Ela talvez coubesse no estereótipo mais comum das professoras da escola secundária. Velha, por certo, mas para um garoto de 14 anos esse conceito começa nos 40 anos e segue em diante. Portanto, não há como saber com exatidão. Lembro apenas do seu rosto redondo, cabelos curtos, saia comprida, óculos, sempre rodeada por uma pilha de pastas com a chamada das várias turmas. Naquela manhã sua imagem não estava tão diferente do que eu havia me acostumado a ver, mas algo no seu caminhar mais lento que o normal denunciava algo. Chegou na nossa sala enquanto a resenha ainda corria solta. Colocou os cadernos de chamadas sobre a mesa à frente e ficou olhando por alguns instantes para a parede ao fundo da sala, sem dizer nada.
Ela era professora de psicologia, uma cadeira inusitada no segundo grau. Foi através dessa professora que encontrei os conceitos de eu, supereu e id pela primeira vez. Foi com ela que a turma debateu as motivações inconscientes de nossas atitudes, o mal estar na sociedade e as fases iniciais do desenvolvimento psíquico das crianças. Talvez ela tenha desempenhado um papel importante no despertar das crianças para os mistérios e os segredos da mente, mas jamais teve a oportunidade de comprovar. Talvez essa seja a sina dos professores: nunca saber o quanto impactaram o futuro daqueles a quem ensinaram. Continuou a olhar por um longo tempo em silêncio para um ponto invisível do infinito cósmico, enquanto aguardávamos a chamada. Depois de alguns minutos olhou para os papéis empilhados e delicadamente abriu a primeira pasta. Antes de dizer o primeiro nome, suspirou fundo e falou com a voz embargada.
– Vocês desculpem a professora. Eu não deveria ter vindo dar aulas hoje, mas percebi que ficar em casa sozinha seria muito pior. Não sei o que eu faria olhando para as paredes. É muita tristeza, mas não sei como lidar com isso. Desculpem, desculpem.
Ficou mais alguns segundos imóvel e com os olhos marejados. Depois deixou sair uma frase que mais parecia um gemido do fundo da alma.
– Ontem à noite meu filho morreu.
A sala, repleta de adolescentes barulhentos e cheios de vida, congelou. Ninguém disse palavra alguma. Era possível ouvir a respiração entrecortada da professora. Dos seus olhos brotou uma lágrima e eu senti no peito uma dor estranha que só conheceria décadas mais tarde. A dor surda da perda, da inevitabilidade da morte, o vazio a preencher cada espaço da vida. O som escuro e abafado do silêncio mordaz. Uma porta que se fecha, ou como diria Chico:
“Oh, pedaço de mim Oh, metade exilada de mim Leva os teus sinais Que a saudade dói como um barco Que aos poucos descreve um arco E evita atracar no cais”
Não havia o que dizer. Olhei para o lado e vi meus colegas paralisados. Não era comum para nós vermos adultos chorarem. Ninguém ali poderia acudir aquela alma sofrendo a mais tormentosa das dores. Éramos crianças diante de uma realidade de adultos. O silêncio foi quebrado apenas após a professora retirar da sua bolsa um lenço delicado e secar as lágrimas e o óculos. Olhou para a turma, sorriu timidamente, pediu desculpas mais uma vez e falou…
– Amanda?
E seguiu dizendo em ordem alfabética o nome de todas as testemunhas de sua dor.
Esta foto acima é a carteira de trabalho do meu pai, com a foto da família à época, antes do nascimento dos meus irmãos Roger e Nice Jones. Infelizmente a minha data de nascimento está errada, já que é público e notório que nasci em 1984. Reparem a angulação, ao estilo Hollywood, que a minha mãe se posicionou para a foto, e o bigodinho “limpa-trilho” do meu pai.
Sobre as fotos está o carimbo do IAPFESP – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados Públicos, que eram um dos múltiplos institutos de aposentadoria e pensões que existiam na minha infância. O INPS – Instituto Nacional de Previdência Social – foi criado no ano de 1966, originando-se da fusão de todos os Institutos de Aposentadoria e Pensões existentes à época. Já o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia federal, foi criado em 1977, pela Lei nº 6.439, que instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social.
Por sua vez o SUS, Sistema Unificado de Saúde, foi criado pela Lei 8080/1990 que desde então levou a uma trajetória de muito esforço e desafios enfrentados, diariamente, para proporcionar e garantir o direito universal à saúde como dever do Estado.
São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.
Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.
Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.
Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.
O quarto era bastante acanhado. Ao lado da cama de solteiro havia uma mesa e uma cadeira, absolutamente básicas. Uma TV, que passava o dia ligada em volume baixo, estava situada na parede contígua, ao lado da porta que levava ao banheiro, onde do chuveiro elétrico uma gota teimava em cair em intervalos regulares o dia inteiro, mas que tornava a noite dos mais sensíveis em uma tortura. Não havia qualquer luxo no quarto do plantonista de um centro obstétrico nos anos 90, em especial em um hospital de periferia que atendia 99% de pacientes do SUS.
Naquela época havia uma espécie de contrato por “produtividade”. Fazíamos plantões e ganhávamos pelo número de partos atendidos. Ou seja: o pagamento vinha pelos papéis assinados, e não pelo efetivo trabalho realizado. Poderíamos passar 24 horas trabalhando incessantemente, fazendo consultorias nos andares, atendendo intercorrências na maternidade, avaliando pacientes na emergência obstétrica ou acompanhando os trabalhos de parto. Todavia, só o parto e o nascimento dos bebês, era pago; todo o resto do trabalho era invisível e, portanto, não pago.
Assim, todo o plantão era uma loteria. Já tive plantões zerados, sem atender ninguém e sem receber um tostão, tendo ainda que pagar a gasolina para ir até o hospital (que ficava uns 40 km da minha casa). Por outro lado, houve plantões em que “herdei” do plantonista anterior 4 ou 5 pacientes prestes a parir, o que me garantia um razoável pagamento. Lembro que naquela época a economia estava em frangalhos e a inflação descontrolada, e por essa razão era comum dolarizarmos tudo. Por causa disso, lembro que um parto no plantão do SUS pagava por volta de 50 dólares, e a média de partos atendidos era de 20 (5 por plantão), o que dava aos plantonistas por volta de 1000 dólares mensais, mas sem qualquer benefício trabalhista. Claro, nos anos 90 o dólar tinha um significado diferente do que tem hoje.
Eu não tinha mais do que 29 anos de idade, mas tinha uma face muito infantil. Não foram poucas as vezes que, após avaliar uma paciente em trabalho de parto e pedir para ela voltar mais tarde – quando as contrações estivessem mais frequentes – ela se voltasse para o marido dizendo: “Olha, não me leve a mal, mas prefiro esperar a avaliação do médico”. Eu apenas ria, e entendia o engano da paciente como sendo natural. Eu realmente não tinha cara de doutor.
Em um desses plantões, no meio de um cochilo superficial perturbado pelo irritante pingo do chuveiro, fui chamado para avaliar uma paciente na emergência do centro obstétrico. Enquanto eu me ajeitava no meu pijama de plantão, perguntei à “enfermeira” (não havia reais enfermeiras no plantão, apenas auxiliares de enfermagem sem qualquer formação; muitas delas entravam como auxiliares de limpeza e adquiriam habilidade de cuidado com o tempo) se ela estava com muitas contrações ao que ela respondeu: “Na verdade ela veio da clínica médica. Está internada com diagnóstico de trombose venosa. Tem prescrição de anticoagulante, mas a enfermeira da Clínica Médica acha que ela pode estar grávida e ficou com medo de aplicar a medicação. Dá para o senhor avaliar?” Resmunguei, inevitavelmente. Ora, fazer às 3 horas da manhã uma avaliação que deveria ter sido feita à tarde quando da internação? E porque só agora resolveram trazer a paciente? Ainda reclamando – em pensamento – caminhei os poucos passos que separavam o quarto dos médicos da sala de exames.
Quando cheguei à sala iluminada, que ficava na frente da nossa humilde maternidade, encontrei a menina já deitada na maca, e os sinais vitais – todos normais – estavam escritos em um papel que repousava sobre a pequena mesa de metal. Sim, uma menina; depois descobri que tinha apenas 16 anos. Levantei o lençol que cobria suas pernas e vi o quadro diagnóstico que a havia trazido ao hospital: a perna inchada e levemente avermelhada, que levantou a suspeita de uma trombose venosa profunda. A indicação era de usar warfarina sódica, mas a enfermeira suspeitava de uma gravidez, apesar da menina não confirmar, e por isso não quis aplicar antes de uma avaliação do obstetra. Levantei mais um pouco o lençol e lá estava o abdome globoso, porém escondido atrás da compleição volumosa da paciente. A menina era gorduchinha: pés, mãos, rosto e barriga. Perguntei a ela se ela estava com a menstruação desregulada, ao que ela respondeu que “sim”, apesar de não lembrar quando havia sido seu último sangramento. “Cinco meses, talvez; quem sabe sete doutor. Não lembro bem”.
“A enfermeira acha que você pode estar grávida, meu anjo. Acha possível?” perguntei eu. Foi após o silêncio, que preencheu de dúvidas a acanhada sala de exames, que eu atentei para o seu rosto e alguns detalhes do seu corpo. Os olhos estavam fixos no teto da sala, imóveis, crispados. Em torno deles a pele juvenil estava pálida e úmida. Na ponta do nariz bem desenhado, gotículas de suor brotavam de sua face como pequenas lentes, e as mesmas bolinhas de água adornavam o contorno de seus lábios vermelhos e a base do nariz. Levantei mais um pouco e o lençol e vi que sua mão agarrava com força a grade da maca. Todos aqueles sinais sutis demonstravam algo para além de uma simples trombose de membros inferiores. Ela continuava em silêncio diante da minha pergunta, mas poderia ser por pudor ou vergonha. “Afinal”, perguntava ela em pensamento, “o que esse menino de pijama tem a ver com isso?“
“Vou escutar sua barriga. Se você estiver mesmo grávida o aparelho vai nos dizer”, disse eu laconicamente. Ela igualmente nada respondeu e eu coloquei o transdutor do sonar empapado de gel em sua barriga. Foram necessários apenas poucos segundos para encontrar o cavalgar tão característico de um batimento fetal. “Aqui está ele. Você está grávida menina, e pelo tamanho da barriga, bastante grávida”. Ela levantou a cabeça do travesseiro da maca e me olhou incrédula. “Grávida? Não pode ser!!” Dizendo isso contraiu o rosto como se estivesse sentindo dor. Olhei imediatamente para as duas enfermeiras que estavam ao meu lado e pedi um par de luvas. “Abra as pernas garota. Preciso lhe examinar. Eu suspeito que você está tendo contrações”. Com a ajuda das auxiliares fiz o toque vaginal e não pude evitar de uma expressão de surpresa. Não apenas ela estava em trabalho de parto, como seu bebê estava praticamente coroando.
“Sim, você está grávida e seu bebê vai nascer agora. Por favor, fique de pé e me acompanhe”. Pedi às auxiliares que acendessem a luz da sala de parto e me trouxessem um “pacote de partos” – um conjunto de materiais esterilizados e campos para atenção ao parto. Segurando suas mãos com cuidado, caminhei com a menina uns poucos passos para a sala ao lado e pedi que ficasse de cócoras, segurasse com firmeza as minhas mãos e empurrasse o bebê, caso sentisse vontade. “De fazer cocô?”, perguntou ela. Respondi afirmativamente, ao que ela disse: “Pois eu estou sentindo muito essa vontade!!!” Foram necessárias apenas duas forças bem intensas para que o bebê viesse para as minhas mãos, antes mesmo que as enfermeiras tivessem tempo de buscar o material esterilizado. Nasceu no chão da sala de partos, protegido por lençóis limpos arrancados da maca. “Então eu estava mesmo grávida!!”, exclamou ela. Não pude conter um sorriso; do diagnóstico de gravidez ao nascimento não haviam se passado mais do que dois minutos; uma gravidez inteira e todo um trabalho de parto que duraram menos de 120 segundos.
Os instantes que se seguiram ao parto foram como se aos poucos a menina estivesse voltando à realidade. Disse para mim que estava mesmo desconfiada, com o aumento de peso, com a falta da menstruação, mas temia que fosse realidade o que ela tanto temia. “Por que tanto medo?” perguntei, mas ela se manteve em silêncio, e eu respeitei sua insegurança em me contar o que havia ocorrido. Completei todas as etapas da atenção ao parto, avaliei o períneo examinei a placenta e confirmei a rigidez do seu útero. Ajudei que se levantasse e ela se deitou na maca, para ser levada ao quarto, apenas alguns metros adiante. Caminhei ao seu lado enquanto ambos em silêncio escutávamos o barulho das rodinhas mal azeitadas da maca cantando uma canção monótona e repetitiva. Quando chegamos à porta do quarto, me despedi com um sorriso, esperando retomar o que restava de sono para aquela noite. Entretanto, o que ela me disse ao se despedir impediu que Morfeu pudesse me recolher, mais uma vez, em seus braços.
“Foi o William, doutor. Foi ele. Ele não é uma boa pessoa. Além disso, ele é o namorado da minha mãe”.
Houve dois momentos na minha vida nos quais eu tive a nítida sensação de riqueza. Ou seja: a percepção de ter dinheiro sobrando, em demasia, para mais do que necessitaria, a ponto de não ter ideia do que fazer com ele. Sim, foram sensações fugazes, passageiras, momentâneas e rápidas, porém intensas o suficiente para que eu as recorde até hoje.
A primeira ocorreu há 45 anos. Comecei a trabalhar como interno em um Pronto Socorro aos 18 anos, ainda no segundo ano da Faculdade. Era, segundo meu pai, um “maleteiro“, carregador de “maleta”, uma enorme caixa de medicamentos usados pelo médico nos atendimentos domiciliares. Também era “padioleiro”, alguém que fazia transporte de doentes entre um hospital e outro. Depois do primeiro mês de trabalho recebi meu salário, referente às horas que fiquei de plantão no pronto socorro. Lembro que naquela época uma noite de plantão pagava o equivalente a 50 reais nos dias de hoje, mas o dinheiro era o que menos contava; a gente fazia plantão mesmo era para aprender.
Cheguei em casa com o bolso da calça cheio de notas, pensando em como usaria todo aquele dinheiro (uma calça US Top? uma camiseta da Gang? um tênis Bamba? livros?). Meu pai me recebeu em casa com um envelope nas mãos, e nele estava a minha “mesada”. Olhei o envelope e sorri. “Mais dinheiro ainda? Que vou fazer com tudo isso?”, pensei. Disse ao meu pai que não era necessário, mas ele fez questão de me dar aquela que, depois percebi, seria a última das mesadas da minha vida. Poucas vezes tive uma sensação tão grande de opulência.
A segunda vez foi há alguns poucos meses. Depois de uma longa luta contra as burocracias do INSS eu recebi meu primeiro salário como aposentado. O salário, aliás, muito menor do que eu gostaria, mas muito mais do que eu esperava receber. Os cálculos da aposentadoria de profissionais liberais são misteriosos e o resultado é sempre uma surpresa. Depois de muitos anos vivendo num modelo de contenção de gastos e minimalismo, a sensação de ganhar um salário fixo pelos 40 anos de contribuição ao INSS me pegou de surpresa. Tive a mesma sensação da adolescência ao achar que estava ganhando muito mais do que precisava. Sim, já passou, e agora estou de volta à ordem natural da vida, esperando e desejando mais do que tenho. De qualquer modo, ver minha conta no banco recebendo estes valores me conectou imediatamente ao meu primeiro pagamento.
O segredo do amor, segundo sábios do passado, é sentir que está recebendo algo além do seu merecimento. É acordar de manhã, olhar para sua alma gêmea e se perguntar “O que fiz para merecer uma pessoa tão especial como esta? Por que eu?” No mesmo sentido, o segredo do equilíbrio na vida cotidiana é não apostar jamais sua felicidade na posse das coisas, escravizando seu desejo ao que pode ser comprado. “Tudo de real valor na vida é gratuito”, dizia meu amigo Max. O afeto, o amor, a presença da família, os filhos, os netos, a chuva, o sol, os pais, nada disso se encontra em uma prateleira ou vitrine, e muito menos tem uma etiqueta de preço pendurada.
Eu costumava provocar meus filhos quando pequenos perguntando a eles quem era mais rico, eu ou o Sílvio Santos, ao que eles respondiam: “O Sílvio é muito mais rico do que você!!”. Então eu os contestava dizendo: “Pois eu não sei quem é o mais rico, vai depender do quanto o Sílvio Santos deseja”. Sêneca nos ensinou que “não é a carência que produz a pobreza, mas a multiplicidade dos desejos”. Por isso minha surpresa nessas duas ocasiões: acostumado a não desejar pela falta de recursos, a pequena quantia que recebi pareceu exagerada e capaz de satisfazer todos os desejos do momento, mesmo que o tempo viesse a criar outros desejos e a certeza da falta novamente viesse a me fazer companhia. Porém restou uma lição: o segredo da riqueza não está em muito possuir, mas em reconhecer o valor do que não tem preço.
Há muitos anos uma paciente me contou que, algum tempo após se casar, viu seu marido desaparecer por várias horas. Quando confrontado, a explicação que deu de onde estivera não foi muito convincente. Uma amiga sua havia desaparecido na mesma hora, com uma explicação igualmente frágil, e ela imediatamente juntou as histórias. Na sua cabeça, mesmo que ambos negassem, algo havia ocorrido. Ela decretou o fim do seu casamento e assim o fez. Anos mais tarde, quando perguntei a ela o quanto de certeza tinha sobre aquele evento, e se considerava que realmente houve um encontro amoroso, ela me deu uma resposta muito significativa.
– Não sei e não importa; hoje tenho certeza de que este fato não foi decisivo. O casamento havia terminado meses antes, e eu apenas buscava uma boa desculpa para dar fim àquela relação. Aquele fato – e só agora tenho essa clareza – serviu de forma oportuna para este fim. Mas foram necessários muitos anos para reconhecer essa verdade.
– Por que, então, seu casamento havia acabado? Se é que você sabe….
Ela suspirou e tentou colocar o sentimento em palavras.
– A admiração se foi. Eu creio que o amor se sustenta por cuidado e admiração. Existe amor quando admiramos algo no outro: coragem, inteligência, beleza física, posição social, etc, algo que nos faz reconhecer uma virtude. Amar também é um compromisso de cuidado. “Quem ama cuida”, sabe? Eu deixei de admirá-lo porque ele não pareceu ter qualquer conexão com meu filho, nosso filho, e isso foi determinante. Sua distância e seu desinteresse mancharam a visão que tinha dele; estas falhas secaram a fonte de admiração que tive por tantos anos. Não houve nenhuma briga, nenhuma voz se levantou, nenhuma raiva; apenas uma pequena vela se apagou em meu coração, deixando tudo escuro.
Colocou as mãos nos joelhos e baixou os olhos para continuar
– Hoje eu penso naquele fato mal explicado como um alivio; eu finalmente poderia dar corpo a um sentimento etéreo, diáfano, inexplicável e sujetivo. Durante muito tempo eu tive medo de confessar a ele minha infelicidade e receber como resposta um cliché desesperador: “Mas o que eu te fiz? Não te falta nada em casa. Eu nunca levantei a mão e nunca te tratei mal. Diga o que eu fiz!!”. Eu não teria nada para responder, pois não haveria como mostrar a ele o vazio que eu carregava no peito.
Eu achei a historia dela muito pedagógica, e a carreguei por muitos anos. Pensava nela sempre que tentavam me explicar a razão por terem rompido com alguém e fiquei convencido que nossos sentimentos são fugidios, enganosos, traiçoeiros e muitas vezes se escondem por detrás de fatos corriqueiros, pois admitir as reais motivações de nossas ações seria insuportável – ou pelo menos embaraçoso. É difícil admitir que nossas escolhas e desistências são por vezes causadas por egoísmo ou oportunismo, e por isso colocamos acontecimentos banais para carregarem por nós essa culpa.
Por outro lado, estas despedidas são sempre muito tristes. Já tive oportunidade de pensar sobre amigos que estiveram muito próximos e que, subitamente, vi desaparecer qualquer admiração. Nessas ocasiões meu sentimento sequer era de raiva, mas de luto, como a me defrontar com um triste adeus. “Não poderei jamais voltar a ser amigo dessa pessoa, nunca mais”. Sei que algumas histórias se modificam através do perdão, mas também sei que os vasos quebrados não retomam sua forma original. Algumas amizades lamento profundamente terem desaparecido do meu horizonte, mas reconheço que estas perdas são inevitáveis e fazem parte da trilha dolorosa e cheia de percalços que constitui nossas vidas.
Esses dias alguém me mostrou a foto de um antigo colega de faculdade, uma pessoa a quem não vejo há mais de 35 anos. Quando vi sua imagem lembrei de imediato de duas situações em que estivemos envolvidos nas quais ele não foi muito legal comigo. Uma das ocasiões foi nas reuniões de preparação para a cerimônia de formatura e outra ocorreu durante o atendimento de um parto, já na residência. Minha reação inicial foi um pensamento ao estilo “Não gosto desse cara, ele é arrogante e prepotente”.
Logo depois de pensar isso me dei conta que esse tipo de julgamento é brutalmente injusto. Não é concebível tratar uma pessoa – mesmo em pensamento – como se ela tivesse um caráter estanque, imutável, congelado há quase 40 anos. Não seria correto imaginar que uma fotografia distante no tempo pudesse ser a definição mais acabada do caráter de alguém. Como acreditar que a vida que teve não o jogou para lugares distantes, perspectivas diferentes, novos valores e posturas? Por que deveria ser aquela a imagem que o definiria? Ato contínuo, lembrei de uma atitude estúpida que tive com uma colega na mesma época – entre a formatura e o início da residência – e senti vergonha de pensar que ela poderia ter cristalizado essa ideia de mim, julgando-me um grande idiota, da mesma forma como fiz com meu colega de aula.
Somos muito dissimulados em nossas ações cotidianas, e temos máscaras muito bem construídas. A impressão que deixamos em nossos encontros fugazes como regra é enganosa, tanto para o bem quanto para o mal. O verdadeiro eu não pode ser vislumbrado à vista desarmada, e se o fosse não seria uma vista agradável. O simples fragmento de um encontro não é capaz de mostrar senão uma foto imperfeita e embaçada da nossa alma. Qualquer análise de um sujeito por esta breve percepção seria tão injusta quanto avaliar a beleza de uma sinfonia por uma nota isolada, aleatoriamente escolhida.
Em verdade, estes julgamentos falam muito mais de nós mesmos do que destes personagens passageiros da nossa linha do tempo. Eles, a mais das vezes, aparecem em nossa vida apenas para ressaltar as nossas próprias falhas, medos, dificuldades e limitações.
Por esta singela razão eu tenho grande admiração por aqueles que falam coisas boas de quaisquer pessoas que tenham cruzado sua trajetória. Mesmo sem o saber, esta visão positiva, compreensiva e condescendente com as falhas alheias deixa transparecer a própria luz de suas almas. Como dizia minha mãe “a boca fala do que o coração está cheio”, e o que dizemos daqueles ao nosso redor é o melhor espelho do que, em verdade, somos.
A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?
De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.
Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.
Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?
Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:
“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”
Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.
Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.
A história do “morto muito louco” que foi manchete no Brasil – e mesmo fora daqui – e envolve uma mulher levando um homem já morto (aparentemente seu tio) ao banco para solicitar um empréstimo, me fez recordar uma antiga história ocorrida na Liga Homeopática, em meados dos anos 90 do século passado. Naquela época era nosso paciente um sujeito por volta dos 80 anos chamado Joaquim (nome fictício). Sofria de um quadro de DBPOC (doença bronco pulmonar obstrutiva crônica) decorrente de mais de meio século do uso de cigarros. Era um sujeito bem simples, separado, ex-funcionário publico. Sua ex-esposa vivia em uma casa de repouso e estava em estado terminal de Alzheimer, mas ele cobria com sua aposentadoria todas as suas despesas. Teve um único filho que morreu muito cedo de câncer, deixando uma neta adolescente que ele via uma ou duas vezes por ano.
O grande amor de sua vida era sua única irmã, mais moça que ele, uma senhora que também era paciente na Liga Homeopática e que se tornou muito grata pela melhora impressionante que o tratamento havia produzido em seu irmão. Seu Joaquim tratava essa irmã com todo o carinho e a admiração que um irmão é capaz de devotar. Falava dela e das sobrinhas com imenso afeto, admiração e, acima de tudo, gratidão. Durante muitos anos ele era “figura carimbada” nas manhãs de quarta-feira na porta da Liga Homeopática, “lagarteando”, escutando seu radinho de pilhas (sempre sintonizado na rádio Guaíba) e vestindo seu indefectível abrigo amarelo.
Depois de muitos anos de melhoras, inclusive nos aspectos emocionais (“ele deixou de ser um sujeito intragável e insuportável”, diziam os amigos), ele teve uma piora significativa do quadro respiratório e foi internado no hospital. Durante esse período internado fomos visitá-lo, mas as décadas de tabagismo estavam finalmente cobrando seu preço amargo. Depois de algumas semanas de piora crescente ele finalmente veio a falecer. Algumas semanas depois do falecimento do Seu Joaquim a irmã volta a consultar e pergunto como estava se sentindo com a morte do irmão. Ela disse que seu quadro respiratório era mesmo dramático e que sua estada no hospital foi muito desgastante. “De certa forma me sinto aliviada”, disse. Foi então que ela relatou a curiosa história oculta do seu irmão.
Quando estava ainda consciente, apesar da intensa dispneia, Joaquim pediu que chamassem a gerente do banco para criar uma conta conjunta com a irmã e com isso evitar que suas despesas com medicamentos – e até seu funeral – fossem pagos por ela. Disse que tinha um dinheiro reservado que seria suficiente para estas despesas. A irmã disse para ele não se preocupar, que tudo ia dar certo, que em breve ele ia voltar para casa, mesmo sabendo que essa hipótese era pouco provável. Com o correr do tempo o quadro, como era de esperar, piorou ainda mais. Alguns dias depois dessa conversa, a própria gerente do banco compareceu à UTI do hospital e encontrou a irmã. Disse a ela que o Sr. Joaquim havia lhe pedido para assinar documentos dando à irmã livre acesso aos seus depósitos. A irmã então concordou e pediu para que ambas entrassem no recinto da UTI. Quando lá chegaram encontraram Joaquim semiconsciente, incapaz de entender as determinações e sem condições sequer de segurar a caneta com firmeza para assinar os documentos.
“Seria criminoso fazê-lo assinar qualquer coisa, mesmo que seja para seu próprio bem. Não se preocupe com as despesas; eu pagarei tudo pelo meu irmão”. Essas foram as palavras da irmã à gerente, que apenas respondeu “É uma pena. Ele gosta muito da senhora”.
Depois do falecimento de Joaquim a irmã se tornou a curadora temporária de seus pertences. Foi ao banco com os documentos e foi atendida pela mesma gerente que encontrou no hospital. Ela a recebeu com um sorriso e mostrou a ela a conta que Joaquim tinha no banco. A irmã tomou um susto: a conta era milionária. Milhões depositados na poupança e outros investimentos. Não lembro do exato valor e até porque os valores nominais de três décadas atrás não fariam sentido hoje, mas na época eu lembro que era algo como o valor capaz de adquirir vários apartamentos. Ela não sabia como o irmão poderia ter tanto dinheiro. Depois disso, junto com seu marido, ela se encarregou de esvaziar o apartamento do irmão. Era um apartamento alugado, um JK simples no bairro Menino Deus, a poucas quadras da Liga Homeopática. Um lugar escuro e bastante bagunçado, com muitos livros, papéis velhos, documentos, móveis em mau estado e pouquíssimas roupas. No meio das gavetas encontrou um envelope pardo contendo papéis. Ao investigarem do que se tratava descobriram que eram letras de câmbio ao portador de uma grande empresa gaúcha, que ele havia comprado há muitos anos e que, depois de investigar, descobriram que valia milhões. Um tesouro escondido num JK escuro e caótico. Seu Joaquim era um homem muito rico travestido de um velho de hábitos simples.
– E o que aconteceu com todo esse dinheiro?, disse eu ainda espantado com a história do seu Joaquim.
Ela contou que foi tudo para a neta, que morava em outro Estado e tinha desprezo pelo avô. Durante anos a garota só o procurava para pedir dinheiro, mas a justiça não quer saber dos afetos: a lei determinou que ela fosse a única herdeira, recebendo os milhões do avô. Seu Joaquim era um personagem de Dickens, inclusive na aparência. Ele era uma versão moderna de Ebenezer Scrooge protagonista de “Um Conto de Natal” de 1843, que mais tarde inspiraria a criação do personagem Tio Patinhas (uncle Scrooge McDuck), por Carl Barks em 1947. Seu Joaquim era um avarento, ranzinza e pão-duro, mas que tinha na figura da irmã sua conexão com a gratidão e o afeto. A irmã foi seu porto seguro de amor e proteção durante os anos em que viveu isolado e contando seu dinheiro. Infelizmente, a fortuna que acumulou não foi deixada para quem mais a merecia mas, como bem o sabemos, a vida raras vezes é justa como gostaríamos.
Há muitos anos desenvolvi o costume de contar histórias de aventura para os meus netos mais velhos, a exemplo do que minha mãe fazia quando éramos pequenos; ela criou uma espécie de “propina” para que eu e meu irmão ajudássemos a secar a louça do almoço. Talvez eu tenha aprendido nessa época o quanto estas narrativas são cativantes. Nada mais magnetizante do que contar uma história e perceber a emoção tomar conta de quem a escuta.
As aventuras que conto para eles são sempre sobre fatos que acontecem a uma dupla de pré-adolescentes, da idade deles, que se envolvem em atos heróicos. São invenções minhas, que normalmente crio na hora, por cima de um roteiro prévio. Sobre a linha básica de criar nas histórias a identificação com suas próprias vidas, sonhos e ideias, já se foram dezenas de pequenas epopeias contadas. A história atual se chama “O Mistério dos Túneis”, e mistura um drama familiar com o roubo de um banco, onde os garotos, munidos apenas de sagacidade e coragem, encontram pistas que levam aos antigos túneis de esgoto da cidade, o que pode fazê-los encontrar os criminosos. No meio dessa trajetória de descoberta são obrigados a debater sobre o drama que se abate sobre seu pai.
As histórias são contadas em capítulos, um por noite, e não podem ultrapassar 1 hora. É curioso o fato de que sou interrompido frequentemente com as ideias que eles formulam sobre a trama, tentando adivinhar o fim e a solução do caso. É impressionante a tensão que criam com uma simples narrativa de suspense e mistério; não existe “dopping” mais forte que esse.
Tudo isso seria apenas o fato corriqueiro de um velho contando histórias para seus netos, não fosse o que eu escutei ontem. Quando chegou da escola, meu neto Henry, de 8 anos, me disse:
– Vô, contei o capítulo do “Mistério dos Túneis” para todos os meus colegas. Eles querem muito saber o resto da história.
– Sério?
Meu outro neto, Oliver, de 11 anos, emendou:
– Vô, tu poderias ficar milionário escrevendo um livro com estas aventuras.
O que era só diversão agora tomou um caminho muito mais sério…