A jovem entrou no consultório carregando em uma mão a carteirinha de papelão surrado e na outra sua mãe, quase tão miúda quanto ela. À frente sua lustrosa barriga de 9 luas.
Sentou -se à minha frente e sorriu timidamente. Sua mãe começou a falar e eu a interrompi suavemente com a mão espalmada à frente. Por certo que a menina de olhar triste era “dimenor”, com o elas falavam, mas nem por isso deveria ter sua voz silenciada.
– Jéssica o meu nome.
Perguntei detalhes da sua gravidez enquanto desdobrava o papel amarrotado de seu pré-natal.
– Tive algumas dores e minha mãe disse pra eu vir ao hospital.
A mãe sussurrou em seu ouvido “fala do escorrimento”, mas eu escutei sem a necessidade que ela repetisse. Expliquei da normalidade de secreções inocentes pela descamação das células e pela produção de muco. Ela concordava balançando a cabeça, sem dizer palavra.
Procurei na folha de papel sua data de nascimento, mas me confundi com a letra ruim do prenatalista. Perguntei diretamente à ela.
– Tenho 14 anos, disse ela, sem parecer ter qualquer problema com essa informação.
Minha filha tinha apenas 5 anos na época. Não conseguia imaginar que em uma década ela pudesse estar sentada à frente de um médico numa consulta de pré-parto.
Por alguns instantes fiquei olhando os números esparsos de seus exames enquanto minha mente vagava pela realidade tão distante da minha. Dois universos completamente diversos se chocavam naquela pequena sala de entrevistas do hospital na periferia pobre de uma cidade grande.
Ali estava eu, o escafandrista. Mergulhado num oceano de significantes tão diversos da minha história, eu respirava por um tubo conectado aos meus valores e experiências de vida, traduzindo o idioma estranho e complexo que as pacientes falavam. Mas também em minha mente havia a certeza que não é possível entender as dores, os dramas, as tragédias, as alegrias e as conquistas sem se despir das vestes que separam estes mundos e deixar-se banhar pelas águas do campo simbólico onde atuamos.
Fiz os exames de rotina ao lado da mãe que, comportada, nada falou. Não havia motivo para preocupação, e bastava aguardar as dores que, por certo, chegariam em breve.
Olhei mais uma vez seu rosto e, incontido, resolvi cometer o erro fatal de traduzir sua vida pelos meus olhos. Sem dúvida, um erro juvenil e tolo, mas que hoje coloco na conta da presunção e arrogância da minha pouca idade.
– Mas, Jéssica, não é muito cedo?
Uma pergunta tola, sem sentido, sem valor e que só poderia produzir culpa e vergonha. Para ela, naquele dia; para mim hoje.
Para minha surpresa ela abriu um sorriso e disse sem titubear
– Não acho doutor. Já sou casada há dois anos e penso que é a hora de ter meu bebê.
Fechou seu cartão de pré-natal, levantou-se e chamou a mãe. Esta, que antes dos 30 anos já se preparava para ser avó, me cumprimentou com sua mãozinha frágil e sorriu sem jeito.
Mundos distintos.