A percepção que tenho sobre as derrotas que nos acometem durante a existência vai ao encontro de um antigo adágio psicanalítico que nos afirma que “os sintomas são teus maiores tesouros“. A partir de algumas dessas quedas, a vergonha e a tristeza diante dos meus atos eram o que me restava de valor, o que poderia ser utilizado como força transformadora. Por outro lado a voz de minha mãe voltava à mente e (re)afirmava que “é nas quedas que o rio ganha energia“. A queda narcísica espetacular pode nos fazer afundar, mas se houver – ainda que de forma pouco perceptível – uma pequena chama de humildade, é possível fazer desses tombos trampolim.
A vida também me ensinou que todo o crescimento se ergue sobre os escombros de violentas derrotas do Ego. Só foi possível à cultura florescer depois dos sucessivos fracassos de nossa arrogância. Galileu nos disse que não somos o centro do universo; Darwin nos tirou to topo da criação e Freud destroçou nossa petulância racionalista ao desvendar o poço obscuro do inconsciente. O mesmo se dá com o sujeito: somente quando ele encara sua pequenez e sua falibilidade é que se torna capaz de alçar voos maiores e assumir o protagonismo de sua existência.
“Se queres ser justo com tua existência não reclame da velhice. Se ela te tira o viço e o frescor, a ânsia e o vigor, pelo menos te oferece a sabedoria e, acima de tudo, a paciência para não te angustiares tanto com as injustiças do cotidiano. Olhar o necessário envelhecimento da carne com brandura e condescendência te oportuniza encontrar virtudes na tua alma que a própria consciência desconhecia.”
Há alguns dias assisti na Internet a cena absurda de um aluno adolescente agredindo e abusando de uma professora de uma escola pública de Minas Gerais. A cena gerou reações no país inteiro, das mais alteradas às ponderadas e compreensivas. Entretanto, as marcas da humilhação que esta professora sofreu não serão fáceis de cicatrizar.
Eu prefiro pensar nesse terrível episódio como uma oportunidade para reavaliar nossa postura em relação à disciplina na educação.
Para mim creio que se trata de uma “Pedra de tropeço”. Apesar de ser deplorável a ação, e lamentável sob todos os aspectos, talvez este episódio possa alavancar um debate que está décadas em atraso: a perda da autoridade que a escola e os professores tiveram nas últimas décadas.
As causas são múltiplas, por certo, e certamente eu não sou a pessoa mais capacitada para desenrolar o nó das relações entre escola, professores e alunos. Todavia, eu lembro muito bem da relação que tínhamos com os mestres no meu tempo de escola.
Havia respeito.
Hoje esse respeito desapareceu, e suspeito que isso também tenha a ver com a mercantilização do ensino privado, onde o aluno deixa de ser aprendiz e se torna “cliente”, um consumidor de produtos e serviços educacionais. A escola, como “negócio, precisa manter seus clientes.
Isso não explica o fato nas escolas públicas, como neste caso, mas aí concorrem outros fatores, como a complacência da cultura contemporânea com a agressividade e a falta de limites dos alunos. No filme percebe-se que o aluno age do alto de uma profunda percepção de impunidade, mas aí pode entrar um outro fator: a desimportância do estudo e da formação escolar formal para determinados segmentos sociais. Afinal, se for afastado da escola, o que terá a perder? O estudo, em geral, não está no horizonte de muitos jovens marginalizados, e a escola não passa de uma obrigação, quando não um estorvo.
Para que isso deixe de acontecer não existem soluções simplistas. Não será com repressão – como fica fácil reivindicar nestas horas de indignação – mas somente com uma alteração da própria cultura e sua relação com a educação.
Tarefa difícil, mas que o episódio deixou claro ser urgente.
Esta semana fui surpreendido com declarações de alguns elementos da “direita raivosa” de que o menino que esfaqueou o médico no Rio de Janeiro morava em uma casa oferecida por um plano governamental (Minha Casa, Minha Vida) e que estudava em uma escola pública, o que demonstrava que ele não era o “santinho” que os “petralhas” tentavam nos mostrar. Em outras palavras, ele não era o resultado de uma sociedade injusta: ele era mau por natureza.
Bem, as comparações eram esdrúxulas e sem sentido, como é típico de uma parcela raivosa e violenta da direita que acabou de sair do armário, aquela que curte um coturno e uma falta de liberdade… para os outros, claro (pobres, vagabundos, escurinhos, favelados…). Ele não é, por certo, nenhum santo. Ele é apenas o resultado de um modelo que aposta nas diferenças e que segrega boa parte de um povo impedindo-o de desenvolver suas potencialidades
Ah, e não é toda a direita que é assim, por certo, mas não é difícil ver a diferença. A direita consciente nunca chama o PT e seus aficionados de “a corja”, “os outros”, “canalhas”, etc. A direita consciente pode fazer críticas DURAS e até VIOLENTAS, mas contra os programas e as ideologias, e não contra as pessoas, como se a essência moral e ética dos atuais governantes diferisse significativamente dos anteriores. Os homens e mulheres da direita racional são democratas, abominam a intervenção política das forças armadas, aceitam a derrota nas eleições, criticam as medidas políticas e econômicas com argumentos (e não com palavras de ordem), deploram o golpismo da Veja e de boa parte da mídia, não se aliam às mentiras como forma de ludibriar o povo e pensam em conquistar novamente o poder através do VOTO. Para essas pessoas todo o meu respeito e admiração pois, mesmo que estejamos afastados ideologicamente, estamos eticamente próximos.
Esta história em quadrinhos é relevante para mostrar, de uma forma artística, onde está a “diferença” entre os desvalidos e nós, que defendemos a meritocracia sem nos darmos conta do oceano de privilégios (muitos deles pouco visíveis) onde flutuamos diariamente. Quando ressaltamos nossas qualidades e virtudes esquecemos de observar a quantidade de benefícios que recebemos durante toda a vida, já que nossa memória seletiva os obstrui em nome de uma autoimagem eternamente positiva.
Eu, reconhecendo que nasci em berço de ouro (onde o dinheiro era o artigo de menor valor), surfando nas ondas da opulência afetiva, ética, amorosa, educacional que gratuitamente recebi da vida, me sinto envergonhado quando meus colegas da classe média fecham os olhos para os benefícios inquestionáveis que receberam desde que nasceram.
Diante do questionamento que surgiu a partir do brutal e estúpido assassinato de um cidadão que placidamente andava de bicicleta no Rio, muitas vozes furiosas clamaram por justiçamento, pena de morte e até linchamentos sumários. Isso me fez pensar nos clamores em Israel quando morre um soldado judeu e o silêncio brutal quando centenas de crianças palestinas morrem carbonizadas numa guerra desigual entre o mais armado exército do mundo e uma população prisioneira, sem armas e sem soldados.
A pergunta que cabe, reconhecendo a brutalidade do ato e a insegurança que todos sentem diante de um assassinato – e também a dor da família enlutada – é “o que podemos fazer de efetivo para combater essa e outras barbáries contemporâneas?“.
Primeiramente é preciso rechaçar o que é falso e “plantado” nas redes sociais com o único objetivo de gerar discórdia. Depois, é importante entender que esses debates não se resumem em um lado certo (nós) e um lado errado (os outros). Na questão da violência é fundamental se perguntar se as medidas preconizadas como solução ajudam a você (na sua necessidade de vingança) ou ajudam a todos, a comunidade inteira, a resolver (ou melhorar) um problema endêmico e de raiz estrutural.
De nada adianta eletrocutar esse menino pobre e negro; outros virão ocupar seu lugar. Não esqueçam que ele JÁ estava condenado; se não fosse preso agora dificilmente passaria dos 25 anos, vítima da guerra do tráfico. Ficar com raiva dele e santificar o “doutor” (que era alguém comum, como eu, mas acabou sendo pintado como santo) de nada adianta, e apenas aprofunda o fosso dos lados que se opõem no debate.
Precisamos mais policiais e mais inteligência no combate ao crime, mas é tolice imaginar que esse problema acaba com repressão. É MENTIRA. O tráfico não acabou nos Estados Unidos, e só cresce, mesmo com o aparato de repressão mais caro do mundo. O crime não deixa de existir porque policiamos a vida até o extremo. Não, ele existe – e se mantém – pela “sensação de injustiça” a que são submetidos os pobres, ao perceberem que a opulência oferecida a uma determinada casta nunca é oferecida à sua. Eles não se julgam bandidos ou malfeitores; pelo contrário, sentem-se heróis a combater uma injustiça, Batmans da favela, e nenhuma repressão vai fazê-los parar. Quanto mais apanham ou morrem mais cresce a indignação com o que consideram injusto e perverso. É por isso que o assassinato patrocinado pelo estado (pena de morte) ou pela iniciativa privada (chacinas e guerras de pontos de tráfico) nunca coibiu a violência e, mais ainda, contribui para o seu incremento.
É preciso mais do que raiva e indignação para resolver esta questão. Mais ainda, é necessário suplantar o ódio para encontrar uma resposta segura e sensata, que contemple o desejo de todos, e não apenas do nosso grupo.
Escrevi em outros lugares, mas acho que vale a pena reproduzir aqui, pois pode aclarar as ideias sobre esta questão.
Minha tese é que homens não podem ser feministas exatamente porque não podem PROTAGONIZAR, o feminismo. Isto se aplica a qualquer movimento libertário: gays, negros, mulheres, países, etnias etc. Com isso reforço a tese de que as mulheres (negros, gays, palestinos) não podem ser tuteladas por grupos externos. Os homens podem ser aliados das feministas tanto quanto eu posso ser um pró-palestino , anti-racista ou a favor do movimento gay, mas protagonizar (liderar, assumir comando, responder e representar) somente quem sofre na carne os desafios de ser mulher, gay, pobre, palestino ou negro. Conseguem me imaginar presidente do grupo “Zumbi” da minha cidade, lutando pelo direito dos negros, sem nunca ter sofrido na carne a humilhação e a dor do preconceito? Não há como pensar isso sem entender como tutela. O mesmo com as mulheres.
Sou um aliado, e hoje em dia muito distante das feministas. Aliás, feminismo em teoria é tão lindo quanto o islamismo; a prática, no entanto, nos mostra que algumas defensoras mais radicais se aproximam do sexismo explícito, por parte das feministas, mesmo que tais desvios não constem dos ideais propostos por estas correntes de pensamento.
Eu não sou feminista por respeito às próprias feministas: não poderia ser sócio de um clube que deixa bem claros a sua inconformidade e desconforto com minha presença. Todavia, sigo fiel às ideias de equidade de gêneros, e lutarei para que os direitos das mulheres sejam respeitados no parto e nascimento.
Protagonismo é diferente de participação, e significar tomar a frente, representar. Brancos NÃO podem protagonizar o movimento negro, mesmo que possam ser ativos e participantes. Homens não podem protagonizar o feminismo, mesmo que seja possível serem defensores de suas bandeiras. Eu pensei mesmo em atuar desta forma, mas percebi que era mal visto e, diante da primeira contrariedade, fui tratado como inimigo e chamado de “machista”. Bem, eu respeito esse desconforto, mas não esse método suicida. Então eu, e milhares de homens que poderiam acrescentar ao debate, nos afastamos e mantemos nossas posições, longe do contato e das ações que poderiam promover uma real mudança.
Mas a luta por assumir esta posição de destaque é legítima. As mulheres foram tuteladas durante 100 séculos, e não aceitam mais que os homens digam o que é bom e certo para elas, requerendo, por isso, o pleno protagonismo de seu destino. A aversão à fala masculina no delineamento deste caminho é natural. Todavia, o rechaço ao apoio nas agruras do trajeto é equivocado e ineficiente. Nem toda ajuda é expropriação de protagonismo ou retorno à tutela. Saber diferenciar inimigos de potenciais parceiros é essencial em qualquer luta.Se o que está melhorando é o tom do diálogo entre feministas e sociedade minha impressão é positiva. Vejo mais interesse das feministas em rever alguns posicionamentos, abandonar posturas vitimistas e reconhecer outros pontos de vista relacionados aos direitos de ambos os gêneros.
Minha postura histórica sobre o protagonismo é o reforço do poder garantido às mulheres. Eu sempre disse que as mulheres deviam carregar o fardo do protagonismo das lutas pela humanização do parto. Minhas diferenças com o feminismo não estão centradas nesta questão, mas em outros pontos mais delicados.
Hoje eu me sinto cada vez mais próximo do ideal feminista e cada dia mais distante das lutas feministas. Alguns chamam isso de “aliado sem ser alinhado“. Pode ser; continuarei carregando bandeiras feministas sem ser feminista.
Vamos deixar bem claro uma coisa: EU tenho roupa suja para lavar, EU tenho atitudes BURRAS e eu agradeço quando me apontam os erros. Isso não significa que usar suas redes de relacionamento para atacar pessoalmente aqueles que me magoaram seja uma atitude correta. Difamar quem quer que seja em rede social é uma atitude absurda do ponto de vista político.
Mas como dar voz às mulheres que se sentem vítimas de algum tipo de violência? Como permitir que elas possam expor suas dores e serem acolhidas pelas suas parceiras de luta? Como minorar a dor e o sofrimento de quem se considera injustiçado e traído?
Certamente que esta não é uma tarefa fácil. Entretanto, se ela puder focar na solução do problema de todos (um sistema que é intrinsecamente violento) e não apenas nos SEUS problemas específicos, ela estará no caminho correto. Uma possibilidade é solicitar a ela que exponha a sua situação (ou um caso hipotético) sem citar nomes, sem agredir a pessoa que ela acredita ter errado, sem enxovalhar a sua honra e sem tentar diminuir a sua indignação às custas da humilhação alheia. Creio que isso possa ser feito, desde que o objetivo não seja tão somente se vingar…
Ninguém está pedindo para que as mulheres se calem, mas que usem sua indignação de forma CONSTRUTIVA. É preciso que os sentimentos de VINGANÇA não se sobreponham à tentativa árdua de mudar o modelo de assistência ao parto no Brasil e no mundo. Difamar e destruir, sem direito a defesa, nunca foi uma estratégia que nos ofereceu oportunidade de crescimento. Tais condutas são ineficientes e não ajudam a ninguém. Aquele que se sente prejudicado que reclame nos órgãos competentes e não publicamente, lavando SUA roupa suja e atrapalhando o desenvolvimento do movimento de humanização.
Quando esse tipo de emoção passa a ser compartida de forma abrangente (como nas redes sociais), todo o debate vira uma catarse de emoções negativas. É como contar um assalto: imediatamente todos começam a entrar em uma espiral negativa de ódio, rancor, raiva contida porque se IDENTIFICAM com o sofrimento IMAGINADO. Isso mesmo: nós miseramente imaginamos (porque nao vimos e apenas escutamos uma versão da história) e nos posicionamos, fazendo julgamentos e condenações sumárias de pessoas que não tiveram defesa alguma. No caso de profissionais da saúde é grave falha ética expor o caso de seus pacientes, e isso mostra como as acusações são cruéis e injustas: batemos em quem não pode se defender.
Isso é absurdo e COVARDE. A voz das vítimas precisa ser contida, sob pena de contagiarmos a todos com esse aluvião de raiva que inunda a todos. Lembrem: todo linchamento real começa assim: “Pega ladrão!!!”. A gente sai correndo atrás do suposto meliante porque acredita nessa interpretação, e porque nos identificamos com quem foi roubado. Mas quase nunca paramos para pensar: “será que ele é ladrão mesmo?”. Uma mulher foi confundida com uma sequestradora há algumas semanas e morreu num linchamento, onde sua voz não foi escutada. Claro, pois quem escutaria as palavras e o clamor de ponderação vindos de uma “bandida”.
Os ambientes virtuais, pelo anonimato ou distância, se prestam para todo tipo de ação vingativa e violenta. Daqui há um ou dois anos, quando descobrirmos que a história “não foi bem assim”, será tarde demais para recuperar honras e reputações destroçadas. As lições da “Escola de Base” de São Paulo ainda não foram adequadamente aprendidas…
Edgar, meu colega e superior hierárquico, ajeitou seu chapéu de feltro sobre a cabeça e com as mãos me fez um sinal de pressa. Abriu a gaveta chaveada de sua escrivaninha e mostrou os papéis que ali estavam guardados. “Aqui nessa pasta podes ver os detalhes do caso. Precisamos chegar a tempo. Todos nos aguardam. Vamos imediatamente para a mansão da viúva”
Meu chefe entregou a pasta enquanto o carro nos levava para o subúrbio mais rico e sofisticado da cidade. A pasta do caso em questão, o envelope “145”, jazia sobre o meu colo. Abri com cuidado e lentamente a cartolina que lhe servia de capa e li a primeira página até chegar no nome dos envolvidos. Nesse instante eu me assustei ao constatar a brutal coincidência, que apenas as confluências coordenadas pela Deusa Álea – a divindade dos fatos aleatórios – são capazes de produzir. Estávamos nos dirigindo à casa de Matilda Malamud, uma antiga namorada, com quem tive um breve romance há décadas.
Matilda era uma das herdeiras da fortuna de um advogado famoso dos anos de chumbo, que ganhou notoriedade libertando presos políticos e lutando em prol das liberdades democráticas. Matilda era linda, madura e muito rica, nos limites da obscenidade que o acúmulo de dinheiro produz. Por essas razões sempre foi cobiçada pelo “jet set” da cidade. Nosso romance havia sido breve, mas intenso. Foi sério a ponto de fazermos planos, de pensarmos em filhos e, por isso, tive oportunidade de conhecer suas irmãs e sua mãe, esta última há muitos anos viúva. Não deu certo: seu estilo de vida sofisticado e perdulário jamais se acomodaria a um estudante de classe média baixa e filho de funcionário público. Resolvi terminar com tudo antes que nossa vida se tornasse insuportável e atormentada. A coincidência se tornou ainda mais aterradora quando me dei conta que estaria encontrando uma ex-namorada milionária sem qualquer preparo emocional para isso. O que poderia ser mais aterrador que isso? Acho que apenas a roupa que eu estava vestindo. Aos poucos íamos nos aproximando da mansão que ocupava uma quadra inteira próxima do centro da cidade. Quando namorei Matilda imaginava que seria necessário um ano inteiro de trabalho apenas para pagar o IPTU dessa propriedade. Jamais um proletário como eu poderia participar do seu círculo de amizades. E o que faria eu das minhas ideias socialistas? Colocaria no lixo meus sonhos de igualdade e fraternidade em nome de conforto, luxo, facilidades e uma paixão? Deixaria de lado tanto os princípios quanto a firmeza de ideias?
Finalmente chegamos à sua casa onde um empregado de uniforme nos recebeu na imensa porta de entrada, que deveria ter mais de 4m de altura. Edgar informou de nossa missão oficial e mostrou o documento. O empregado olhou para o papel e depois me analisou de cima a baixo, com um olhar que misturava desprezo e desconfiança.
“Os senhores estão sendo aguardados. Por favor, me acompanhem”.
A Mansão
Que situação! Por alguns instantes nutri a esperança de que Edgar me deixaria aguardando no carro enquanto ele pegava as assinaturas necessárias, mas não foi o que ocorreu. Lá estava eu, reencontrando a mansão que já havia visitado na juventude. Confesso que cheguei certa vez a brincar em pensamento dizendo em solilóquio que “aquilo tudo um dia seria meu”. Mas eram apenas devaneios, sonhos juvenis. Bem tinha razão o mestre ao dizer que os sonhos não o são como os sonhamos. Um sonho é como um emaranhado de fios que correm dispersos para qualquer lado. Seus significados são quebrados, partidos, inconstantes. Somente ao contá-lo é que podemos enrolar os fios disparatados e criar um novelo de coerência. Contar um sonho é revivê-lo, descobri-lo, entendê-lo em suas filigranas e minúcias. Os esquecimentos, bem… estes são os melhores e mais importantes momentos, mas que – por obra do inconsciente – ficam escondidos de nós mesmos. Continuei caminhando pela mansão e reparando nos móveis finos, as luminárias, os assentos delicados de época. Depois de caminhar longamente por um corredor interminável, ciceroneados pelo empregado impecavelmente vestido com uniforme, Edgar e eu finalmente chegamos a uma porta de mogno maciço. Por trás da porta era possível escutar o borbulhar de risadas, falas incompreensíveis e conversas alegres. Quando ela se abriu fomos banhados pela luz radiante do ambiente e pelo aroma do vinho. Edgar e eu entramos na sala iluminada enquanto vozes silenciavam e olhares se voltavam para nós. Ao que tudo indica, nossa presença era esperada como algo que iniciaria os procedimentos, sejam lá quais fossem. A primeira pessoa que se aproxima de mim é Helga, a irmã mais velha de Matilda.
Helga
“Eu não acredito! Eusébio, é você? Você está bem apesar de….” Ela olha para minha cabeça que reflete a luz que vem do majestoso candelabro de cristais checos cintilando acima de minha lustrosa testa.
“Maduro”, respondi para ela com um sorriso tímido. “Sim, Helga. Faz muito tempo que não nos vemos. Como está? E os negócios, estão indo bem?”
Eu não parava de pensar nas minhas roupas desalinhadas, incompatíveis com o ambiente, mas os passantes pareciam não se importar ou mesmo se dar conta disso, e Helga menos ainda. Talvez pensassem que éramos empregados, e os serviçais são sempre invisíveis, Circulam como insetos por entre os burgueses, e deles não desejamos que nos mostrem qualquer aspecto humano, por mais simplório que seja. Perguntei a Helga dos “negócios” porque é isso que se pergunta para uma mulher solteira e sem filhos. Helga nunca havia se casado, apesar de ser uma bela mulher, dotada de inteligência e humor refinados. Era outra cerejinha colocada no bolo das solteiras desejadas da cidade, mas aparentemente ninguém era capaz de passar pelo seu crivo. Problemática? Exigente? Não haveria ninguém nesse mundo para ocupar o lugar do comendador Faustino, seu falecido pai, no coração dessa mulher? O comendador Faustino, aliás, era uma presença ilustre na sala, apesar de ter morrido há 3 décadas. Havia no ambiente pelo menos três imagens suas. Em uma delas está vestido com um traje aparentemente militar; em outra andando a cavalo na fazenda, e em uma terceira fotografia está ao lado da mulher e das três filhas pequenas. Uma quarta, descobri depois, era uma foto de corpo inteiro com uma beca especial usada para uma cerimônia da Maçonaria. O comendador ainda era citado na cidade como benfeitor, humanitário e “homem de princípios”.
Helga perguntou da minha vida, do que fazia, mas o “chit-chat” não se aprofundou em tema algum. Ao meu lado passavam pessoas distintas, homens de negócios, senhoras muito bem vestidas, com longos vestidos de tafetá. Todas interrompiam a conversa para abraçar Helga. Enquanto cumprimentavam Helga consegui vislumbrar em um canto da sala um homem trajando um uniforme azul com encordoamento trançado no peito e uma gola vermelho sangue reluzente, com bigodes apontando para cima, a lá Salvador Dali. Ele se ergueu e cumprimentou uma senhora com toda a pompa e circunstância. Parecia ser um oficial da Prússia no tempo de Frederico. Os senhores eram verdadeiros fidalgos, isto é, “filhos-de-algo“, gente bem-nascida, com posses, “burgeois” de estirpe. Ao contrário de mim e de Edgar, gente com “pedigree“. Depois de palavras que ficaram perdidas na conversa com Helga, pequenos nós no novelo que eu montava a partir dos fios emaranhados de lembranças, acerquei-me de um ponto mais à esquerda, onde estava Sophia, a irmã mais nova de Matilda.
Sophia
A sala era uma obra de arte escondida dos olhares invejosos dos cidadãos comuns da cidade. “Algo para o gosto refinado de quem conhece arte”, pensei. Para todo o lado que eu olhasse percebia luxo, requinte, sofisticação e bom gosto. As cortinas de um vermelho escuro aveludado eram adornadas com detalhes dourados. As janelas enormes enfeitavam as paredes, em salas cujo pé direito subia majestoso, arrancando nossos olhos do chão com a promessa de perder o teto de vista, humilhando ainda mais a minha pobre figura, vestida de forma patética. Quando avistei Sophia minha memória imediatamente me ligou à cunhada com quem brevemente convivi. Era a mais moça das irmãs e a mais geniosa, por certo. Alegre, esfuziante, intensa, porém ciumenta, birrenta e geniosa. Era a mais esperta de todas, mas carregava a cruz de ser a mais novinha, a caçula. Como era de se esperar, era a mais ligada à mãe. Além disso, Sophia era sedutora e provocante, e adorava provocar ciúmes nas irmãs com comportamentos, digamos, abusados, quando seus cunhados (ou pretendentes a tal honraria) apareciam na sua casa.
Ela continuava bonita e igualmente sedutora, sem dúvida. Apesar dos meus trajes deslocados do ambiente ela facilmente me reconheceu, mas – ao contrário do que seria esperado – não me tratou como uma figura bisonha incrustada em uma espécie de “baile de gala”. Não, ela me tratou como um convidado qualquer que apareceu de surpresa na festa de sua casa.
“Eusebinho, como vai? Parece que os anos lhe fizeram bem. Ficou bem melhor sem a barba, apesar de que eu gostava dela. Lembro de pedir para você cortar, mas era apenas para fazer birra com Matilda. Sua mãe como está?”
Respondi às suas perguntas de forma breve e sucinta, mas a maior parte da conversa que tivemos depois dessa breve apresentação se perdeu no novelo das memórias, ou eram ideias desconexas demais, feitas de assuntos diversos e sem ligação óbvia com o contexto. Assim são os encontros inesperados, que se revelam muito mais pelo que não dizem do que pelo que é expresso. Minha atenção agora se dirigia para o centro do salão. Por trás de um grupo de convidados que a cercavam estava a figura central de toda aquela cena: a matriarca, senhora Efigênia Malamud.
Efigênia
Foi necessário um pouco de esforço para me aproximar e aguardar a saída das pessoas que rodeavam a “viúva”. Efigênia, a esposa amantíssima do comendador Faustino, era o que sobrara de realeza na burguesia nacional. Ao seu redor não estavam amigos e parentes; aglomeravam-se súditos para cumprimentar uma dama, a mais nobre das mulheres daquela sociedade; uma celebridade local. Com um pouco de esforço, e a ajuda de Edgar, conseguimos nos acercar da matriarca. A “viúva” mantinha-se assediada por senhoras, crianças de vestidos rodados e senhores distintos. Estava sentada em uma cadeira enquanto sorvia uma xícara de chá. Tudo naquela mulher inspirava nobreza – e soberba. Ela parecia perceber claramente sua superioridade diante da mediocridade que a cercava. Acostumada a ter criados, serviçais, políticos locais, médicos e juízes sob seu controle, ela vestia uma aura de confiança inabalável. Para minha surpresa, apesar dos anos passados, ela se lembrou de mim quando me aproximei.
“Ora, ora, ora. Quem é vivo sempre aparece. O estudante sabichão. Eusebinho, como vai? Há muitos anos que não apareces em minha casa. Você fica bem sem a barba, mas ninguém pode negar que continua dono de um estilo inconfundível”. Sem surpresa ela foi a única a fazer um comentário sobre a minha roupa. Meus olhos saem do enquadramento do seu rosto magro e agudo e voltam a focar nos meus jeans surrados e a camiseta polo. Fico constrangido mais uma vez, mas aceito meu destino. Conformado, aceito o descompasso de estilos na esperança que alguém, no futuro, possa traduzir isso como “originalidade”.
“Não diria que sofri quando você se afastou de Matilda, seria um exagero. Entretanto, entendi que eram jovens demais, imaturos e impulsivos. Foi bom assim. Além disso, vocês eram muito diferentes. Digo, você era um rapaz de cidade e Matilda foi criada na fazenda, com regalias e mimos. Seria uma adaptação complexa. E sua mãe como vai?”
Sim, madame Efigênia. Diferentes demais para que pudessem estar lado a lado. E as diferenças não se resumiam a “uma vida cheia de facilidades e mimos”, pode ter certeza. Para mim sempre faltou a tonalidade azulada no sangue, coisa que sua filha do meio possuía em quantidade; mais de cinco litros em circulação. A viúva jamais aceitou que o “filho do funcionário público” – que era como secretamente se referia a mim, segundo os empregados me confidenciaram – ousasse namorar a filha do comendador. “As elites não suportam aventureiros”, pensei eu quando há muitos anos me despedi de Matilda pela última vez. Falei para Efigênia de minha mãe, suas dificuldades, a sua idade e a dedicação de meu pai a ela. Ela sorriu e pediu que me sentisse à vontade. Perguntou a uma amiga próxima onde estaria Matilda, mas esta respondeu que não a havia visto desde o início da recepção. Edgar abriu seu envelope e solicitou algumas assinaturas para a “viúva”, e eu fui lentamente me afastando após me despedir de maneira formal.
A mãe de Matilda sempre representou para mim o ocaso da “Casa Grande”. Sua mansão recheada de empregadas uniformizadas, invariavelmente negras, era como uma volta ao passado mais remoto dos canavieiros de São Paulo, quase uma pintura de Jean-Baptiste Debret. Todavia, seria um exagero dizer que Efigênia era malévola ou de má índole. Não, ela era apenas a herdeira de um mundo de desigualdades, cruel e injusto. Não foi ela quem criou a sociedade em que uma pele escura tira o valor humano de quem a veste, muito menos um mundo onde o dinheiro compra tudo, até o silêncio.
Nunca guardei mágoa ou rancor de Efigênia, mesmo sabendo como ela se referia a mim. Tivesse eu nascido em berço de ouro seria diferente? Tivesse eu sido criado em um mundo onde a riqueza é o valor máximo, teria permitido que um pé rapado se aproximasse de minha filha? Creio que somente calçando os sapatos Gucci de salto agulha da viúva do comendador e caminhando com ele mil vezes mil quilômetros seria possível saber como agiria, se também eu tivesse nascido com o sopro de fortuna dos herdeiros. Minha atenção agora se voltava para o outro lado da sala, onde um sujeito de terno cinza e sapatos marrons estranhamente desajeitado segurava um copo de vinho.
“É ele”, disse Edgar. “É o marido de Matilda”.
Heitor
“Sim”, disse Edgar com a inexpressividade intacta. “Precisamos falar com ele e conseguir as assinaturas. Além disso temos que acompanhá-lo aos seus aposentos, para garantir que estará só”.
“Certo”, disse eu, mesmo sem ter a menor noção do significado de acompanhar um indivíduo onde ele ia dormir para certificar-se de que estará sozinho. Afinal, o que isso nos interessa? Para que precisaríamos de comprovações num caso de separação? Houve alguma nova ameaça de agressão? O acusado pretende fazer algo nessa recepção que demande a nossa intervenção? O que estamos realmente procurando? Fomos lentamente nos aproximando do grupo de homens maduros até que o sujeito com o vinho na mão se voltou para nós.
“Boa tarde Sr. Heitor. Sou o comissário Edgar e vim fazer a fiscalização de que as determinações judiciais estão sendo cumpridas de forma correta e adequada. Nos perdoe por interromper a sua conversa, mas precisamos de sua assinatura em alguns papéis. Tenha a bondade, por favor”. O homem de terno cinza e estranhos sapatos marrons levantou-se do braço da poltrona onde estivera recostado e segurou os papéis que Edgar lhe ofereceu. Colocou a mão dentro do casaco e puxou uma caneta Montblanc. Sim as pessoas que circulavam no universo de Efigênia, como satélites do seu poder, não são moderadamente esnobes; elas avançam o quanto podem nesta direção. Só então, quando se preparava para assinar, ele se vira para mim com curiosidade. Edgar resolve me apresentar.
“Pois este é Eusébio, meu colega. Ele veio me acompanhar nas diligências. Desculpe não o ter apresentado antes”.
Heitor sorriu discretamente, mas fixou o olhar em mim. Ele era alto, pelo menos mais alto que eu, e tinha uma vasta cabeleira castanho-claro. Já aqui havia dois pontos suficientemente humilhantes contra mim. Sim, sei o quanto isso pode parecer ridículo, principalmente em se tratando de um encontro inesperado, mas fiquei medindo nossas qualidades e virtudes. Afinal de contas, Matilda havia casado com esse sujeito e ele deveria ter qualidades que me faltavam, ou não possuía os múltiplos defeitos que cultivo com especial apreço, tal qual as borboletas na gaveta de Frederick Clegg, esperando o momento certo para sequestrar a bela Miranda.
Heitor era uma mistura de Donald Trump e Stephen Fry: a cara do primeiro e um pouco do cabelo do segundo. Sei o quanto esta mistura fica terrível quando se imagina, mas ele talvez tivesse combinado o melhor dos dois. Era corpulento e um pouco desajeitado. Tinha uma próspera barriga, mas não a ponto de derrubar objetos ou impedir que os casacos se fechem. Mas o terno cinza, definitivamente não combinava com o sapato marrom de bico arrebitado, formando uma curva para cima que mais parecia a sapatilha de um arlequim. Heitor ficou me olhando fixamente, como a tentar me reconhecer, enquanto sua caneta Montblanc permanecia estática no espaço, apontando para uma taça de Clericot que repousava na mesa em frente.
“Eusébio, não? Eu creio que conheço você.”
Sorri amavelmente. “Não creio, senhor Heitor. Não sou da cidade. Creio que estive aqui há muitos anos. Provavelmente está me confundindo com alguém. Meus irmãos sempre me diziam que eu tinha “cara de balaio”, pois muita gente se parece comigo”. Heitor continuou a me olhar de forma firme. Suas sobrancelhas se aproximaram e seus olhos se apequenaram.
“Eusébio, você escreve. Eu sei que você escreve. Você é uma espécie de escritor.”
Aparentemente Heitor me conhecia, mas por quê? O que faria se interessar pelo que eu escrevia? Fiquei um pouco constrangido, menos por ele saber quem eu sou, e mais por estar falando com alguém que desconhecia por completo, mas que foi casado com minha ex-namorada de faculdade.
“Vou te dizer o que penso da arte de escrever. Se você tiver uma dor que torture o suficiente, será possível verter para…
Nesse momento ele foi interrompido por Edgard, que o avisou que deveria se dirigir aos seus aposentos, o que configuraria a última etapa da nossa tarefa de fiscalização. Ele se desculpou com o comissário, assinou os papéis sem lê-los, colocou na pasta de cartolina e pediu que eu o acompanhasse. Nesse momento é que eu percebi que ele se parecia com outro personagem significante para mim. Ele me lembrava o filho mais novo de Adélia, a mulher fatal com sua cigarrilha dourada. Sim, o filho que testemunhou o ato fatídico e que, em sua inocência, precipitou a tragédia. Mas, lembrei de novo, Adélia é outra história a ser contada.
Heitor segurou o meu braço e nos dirigimos à porta de mogno maciço por onde eu e Edgar entramos. Caminhamos vagarosamente pelo interminável corredor adornado por obras de arte até chegarmos ao jardim interno da mansão. Durante este período Heitor mantivera-se quieto caminhando ao meu lado, mas ao chegarmos ao jardim começou um longo discurso sobre assuntos variados, da política ao futebol. Ele não parecia um burguês falando: falava como se fosse um advogado interessado em muitos assuntos, como se pelas suas mãos houvesse passado um grande número de casos, os quais havia defendido com fervor e paixão. Não usava nenhuma linguagem técnica, mas gesticulava com desenvoltura e interesse. Durante a travessia do belíssimo jardim ele me contou que já havia lido muitos livros sobre política, incluindo algumas crônicas que eu havia escrito, mas que tinha algumas críticas a fazer.
“Fique à vontade, disse eu”, mas não foi possível pois a empregada nos comunicou que o Sr. Heitor deveria ficar no quarto 25, e que era preciso dar a volta mansão para chegar aos aposentos.
Isso significava que teríamos que sair da mansão, dar a volta na imensa casa central e procurar os apartamentos de casas idênticas que faziam o limite interno da propriedade. Imaginei que aqueles pequenos apartamentos foram um dia criados para acomodar viajantes de fora, mercadores de cana de açúcar, negociantes, vendedores de mercadorias. Por uma questão de segurança estes locais não tinham conexão interna com a Casa Grande, sendo acessados por fora. Saímos pelo portão principal e dobramos à direita, e novamente, para termos acesso ao flanco onde se encontravam enfileirados os apartamentos. Eles eram simples, como se fossem casas de operários ingleses. Uma porta que era acessível por quatro lances de escada, e uma janela da mesma cor. A empregada que nos guiava levava consigo as chaves e parou bruscamente quando viu a placa com o número 25 sobre a porta esverdeada. Heitor me convidou a entrar, enquanto outros empregados colocavam a pouca bagagem do convidado na sala estreita. Edgar nos acompanhou, junto com as duas empregadas, que se apressaram a entrar no quarto para ver se a cama estava arrumada e se havia sabonetes e papel higiênico no banheiro.
“O senhor Heitor deveria ter ficado no “23” mas a porta de lá está trancada”.
“Como”, perguntei eu? O que houve com a porta do quarto 23?
“Foi como eu disse. Não há como ir para lá, mesmo que o quarto esteja mais apresentável e seja levemente maior, mas o problema é a porta emperrada”
Percebi que por duas vezes havia tentado entender a explicação que ela dera sobre a porta, mas a razão por ela estar inacessível me faltou à compreensão. Interpretei, em meus pensamentos, que se tratava de algo planejado. Talvez houvesse algo no quarto 23 que não deveríamos ver. O fechamento da porta do quarto 23 não estava ao meu alcance ou acessível à minha compreensão. Fiquei curioso com este fato, mas decidi que seria inútil insistir. Edgar olhou para mim e exclamou quase cochichando: “Espero que tenhas aprendido a sua função, Eusébio. Nosso trabalho se insere no mundo real, onde encontramos a crueza das ações, suas dificuldades e imprevistos. Nossa atividade sempre nos coloca em contato direto com a realidade, mesmo que ela pareça dura e pesada”.
“Sim”, pensei eu. “Que dureza conseguir algumas assinaturas em uma festa, filar uns canapés, beber uma taça de Champanhe legítimo em uma festa burguesa e acompanhar Sir “Stephen Trump” (Ou seria Donald Fry) até seu quarto, cuidando para que ele consiga se equilibrar em seus sapatos de menestrel loquaz. Ora, se isso é a “dureza da vida”, como poderíamos chamar os mineiros, escafandristas, policiais e jornalistas que cobrem os conflitos? Sorri, mas não permiti que Edgar pudesse ler meus pensamentos.
“Bem senhores, agradeço a companhia, mas preciso me recolher. Amanhã será a cerimônia de assinatura do divórcio e preciso estar com a minha cútis em ordem. Rá, rá. Espero que vocês tenham igualmente uma noite tranquila de repouso”. Agradeci as palavras de Heitor e o cumprimentei. “Ainda quero conversar mais sobre seus escritos”, disse ele ao apertar delicadamente a minha mão. Nesse momento, olhou para a porta e com um sorriso tímido nos disse: “Bem, vejo que terão companhia até a entrada da mansão. A senhora vai acompanhá-los”. Nos dirigiu um “Boa noite!” e entrou em seu quarto. Olhei para a porta do chalé que estava atrás de mim e percebi a chegada da “senhora”.
Era Matilda
Matilda
De todas as personagens dessa minha breve visita a um passado de fantasia adolescente, a única por quem tinha uma angustiosa vontade reencontrar era Matilda e, curiosamente, foi a última que cruzou meu caminho. Matilda mantinha os mesmos adereços do passado remoto de quando a conheci. O sorriso maroto, a boca carnuda e vermelha, os olhos grandes e castanhos. Os cabelos ainda os mantinha grandes, apesar de ser agora uma mulher madura. Sua roupa era sóbria: um Tailleur de linho vermelho escuro por sobre uma blusa de seda branca, meias, sapatos pretos de salto alto, mas não altos o suficiente para me humilhar ou entristecer. Nas mãos joias, capricho que conservava desde a juventude, e que a riqueza proporcionava. As unhas de um carmim impecável, e na mão esquerda a marca cicatricial de uma aliança ausente.
“Eusébio, jamais imaginei que um dia você voltaria à minha casa. É um prazer recebê-lo. Seja bem-vindo e sinta-se à vontade”.
Olhei para Matilda com carinho, pois a percebi desarmada. Poderia ter se escandalizado com minha presença, ou até ultrajada. Afinal eu viera ali para testemunhar sua infelicidade, o cumprimento de uma determinação que tinha, como cerne, a mágoa tatuada na carne. Poderia ter se escondido, simulado um mal-estar, fingido uma enxaqueca. Nada disso; foi ao meu encontro e se apresentou com o mesmo sorriso encantador que conheci na juventude. Não havia nela rancor, nem ódio. Mas inegavelmente Matilda deixava claro um sentimento inequívoco: a tristeza. Seus olhos não conseguiam dissimular que estava dolorida, sabe-se lá por quais razões. A falência de seu casamento, a vergonha da violência doméstica, o abandono, o remorso e a sensação do fracasso de um projeto de uma vida.
“Como está sua mãe?”, perguntou ela. Parecia que Efigênia e suas filhas haviam combinado esta pergunta antes do dia iniciar, como todos os sorrisos seriam encenados, os cumprimentos, as ordens, as perguntas de praxe e os comentários espirituosos. Acho que a alta classe precisa dessas regras para que as máscaras não caiam e deixem a todos constrangidos. Respondi a ela de que minha mãe passara por dificuldades, a cirurgia, a lenta recuperação as falhas da memória e todas as agruras previsíveis dos octogenários. Ela sorriu e disse algo como “que bom que melhorou”, mas esta era apenas mais uma das frases simpáticas que ela havia ensaiado.
“Senhora Matilda”, disse Edgar, e emendou com a mesma solenidade inexpressiva de sempre: “precisamos partir”. Já fizemos nossa parte e nos asseguramos que o Sr. Heitor ficará neste chalé isoladamente até amanhã, quando a cerimônia com as assinaturas e testemunhas terá lugar aqui mesmo na mansão. Desculpe se causamos algum desconforto ou constrangimento, mas estávamos apenas cumprindo nossa obrigação legal. Peço que a senhora assine estes documentos para que nossa função possa se encerrar”. Matilda segurou os documentos que Edgar lhe estendia e, como todos os outros, os assinou sem sequer ler. Devolveu-os com um sorriso para Edgar que, em agradecimento, retirou o chapéu e fez uma reverência.
“É hora de ir”, repetiu o comissário.
Eu gostaria de poder ficar mais, tão somente para poder entender um pouco a vida de Matilda. Um estranho sentimento de culpa me invadiu ao ver o rosto belo e triste da ex-namorada. Sim, a culpa era toda minha. Eu fui embora, eu desisti. A distância – na geografia e nas classes – me impediu de sonhar com Matilda e com a vida com ela poderia compartilhar. Seus desacertos com Heitor talvez poderiam ter sido evitados se antes eu tivesse coragem, determinação, força e paixão.
Não, tolice minha. Efigênia tinha razão; Matilda era de Vênus, e eu de Plutão. Sorri para Matilda e fiquei sem saber o que dizer. “Adeus”? Mas foi assim que me despedi na última vez que nos vimos. “Até mais?”, ora, quanta falsidade. Pior que isso apenas um “até breve”.
“Bem, eu vou indo Matilda. Foi bom te ver”, e essa foi a escolha que fiz nos segundos que me cabiam para decidir.
Ela sorriu e se aproximou de mim. Abraçou-me com ternura e tristeza. Chegou-se ao meu ouvido e sussurrou: “Nunca esqueci”. Seu corpo se distanciou, mas seu braço permaneceu em meu ombro, abrindo levemente o casaco vermelho de linho. Enquanto seu corpo lentamente se afastava pude vislumbrar o drama que se escondia na alma daquela mulher. Por baixo da blusa de seda branca um volume anunciava o que até então eu não havia percebido.
Matilda estava grávida.
FIM
Max Trebrett, “Matilda e outros Contos”, Ed. Panamericana, pág 135
Max Trebrett é um escritor de contos e crônicas. Nascido de pais noruegueses, sua família chegou ao Brasil nos anos 50, fugindo do grande estrago nas economias europeias causado pela II Guerra Mundial e em busca de estabilidade. Max formou-se em Medicina no Rio Grande do Sul e dedicou-se à obstetrícia, tendo trabalhado por muitos anos nesta área. A partir do ano 2000 começou a publicar, em vários jornais, crônicas e contos de humor, em especial acontecimentos ligados à área médica, onde atuou por muitos anos em serviços de pronto atendimento. Seu trabalho inicial foi na publicação “Bisturis e Canetas”, uma coletânea de escritos de médicos dedicados à literatura, com o conto “O Círculo do Gelo”, uma peça humorística sobre a mania, à época, de enviar objetos para um grupo de pessoas que, em contrapartida, precisavam manter o círculo vivo, enviando para o sujeito próximo da lista. O sucesso deste conto lhe estimulou a escrever sobre outros temas, sem jamais deixar de lado a vertente do humor. Desta forma, passou a colaborar com outras publicações de médicos escritores tendo publicado em 2010 sua primeira coletânea de textos originais, intitulada “Max e o novelo”, onde conta suas histórias pitorescas entrelaçadas umas às outras, formando um cordão de fatos intrincados que não permite que as histórias se desconectem e cuja leitura se assemelha ao desenrolar de um novelo de lã. O conto “Matilda” surgiu de um sonho do autor, conforme ele explica no prefácio da obra. Ao despertar, muito assustado, resolveu colocar em texto os elementos principais para que não escapassem à memória. Explicou ainda que os personagens da história são versões de pessoas que de fato conheceu, porém os fatos narrados são fantasias sobre um reencontro possível entre ele e seu amor platônico, Matilda. A personagem central Matilda existe de verdade, mas a história de ambos não passou de um flerte passageiro e inconsequente. Todavia, a caracterização da sua família e dos que a cercam é muito semelhante à realidade. Max é casado com Dorothy, e tem duas filhas: Denise e Michaella. Mora em Porto Alegre, RS
Caso aportasse uma comitiva de americanos no Brasil dizendo: “Nós sabemos como resolver o problema de vocês. Deixem tudo conosco. Temos técnicos formados em Harvard, em Yale e muitas outras universidades, e sabemos exatamente o que fazer. Temos o conhecimento, o dinheiro, as condições e a experiência. Abram alas, nós vamos consertar o Brasil“…
Só conheço uma pessoa suficientemente americanófila capaz de aceitar essa proposta, mas não declinarei seu nome aqui…
A pergunta que caberia, em nome da autonomia e da liberdade é : “Como assim, cara pálida? Quem são vocês para saber o que é o Brasil? Que autoridade vocês tem para saber como se expressa o preconceito contra os nordestinos, por exemplo? Como vocês sabem como se expressa a questão indígena? Como podem saber como é a posição da mulher, do negro, do gay ou de qualquer outro grupo nesse contexto especial, limitado geograficamente e temporalmente, que é o Brasil? Que autoridade vocês tem para falar em nome de um povo que conhecem apenas por revistas, fotografias e fotos do Carnaval?“
Não, vocês podem saber muitas coisas, mas não como nós que “sofremos e gozamos” a brasilidade todos os dias…
O mesmo pode ser dito para estes grupos. Se é possível opinar e tecer comentários – até mesmo oferecer apoio – o PROTAGONISMO precisa ser de quem tem legitimidade para conduzir a questão. Os gays, as mulheres, os negros, os brasileiros…