Arquivo do mês: abril 2015

Cesarianas e Mamadeiras

Bisturi-Mamadeira

No Brasil, em especial na minha cidade, não eram apenas os obstetras a reclamar de posturas conservadoras em relação à utilização desmedida de cesarianas. Falar em “segurar a mão”, respeitar a fisiologia do parto e estimular o parto normal produzia um incômodo para os médicos de outras especialidades, em especial a pediatria. Em verdade existe mais do que o meramente manifesto no discurso sobre as cesarianas.

Para a medicina a cesariana representa a vitória da técnica e da razão sobre a selvageria dos corpos; a mente sobrepujando o destino. Se é verdade que a cesariana, em suas origens, nos oferecia esta promessa redentora, há muito deixou de ser esta peça fundamental na manutenção das vidas em jogo. Tamanho foi seu desvirtuamento que hoje seu uso abusivo representa uma real ameaça ao bem estar de mães e bebês.

Eu costumo analisar estes fatos de forma comparativa, pois essa visão nos ajuda a prever os passos seguintes. O movimento da amamentação também tinha a sua “cesariana”: a fórmula láctea, a mamadeira. Abolir seu uso, ou minimamente discipliná-lo, significava criticar um objeto icônico da revolução feminista. Para cada passo em direção a uma legislação mais constritiva para os leites artificiais grupos ligados à liberação feminina protestavam, pois as mamadeiras representam a liberdade conquistada pela mulher dos grilhões da sua biologia. Com as mamadeiras foi possível alimentar seu filho e manter seu emprego na fábrica, ganhando com isso a autonomia fundamental para uma vida livre e independente. As mamadeiras eram mais do que cilindros de vidro com leite artificial: eram armas poderosas contra a opressão.

A experiência humana nos deixa claro que não há como dar passos para trás. A humanização do nascimento entende a importância e relevância dos recursos tecnológicos para a melhor qualidade possível do parto, e para isso a cesariana continuará existindo. Da mesma forma a liberdade e autonomia das mulheres é uma conquista que não permite retrocesso. Em ambos os movimentos é imperioso que se encontre o bom senso e que a saúde dos pacientes se estabeleça acima de qualquer consideração. Quando recursos originalmente designados a auxiliar produzem entraves, é o momento de adotar uma postura crítica e rever posturas e conceitos.

Médicos estão convidados a fazer esta reflexão sobre os caminhos do cuidado com as gestantes. Se a tecnologia – apanágio da razão – é ferramenta essencial, mais ainda o bom senso e as evidências científicas devem ter papel preponderante nas escolhas.

La OMS pide que las cesáreas sólo se hagan cuando sea clínicamente necesario

http://www.lavanguardia.com

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Admirável Mundo Novo

Acompanhei meu pai a uma consulta médica em um centro clínico ligado a um hospital da minha cidade. A princípio seria uma consulta banal, para entrega de exames e uma conversa sobre os medicamentos que ele utiliza. Marcada a consulta nos dirigimos ao hospital.

A entrada do prédio é majestosa, por onde seguranças discretos passeiam de um lado para outro, com os indefectíveis fones de ouvido. O hall é grande, amplo, marmóreo e limpo. Se de um lado tal magnitude reforça a imponência do ambiente, por outro lado diminui de forma considerável a importância do sujeito que o procura. Eu me senti pequeno, diminuto, uma minúscula engrenagem num sistema gigante. Apresentamos nossos documentos de identidade para funcionários de uniforme. Meu pai tentou dizer uma gracinha costumeira para a funcionária, para tentar desmanchar seu olhar soturno. Nada conseguiu. Após dizermos o nome da médica e a sua especialidade, recebemos nossos crachás magnéticos e brevíssimas instruções de como usá-los nas catracas eletrônicas.

Ao lado da recepção uma grade é interrompida por pequenos monstrengos cromados: as catracas. Uma leve aproximação do crachá modernoso e uma seta verde brilha no aparelho trifásico. Está liberada. “Catrrracc“, grita o bichano quando meu corpo empurra seus braços de ferro. Sim, ponderei… nada mais é que uma onomatopeia, mas só hoje, depois de mais de 50 anos, eu me dei conta dessa banalidade. Nunca é tarde para se aprender com a experiência cotidiana. Pegamos o elevador que vai para o décimo segundo andar. Impossível não lembrar:

Estranho é gostar tanto do seu All Star Azul
Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras
Satisfeito sorri quando chego ali
E entro no elevador
Aperto o 12 que é o seu andar
Não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem
Ficou pra hoje

Infelizmente não era Cássia Eller que estava nos aguardando para terminar aquela conversa que começamos no outro dia. Na verdade eu gostaria de lhe dizer muita coisa. Queria ouvir sua voz rouca, falar sobre seu filho, a dureza de uma vida conturbada, suas dificuldades em lidar com a sexualidade sem arreios. Queria também lhe perguntar, por exemplo, naquele fatídico dia, o que ela…

Meu pai interrompe meus pensamentos e aponta para uma máquina pequena à nossa frente. Pequena e amarela, com um botão azul. Sobre ela o lia-se um cartaz: “Retire sua senha e aguarde ser chamado”. Aperto conforme determinado e o aparelho vomita uma tarja amarelo-biliosa com um número destacado: 341. Digo ao meu pai que é melhor sentar e aguardar, pois ainda teremos 340 consultas antes da nossa. Ele sorri, pois sabe que este é um humor típico da nossa família, e a culpa é sua por essa herança maldita. Seguimos em frente e entramos na ampla sala de espera do centro clínico.

A sala estava repleta de pessoas, mas achamos vagas duas poltronas no canto. À nossa frente uma linha de recepcionistas com telefones acoplados à cabeça. As pessoas na recepção não sorriem, parecem tensas ou conformadas. Não existe nenhum vestígio de alegria. Meu pai ainda tenta me contar piadas, ou fazer comentários curiosos sobre as pessoas presentes, mas o ambiente não ajuda. Ficamos alguns minutos aguardando que algo viesse a acontecer, mas a TV ligada à nossa frente com reprises de novelas dos anos 90 era o único som a preencher o ambiente carregado. As janelas mostravam um dia radiante, com temperatura ainda amena e agradável, mesmo que o clima dentro da sala de espera fosse artificialmente controlado. Os raios de sol passavam raspando pela última das janelas, deixando um filete radiante e dourado na parede adjacente, anunciando que o pôr do sol não tardaria.

Resolvi me levantar e perguntar o que ocorreria a seguir. Dirigi-me à recepcionista que estava livre e sem dizer nada apresentei a ela minha “senha”: 341. Ela me cumprimentou sorridente e disse que já ia mesmo chamar. Avisou que a consulta está confirmada com a doutora “P”, neste mesmo andar, e que anunciaria no sistema de alto-falantes quando fosse a hora de entrar. Já haviam transcorrido mais de 30 minutos de nossa chegada e o horário da consulta também já tinha passado.

Voltei para o meu lugar e meu pai apenas deu de ombros. Continuamos a conversar sobre amenidades: meu neto, a comunidade que pensávamos criar, minha mãe. Alguns minutos mais tarde o alto-falante anunciou: “Pacientes da doutora “P”….

Levantamos imediatamente, mas notamos que ao nosso lado outra pessoa também se ergueu. O som do alto-falante continuou: “Pacientes da doutora “P”…. as consultas estão atrasadas em uma hora”. Percebemos que o senhor que se levantou ao nosso lado também esperava por uma consulta com a mesma médica. Olhou para nós conformado e resolveu ligar para alguém da família avisando o atraso. Finalmente, uma hora e meia após o horário previamente marcado, e a recepcionista nos avisou. “Por favor, dirijam-se ao consultório de número 11 no corredor à esquerda”, diz a secretária. Um pequeno passeio pelo labirinto e fomos levados pelos números nas portas idênticas até o consultório. “Consultório 11 – Office 11”, dizia a placa bilíngue, obviamente preparada para a Copa do Mundo.

Era tudo branco. Uma parede branca, cadeiras brancas. Um computador sobre uma mesa branca e nua. A Dra. “P” nos recebeu amavelmente, com um sorriso e boas-vindas. Nem uma palavra sequer sobre o atraso de uma hora e meia. Lembrei das palavras do meu filho, quando costumava almoçar comigo próximo do meu consultório, na época em que ele estudava no centro da cidade. Saíamos do restaurante, depois de muita conversa, às 14h, o exato horário em que estava marcada a minha primeira consulta da tarde. Na verdade o consultório ficava na mesma quadra do edifício onde eu trabalhava, o que me faria chegar 5 minutos atrasado. Diante dessa minha desculpa, meu filho sempre respondia: “Claro, são os SEUS cinco minutos, e não os do paciente. Eles que esperem, afinal são pacientes, certo?” Ele tinha razão, mas os atrasos em consultórios médicos, excetuando-se a parcela menos expressiva de atrasos justificáveis, são derivados da curiosa tessitura que compõe esse encontro. A espera do paciente – muitas vezes torturante – é a primeira parte da consulta; ela serve para mostrar quem manda naquela relação. O chá de banco é uma instituição que normatiza relações de poder desde que o mundo é mundo – ou desde que os bancos foram inventados. O tempo, a mais importante mercadoria, se mantém sob o controle de quem detém o poder. Ao doente, já desempoderado pela sua fragilidade física ou emocional, só cabe esperar. E ser “paciente”.

A Dra. “P” começou a sua consulta e pediu para que o meu pai esclarecesse o que ocorreu em suas últimas entrevistas. Percebi que ela lembrava muito pouco do caso que estávamos trazendo à sua frente. Olhava para meu pai tentando lembrar detalhes, até que ele mencionou um exame realizado, o que a fez ligar instantaneamente uma lanterna mental que iluminou um espaço obscuro de suas lembranças. Depois disso ela perguntou as reações a algumas medicações e os efeitos previstos no organismo.

Nenhum papel, nenhuma anotação. Não havia uma caneta sobre a mesa. Nada, uma mesa branca, limpa, estéril. Não havia marcas da consulta anterior, nenhuma ficha sobre um canto da sala. Este ambiente era idêntico a um pequeno ambulatório, como aquelas salas de hospital onde se aplicam injeções ou se faz uma nebulização. As paredes, alvas e nuas, não tinham nenhuma marca, nenhum prego. Somente atrás da cadeira da doutora havia uma pintura abstrata, igual a várias outras espalhadas pelo centro clínico. Percebi que estas obras eram feitas em série: o mesmo artista, a mesma técnica. “Ah, você é artista? Pois queremos comprar umas obras suas. Quantas? Umas 100, todas do mesmo modelo, assim, como se diz? Ahhh… abstrato

Não havia livros na sala. Ou revistas. Qualquer informação era obtida pelo computador. Percebi que a história do meu pai estava ali, na tela, mas era apenas a fotografia biológica de um sujeito; nenhuma percepção subjetiva, impressão, ideia ou intuição. Não, apenas cálcio, sódio, ferro, hemogramas, eletrocardiogramas, ureia e fosfatases. A nudez absoluta, a minimalização extremada: uma pessoa reduzida aos seus componentes moleculares. A complexidade infinita de um sujeito condensada em poucos elementos químicos e desenhada nas linhas de traçados sinuosos.

Percebi, com uma espécie de espanto, que aquele consultório não era da Dra. “P”. Aquele era um “consultório genérico”. Uma mesa branca, uma maca branca, paredes brancas e um computador. A Dra. “P” provavelmente chegou ao hospital e perguntou às secretárias qual consultório havia sido designado a ela para as consultas daquele dia, e para lá se dirigiu. Não havia nenhuma marca pessoal: a foto do namorado, ou do marido, uma foto de crianças ou de um lugar que lhe trazia lembranças agradáveis. Não, ela era tão alienígena ali quanto nós.

Fui obrigado a fazer uma comparação mental com o meu consultório. Livros pela sala, que servem de consulta à Matéria Médica e ao Repertório Homeopático. Livros de obstetrícia e manuais do Ministério da Saúde. Quadros nas paredes da recepção. Pedras sobre a mesa, presentes de uma paciente geóloga. Ao lado esquerdo dos pacientes um nu feminino e as fotos de meus filhos misturadas – propositalmente – com crianças fotografadas em Serra Pelada por Sebastião Salgado. Papéis espalhados, fichas de pacientes, calendários de data menstrual, anotações de partos futuros e datas de palestras. Café, muito café. Crachás de palestras que participei, coleção que imitei de Debra Pascali-Bonaro. Música no computador, onde uma foto sorridente do meu neto Oliver aparece em alta definição. E Zeza ao meu lado…

A Dra. “P” explicou pacientemente as medicações e as medidas a serem tomadas. Foi educada e mostrou interesse em todas as informações, mas era possível perceber, mesmo que de forma muito sutil, a impaciência para o término da consulta. Sim, não mais do que 20 minutos já haviam passado, mas o que mais há para se falar sobre moléculas, exames laboratoriais e efeitos colaterais de medicações? Meu pai, ingenuamente, espichava a conversa e tentava falar dele, de suas manias, seus jeitos, suas ideias e suas suposições. Arriscava disgnósticos baseados em suas percepções e na sequência lógica de eventos que experimentava. Criava fantasias sobre suas dores e sofrimentos e a possível conexão destes com seu mundo afetivo e emocional. Nada disso parecia cativar a atenção e muito menos atiçar a curiosidade da jovem doutora; nada a fez aprofundar qualquer dessas questões. Meu pai falava de uma conexão para ela inexistente, mundos separados por séculos, onde os desejos, as paixões e a angústia haviam se divorciado da carne crua, e com ela não mantinham nenhum contato. Mas meu pai não sabia desse divórcio litigioso e continuou a falar sobre sua alma até que eu, gentilmente, lhe toquei o braço, anunciando que era tempo de “liberar” a doutora da nossa presença.

Combinamos uma nova consulta para um par de meses, apenas para acompanhar o andamento das novas medicações. Nos despedimos e caminhamos em sentido inverso no corredor branco que nos levava de volta à recepção, e de lá para os elevadores, as catracas e o mundo. Falei ao meu pai que aquela consulta poderia ter sido feita por telefone, durando não mais do que 15 minutos de simples informações, o que ele concordou. Comentei que naquele ambiente nós não somos relevantes; somos peças de uma engrenagem, da qual o médico é também apenas mais um elemento. Percebi que quem fez a consulta foi o computador, o sistema: os exames, as análises laboratoriais, as pesquisas dos remédios, tudo isso é feito por programas específicos que guardam todas as informações. Ao mesmo tempo em que somos estorvo, o médico se torna, paulatinamente, supérfluo.

Eu havia visitado com meu pai o “Admirável Mundo Novo”, ou as clínicas de eutanásia de “Soylent Green”. O cenário futurista e tecnológico servia para deixar claro que o importante no local é o fluxo ordenado, a segurança e o controle; as consultas são meros acessórios para a fluidez mecânica e programada de todos os elementos do atendimento. A identificação, as catracas, as senhas, a espera tediosa, a consulta meteórica, as salas nuas e despojadas, o tratamento educado, gentil e intencionalmente impessoal, tudo me mostrava que ali não éramos as estrelas. Sim, Cássia, ali nós não fomos “All Star“. Não, os pacientes são pontos escuros em um mapa de circulação humana numa central cibernética. Nada naquele dia me mostrou afeto, proximidade, carinho, cuidado centrado no sujeito, entendimento e visão complementar. Tudo era branco demais, limpo demais, claro demais. Estéril.

Pensei na minha abordagem “narrativa” de pedir a uma paciente – que me procurava por um corrimento ou uma dificuldade em engravidar – que discorresse livremente sobre sua vida e suas paixões; sua história e seus sonhos. Percebi que é provável que muitas clientes pensassem nisso como uma absurda perda de tempo, uma conversa sem sentido e que apenas atrasava a chegada “ao ponto”: a mancha, a dor, a cólica, o prurido, as tripas, as angústias e as feridas. Por outro lado, algumas percebiamm que é exatamente nessa conversa e nessa experiência exonerativa que se instalava a verdadeira conexão terapêutica. Não é no remédio, na droga ou no bisturi: é na palavra, a não ser quando o desequilíbrio avançava a ponto de não ser mais possível recuperar o dano que se instituía no corpo.

Minha mente me fez lembrar, sorrindo, das minhas consultas na Liga Homeopática. Lá, mesmo que não soubessem, os pacientes marcavam uma consulta mas recebiam duas. A minha, consulta médica propriamente dita, e a “consulta” que tinham com a secretária que os atendia na recepção. Esta mulher, dotada de uma rara sabedoria, acalmava, tranquilizava, oferecia alternativas, orientava e preparava os espíritos para a consulta que ocorreria em alguns minutos. Por mais que entendamos os limites destes encontros, é importante reconhecer e reverenciar seus aspectos terapêuticos. Ali, tudo era conexão: os filhos, o emprego do marido, as dores nas pernas, a gastrite e as gripes; nada fugia à necessária conexão com o todo.

Já na rua me despedi de meu pai. Foi um prazer poder acompanhá-lo à consulta, e penso que os filhos deveriam fazer isso sempre. Infelizmente percebi que o mundo contemporâneo não trata os pacientes como as estrelas no cenário da atenção. A tecnologia, com seu canto sedutor, nos faz acreditar que as paredes brancas e assépticas de uma clínica, o avental impecável de uma jovem doutora, o computador cheio de dados e números, possa – por fim – nos desvendar os mistérios últimos que nos constituem. A pobreza das respostas, a falha de cumprir com sua promessa de nos redimir da dor e da morte, nos mostram que pouco ou nada sabemos de profundo sobre os enigmas que nos rondam. Saímos do centro clínico com algumas angústias a mais do que tínhamos ao chegar. Voltei meu olhar para a rua e caminhei em direção ao estacionamento. Pensei mais uma vez em Cássia… e falei com ela em meus pensamentos. Na minha cabeça chegaram palavras, palavras ao vento…

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar

Que o nosso amor pra sempre viva
Minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será

Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras

PS: Voltei a ler esse texto 10 anos após ter sido escrito. Coloquei minhas impressões no papel logo depois da consulta com meu pai. Nesta época, tanto ele quanto minha mãe ainda estavam vivos. Na verdade, ao escrever o texto ocultei detalhes importantes. Não era uma “doutora P”, mas um médico, muito jovem, um neurologista com poucos anos de formado, e a consulta era para a minha mãe (que não tinha condições de estar presente). Esse jovem neurologista era profundamente arrogante, insensível e sem qualquer tipo de empatia. Ele havia atendido a minha mãe durante uma crise terrível que ela passou no hospital Moinhos de Vento e chegou 2 horas após ter sido chamado, e para esse atraso sequer pediu desculpas ou se explicou. Chegou ao hospital vestido como se estivesse em uma festa, e fez questão de deixar claro – por suas atitudes – que a crise neurológica de minha mãe estava atrapalhando sua vida social. A consulta havia sido marcada com ele porque foi automaticamente agendada quando minha mãe recebeu alta.

Não revelei isso no texto original porque era a minha irmã quem controlava os médicos do meu pai e da minha mãe e eu não queria que ela soubesse da minha contrariedade; não desejava ser o responsável por atrapalhar uma transferência que podia existir. Muitos anos depois meu pai me disse que havia detestado a consulta e o médico, mas não quis me dizer para que eu não pensasse mal dele. Fiquei muito impressionado com o péssimo atendimento da chamada “medicina de grupo” (meu pai tinha Unimed) e percebi o quanto este tipo de seguro saúde vale muito mais como divisor de classe social do que um verdadeiro “upgrade” na qualidade do atendimento. Uma sociedade realmente evoluída não divide a atenção à saúde por classes: num mundo ideal, o médico do Ministro atenderia também os faxineiros do Palácio.

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Ativismo e Política

Jean Wyllys 1

No episódio do encontro do deputado Bolsonaro com seu desafeto político Jean Wyllys em um voo recente, creio que o comportamento do Bolsonaro foi absurdamente infantil e grosseiro para um cidadão na sua posição e idade. Filmar seu colega de congresso da forma como ele fez não tem justificativa, nem se eles fossem colegiais. Também acredito que Bolsonaro representa as forças mais retrógradas e conservadoras do país, além de significar uma ameaça a própria sobrevivência da democracia. Jean Wyllys, por sua vez, representa o novo, o diferente, e sua defesa aberta e corajosa das comunidades LGTB – e mesmo da humanização do nascimento – são novidades no parlamento, e que nos enchem de esperança.

Porém acho que a atitude do Jean Wyllys no episódio do avião foi despreparada e pouco esperta. Ele poderia ter capitalizado para suas causas. Poderia ter sido simpático, feito uma piada, esboçado um sorriso. Infelizmente faltou a ele o que sobrou ao deputado Bolsonaro: jogo de cintura e agilidade para encontrar uma brecha nos fatos para fazer política.

Ficar emburrado apenas mostrou seus limites. Não acho que todo mundo tenha que suportar calado ou hipocritamente sorridente a presença de um ogro, ou mesmo aceitar a presença destes sujeitos, mas os estadistas aprendem como fazer isso, a ponto de conquistar o respeito até dos adversários. Por isso existem políticos e estadistas.

Um estadista pensa longe e dialoga até com ditadores e assassinos. Por isso ele é especial. Qualquer um que estivesse sendo assaltado tentaria dialogar com o criminoso, para ao menos garantir uma redução de danos. Infelizmente o deputado Jean se portou como uma pessoa comum, sangue quente, e que preferiu manter sua coerência e os SEUS valores a ganhar pontos para suas lutas. NÃO é assim que se faz política de qualidade, que nada mais é do que a arte de compor, de ajustar, de aproximar e de provocar acordos e consensos. Porque não negociar com Bolsonaro? Ora, porque Jean Wyllys não se deu conta que a postura PESSOAL dele vale muito menos do que os MILHARES que ele representa. Nesse episódio Bolsonaro saiu com jeito de bem humorado e fanfarrão, e Jean saiu com cara de garoto emburrado.

A atitude do Jean foi pessoalmente coerente, e politicamente burra.

Aliás, os mais velhos podem lembrar: a postura do Lula e do “velho PT” nos anos 80 era assim: “não falamos com burgueses, que exploram o povo, roubam, são corruptos, defendem os interesses dos banqueiros e blá, blá, blá.“. Isso era apenas infantilidade e imaturidade do PT, que foi corrigida posteriormente com uma ampla política de alianças, com a ideia de que não existe pessoa suficientemente suja com quem não seja possível fazer um acordo, desde que isso ajude a produzir avanços e conquistar espaços.

Eu não acuso o deputado Jean de ter feito algo errado; apenas o “acuso” de ser normal, de agir como qualquer pessoa diante do mesmo desafio. MEU erro foi esperar dele uma atitude inteligente e diferenciada, curiosa e única, brilhante e propositiva. Meu equívoco foi criar uma expectativa exagerada sobre um político – aparentemente – comum, que diante de um desafio preferiu ficar emburrado, perdendo uma rara possibilidade de capitalizar politicamente o evento.

Se for possível fazer uma análise isenta e desapaixonada, serei obrigado a reconhecer que, se há alguém com espaço para crescer diante de seu eleitorado, este é o Bolsonaro. Jean é um militante, um representante ainda politicamente imaturo.

Agressões verbais para o Bolsonaro é o que o faz crescer. Analisar esse episódio de forma pessoal, chamando o ex milico de “monstro” é tolice. Convido a todos para que observem este evento pela ótica verdadeira: o teatro político. Visões pessoais e morais (nesse caso) são inúteis. Verme, monstro, animal… Enquanto for esse o discurso Bolsonaro vence, e avança mais e mais. Ganhou 400.000 votos no Rio por causa disso, e ganhou mais alguns pelo episódio tosco do avião.

Sabe o que seria uma atitude genial do Jean Wyllys? Sentar do lado dele e fazer bullying, gravar um vídeo, dizer palavras de amor, segurar a mão dele e tentar fazer o Bolsonaro ficar envergonhado, emburrado e constrangido. E cair na risada!!!!

Xingar o Bolsonaro… quanta criatividade.

Diante do que ocorreu me permito perguntar: “Que ganho há para os homossexuais e minorias ficar zangado diante da chacota do Bolsonaro? O que avançamos com essa atitude mal humorada?” Eu respondo: NADA!!! E xingar também não. Ali era o lugar de uma grande sacada armada pelo destino: inimigos lado a lado. Foi o que o Bolsonaro fez, e o Jean Wyllys caiu!!!

Mas agir de forma bem humorada não é ficar em cima do muro, pelo contrário. É mostrar que o SEU jogo não é o da mágoa, do rancor e do ódio!!!

Política é mais do que atacar posições contrárias: é almoçar com o diabo e jantar com o demo, negociando algumas almas, salvando alguns poucos pecadores e avançando terreno. Não acredito que o deputado Jean agiu errado. Ele apenas foi medíocre, e (meu erro) eu esperava mais dele. Tolice minha. O grande erro é confundir atitudes pessoais com atitudes políticas.

É possível que eu tivesse as mesmas atitudes que o Jean teve: sairia de perto e ficaria em silêncio, emburrado e brabo. Mas eu sou medíocre e comum, e não um signatário do povo. Meu erro foi esperar política de quem, até agora, só aprendeu a militar para o seu eleitorado.

Espero que Jean Wyllys possa fazer uma leitura madura desse episódio, para perceber que em política estes encontros não se repetem e que precisam ser capitalizados em benefício das causas que defendemos.

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Fabrício e Adelir

Fabrício-Adelir

Exatamente nos umbrais de abril, um ano depois de Adelir ser forçada a realizar uma cesariana sob ameaça e coerção, um jogador de futebol se rebela, joga a camisa do clube que o sustenta ao solo, sai de campo vaiado, recebe ofensas de todo tipo (raciais?) e termina seu ato dizendo que vai embora para não mais voltar.

Qual a relação entre estes dois fatos, ocorridos na mesma terra, no extremo mais conservador do Brasil?

Não creio em coincidências, e muito menos que a distância entre estes fatos não possa ser ultrapassada com um pouco de análise crítica. Penso que os valores que circulam no campo simbólico acabam se acumulando sobre as nossas cabeças como nuvens, as quais por fim se precipitam sob a forma de raios e tormentas aparentemente sem causa, diante de fatos cuja intensidade oportuniza uma fissura na casca protetora dos discursos.

Os elementos que ressaltam em ambos os casos são relativos à forma como a sociedade enxerga estes personagens. Se de um lado Adelir era uma “máquina de parir” à nossa disposição, cujo produto – o bebê – a nós pertence, também Fabrício é uma “máquina de jogar”, cujo passe pertence ao clube, e sua arte a todos nós. Um jornal local chegou a chamar Fabrício de “um ativo financeiro do clube” e que, por isso (seu valor como mercadoria), deveria ser preservado.

Em ambas as situações os sujeitos coisificados se rebelaram.

Adelir refugiou-se em sua casa com uma doula, aguardando o momento mais adequado – o mais tarde possível – para chegar ao hospital, esperando com isso conseguir seu parto normal. Foi ameaçada, trazida de casa por policiais armados e sem chance de defesa. Sucumbiu ao poder maior dos proprietários de corpos, os que manipulam nossa vida em nome de uma ordem imutável. O objeto de parir foi conduzido para o lugar que a cultura designa, sem qualquer autonomia sobre sua vida e seu destino. Calou seu corpo e submeteu-se à lâmina fria que cortou seu ventre e seu sonho.

Fabrício também deu seu grito de basta. Com as vaias e apupos trancados na garganta, misturados com uma história pessoal de perdas, dores, mágoas, tristezas e decepções, ele explode de raiva e indignação incontidas. O objeto de jogar chora e grita em campo, afasta-se dos companheiros, xinga a turba ensandecida, caminha de cabeça erguida para o vestiário e grita para todos “eu vou embora, aqui não jogo mais“.

Nós testemunhamos um sujeito se desmanchar emocionalmente em campo. Quase todos viram um jogador desesperado, mas alguns viram um ser humano despencar devido a uma pressão violenta e insana. Um gladiador que, ao ver a turba ensandecida clamando por sangue e glórias, se rebela. Tira seu escudo e suas armas, joga-as ao solo. Olha para os assistentes com indignação, os quais respondem com incredulidade, que logo dá lugar ao ódio.

Penso na crise existencial de Fabrício e não consigo tirar da mente a imagem de Spartacus…

Dois atos separados por um ciclo solar, mas unidos pela rebeldia. Em Fabrício e Adelir vemos a insistência em ser protagonistas de suas vidas, e de não entregar seus corpos ao gozo alheio. Adelir tornou-se um símbolo na luta contra a violência obstétrica institucional, e um ícone do protagonismo responsável que almejamos. Fabrício e seu ato tresloucado representam a insurgência contra um modelo que objetualiza pessoas para servirem como depositários de nossas frustrações, mágoas e fracassos.

Que ambos sirvam de reflexão para a posteridade. Que o protagonismo da mulher no parto seja sagrado e respeitado por todos, e que o respeito à pessoa humana do artista, ou de qualquer figura pública, seja uma constante.

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Como saí do Armário

Hand of a child opening a cupboard door

É claro que eu contei primeiro para a minha mãe. Todos nós sentimos mais confiança nela, não? Ela é nossa reserva de amor, e confiamos que seu julgamento será baseado no afeto que tem por nós. Um dia, com um misto de coragem e um senso de urgência, eu falei assim prá ela:

– Sabe mãe, eu não sou como os outros meninos. Sempre soube que era, digamos, “diferente”. Desde o tempo da faculdade que tenho esses sentimentos estranhos. De inicio eu não me aceitava, ficava tentando me enganar. Até fiz coisas que me violentavam. Hoje sinto vergonha de coisas que fiz só por medo de não ser aceito. Não queria que os outros meninos me achassem estranho, bizarro e fizessem troça de mim. Todo mundo quer ser aceito, mãe. Na verdade a gente faz qualquer coisa nesse sentido; até faz coisas que agridem seus princípios.

– Sua mãe vai lhe apoiar sempre, filho…

– Sei disso, mãe, por isso tenho certeza que posso me abrir. Mãe, eu preciso lhe contar…

– Diga meu filho…

O momento era de angústia, e se podia sentir na própria pele. Um segredo por tempo guardado, mas que precisava ser revelado. Minha esperança é que minha mãe pudesse escutá-lo com ouvidos amorosos, e que seu julgamento não fosse duro e cruel como tantos que já havia presenciado.

– Mãe, preciso te dizer, antes que você fique sabendo por outros. Eu, eu, eu… eu não gosto tanto de cesariana quanto gosto de parto normal. Veja bem, não é que eu não goste de operar, mas é diferente. É uma sensação difícil de explicar. Operar não me completa tanto quanto ver uma mulher parindo pelas suas próprias forças. É uma coisa assim, sublime. É como se a cada parto eu pudesse ver um arco-íris na minha frente, brilhante, colorido e resplandecente. Espero que me entenda. Agora não tenho mais medo de lhe contar…

Minha mãe sorriu se escutasse uma história antiga.

– Meu filho, tolinho. Eu sempre soube e agora que você me contou eu o amo mais ainda. Vem aqui dar um abraço na sua velha mãe…

Foi assim. Levou tempo para contar, mas depois de dizer a ela eu me senti muito mais leve. Limpo e digno.

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Abraço, Fabrício…

Fabrício

Abraço, Fabrício…

Sabe o que é desumano?

É quando retiramos as qualidades humanas de um sujeito, sua unicidade e subjetividade, aquilo que o transforma em uma pessoa única. É quando ele deixa de ser alguém, e passa a ser uma “coisa”.

Ontem testemunhamos um fato raro no futebol. O jogador Fabrício do Inter, após ser vaiado por uma parte da torcida, investiu contra ela com gritos, insultos e gestos obscenos. Uma cena lamentável de violência e descontrole. Ato contínuo, foi expulso pelo juiz e tirou a camisa do seu clube. Arremessou-a ao solo e, mesmo sendo contido pelos colegas de profissão, rumou célere para a saída do campo, sinalizando com gestos que jamais voltaria. Boa parte da torcida colorada, em especial aquela que o estava vaiando, vibrou com a sua expulsão e a saída. O futebol, haja vista sua má fase, pouco perdeu. Mas e o nosso senso de humanidade?

Poucos dias atrás, uma outra desgraça, desta vez atingindo o (ex) todo poderoso José Dirceu, foi tratada com deboche e escárnio por centenas de internautas. Quando do anúncio de seu AVC (Acidente Vascular Cerebral) inúmeros comentários depreciativos surgiram nas redes sociais, fazendo troça com a doença do ex-ministro. Com os candidatos e a presidenta, o mesmo. O ministro Guido Mantega, em visita a um hospital, foi brutalmente hostilizado por pessoas na recepção. As figuras públicas perdem a sua condição de humanas, e passam a ser meros personagens, sem vida, história, subjetividade ou porvir.

Desumanizar é tirar do sujeito sua essência humana. É coisificá-lo para o nosso gozo, seja ele qual for. É olhar para uma mulher e reduzi-la a peitos e bunda, para um homem e torná-lo apenas força, poder e dinheiro. Um jogador de futebol vale apenas para o nosso gozo, sem que seus sofrimentos, sua vida, suas fragilidades e sua história sejam levadas em consideração.

O jogador Fabrício, soube-se hoje, tem um irmão que está preso, e outro que já morreu pelas mesmas razões: tráfico de drogas. Sofria pressão desumana de torcedores que achavam que ele não estava jogando o quanto devia. A pressão também chegava de uma “crônica esportiva” espetaculosa, insensível e grosseira, que ressalta ainda mais a objetualização dos jogadores, tornando-os marionetes de seus conceitos e alvos fáceis para suas piadas de gosto duvidoso. Por mais que se entenda que as gratificações monetárias para os jogadores são muito altas (para uma elite restrita e minúscula, como no caso do Fabrício) também é verdade que a tensão para cumprir metas, nunca errar, jamais falhar, lutar como um gladiador, oferecer o sangue, destruir a própria saúde em nome de uma bandeira é uma tarefa pesada demais para qualquer um, e mais ainda para meninos de origem pobre.

Não foram poucos os jogadores que pensaram em suicídio. Outro famoso jogador do Internacional, quando jogava no exterior, longe da família, sem falar o idioma local, sem amigos e sem referências, subiu no alto de um prédio e por pouco não se arrojou de lá, acabando com sua vida. Teve mais sorte do que Fabrício.

Fabrício explodiu, rompeu a corda. Diante de tanta tensão acumulada ele não aguentou a(s) pressão(ões). Não suportou o desprezo da torcida por quem se dedicava ao limite e jogou tudo para o ar. Todavia, quando o que ele mais precisa é de compreensão e de uma palavra amiga, ele recebe deboche, críticas, mais violência e desprezo. O objeto Fabrício passa a ser desimportante e, mais ainda, incômodo. “Joguem fora essa peça, ela já não nos serve mais.

Fabrício precisa de um abraço. Se serve o abraço de um gremista, aqui vai. Erga a cabeça, olhe para frente, pense na sua família, tente se acalmar. Existe um grande futuro ainda possível, se você puder ultrapassar este momento.

Vai passar, vai passar…

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Maioridade Penal

Criança presa 1

Existe uma “direita raivosa” (não me refiro a ninguém em especial) que pensa que a solução dos problemas da sociedade está numa visão moralizante, como se a humanidade se dividisse entre “bons” e “maus”. Uma espécie de moralismo fascista que acredita que eliminando os maus teríamos uma sociedade melhor. Isso gera uma série de atrocidades, principalmente porque nega a importância da própria estrutura social na geração de tais discrepâncias. Em verdade, os meliantes de hoje poderiam ser vistos como “resistentes” de uma guerra social, onde a maior parte dos recursos lhes é sonegada, e onde seu quinhão – a parte que lhes cabe neste latifúndio – nunca é entregue. Achar que seu extermínio ajudaria a sociedade é uma ingenuidade ou uma manobra interesseira.

Enquanto eles acreditarem que o sujeito é mau não vão perceber o quanto a sociedade é madrasta“.

Esta direita raivosa adora linchamentos e justiçamentos. Deve dar um prazer imenso ver um jovem de 16 anos apodrecendo numa prisão, enquanto a sociedade – fábrica de meliantes – mantém sua produção inalterada e a pleno vapor. Criar a injustiça e depois “limpar” os miseráveis da nossa vista é a maior prova de que nossa sociedade está doente.

Sempre que eu leio a historia desses meninos “bandidos” eu penso que provavelmente faria o mesmo que eles se minha vida tivesse sido regida pelas mesmas circunstâncias e contextos. Como Terêncio afirmo que “o que é humano não me é estranho“. Existe muito mais semelhanças entre um criminoso brutal e o filhinho de papai, bem alimentado, boa escola, pais presentes, afeto e necessidades supridas. Retire essa história dadivosa e sobrará apenas um humano desnudo, igual a todo outro, criminoso ou não. Dividir os humanos por uma essência “boa” ou “má” esquecendo-se da arquitetura social subjacente que os produziu é um crime contra a humanidade, uma perda de tempo e energias, que poderiam ser mais bem utilizadas na construção de uma sociedade justa e equânime.

Nas minhas peregrinações pelas redes sociais eu percebi que as mulheres eram majoritariamente  a favor da redução. Evidente que isso é apenas uma observação, e não tem valor científico. Mas sinto uma tristeza ao  constatar a queda desses mitos: o amor materno, o amor incondicional e a doçura essencial. Não… aparentemente elas amam os seus, acima de tudo. Os outros filhos, os deserdados da vida, os filhos das putas, esses que apodreçam nas cadeias infectas. Obrigado senhoras, por mais esta lição.

O que  penso ser relevante observar é que, de quem eu mais esperava sentimentos nobres e amorosos foi de onde vieram os comentários mais violentos. Quanto à ideia de diminuir a idade penal em si pouco resta a dizer. Mas as teses moralistas de uma parte da direita nacional – a mais raivosa – ficam evidentes. A ideia moralista e ingênua (minha opinião) é de um essencialismo pueril e preconceituoso: a divisão da sociedade entre “bons” e “maus”. Para completar a proposta de que, eliminando-se aqueles “maus”, sobrariam apenas os bons, ignorando a produção de criminalidade pela própria injustiça social. Esta tese nos obriga a acreditar que na Suécia os presídios estão sendo fechados por falta de prisioneiros porque os “suecos são bons em essência”, sem olhar para a distribuição adequada de renda e a dignificação do trabalho como fator civilizatório. Estamos colocando adolescentes para apodrecer na cadeia por esta visão estupidificante e tacanha da sociedade. E as mães, que na minha visão infantil seriam as guardiãs do amor e da compreensão, são as que mais aplaudem iniciativas que visam encarcerar meninos e adolescentes.

Mas não há nada a temer, senhoras; já sabemos que só pretos e pobres irão para lá. A senhora pode ficar tranquila: vamos limpar a sua rua dessa sujeira.

Veja o que acontece quando essa visão é levada às últimas consequências:

Criança presa nos Estados Unidos

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