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Império em queda

Hoje assisti um vídeo exaltando os Estados Unidos mediante uma estratégia conhecida: o preço mais baixo de produtos como carros, televisores, aparelhos eletrônicos, etc. comparando o poder de compra do trabalhador de lá com os salários pagos aqui no Brasil. O articulista analisava esses valores como se não houvesse um sistema internacional que privilegia a transferência de riqueza para o centro do Império, tornando os produtos lá mais baratos e o salário dos técnicos mais altos. Reduzia a sua análise ao conhecido “o liberalismo produz bem-estar”. Esquecia que a dolarização é o imposto que o mundo inteiro paga para que o cidadão comum americano tenha um poder de compra maior.

É impressionante a incapacidade da nossa classe média de desenvolver consciência de classe. Continuam achando que estão próximos da burguesia e longe dos assalariados e proletários, quando a realidade é o oposto. Enquanto isso, acreditam que os problemas brasileiros, e de resto de todo o sul global, são os impostos excessivos ou os “maus políticos”, como se nos Estados Unidos não estivessem reunidos os políticos mais corruptos do mundo – basta ver o perdão ao filho do presidente Biden, corrupto condenado e que recebeu um indulto imoral e injusto, mostrando que as pessoas não são julgadas de forma equilibrada. As pessoas aqui ao sul do equador não conseguem ver que o valor pago para um trabalhador da construção civil ou para um atendente do Mac Donald’s tem a ver com o dinheiro que circula no país e a transferência de renda para a centralidade do capitalismo, e não com o sistema político ou o valor baixo dos impostos embutidos nos produtos, como carros, televisores, computadores e lanchas. Isso não é sinal de equilíbrio, mas de opulência.

Em Nova York, a média salarial de um engenheiro civil é de 97 mil dólares por ano, enquanto na China comunista é de 108 mil anuais; lembrem que no comunismo chinês os cidadãos também pagam impostos, e não esqueçam que a China se tornou uma nação rica e poderosa apenas nos últimos 30 anos. Além disso, as pessoas que apontam a inexistência de um sistema de saúde universal como o SUS nos Estados Unidos estão corretas. Neste ano de 2024, 500 mil famílias pediram insolvência jurídica pela incapacidade de pagar as contas médicas. Meio milhão de famílias faliram devido ao valor absurdo de suas contas de hospital!! Pessoas morrem por falta de remédios e muitas preferem se arrastar acidentadas até um táxi do que chamar uma ambulância quando ocorre um acidente, pois a viagem com uma ambulância particular pode custar a totalidade do seu salário. Não é por acaso que Brian Thompson, CEO de uma das maiores empresas de saúde do mundo, foi assassinado por um jovem que teve benefícios negados por sua empresa. A companhia UnitedHealthcare, a unidade de seguros do provedor de serviços de saúde UnitedHealth Group, é a maior seguradora dos EUA, mas o cidadão médio americano odeia as empresas que lucram com a saúde, e por isso o suspeito do crime está sendo tratado como herói pelas redes sociais.

De acordo com registros do ano passado, mais de 650 mil pessoas não tinham moradia nos Estados Unidos, morando em barracas, em especial nas ruas das grandes cidades americanas, como Los Angeles. Com o estresse constante pelas guerras infinitas e pela estrutura competitiva da sociedade, a epidemia de opiáceos mata mais de 80 mil pessoas por ano. Enquanto um engenheiro civil nos Estados Unidos pode ganhar 9 mil dólares mensais, milhares de trabalhadores regulares não conseguem ganhar o suficiente para pagar um aluguel e moram em seus carros. No país mais rico do mundo, 400 mil pessoas vivem em seus veículos, muitos deles com contrato de trabalho regular. Essa exaltação do “American way of life” é anacrônica, datada, velha e equivocada. A disparidade de riqueza atingiu seus limites mais altos da história. Com o fim da dolarização que se acelera e deverá ocorrer nos próximos anos, a crise será incontornável e o cenário mais óbvio será a guerra civil – que só não ocorreu ainda porque Trump venceu as eleições.

É triste ver tanta gente tola achando que a solução é cortar impostos e ter menos políticos. Sabem onde não há impostos? Coreia Popular. Sabem onde político trabalha totalmente de graça, sem receber nenhum salário? Em Cuba. Enquanto perdemos tempo debatendo preço de carro, como se isso fosse um indicador de felicidade, esquecemos que 20 mil pessoas morreram assassinadas nos Estados Unidos em 2023. No “Brasil capitalista” houve 45 mil homicídios em 2021, enquanto na China, menos de 7 mil, para uma população de 1 bilhão de habitantes. No Japão menos de 300 pessoas pereceram dessa forma. Que sociedade de opulência, felicidade e valorização de trabalhadores é essa em que tanta gente mata?

E a drogadição? O que dizer da dependência de remédios – em especial os estupefacientes – da sociedade americana? O que dizer de uma sociedade cujos programas na TV tem propaganda de drogas e advogados o dia inteiro? Metanfetamina, crack, cocaína, Fentanil, etc. são problemas de saúde pública gravíssimos. Os Estados Unidos são uma sociedade que tem 4 milhões de usuários de cocaína, e as mortes pelo uso de drogas batem recordes todos os anos. É essa sociedade que desejam mostrar como exemplo? Só porque os carros – que matam 40 mil todos os anos nas estradas americanas – são mais baratos? Isso significa uma sociedade mais equilibrada, mais progressista e onde existe a valorização do trabalho?

O capitalismo e o imperialismo são sistemas moribundos, cadáveres insepultos, mas ainda é possível ver aplausos para um modelo que não consegue resolver suas contradições, como a concentração acelerada de riquezas e a criação de uma legião de miseráveis distribuídos pelo mundo. Há, sem dúvida, valores e virtudes naquele país – como a defesa da liberdade de expressão – mas é um modelo de sociedade que não conseguiu resolver os problemas centrais da economia capitalista, conforme previu Marx ainda no século XIX, e precisa ser substituído por um sistema mais justo e que ofereça qualidade de vida para a maioria da população, e não para uma minoria de capitalistas cada vez mais concentrada.

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Carteira de trabalho

Esta foto acima é a carteira de trabalho do meu pai, com a foto da família à época, antes do nascimento dos meus irmãos Roger e Nice Jones. Infelizmente a minha data de nascimento está errada, já que é público e notório que nasci em 1984. Reparem a angulação, ao estilo Hollywood, que a minha mãe se posicionou para a foto, e o bigodinho “limpa-trilho” do meu pai.

Sobre as fotos está o carimbo do IAPFESP – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados Públicos, que eram um dos múltiplos institutos de aposentadoria e pensões que existiam na minha infância. O INPS – Instituto Nacional de Previdência Social – foi criado no ano de 1966, originando-se da fusão de todos os Institutos de Aposentadoria e Pensões existentes à época. Já o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia federal, foi criado em 1977, pela Lei nº 6.439, que instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social.

Por sua vez o SUS, Sistema Unificado de Saúde, foi criado pela Lei 8080/1990 que desde então levou a uma trajetória de muito esforço e desafios enfrentados, diariamente, para proporcionar e garantir o direito universal à saúde como dever do Estado.

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Gentrificação

Durante uma palestra, ocorrida há 20 anos no auditório da UFBA (Universidade Federal da Bahia) ao lado da professora Robbie Davis-Floyd, eu fiz uma exposição breve sobre o movimento de Humanização do Nascimento, que à época estava atravessando um momento histórico. O sucesso da Conferência Internacional em Fortaleza e a popularização do uso da Internet haviam propiciado, pela primeira vez na história, a possibilidade de que ativistas do Brasil – e até de outros países -tivessem contato direto e imediato, compartilhando informações, anseios, projetos e estratégias de luta. A Internet – ainda antes das Redes Sociais – já servia (através dos grupos e list servers) a este objetivo, e foi através dessa ferramenta que ocorreu um salto importantíssimo na disseminação do ideário.

Minha manifestação era, evidentemente, entusiasmada. Descrevi o quanto havia de questionamentos represados por falta de canais apropriados para tantas perguntas, e o quanto a internet havia nos ajudado a produzir esta conexão, tanto entre os poucos profissionais que estavam na linha de frente pelos partos humanizados quanto pelas pacientes. Estávamos diante de uma verdadeira revolução da informação onde, por primeira vez, tínhamos todos um canal para fazer perguntas, reclamações, compartilhar dúvidas e angústias a respeito dos partos – passados ou futuros. Ao fim da minha palestra uma mulher negra de cabelos cheios de contas coloridas ergueu a mão e pediu para fazer uma pergunta. Agradeci seu interesse em participar e ofereci-lhe a palavra. Ainda com um belo sorriso nos lábios ela me perguntou:

– Muito interessante a sua exposição sobre a humanização do nascimento e o quanto esta proposta evoluiu nos últimos anos. Por certo que existe muita violência associada ao parto e esta é uma questão que temos de enfrentar com coragem e determinação. Minha única dúvida é se esse movimento se restringe a um pequeno grupo de mulheres brancas e de classe média que têm tempo para se sentar à frente de um computador para debater estas questões com seus pares, ou se ele também se interessa pela situação da mulher grávida negra e pobre da periferia de Salvador?

Senti sua pergunta como uma patada violenta no peito. Pela primeira vez eu havia percebido o quanto o nosso discurso, por mais avançado e correto que fosse, corria o risco grave de se transformar em uma moda efêmera de classe média, algo como futuramente se tornariam as clínicas para aplicação de Botox, transplante capilar ou para cirurgias de embelezamento feminino. Humanização do Nascimento trata da valorização da fisiologia do parto e das múltiplas facetas psicológicas, afetivas, emocionais, sociais e espirituais do nascimento, mas também se refere aos direitos humanos reprodutivos e sexuais, e não pode estar restrito apenas à classe social que pode pagar por ela. Se assim for não será um direito, mas um privilégio.

Aguardei o fim dos aplausos a ela direcionados e agradeci sua pergunta. Minha resposta foi curta e simples: “Você tem toda a razão; se a humanização do nascimento se tornar um modismo de classe média, então não há sentido algum em existir”.

Durante toda a minha vida eu tive esse pensamento norteando minhas manifestações sobre a questão do parto humanizado. Ele não pode ser um produto a ser vendido para quem pode comprar; não pode ser reservado apenas àquelas mulheres que tem recursos, conhecimento e informação suficientes para exigi-lo dos profissionais. Ele precisa invadir o serviço público, permear todas as instâncias de atendimento, desde o mais sofisticado e tecnocrático hospital de um grande centro até o mais remoto posto de saúde em uma minúscula cidade do país; deve estar no hospital privado tanto quanto em qualquer hospital ou Casa de Parto do SUS.

Por que não podemos admitir que esta mulher pobre que vive nos cinturões de pobreza das grandes cidades possa ter ao seu lado outra mulher cuja experiência de vida é semelhante à sua. Uma mulher que conhece as dores da privação, que entende os dilemas de uma gestação atravessada pela escassez e que, muito provavelmente, será também uma mulher que não progrediu nos estudos? É tão difícil entender que esta gestante pode desejar ao seu lado uma mulher como ela, com a mesma origem e os mesmos horizontes, para quem a diplomação no segundo grau seria um sonho muito pouco provável de ocorrer? A quem beneficiam estes limitadores? Que tipo de conhecimentos uma doula necessita para ajudar suas irmãs, os quais só seriam adquiridos na educação formal? Que tipo de formação as capacita a alcançar um copo d’água, ajudar no banho, preparar um chá, aplicar uma compressa ou uma bolsa de água quente? Que tipo de diploma nos ajuda a acalmar uma gestante inexperiente, um marido nervoso? Que faculdade ensina a cantar uma música junto com a gestante durante suas dores, ligar a “playlist” do parto, aquecer a comida dos outros filhos, ajustar a temperatura da banheira de nascimento? Quem é essa “doula tecnológica” que precisa desse tipo sofisticado de ferramenta para atuar com carinho, compaixão, presença contínua, afeto e atenção?

Se o corpo da mulher grávida é um território em disputa, não será através da “gentrificação” destes inquilinos que iremos oferecer ajuda substancial a todas as mulheres – das mais abastadas às mais carentes. Por tudo que já debati nos últimos 25 anos sobre a função das doulas, a exigência de escolarização é uma forma muito clara de elitização. Não se trata de valorizar as doulas, mas de aplicar sobre elas exigências que não permitirão que as mulheres pobres e despossuídas possam receber atendimento de suas iguais. Tal exigência subverte os princípios fundadores das doulas, que prezam pela universalização da assistência e um respeito aos valores e crenças das mulheres atendidas.

“Doulas são flores de cactos, brotando na aridez gelada e desértica da tecnocracia”.

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Amigo do Rei

Sou do tempo dos privilégios explícitos. Na minha época as credenciais médicas para atendimento eram dadas a amigos e correligionários. Credenciais do IPE (estadual) e INAMPS (federal) eram oferecidas com caráter político e de amizade pessoal. Era o padrão da época, e quase ninguém achava estranho ou imoral.

Quando os governos de esquerda assumiram a prefeitura da minha cidade resolveram acabar com a “farra dos postos de saúde”. Até então, os médicos com carga horária de 20h semanais compareciam por menos de uma hora pela manhã, “atendiam” 10 pacientes e corriam para o seu outro emprego – ou para o consultório. Eram obviamente mal pagos e isso criava uma equação perversa: “eles fingem que nos pagam e nós fingimos que atendemos”. A conta? Os pacientes acabavam pagando, como sempre. Na briga do rochedo contra o mar quem apanha é o marisco.

Zeza era enfermeira chefe de um posto de saúde nessa época e, quando passaram a cobrar os horários dos médicos através do “livro ponto” ela chegou até a receber ameaças. Retirar privilégios sedimentados de uma classe poderosa é uma tarefa das mais difíceis e penosas.

Há uns 15 anos tive de realizar uma pequena cirurgia e resolvi procurar um colega de longa data. Boa praça, bon vivant, sério e um ótimo cirurgião. Fui até seu consultório, mostrei meus exames e ele confirmou a necessidade de realizar a operação. Conversamos longamente sobre os velhos tempos, o destino dos antigos colegas e os momentos engraçados que passamos juntos.

Restava decidir onde a cirurgia seria realizada. Poderia ser no hospital particular onde ambos operávamos, mas como eu não tinha convênio algum – por razões ideológicas – a hospitalização haveria de ser privada (e cara).

Foi então que o cirurgião deu uma ideia…

– Posso lhe operar no hospital público. A fila para cirurgia tem vários meses de espera, mas posso abrir um horário fora da escala, ao meio dia, e opero você na hora do meu almoço. Não tiramos o lugar de ninguém, não furamos a fila e eu abro uma sala extra. Que acha?

Não tive nem tempo de pensar e concordei. Afinal, à primeira vista parecia razoável. Ninguém seria prejudicado e o médico doaria seu horário de almoço para a minha cirurgia. Feito.

O passo seguinte foi o colega ligar para o hospital. Pediu para falar com o setor de marcação de cirurgias. Explicou o desejo de abrir um horário de cirurgia extra, ao meio dia, para operar um colega.

Depois dessa explicação escutei um demorado “hum-hum” ao telefone. Passados alguns minutos ele agradeceu e desligou.

– Nada feito, Ric. Gertrudes, a secretária do bloco cirúrgico, me disse que se eu abrir um horário novo para cirurgia ela vai chamar o próximo da fila. Disse ainda que as cirurgias em horário especial e a pedido do médico estão proibidas há 1 ano. Quem quiser trabalhar em horários extras o fará dentro das regras e obedecendo a fila dos pacientes do SUS.

Quanto escutei sua explicação foi como se um clarão aparecesse na minha frente. A normativa fazia todo o sentido!! Não haveria porque dar aos médicos o direito de burlar as filas de cirurgia ou de exames especiais, mesmo que fosse no seu horário de almoço, até porque não havia apenas a doação do seu tempo pessoal, pois o hospital inteiro estaria à sua disposição.

Depois de ouvir as razões da funcionária da marcação cirúrgica, e quando ela tomou corpo em minha compreensão, fiquei orgulhoso da negativa. Sim, fiquei feliz que um erro que eu estava cometendo tivesse sido impedido. Percebi que havia uma nova diretriz para coibir privilégios, fazendo com que o hospital público fosse usado de forma equânime e justa, respeitando a igualdade entre todos os usuários.

Falei para o colega que eu faria um esforço e pagaria a hospitalização, sem problemas, e marcamos a operação para o hospital privado. Na saída meu colega me cumprimentou e ainda arrematou…

– Desculpe o contratempo. Não deu para marcar a cirurgia no hospital do SUS. Hoje em dia essas funcionárias se acham mais importantes que os próprios médicos. Isso está assim desde que o PT entrou. Que raiva…

Ele nunca soube que essa demonstração de respeito às pessoas simples – as que não tem amigos cirurgiões – foi algo que me marcou profundamente e que me fez respeitar ainda mais os governos populares.

Percebi também que o que mais irrita as pessoas à direita no espectro político é a ousadia dos comunistas de acreditar que não existem privilégios sagrados, corretos ou justos. Também a eles incomoda a ideia de que, para o surgimento de um país mais igual e fraterno, todas as vantagens espúrias devem ser exterminadas.

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Saúde Universal

Meu filho era recém nascido quando fiz essa carteira. Quando fui arrumar minha mudança acabei encontrando coisas que julgava nem existirem mais.

Esta é para quem tem curiosidade de saber como era o mundo antes do surgimento do SUS. Se você não tivesse a “carteirinha” (acima) não haveria como ser atendido pelo plantonista. Cheguei a trabalhar como “interno” (estudante) em um hospital da periferia onde as pessoas levavam esse documento na emergência para serem medicadas. O médico de plantão anotava o número do CTPS numa folha de papel específica e no final do mês entregava ao INAMPS, que pagava por produtividade, sem qualquer vínculo trabalhista. Claro que esse sistema era precário, e por várias razões. Citarei algumas abaixo:

1- Controle inexistente. Eu cheguei a testemunhar os médicos plantonistas pedindo a carteira de toda a família para atender uma consulta de 5 minutos para uma criança febril. Outro colega ia em uma escola próxima e se oferecia para verificar a pressão das professoras, pedindo que elas assinassem a ficha. As fraudes, certamente, ocorriam de forma corriqueira, das pequenas às gigantes.

2- Sem direitos trabalhistas. Férias, 13o salário, seguro acidente, adicional noturno, insalubridade, horas extras, etc. Quer tirar férias? Não vai ganhar nada. Quer virar 48 horas de plantão? Azar o seu. Ficou doente? Sinto muito…

3- Apadrinhamento. No início desse sistema, nos anos do milagre econômico (do “Brasil, ame-o ou deixe-o” e do Delfim Neto), pagava-se muito bem aos médicos agraciados com uma “credencial”. Esta era conseguida na base do apadrinhamento político, com zero meritocracia, talento ou qualidade. Eu lembro da frase do cirurgião do hospital que possuía desde muito uma dessas credenciais: “Olhe as casas dos médicos ao redor do hospital. Pois elas foram todas construídas por eles com suas credenciais do INAMPS, quando tudo aqui ainda era mato. Quando cheguei aqui para trabalhar essa credencial pagava um Passat por mês”.

*Nota histórica: Passat era um carro médio da Volkswagen*.

4- Exploração do trabalho. Quando eu fazia plantão como interno no hospital todos os médicos plantonistas que atendiam o ambulatório de urgências eram “contratados” – informalmente, por certo – pelo dono da credencial, que pagava um “salário” (alinhavado “de boca”) para os colegas preencherem as folhas com os nomes dos pacientes atendidos. Enquanto isso, os “proprietários” ficavam em casa ou no consultório, uma atitude ilegal que todos sabiam como acontecia, mas não havia qualquer fiscalização sobre este tipo de ação. Claro que estes plantonistas recebiam tão somente uma fração do que o “senhor feudal” recolhia ao final do mês pelo trabalho realizado. As credenciais eram as “Sesmarias” da atividade médica. Médicos exploravam seus próprios colegas na maior cara dura.

Nestes hospitais os médicos mais ricos e famosos da cidade eram – ao meu juízo – absolutamente medíocres. Do alto da mais absoluta impunidade (a medicina de 40 anos atrás) e uma falta absoluta de ética, garantiam seu posto, seus ganhos, sua posição social e seu poder através de artimanhas políticas – eram quase todos ligados à ARENA, o partido de sustentação da Ditadura – porque literalmente TUDO nessa área dependia da oportunidade de conhecer alguém que pudesse “mexer os pauzinhos” para adquirir alguma vantagem. Praticamente nada era fruto de concursos, provas, mérito ou qualidade, e tudo era feito pelas vias do “pistolão”. Foi nas brechas da desassistência aos pacientes que atendi os meus primeiros partos, nas pacientes que pariam muito rápido não dando ao obstetra credenciado (que deveria estar no hospital) o tempo necessário para “aparar” o bebê…

O SUS, quando comparado ao modelo que eu conheci na juventude, é uma conquista espetacular, um sistema maravilhoso e justo, mesmo com todos os problemas que porventura possa apresentar. Pensem nisso quando escutarem os reformistas e os entusiastas do Estado mínimo tentando privatizar nosso modelo de atenção universal.

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Saúde Universal

Eu sempre disse para a minha mulher não se separar de mim porque qualquer coisa que venha depois da excelência gera frustração. “Nothing compares to me”.

Ok, mas essa introdução desnecessária era apenas para a gente no Brasil entender que ter um sistema universal de saúde como o SUS nos faz perder a perspectiva do que seja morar em um pais onde a saúde é um negócio, regido pelas leis de mercado, e não um direito humano básico e universal. Isto é: só depois da gente conhecer a insegurança e o risco de viver sem saúde garantida é que damos o real valor ao que temos em casa.

A destruição do SUS serve aos interesses dos tubarões do mercado da saúde, aos planos privados e às empresas que lucram com a doença, mas será um desastre para a população, em especial na base da pirâmide. Triste é saber que aqueles que decidem sobre o SUS tem dinheiro suficiente para pagar planos privados, que não passam de barreiras de classe que expõem nosso Apartheid social.

Em um país decente o trabalhador mais humilde se trata no mesmo hospital – e com os mesmos profissionais – que o presidente da República, até porque a vida dele não vale menos do que a de ninguém.

Defender o SUS e combater seus desvios é defender a democracia, a equidade e a justiça social. Atacar o SUS é ameaçar nossa soberania.

Como é a vida sem o SUS?

No gráfico abaixo vemos o número de pessoas que vão à falência TODOS os anos em razão de suas contas hospitalares e gastos com a saúde – tratamentos crônicos, medicamentos, acidentes, etc. No Brasil suspeito que o número também seja zero…

É para esse modelo que vamos trocar por causa de um Chicago Boy pinochetista?

Já aqui abaixo podemos lembrar da famosa conta para uma picada de Cascavel na gringolândia. Em dinheiro tupiniquim são R$ 820 mil golpitos, o preço de um maravilhoso apartamento em uma capital do país. Não há picadura que valha isso tudo (desculpem). No SUS o tratamento seria “gratuito” – em verdade sabemos que qualquer custo no Sistema Único de Saúde é pago pela nossa contribuição mensal ao sistema.

É para um sistema desumano e mercantilista que vamos migrar? Defender o SUS é defender a solidariedade como marco ético para o país.

Aqui temos outra famosa conta hospitalar gringa de um parto onde o ato de colocar o bebê em contato pele-a-pele com a mãe teve uma cobrança de 36 doletas. Quando uma ação simples, humana e banal – alcançar um bebê para sua mãe segurar – pode ser contabilizado, então não há limites para a mercantilização da própria vida.

É isso que desejamos para o Brasil?

Quando a “mão invisível do mercado” regula o preço dos medicamentos e dos procedimentos médicos sem qualquer interferência da população, podemos testemunhar a ganância e o desejo de lucro sobrepujarem os valores humanos e a fraternidade. É exatamente isso o que assistimos nos países onde a atenção à saúde é um comércio como a venda de celulares ou de bananas. O lucro estará acima dos valores essenciais de solidariedade e do amor ao próximo.

É esse o país que queremos deixar para os nossos filhos?

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SUS

Em todos os lugares fora do Brasil onde falei sobre o SUS para explicar a diferença nas taxas de cesariana entre os 3 diferentes tipos de atenção (público, privado e medicina suplementar) eu sempre vi olhos brilhando e entusiasmo com o nosso sistema universal de atenção, em especial entre os americanos. Para eles um modelo solidário, onde o adoecimento não significasse a bancarrota, onde houvesse segurança de atenção para todos e os pobres tivessem atendimento digno, sem precisar de esmolas e caridade, era o paraíso da atenção digna à saúde.

Quando vejo os ataques ao SUS, o projeto de lenta e insidiosa privatização, o desmantelamento e o sucateamento planejados para depois dizerem que a venda era “necessária” eu fico imaginando o horror destes amigos americanos americanos ao perceberem que estamos imitando o que existe de pior na cultura liberal deles: a doença como negócio.

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Fechamento

Sobre o fechamento de setores do Hospital da PUC de Porto Alegre (obstetrícia, neonatologia, pediatria e cirurgia pediátrica) escreve abaixo um médico que lá trabalhou por vários anos. Acredito apenas que seu diagnóstico final está equivocado; não é “neoliberalismo” o nome dessa doença, mas CAPITALISMO. Esse modelo econômico, quando aplicado à saúde é trágico e desumano. Como fica bem claro no texto, partos, nascimentos e crianças “não dão lucro”. Agora o hospital vai centrar suas ações na áreas que dão mais dinheiro e, via de regra, aquelas que produzem menos impacto na saúde da população. Ou alguém ainda vai discutir que um bom nascimento e uma boa infância são os caminhos mais seguros para uma vida saudável?

Ahhh, não sei se é o caso do colega, mas quando lembro do apoio entusiasmado dessa corporação em favor de Aécio, depois os ataques contra Dilma, pela prisão injusta de Lula e finalmente a favor da eleição de Bolsonaro eu fico pensando… o que esperavam depois de tantas escolhas insensatas e umbigocêntricas?

A partir de agora sugiro aos guardas do hospital que, quando forem obrigados a mandar uma grávida ou uma criança doente à procura de outro hospital, que orientem os pacientes para que peçam ajuda à “mão invisível do mercado”. Talvez assim eles mesmos passem a entender que saúde NÃO é negócio. Talvez pela dor possam compreender que assistência à saúde é um direito humano básico, essencial e inalienável, a que todos devem ter direito, não obstante sua condição econômica.

E viva o SUS.


Texto de José Beltrame Cusco

“Hoje é um dia muito triste para mim. Daqui a pouco vou para o Hospital São Lucas da PUC-RS para o que será o meu último plantão na instituição – e dentro de poucos dias serei demitido, juntamente com outros colegas. Trabalho no Centro Obstétrico e este será fechado, extinto, como também os serviços de Pediatria, neonatologia e Cirurgia Pediátrica. A justificativa? É porque estes serviços “não dão lucro para o hospital.” Alguns colegas, professores com muitos anos de casa e um trabalho de qualidade notável já foram demitidos sem a menor consideração, inclusive pegos de surpresa, porque ninguém da direção teve a mínima decência de consultar os profissionais.

No aspecto pessoal, vou perder uns 30% dos meus ganhos, o que causa impacto mas não chega a ser nenhuma tragédia, porque ainda dará pra ter um padrão de vida confortável. Muito pior é para alguns profissionais que trabalham exclusivamente lá. E muito pior é o impacto no sistema de saúde pública da cidade, e para as pacientes do SUS que atendemos sempre com toda a atenção e o cuidado que elas merecem. E para as crianças e seus pais aflitos com as doenças que atingem os pequenos. E agora? Que se virem, que procurem outros hospitais – que vão ficar ainda mais sobrecarregados.

Há prejuízo também para os médicos residentes, que prestaram um concurso difícil para fazer sua especialização no hospital de sua escolha, com qualidade, e que serão realocados para outros hospitais que jamais escolheriam. E prejuízo ao alunos do curso de Medicina da PUC, que não terão onde acompanhar atividades práticas em duas áreas importantíssimas da medicina (pediatria e obstetrícia) e terão que “pipocar” por outras instituições… O curso de Medicina da PUC, com mensalidade caríssima, já foi considerado o melhor curso entre as universidades particulares – e vai deixar de ser. Mas a mensalidade não vai baixar, é óbvio.

Eu fiz minha formação como especialista no Hospital de Clínicas, que felizmente tem outra cultura e outra visão como instituição, mas trabalho no hospital da PUC praticamente desde sempre, desde que acabei minha formação. Eu fico muito triste com isso, mas a indignação é maior que a tristeza. O nome disso?

Neoliberalismo.”

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Doulas e SUS

doula-gioia-albano

Sobre as leis de doulas que estão surgindo em várias partes do Brasil cabe uma reflexão:

O SUS é universal e gratuito e precisamos protegê-lo. Não cabe cobrança de nenhum profissional. Se doulas começarem a cobrar pelo seu trabalho isso oferece uma fresta perigosa para qualquer profissional também fazer cobranças pelo seu trabalho. Se quisermos manter o SUS gratuito teremos que ser firmes em sua defesa. Os caminhos para a atenção em hospitais públicos do SUS me parecem ser o da incorporação das doulas as equipes de saúde (como funcionarias regidas pela CLT) ou o voluntariado (como já ocorre em alguns hospitais, como o Sofia Feldman). Nos serviços privados a escolha será livre, assim como o pagamento.

Não vejo dificuldade em admitir doulas nos hospitais particulares, como já vem ocorrendo há uns 15 anos ou mais, mas precisamos ter MUITO cuidado com os hospitais públicos. Por isso as leis que garantem o acesso de doulas precisam ser muito bem fundamentadas e cuidadosas, sob pena de criarmos mais dificuldades para a implantação desse modelo do que facilidades para o livre acesso ao trabalho delas.

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