Arquivo do mês: agosto 2019

Espiritismo e compaixão

Há muito me desiludi com os espíritas, não com o espiritismo e sua idéia renovadora centrada na mediunidade e na reencarnação. Infelizmente os espíritas via de regra cursam o mesmo caminho moralista dos evangélicos e outras denominações. Possuem um desprezo explícito pelas raízes sociais da pobreza e cultivam um discurso meritocrático ao estilo “é pobre porque na vida passada foi rico e não teve compaixão“. Acreditam que as “leis do karma” se sobrepõem às experiências explícitas de desigualdade que testemunham no seu cotidiano. Acreditam na desigualdade e na exploração como experiências que não nos cabem interferir, sob pena de interferir nas leis divinas de causa e efeito

Ora, que profunda tolice!! Quanto desprezo pelas forças sociais que condenam grandes massas à exploração ao arbítrio dos poderosos. O espiritismo – por sua origem intelectual, europeia e progressista – poderia ter sido a grande força renovadora das religiões no Brasil, mas se manteve como uma seita evangélica carola e conservadora. Uma pena.

Repito o que já disse: só as religiões de matriz africana, por conterem a massa de pobres e negros da nossa sociedade, têm a potencialidade de reverter a má imagem criada pelas religiões neste país. Só elas – e uma parcela minoritária dos católicos – tem massa crítica suficiente para produzir mudanças no cenário de desigualdade no Brasil.

O resto cultiva a compaixão burguesa mais rasteira e inócua.

Sim, eu me desiludi com os espíritas. Isso não é uma acusação; é uma confissão. Para se desiludir é necessário, primeiro, se iludir. Mea culpa, mea máxima culpa…

Em relação à postura política os espíritas são decepcionantes. Certamente que há espíritas de vanguarda e politicamente bem posicionados, mas são exceção. A imensa maioria é composta de conservadores e entre eles um grupo claramente reacionário. As palmas à manifestação absurda e subserviente de Divaldo Franco para com Moro e a “República de Curitiba” (sic) em Goiás são inquestionáveis e demonstram o apoio majoritário dos espíritas às vertentes mais atrasadas e punitivistas do judiciário e à direita no espectro da política nacional.

Sim, nem todos os espíritas são reacionários, e alguns deles são bem explícitos com suas posições políticas. Entretanto, estes espíritas de esquerda são a minoria e não representam o conjunto desse movimento. São exceção dentro de um quadro de conservadorismo, elitismo e preconceito com os movimentos sociais. É muito difícil encontrar um espírita que não seja antipetê, coxinha, apoiador da Lava Jato e que se dedica a atacar Lula.

Sim, até mesmo a reencarnação – como forma de entender as idiossincrasias do mundo – é usada de forma simplista pela maioria dos espíritas e por isso mesmo merece ser criticada. Por esta razão citei a frase que tanto escutei durante a minha vida e que revela esse primarismo. Olhar para a reencarnação e não enxergar a iniquidade fomentada pelo capitalismo é outro absurdo conservador do movimento espírita.

E para finalizar, dá para generalizar, sim. Como movimento o espiritismo é socialmente retrógrado e conservador. É moralista e crítico aos avanços sociais, de forma evidente no que diz respeito à sexualidade – em especial ao universo LGBT. Politicamente é de centro direita e se aproxima da direita clássica. Raros espíritas são progressistas ou de esquerda. Boto mesmo essa gente toda no mesmo barco, pois essa é a imagem que seus líderes difundem desde sempre, de Chico Xavier a Divaldo, passando pela FEB e por inúmeros palestrantes que cruzam o Brasil oferecendo esta postura política de forma explícita ou nas entrelinhas.

Em suma, mesmo sabendo de notáveis espíritas de esquerda – tivemos um espírita Ministro da Saúde de Dilma – ainda assim a imagem do espiritismo é conservadora e moralista, muito semelhante à percepção que tenho do movimento evangélico no Brasil.

Os espíritas estão mais próximos de Malafaia do que de Francisco.

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Compaixão

Há algumas semanas debati com um ex-amigo de Facebook sobre seu conceito de compaixão. Eu dizia que sua distopia anti estado colocaria qualquer nação em um estágio pré-civilizatório e ele respondia que isso jamais aconteceria porque os ricos teriam “compaixão” pelos pobres e os ajudariam diante das suas necessidades.

Hoje escutei um fragmento da entrevista do Zé Dirceu (“não tenho provas, mas a literatura me permite”) ao Nassif onde ele falava do seu encontro com Bush e Condoleeza Rice onde estes falavam de sua profunda admiração por Lula, mas pediam que o PT abandonasse a ideia de equidade e distribuição de renda como objetivo máximo do governo. Arremataram dizendo: “Para os pobres devemos reservar nossa compaixão”. Não é à toa que a compaixão era o tema do meu ex-amigo neoliberal e seus parceiros de ideologia do norte. A compaixão é um artifício para manter as castas sociais intocadas. Ao invés de justiça, “genuína” comiseração.

Na nossa sociedade existem muitas madames da sociedade que devotam tempo e dinheiro em obras sociais. Uma vez almocei com um grupo delas em uma creche onde atendia. Enquanto ofereciam alimentos e brinquedos para as crianças, não se furtavam a fazer comentários depreciativos e racistas. Eram, obviamente, contrárias ao presidente Lula (o presidente na época) e insistiam em chamá-lo de incompetente, ladrão e bêbado. Ficou para mim o perfeito exemplo da compaixão brasileira. A mulher racista, classe média alta, arrogante e pretensiosa que devotava algum tempo para os miseráveis para assim aplacar sua culpa, criando a ilusão de ter feito algo pelos “desfavorecidos”.

É o mesmo caso do pequeno empresário que se veste de papai Noel e distribui balas para as crianças no fim do ano, para desta forma diminuir o peso de tantas falcatruas cometidas. A compaixão burguesa é esse ato de ajudar os pobres para que eles se mantenham vivos e pobres, sempre à disposição.

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Ética

Eu me acostumei a ouvir a acusação de “radical” por muitos anos. Na verdade este radicalismo que tanto eu ouvia como ofensa e com dedos rígidos apontados se resumia apenas a… cumprir a lei. Chamar de radical é uma forma usual de acusar o outro para desobrigar-se de fazer o que é certo. Assim quando você acha uma carteira na rua e se esforça para achar o dono e alguém lhe diz, constrangido pela sua atitude: “Ora, não precisa ser tão radical; achado não é roubado”...

… é sim; não existe “meia-ética”, e jamais será abusivo tratar com respeito aqueles com quem se divide essa curta estrada chamada vida.

Mary Lemont Ashcroft, “Pictures in Exhibition”, Ed. ELP, pág. 135

Mary Lemon Ashcroft é uma professora de direito em Yale Nasceu em Siracusa, USA e durante muitos anos exerceu sua profissão na famosa banca de advogados Cohen, Weisberg and Ashcrof. Nestes anos dedicou-se a muitas causas sociais, como o movimento “pro-choice” – pelo direito ao aborto legal – pelos direitos dos negros e o “Black Lives Matter” e igualmente pela defesa das pessoas trans. Suas experiências com os movimentos sociais americanos a estimularam a escrever “Pictures in Exhibition”, que mostra um mapa do preconceito sexual, étnico e de orientação sexual nos Estados Unidos através das inúmeras histórias reais retratadas no livro. É casada com Peter Ascroft, igualmente advogado e que serviu como consultor do governo democrata de Bill Clinton. Mora em Siracusa e tem dois filhos.

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Ecología íntima

Ok, eu concordo que está é uma discussão sem fim, complexa, emocional e por vezes desgastante. Está centrada nos valores mais fundamentais da maternidade e nos leva frequentemente a posições radicais.

Uma foto mostra um trio de mulheres lado a lado com seus bebês ao colo. Uma delas está amamentando ao seio, outra oferecendo fórmula láctea e uma terceira com alimentação parenteral. A mensagem implícita é óbvia: “não importa como foi, o importante é cuidar com afeto”. Pergunto: como não concordar com esta tese? Como negar que o elemento mais significativo que perpassa todas as mulheres desta cena é o afeto incondicional? Como não reconhecer na imagem a “fissura bizarra da ordem cósmica”, a qual chamamos amor?

Então…. por que apesar disso a imagem gera desconforto?

Eu creio que o que nos causa inquietude não é a mensagem explícita nas cenas de cuidado e amor. Não é a diversidade de manifestações de afeto, mas o que se esconde por trás do meramente manifesto, a mensagem sub-reptícia que nos leva a um ponto diferente das camadas mais superficiais da imagem apresentada.

A inquietude vem da idéia subliminar que perpassa, que exalta a banalização dos procedimentos, a valorização dos profissionais, a validade superior das tecnologias e a importância das intervenções médicas, carregando na chantagem emocional ao estilo “no fim o que realmente importa é o amor”. Fala da equalização de elementos díspares, tratando-os como se fossem, em essência, a mesma coisa.

Quem trabalhou no ativismo do parto mais de 3 décadas reconhece o mesmo tipo de mensagem nas publicidades que tentam tratar cesarianas e partos normais como se fossem formas igualmente válidas de retirar bebês do claustro materno. Todos sabemos onde essa banalização da cesariana nos levou.

Claro que o fim é importante; talvez o mais importante. Entretanto, o desprezo aos meios é sempre um erro, por ignorar o fato de que o processo de nascer é CONSTITUTIVO. Somos o que somos porque nascemos de uma forma bizarra, que estabeleceu uma criação ímpar e laços afetivos únicos como consequência.

Como diria Bárbara Katz-Rothmann “parto não é fazer bebês, mas também construir mães fortes o suficiente para suportar os desafios da maternagem”. Portanto, desprezar o processo de construção de uma mãe ignorando as características milenares que a formam jamais será uma atitude sábia.

Parir e amamentar possuem valor social exatamente por serem processos de grande superação. Se é verdade que podemos amar nossas crias sem parir ou amamentar (até mesmo sem gestar) também é verdade que o desprezo por estas etapas pode levar a consequências graves para os elementos formativos mais essenciais da espécie humana.

Parir e amamentar são processos em risco de extinção. Se nos preocupamos tanto com golfinhos e abelhas por que haveríamos de negligenciar de forma irresponsável nossa ecologia mais íntima?

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O rei que espiava

A respeito do texto que está rolando sobre um “rei que olhava as mulheres parindo” que teria dado origem à prática da litotomia para os partos.

“Acho essa tese profundamente fantasiosa, para não dizer tola e improvável. E fica fácil dizer isso levando-se em consideração que a tese que disputa espaço com esta se baseia nas óbvias vantagens de determinar às parturientes esta posição esdrúxula (que para muitos é a mais anti fisiológica existente) para assim facilitar o acesso dos médicos ao períneo. Em uma época em que o trabalho desses profissionais ganhava terreno exatamente pela possibilidade de controlar o parto através do uso de ferramentas, a troca de posição simbolizava também – e acima de tudo – uma mudanca de poderes: mulheres abaixo, homens acima.

Creio que a fixação sexual de um único sujeito não me parece forte o suficiente para moldar um padrão social de uma prática de atenção ao parto. Para que esta nova posição pudesse ser aceita ela precisava se adequar ao fluxo de modificações sociais que se apresentavam. Era preciso que ela oferecesse às mulheres a proteção simbólica que permitisse a elas entregar graciosamente a mais rica flor da feminilidade.

A conquista do parto é o ultimo bastião do patriarcado. A expropriação do parto é o controle definitivo sobre o milagre feminino essencial. As fixações sexuais de um rei são infinitamente menos relevantes do que o desejo de preponderância de uma corporação nascente e a do desejo ancestral de controlar os corpos femininos.”

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Terraplanismos

Mais de uma pessoa da minha bolha de mídia social olhou para o cartaz abaixo e observou que os palestrantes são todos homens. A insinuação é clara: só homens são estúpidos o suficiente para acreditar em terraplanismo.

Eu iria mais adiante: são todos brancos e heterossexuais; alguém explica? Assim sendo, por esse fato relevante e incontestavel, podemos afirmar a superioridade moral e intelectual de mulheres, negros e gays sobre a escória planetária: homens brancos heterosexuais.

Certo?

Eu ia puxar a lista de prêmios Nobel do ano passado, onde a imensa maioria é feita de homens também. Isso significa que…

Significa que preconceito de gênero tem duas mãos e que a existência de “opressores e oprimidos” não impõem que usemos as mesmas armas que causam e mantém a opressão sobre determinados grupos. Insinuar que os homens são mais idiotas e as mulheres mais sábias – e vice-versa – apenas mantém vivo e resplandecente o preconceito e o olhar negativo sobre o “gênero de lá”, o outro, o que “não somos nós”.

É possível fazer crítica de gênero sem essencialismos morais ou intelectuais. É possível criticar de forna insistente e intensa o preconceito com as mulheres cientistas – por construções históricas do patriarcado – sem insinuar que mulheres são mais inteligentes (ou menos ignorantes) que seus parceiros homens. Fica a questão: por que é tão difícil assumir que somos iguais nesse terreno? Por que seria preciso diminuir o outro gênero para enaltecer o nosso?

Os estudiosos da terra plana (sim, eles estudam o tema) podem estar errados e confusos sobre suas crenças, mas não o fazem por serem homens, mas por serem crédulos, e a credulidade não ataca apenas portadores de cromossomas Y.

A tolice e a excelência – ao que tudo indica – tem uma distribuição bem democrática na nossa espécie. Por esta razão vejo com igual gravidade tais manifestações preconceituosas e as antigas piadas que associavam a burrice com a tonalidade do cabelo de algumas mulheres. Não vejo sentido em continuarmos a estimular tais comportamentos.

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