. O parto, como corte brutal na percepção egoística do mundo, nos joga de forma mais ou menos intensa nas agruras da insegurança e da tarefa de cuidar dos que chegam. Todavia, ainda me surpreendo com a velocidade com a qual essa transformação ocorre. Muitas vezes fiquei espantado ao falar com pacientes apenas algumas semanas após o parto quando já era possível perceber – na forma como se posicionavam diante dos temas – as mudanças de perspectivas, de ênfases e de posturas. É como se a partir do parto fosse aberto um portal pelo qual a realidade ampliada pelo fórceps da experiência lhes permitisse enxergar o mundo de forma mais alargada.

O malho da dor aguda, da espera e da angústia produz a transformação, que será tanto mais intensa e profunda quando maior forem os significados depositados sobre ela. Por isso continuo a achar que a experiência da maternidade e da paternidade são dores e angústias que valem a pena ultrapassar. Por certo que saímos um pouco menos piores, menos arrogantes e mais humildes depois de termos a carne triturada na passagem por este purgatório de êxtase e lágrimas.

Além disso, tais experiências pelo vale da paternidade e da maternidade nos permitem olhar os próprios pais com mais condescendência. Fico feliz de estar vivo para ver meus filhos passando por esta transição.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Sonho

sonho bebê

Há algumas semanas eu tive um sonho muito interessante…

Fui chamado para atender uma paciente em uma sala de pronto socorro. Não era uma sala de parto, e se limitava a uma maca encostada em uma parede, tendo uma cortina de plástico a protegê-la do ambiente em volta. Quando me aproximei e afastei a cortina pude ver uma moça parindo em silêncio. Percebi seu rosto tenso e o coroamento do bebê. Olhei para o lado e não havia ninguém à volta para me auxiliar; seria eu mesmo o responsável a atender aquele nascimento. Pedi que fizesse uma força e o bebê suavemente escorregou direto para as minhas mãos. Achei apenas estranho o fato do bebê nascer com uma cabeça triangular e me preocupei com isso, achando que poderia ser um defeito genético. Olhei para a moça e vi que se tratava da minha nora, que apenas sorria, sem nenhuma preocupação.

Olhei de novo para o bebê e desta vez qualquer sinal de anormalidade havia desaparecido. Enrolei o bebê em um lençol e saí caminhando para a sala contígua à procura de um neonatologista que pudesse fazer a avaliação inicial. O bebê não chorava, apenas se movia alegremente entre as minhas mãos, experimentando os cheiros e gostos do mundo recém descoberto. Caminhei alguns passos dentro daquele pronto-socorro à procura de um colega até que, no meio do caminho, me dei conta de que não sabia o sexo do bebê. Abro gentilmente o lençol e descubro que se tratava de ….

… uma menina.

Minha procura pelo pediatra continua enquanto eu me regozijo com o nascimento de uma linda menina, até que de súbito desperto do meu sonho. Entretanto, mantenho a imagem da pequena em minhas mãos por muito tempo durante o dia.

Por acaso atendi naquela mesma tarde uma paciente querida, mãe de cinco filhos, e pude lhe contar esta história. Disse a ela que talvez fosse algo premonitório, já que foi muito intenso e na minha vida os únicos sonhos premonitórios dizem respeito ao nascimento de bebês. Ela sorriu e disse que seria muito legal se fosse.

Pois hoje ela me lembrou da história que eu havia esquecido por completo. Somente depois do lembrança dela é que pude resgatar este sonho. Agora resta saber se está correto o gênero do sonho ou – mais uma vez – vou acertar errando…

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais