Arquivo do mês: novembro 2015

Autonomia e Local de Parto

Parto Domiciliar - Febrasgo

Em recente artigo intitulado “Parto Domiciliar um Direito de Escolha da Mulher” a Febrasgo mantém-se com uma postura mais ponderada em relação a este tema, até porque entre seus membros existem alguns claramente comprometidos com a Saúde Baseada em Evidências. Por outro lado, a atitude dos sindicatos da corporação continua a mesma:  unilateral e sem embasamento científico, mas… que mais se poderia esperar de um sindicato a não ser a defesa firme e concentrada na manutenção de privilégios e de poderes duramente conquistados?

Sobre o artigo, resta deixar claro que a ressalva relativa ao aumento de mortalidade neonatal não é verdadeira segundo os dados do “Birth Place” (2012), mas reflete apenas o que ocorre dentro de um subgrupo: o das primigestas (mulheres que terão seu primeiro filho). Não foi citado, entretanto, que pelo mesmo estudo uma mulher que terá seu segundo filho corre significativamente mais riscos no hospital do que em casa. Pergunto: Se fôssemos proibir partos domiciliares para primigestas deveríamos proibir os hospitalares para segundigestas?

Pense dessa maneira: Uma viagem de automóvel de São Paulo ao Rio é muito mais mortal do que uma viagem de avião. Não tenho os dados desse trecho mas normalmente a comparação é de 10x mais risco de morte para as rodovias. Diante desses dados deveríamos proibir as viagens familiares de carro por existir uma opção mais segura, o avião?

Mesmo que você acredite que essa seria uma boa solução, ainda assim fica a pergunta: e os que tem pânico de voar? E os que não tem dinheiro para pagar a passagem? E os que ADORAM viajar de carro e ir parando para curtir a paisagem?

E as mulheres que tem pânico de hospital? E aquelas que valorizam o parto como um evento íntimo e familiar e NÃO como um procedimento médico? E aquelas que desejam que seus filhos não sejam afastados de si ou que não querem correr o risco de uma cesariana por razões não médicas?

Não se trata apenas de admitir o parto domiciliar, como faz a Febrasgo, mas garantir a essas mulheres um atendimento digno, com profissionais experientes e capacitados, oferecendo suporte para as transferências e colocando um FIM a todas as retaliações, constrangimentos e ameaças às famílias que optam pelo parto domiciliar, assim como acabar de vez com as perseguições desonestas a todos os profissionais que prestam esse tipo de atenção baseada em evidência e em consonância com os sagrados direitos reprodutivos e sexuais.

As mulheres merecem mais respeito em suas escolhas, e o Brasil não pode apostar no atraso com relação aos direitos humanos.

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O que foi feito de R.?

viajante-solitario

O que foi feito de R.?

R. era meigo, afável e delicado. Não gostava de futebol. Não sabia o nome dos jogadores e não sabia dar um chute sequer numa bola. Era franzino e pálido. Tinha as mãos suaves, dedos finos, sorriso tímido. Seus cabelos negros eram sempre bem penteados. Não conversava muito conosco, e não acompanhava nossas brincadeiras bobas de garotos de 16 anos. Ele era reservado, mas dono de uma inteligência viva e ágil. Era culto, lia livros, falava em voz baixa e melodiosa, conhecia as ciências e as artes.

R. estava sempre rodeado pelas meninas, que gostavam de suas histórias. Seu sorriso era característico, e seus comentários espirituosos. Entretanto, nós não entendíamos a sua “fraqueza”. R. era frágil como uma borboleta. Seus passos eram leves, inaudíveis; ele levitava pelos corredores da escola sem que seu caminhar pudesse ser ouvido. Ele tinha um olhar triste, mas não sabíamos o que era. Havia um mistério, mas talvez o segredo que R. escondia era tão bem guardado que mesmo ele não tinha acesso.

O que houve com R.? O que aconteceu com o menino tímido, de caminhar contido e cabelos negros?

Hoje, passados 30 anos, eu sei do que R. sofria. Na época éramos todos cegos, e sua condição ficava invisível aos nossos olhos.

Desculpe, R., pela nossa profunda insensibilidade.

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Grosserias perigosas

Médico brabo

Sobre as grosserias em ambientes de trabalho, em especial nos hospitais, e que colocam em risco o resultado das intervenções e a própria saúde dos pacientes…

Eu sou do tempo em que a violência e a grosseria eram o padrão dentro de blocos cirúrgicos. Tais atitudes era “elogiáveis” e bem vistas pelos estudantes, que acreditavam na sua necessidade para manter claras e transparentes as hierarquias solidamente construídas na assistência aos doentes.

Havia dois elementos preponderantes nas condutas agressivas dos médicos: o viés de gênero e o de classe social, ou “casta”. Os médicos – em especial os cirurgiões – faziam de sua prática um festival de grosserias com subalternos (estudantes, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e limpeza) e um exercício explícito de sexismo e misoginia. Eram comuns os “chiliques” do doutor quando havia um problema qualquer durante os momentos tensos de uma cirurgia. Tesouras, pinças e afastadores voavam pela sala, assim como gritos eram disparados contra indefesas instrumentadoras e circulantes. A humilhação era conduta banalizada. As funcionárias, via de regra, se resignavam, pois qualquer reclamação era vista como insubordinação. Eu fui testemunha de suspensões e punições de técnicas de enfermagem que reclamaram quando a grosseria atingiu a sua própria honra, mas a cena comum e previsível era o choro solitário no vestiário e o silêncio mortificante.

A misoginia dos ambientes hospitalares sempre foi uma marca característica, semelhante demais com outros ambientes de confinamento social (como exército, igrejas e presídios) para não a entendermos como um elemento fundamental na criação de hierarquias rígidas e sistemas de poder baseados no gênero.

Alguns médicos mais antigos (lembrem que falo de uma realidade de três décadas atrás) justificavam sua crueldade e comportamento violento justificando que era essencial que “cada um soubesse seu lugar” ou ainda que “se elas tiverem medo de mim vão cuidar para não cometer erros“. Essa “tática de terror” sabidamente funciona em curtíssimo prazo, mas é uma tragédia quando se torna padrão de atitudes, pois fatalmente gera medo, seguido de raiva, ressentimento, rancor e mágoa. E isso pode ser trágico para o trabalho a ser realizado.

Cultivar um ambiente limpo de sentimentos negativos é tarefa muito difícil, mas as pesquisas comprovam que ele se associa a resultados melhores. Hoje em dia não vejo mais tais violências em hospital, mesmo sabendo que elas ainda existem, e fico esperançoso ao perceber que as mulheres que trabalham junto aos cirurgiões não precisam mais se esconder para chorar no escuro e podem usar de outros instrumentos para exigir o merecido respeito e consideração.

Com o tempo vamos limpando os ranços machistas e preconceituosos do trabalho sagrado de cuidar de quem sofre.

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Break the Silence!!!

caetano-roger-waters

Em recente artigo escrito para a Folha de São Paulo,  Caetano Veloso faz uma espécie de “mea culpa” pela sua ida com Gilberto Gil para Israel para a apresentação de shows comemorativos da longa parceria entre ambos. O que resta da leitura do seu texto é um constrangedor “puxa, eu não sabia“. Eu esperava mais de um ícone da cultura brasileira, cuja trajetória também foi marcada pela dor de um exílio e pela arbitrariedade de um governo perverso.

Ora, não se pode perdoar Caetano quando ele usa desculpa furada de não conhecer os massacres contra os Palestinos que ocorrem de forma sistemática há décadas. Caetano foi amplamente avisado, orientado – conclamado até – para conhecer a brutal violação de direitos humanos patrocinada por Israel. Mas, por medo, falta de firmeza e brio… calou-se. Mesmo depois de conhecer a realidade “in loco”, e ter a oportunidade de gritar “Break the Silence!!!” e expor publicamente sua solidariedade ao povo massacrado da Palestina, preferiu se calar.

A atitude pusilânime de Caetano – quando poderia ter feito a diferença – é o que expõe a distância entre um artista de qualidade e uma grande personalidade. Essa é a diferença entre Caetano e Roger Waters. O músico genial do Pink Floyd não se calou e tampouco usou a desculpa esfarrapada de que “não sabia como era“. Não. Munido de informações Roger postou-se com bravura contra a barbárie e lidera o mundo da arte contra o Apartheid israelense. O que sobra em Roger Waters, falta em Caetano: coragem e postura.

A velha retórica de chamar os opositores de “furiosos”, e a crítica quase infantil contra Miko Peled, o filho do general, mostram que Caetano ainda acha – em pleno século XXI – que existe espaço para um país cuja política racista e excludente destrói as esperanças de um povo e uma pátria ocupada. Não é o que a civilização e a justiça determinam, Caetano. Embora a sua tímida retratação, você continuará representando para mim um artista de segundo nível, abaixo de Luan Santana (pela sua negativa de apresentar shows no MS até acabar o massacre Kaiowá) em termos de atitude pública diante das barbáries contemporâneas.

Suas palavras ensaiando uma retratação, mesmo diante do frágil “acho que não volto mais” ao menos sinalizam que ele percebeu o quanto sua atitude fraca prejudicou o esforço mundial de bloquear Israel em sua política de limpeza étnica. A ideia de buscar informações e pesquisar vídeos explicativos sobre a Palestina no YouTube (só agora???) pode ser interpretada como uma tentativa de resgate de sua própria coerência.

Entretanto, o texto deixa a desejar quando se busca em suas palavras a solidez e a firmeza contra os abusos de Israel. Não vi solidariedade expressa e nem a adoção de uma postura de peito aberto. O que vi foi uma série de desculpas quase infantis sobre a razão de ver uma grande oportunidade passar na sua frente e ter se calado.

Penso ser inaceitável que Caetano use sua ignorância como desculpa. É como se em meados do século XIX o filho de um lorde inglês precisasse vir ao Brasil para descobrir que havia escravidão e, aqui chegando, se desculpasse dizendo “eu não fazia ideia que era assim“. Você foi avisado, Caetano, por Roger Waters e por centenas de ativistas. Foi porque quis, ganhou seu rico dinheirinho e agora se faz de “menino assustado”.

Você provavelmente tem vergonha de ter sido enganado por Israel. Eu também fui. Sartre e Jorge Amado foram enganados pelo comunismo real soviético. Todavia, seria nobre da sua parte reconhecer que a “democracia” israelense é uma FRAUDE, que a Palestina foi roubada em 1948 com terror e massacres, que o povo palestino vive em uma prisão a céu aberto e que Israel jamais pensou em um país plural, e sua perspectiva sempre foi a da limpeza étnica e da aniquilação lenta e sistemática do povo palestino.

Espero que seus fãs possam lhe perdoar, mas não acredito que os palestinos – que podiam ter recebido sua ajuda – sejam tão condescendentes com a sua fraqueza de espírito. Reconhecer seu engano, a postura preconceituosa com o mundo árabe e o islã e o entusiasmo com a falsa “modernidade” de Israel seria um excelente começo. Mas você preferiu agir como um menino medroso, e quando o mundo pedia uma voz de solidariedade a um povo que lentamente agoniza você se calou.

Por medo.

Você foi cúmplice de um massacre e um crime contra a humanidade. “O show falou por si” é uma mentira que tenta encobrir sua covardia. Podia ter falado, gritado, esbravejado mas preferiu o silêncio. E isso ficará marcado em sua trajetória. Você viveu no tempo do Apartheid israelense mas quando teve a grande oportunidade de se posicionar, foi fraco. Que Deus se apiede de sua alma.

É fácil falar quando se está distante da dor que esmaga o peito do outro.

Pense em Gaza, Caetano.
Gaza é aqui.

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Tire o teu

tiroteio

“Muda-se a forma, mantém-se o conteúdo. As manifestações da exploração do homem pelo homem se transmutam e fantasiam, exatamente para manter sua essência intocada. O homem se disfarça, muda seus rostos e jeitos, para continuar sendo o lobo do homem”. (Max)

No meio de um cochilo aguardando minha paciente chegar acordo com uma salva de estampidos. Em alguns minutos a confirmação: tiroteio no estacionamento do hospital. Um assaltante morto e dois feridos presos. Da janela basculante envidraçada que enxerga o Guaíba consigo ver o burburinho e a ação dos policiais.

Confusão, correria, curiosidade mórbida e múltiplas versões do mesmo fato. Mas o pior são os comentários. Os da Internet eu ainda posso não ler, mas os que passam ao meu lado não posso evitar de ouvir.

Da janela do centro obstétrico podemos ver o corpo estendido no chão. “Menos um” diz um passante. “Só falta a emergência atender”, indigna-se outra, negando aos feridos qualquer migalha de comiseração. Por que será que as pessoas se amarguraram tanto nos últimos tempos? A morte de um menino é realmente algo a se comemorar?

Eu me resigno e fico quieto. Se resolver questionar as comemorações pelo óbito do qual somos todos testemunhas e cúmplices, posso acabar sendo a próxima vítima.

Tristes tempos…

PS: E depois do tiroteio nasceu Beatriz… Que venha em paz. Que não se contamine com a psicosfera carregada que hoje se abateu sobre esse lugar. Siga seu caminho cheio de luz e fuja das trevas que teimam em nos perseguir.

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