“Nenhum casamento é suportável se as pessoas não se modificam, não mudam. Por isso, case-se várias vezes, de preferência com a mesma pessoa”.
A necessidade renovação, transformação e mudança para se adaptar às distintas fases da vida, em especial no que diz respeito à vida amorosa, é um dos mais antigos axiomas sobre os casamentos. Afinal, quando casamos com alguém certamente esta pessoa se transformará em outras pessoas dentro daquele mesmo sujeito; igualmente quando nos separamos esta será uma pessoa muito distinta daquela com quem iniciamos uma jornada de casal. Portanto, a mudança é mandatória. Nada há de novo nestes conselhos, inclusive a ideia de “casar muitas vezes” com o mesmo parceiro. A questão é que esta perspectiva sobre as uniões parte de uma visão rígida sobre o casamento, tratando-o como se fosse um evento social sagrado e por demais precioso, que precisa ser preservado a todo custo. É inegável a importância que as civilizações emprestaram à união dos casais, pois que o reconhecimento do Estado garantia compromissos de cuidado por parte dos maridos, e de fertilidade e fidelidade por parte das esposas. Estes são, sem dúvida alguma, valores primordiais, essenciais para a sobrevivência de qualquer grupo. Não seria possível a grande revolução da agricultura e do sedentarismo ocorrida no paleolítico superior não fosse a adoção destas medidas de controle social. Não à toa, as uniões de casais são descritas como o ápice e o centro da estrutura social, pela sua importância na continuidade da espécie. Entretanto, é possível que hoje exista um exagero sobre esta forma de ver a vida “a dois”. Talvez a forma como vemos os relacionamentos precise ser refeita.
No ano passado, o número de uniões civis no Japão caiu pela primeira vez desde o anos anteriores a segunda guerra mundial. Ao lado disso, e por consequência, os nascimentos caíram 5.1% , chegando a 758 mil por ano, numero que o Instituto Nacional de Pesquisa Populacional e Previdência Social esperavam só ser alcançado em 2035. Ou seja: a baixa de casamentos leva à baixa de natalidade. A falta de jovens e o envelhecimento da população é um problema grave para a economia de qualquer país. Em 1982 o número de nascimentos no Japão foi de 1,5 milhão, quase o dobro do que se vê agora. A taxa de fertilidade – a média de nascimentos por cada mulher – caiu para 1,3, um valor trágico se levarmos em consideração que a taxa necessária para manter uma população estável; é de 2,1. Os falecimentos ultrapassam os nascimentos por mais de uma década. Assim, no Japão mais pessoas são enterradas do que paridas há mais de 10 anos. Em uma aldeia japonesa chamada Kawakami não houve o nascimento de nenhuma criança em 25 anos. Esta localidade já teve 6 mil moradores nos anos 80, e hoje não tem mais do que 1.150 habitantes. Será o Japão um fato isolado? Serão os japoneses o tubo de ensaio de uma crise de natalidade grave que atingirá o mundo inteiro?
Talvez o casamento não seja tudo isso. Apesar da importância que ainda vemos neste tipo de união civil – que pode ser medida pelos custos de uma cerimônia para as classes abastadas – é possível que o casamento como o conhecemos, que inclui os filhos, a monogamia, a coabitação, os projetos compartilhados, etc., tenha sido uma moda passageira na história da humanidade, uma forma intermediária para acomodar necessidades específicas, e tão somente um subproduto do patriarcado, criado para manter o controle sobre as mulheres, a procriação e a descendência. Hoje em dia o casamento é criticado como nunca e duramente questionado sobre seu real valor, e para alguns parece evidente que ele tem seus dias contados por não oferecer aos casais a liberdade e a autonomia que tanto almejam. A lenta decadência do modelo patriarcal talvez leve consigo alguns elementos que hoje são comuns, mas que talvez se tornem raridade no futuro: as parcerias eternas, os casais de velhinhos e o almoço de domingo na casa dos avós. Quem sabe que tipo de sociedade diferente vai surgir quando desta instituição sobrar apenas uma vaga memória.
Por fim, a questão dos casamentos, seu significado e seu futuro, são determinantes para as sociedades contemporâneas. Por mais que existam questões sobre os valores inseridos no casamento, ainda haverá a necessidade de ajustar os afetos, o desejo sexual e a criação das crianças, fruto destas uniões. Sem a figura do casal heterossexual como a única forma de expressão dessas uniões, como vai ser a construção desta nova sociedade? Sobre quais valores se assentará e como será a arquitetura das famílias do século XXII? As pessoas da minha geração, em especial aquelas contaminadas pelo romantismo e que nasceram sob a égide da família nuclear, por certo não terão a oportunidade, ou o tempo de vida suficiente, para testemunhar este mundo sem casais e sem juras de amor eterno; não teremos a chance de vivenciar as dores e os sabores deste mundo novo e desafiante. Entretanto, é inevitável a curiosidade em saber se o modelo que virá para garantir o afeto e o cuidado das crianças terá tanto sucesso quanto o amor romântico teve na história do planeta.
Casei muito cedo. Cedo demais. Abortei boa parte da minha adolescência. Entre os 20 e os 30 anos, tirei, ao todo, dois meses de férias. Enquanto meus colegas se divertiam em passeios e festas, eu fazia plantões e estágios. No mês de fevereiro de 1980, trabalhei 25 das 28 noites como plantonista em um pronto-socorro. Queria absorver tudo o que a medicina poderia me mostrar. Fui pai precoce, adolescente, menino. Saí da casa paterna com 21 anos para viver uma vida de adulto. Tal atitude tem vantagens e desvantagens. Pude crescer junto com meus filhos, aprender a paternidade enquanto ainda me despia da adolescência. Por outro lado, as responsabilidades precocemente assumidas são fardos pesados, os quais carregamos com paciência, resiliência e, certamente, uma boa dose de humor.
Cuidar de meus filhos pequenos acabou sendo um dos maiores desafios que eu já tive que enfrentar. Não se nasce pai, nem se aprende em livros. A crueza dos tombos e as feridas no orgulho são que nos ensinam a lidar com essa fundamental etapa da vida. Uma vez falei para uma paciente que um dos maiores e mais poderosos processos de transformação individual é a maternidade, mas que a paternidade é igualmente algo de uma força fabulosa. Devo muito do que sou ao fato de que, muito novo, fui obrigado a entender a minha vida de uma forma especial. Ser pai é nunca mais pensar apenas em si mesmo. Ser pai é ter que lidar com desafios diários para levar aos seus filhos os valores que parecem ser os mais verdadeiros e corretos. Entretanto, dos aprendizados possíveis, o mais claro é o de que não existem regras, e que toda a educação é feita de erros.
Na época em que meus filhos eram pequenos, todos os meus amigos tinham modelos maravilhosos de como educar uma criança. Desde os aficionados pela disciplina até os apaixonados pela liberdade infantil, sempre que o assunto é educação todos estavam repletos de profundas certezas.
— Nunca se bate em criança — diz ela. — A agressão é entendida pelos pequenos como um meio válido de se chegar a um resultado, e isso fatalmente se reproduzirá na sua conduta como adulto. As crianças que apanham hoje serão os agressores do futuro. Se quiser um mundo livre de violência, comece pela sua casa.
— Qual nada — responde a outra. — A criança precisa saber seus limites, e a única linguagem compreensível, em uma determinada etapa da vida, é a da palmada. Como explicar com palavras a inadequação de uma atitude a alguém que não entende ainda o seu significado? Prefiro eu mesma colocar os limites nos meus filhos do que ver alguém fazendo isso mais tarde. Lógico que não estamos falando em espancamento, entretanto blá, blá, blá…
Como se posiciona um pobre menino, estudante universitário, imberbe, inseguro, preocupado em passar de ano, diante das divergências profundas entre sistemas que chegam aos nossos ouvidos concernentes à educação dos pequenos? O máximo que conseguimos é nos munir do arsenal de valores que recebemos de nossos pais e repeti-lo. Mesmo quando equivocado e ultrapassado, muitas vezes é o único modelo que temos.
As palmadas, entretanto, não são o único dilema por que os jovens pais têm que passar. Mamadeiras, bicos, choros fora de hora, educação dos esfíncteres, etc. povoavam minhas angústias de pai de primeira viagem. Acrescente-se a isso a pouca idade, a imaturidade, a falta de dinheiro e o pouco tempo e teremos um caldo de cultura propício a situações que variam do drama à comicidade.
Lembro-me de uma ocasião em que, chegando em casa cedo pela manhã após três dias de plantão em diversos hospitais, encontrei minha mulher na soleira de nossa velha casa. Beijou-me um beijo de café e disse:
— Estou indo para a faculdade. Lucas está dormindo na nossa cama. Tem uma pilha de roupas para serem passadas. Beijo, te amo, tchau.
Assim mesmo. “Beijo, te amo, tchau.” Não tive tempo nem de responder, pois ela estava atrasada para pegar o ônibus. Vida dura de estudante/mãe.
Entro em casa e me deparo com a dura realidade. Lucas não estava mais dormindo. Talvez tenha escutado a breve conversa no portão da casa, ou apenas resolveu despertar porque o dia parecia estar destinado a grandes descobertas. A verdade é que seus dois grandes olhos castanhos me encaravam, emoldurados por um sorriso pleno de energia e vigor. O segundo fato apavorante é que a “pilha” de roupas para passar era, na verdade, uma montanha que se erguia da minha cama. Milhares de meias, cuecas, calças de brim, camisas, em uma maçaroca apavorante e incompreensível.
Eu havia passado a noite atendendo partos no hospital de periferia onde me iniciei na obstetrícia. Estava cansado e sonolento. As roupas precisavam ser passadas, e Lucas estava pronto para mais um dia de aventuras. O que poderia piorar esse cenário?
Lembrei… Eu tinha uma prova dentro de dois dias, e em função dos partos na noite anterior não me fora possível ler a matéria. Eu precisava estudar, cuidar do Lucas, passar roupa e dormir, tudo ao mesmo tempo! Aqui estava, tal qual a chuva no filme “Jovem Frankenstein”, algo que poderia piorar um cenário já desesperador.
Tive uma ideia, que à primeira vista poderia ser maravilhosamente conciliatória. Resolvi armar a tábua de passar ao lado da cama e abrir meu livro de medicina em uma das pontas, deixando o ferro quente na outra. Assim poderia passar a ferro as camisas e dar uma espiada na matéria — nefrologia. Lucas estava aprendendo a caminhar, mas passava a maior parte do seu tempo nas tentativas de se erguer. Eu tentaria conversar com ele e distrair a sua atenção.
Foi o que fiz. Mesa armada, ferro de passar repousava à minha esquerda, livro de medicina aberto à minha direita e camisas e calças sendo passadas na minha frente. Parecia funcionar adequadamente. Finalmente eu provaria que, ao contrário do que é maldosamente apregoado pelas feministas, nós, homens, também podemos ser multitarefa.
Tudo funcionou perfeitamente… por 15 minutos.
Eu havia esquecido um fator fundamental. Aquele que sempre põe abaixo os grandes e pequenos projetos da humanidade: o imponderável e circunstancial. A Lei de Murphy, maldosa e sorrateira, conspirando sempre que uma oportunidade lhe é oferecida. Ou, como Maximilian me falaria no futuro, eram “os desígnios secretos da Deusa Álea”.
Lucas conversava comigo dando gostosas risadas enquanto eu lia o livro de medicina em voz alta, fazendo de conta que lhe contava uma história de aventuras. Pobre criança, nem sabia que estava sendo enganado. Não havia nenhum príncipe “glomérulo”, nenhuma princesa “pelve renal” e os “ureteres” não eram escudeiros com a incumbência de livrar a rainha das pressões dos seus inimigos. Ele ria e rolava. Eu repetia as palavras do livro com um jeito bufo, o que o deixava ainda mais alegre.
Infelizmente a alegria durou pouco. Juro que eu tentei evitar, mas talvez minha atenção com as camisas, minha leitura do livro de medicina e a sonolência sobreposta tenham causado o estrago. Lucas sorrateiramente engatinhou em direção à mesa de passar. Eu o cuidava com o rabo do olho, enquanto lia uma página do livro. Ele continuava rindo e saracoteando, e resolveu ficar de pé, caindo logo em seguida, o que o deixava ainda mais lindo e desengonçado. Repousei o ferro elétrico na mesa e fui pegar mais uma camisa para passar, enquanto aproveitava para folhear mais uma página.
Nesse milésimo de segundo é que as coisas acontecem. Bastam apenas fragmentos de um instante para que tudo ocorra. Lucas ergueu-se sobre os joelhos e apontou seu minúsculo dedinho para o ferro que aguardava repousando na mesa. Já segurando a próxima camisa amassada nas mãos, ainda consegui antever o desastre, mas não a tempo de impedir que a ponta do seu pequenino indicador encontrasse o aparelho.
Foi muito rápido. Fiquei feliz por ter evitado um estrago maior, mas olhei a ponta de seu dedinho vermelho e me senti o pior pai do mundo. Incompetente, irresponsável. Lucas abriu seu inesgotável repertório de choros, que variava desde o berro incontido até o choramingar em voz baixa. E agora? Que fazer?
Resolvi desistir de tudo e cuidar do meu filho. Desliguei o agora “maldito” ferro elétrico e fiz da montanha de roupas o meu travesseiro. Olhei de novo para a pontinha do dedo e percebi uma pequenina bolha se formando por baixo da pele de seda. Agarrei Lucas nos braços e cochichei no seu ouvido:
— Desculpa, meu velho. Papai estava desatento. Mas agora precisamos os dois dormir, ok? Você para curar seu dedinho, e o papai para se recuperar do plantão, certo?
Lucas continuava choramingando, mas incrivelmente alguns minutos depois ele estava dormindo. Acordava de quando em vez, ao se lembrar do dedinho queimado, mas voltava a dormir, como papai mandou. Milagres acontecem.
Não lembro que nota eu tirei na prova, nem o que eu acabei fazendo com a pilha de roupas, mas aprendi algumas belas lições naquela manhã sonolenta. A mais importante é que filhos são sempre prioridade. Se pudesse voltar no tempo, não desperdiçaria nenhum instante de contato com os pequenos, porque tudo isso passa muito, muito rápido.
Lembrei-me de outra história, anterior a essa, ligada aos primeiros meses em que estive lidando com a tenebrosa tarefa de ser pai. Era uma questão relacionada com o sono das crianças. Esse assunto era tratado como um tabu na família da minha mulher: nunca se acordava alguém que estivesse dormindo. Suspeito que minha sogra achasse que uma criança — ou mesmo uma pessoa adulta — assim desperta de “supetão” poderia desfazer o fino laço que prende o corpo à alma flutuante, que estaria vagando livremente pelo éter, despregada da matéria. Fosse essa a justificativa ou não, a verdade é que acordar uma criança era visto como uma atitude de extremo desrespeito e grosseria.
Esse era o meu problema. Na época da faculdade, quando eu era jovem (século passado) e tinha muitos cabelos na cabeça, exageradamente sofri com o problema do barulho com as crianças dormindo. Essa história de “silêncio, o nenê acabou de dormir” eu fui obrigado a escutar incontáveis vezes. Vezes demais. Achei que eu nunca poderia conversar com meu filho, ou mesmo escutar a sua voz se formando. Eu ficava terrivelmente bravo porque mal acabava de chegar em casa depois de 48 horas ininterruptas de plantão (às vezes 72) e meu filho Lucas estava dormindo profundamente. Pai ausente, pensava eu. Irresponsável. Se foi para deixar seu filho sem uma figura paterna, melhor seria nem tê-lo feito. Eu ia até sua cama só para olhar para ele e dizer alguma bobagem, tipo “chorou muito hoje?” ou “alguma novidade?” ou mesmo “e aí, meu… se borrando nas fraldas ainda?”. Ele tinha apenas seis meses, e pouco via o miserável progenitor, estudante de medicina e trabalhador de cinco diferentes patrões. Pois a história era sempre a mesma: eu chegava perto e sempre tinha uma sogra, uma cunhada ou outro tipo de “bruxa” pra me criticar. Não suportava mais a pressão e a culpa que tentavam me empurrar, apenas por querer participar um pouco da vida do meu pequeno e indefeso filho homem, cercado de mulheres por todos os lados.
“Fala baixo, seu trapalhão. Olha a pobre criança dormindo. Se ele acordar, quero ver você fazer ele dormir de novo.” E eu normalmente tinha que sair de perto, porque as mulheres acham que só porque pariram são donas da cria e que os homens de nada servem. Somos considerados inúteis. De nós aproveitam apenas o pobre espermatozoide, serelepe girino que, por enquanto, ainda nos confere alguma importância neste planeta. Pura inveja. Só porque não conseguem fazer xixi de pé ficam nos espezinhando por toda a eternidade!
Pois um dia eu cheguei em casa, vindo de mais um mix de plantões com aulas na faculdade e recebi a mesma crítica injusta de sempre. “Para que caminhar desse jeito? Para que bater o pé assim no chão? Está tirando barro da sola? A criança pobrezinha (pobre, coitada, etc… sempre tem um adjetivo assim para as crianças) acabou de dormir. Dá para fechar essa boca, parar de caminhar e fazer silêncio?”
Dias sem ver meu filho e era assim que me recebiam? Queriam elas fazer de mim um capacho, um pano de chão? Haveria um fim para a arrogância feminina? Pois este era o meu limite. Fiquei uma fera. É hoje que eu faço uma loucura,pensei eu! Fui até o quarto onde o pequeno Lucas estava ressonando. Pobre criança (opsss). Teria que aguentar essa convenção de bruxas, megeras, tias chatas (ele tem nove tias!) e mesmo assim lutar com todas as suas forças para se tornar um homem de verdade. Ele precisava de uma imagem masculina forte, máscula, viril, altaneira. Olhei para os lados à procura de algo, ou alguém, e não vi nada que coubesse nesse conceito. É… vai ter que ser eu mesmo, pensei.
Munido de coragem, falei comigo mesmo, gritando com os meus botões da camisa amassada:
— Agora é que são elas! Elas vão ver como nós somos caras maus, bravos, destemidos e corajosos!
Tirei os poucos lençóis que cobriam o frágil corpo de poucos meses do meu filho Lucas. Olhei para ele e disse baixinho no seu ouvido:
— Papai vai te levar para um passeio. Fique tranquilo. Aquelas megeras não vão te fazer mal.
Na sala, a mãe dele — bruxa-mor — jogava cartas com as irmãs e a mãe. A conversa (conversa é modo de dizer; estavam fofocando e falando mal de mim, claro) ia solta, até que uma delas, a primeira que percebeu, soltou um grito.
— O que você pensa estar fazendo, seu louco? — gritou a cunhada, deixando as cartas caírem na mesa.
— Ficou maluco de vez? — vociferou minha mulher.
— Para com isso! Olha que eu chamo os vizinhos! — emendou minha sogra.
Enquanto isso eu sorria, exibindo meu troféu. Lucas continuava dormindo, sem se aperceber do que estava acontecendo.
Eu havia carregado meu filho pelo calcanhar direito e o levei assim suspenso através do quarto escuro até a sala, onde elas estavam a jogar cartas. Com os braços abertos e a perninha esticada, Lucas continuava dormindo, como um anjo, sem se perturbar, provavelmente sonhando com um mundo de ponta-cabeça, mais ou menos como está o nosso planeta hoje em dia.
— De hoje em diante, quero ver quem é que vai dizer que um simples barulhinho é capaz de acordar esse moleque! — disse eu, exibindo o meu troféu, para uma plateia de mulheres boquiabertas.
— Ok… ok, seu insano. Coloque a criança na cama e deixe-a dormir em paz. Chega de espetáculos — disse minha sogra.
Coloquei meu filho na cama e o cobri novamente. Ele nem se deu conta do passeio estranho que dera.
— Muito bem, meu filho. Você foi sensacional. Você é o garotão do papai! — disse eu, em uma conversa de homem para homem que eu nunca mais esqueceria.
Quando voltei para a sala, as mulheres continuavam seu jogo de cartas como se nada tivesse ocorrido. Minha cunhada Heloísa, para quebrar o gelo, me fitou com um sorriso e disse:
— Está cansado, cunhadinho? Estava movimentado o plantão? Quer que faça um cafezinho passado?
Nada como uma demonstração de macheza para deixar as mulheres derretidas.
Hoje eu tive um dos melhores sonhos com o meu pai; pelo menos posso afirmar que foi o mais vívido de todos. É possível que esse sonho seja o reflexo de um pedido mental que fiz a alguns dias, para que ele mandasse o sinal que havia me prometido. No sonho, encontrei-o na sala pequena de uma escola que tinha uma janela de frente para um parque gramado muito grande. Cumprimentei-o efusivamente e começamos a conversar. Perguntei como estavam as coisas e disse que ele estava muito bem. Passei a mão no seu rosto e me dei conta que ele era mais jovem do que eu. Seus cabelos estavam negros, como lembro pelas fotos, e parecia muito jovial. Perguntei o que ele estava fazendo naquela escola, e ele respondeu “Ora, eu trabalho aqui”. Isso seria coerente com sua vida, já que a melhor maneira de definir o meu pai seria como um pedagogo.
“Que bom que trabalhas aqui!!”, disse eu. Pedi a ele que me dissesse algumas coisas sobre o funcionamento do plano espiritual, ao que ele me respondeu de forma jocosa, como que a dizer “Se eu te dissesse tu não entenderias”. Eu traduzi isso como a resposta dada a uma criança de 5 anos que ousasse perguntar aos adultos porque as pessoas fazem sexo. Não faria muito sentido, pois este fato da vida está além da experiência sensorial de uma criança. Logo depois, perguntei pela minha mãe, e alguns amigos que nos deixaram nos últimos anos.
– Sua mãe está ótima. Vamos nos casar em maio.
Também faz sentido. Antes de morrer ele me confessou que pretendia casar com a minha mãe muitas outras encarnações, pois não conseguia imaginar uma companheira melhor. Por fim eu perguntei se aquela cara dele foi escolhida por ele mesmo ou algum mecanismo automático fez com que a conformação corporal adotasse sua “melhor versão”. Ele apenas sorriu….
A Revista POP, com Rita Lee e Marcucci (criador da banda Rádio Taxi) na capa, mostra um aspecto interessante da minha juventude: em 1978 ainda havia espaço para debater “virgindade”. Ora, não se debate mais virgindade porque não é mais necessário; sobre esse tema não há mais um tabu como outrora. Na minha juventude era possível até cancelar um casamento pela noiva não ser virgem. Havia constrangimento sobre a vida sexual das meninas naquela época, e só por isso era preciso escrever artigos e matérias em revistas populares. Hoje o fenômeno é outro: uma onda neoconservadora liderada por denominações cristãs e voltaram muitas regras da minha época estimuladas pelo pentecostalismo, que é uma doença social da nossa era.
Eu vivi essa época. Virgindade era um assunto debatido inclusive em programas de TV, e até chamavam pessoas da Igreja como debatedores. Já na época eu me perguntava, olhando o jovem clérigo discursar sobre a importância de chegar “pura” ao altar: que se pode esperar do “padre eterno que nunca foi lá” falando sobre esse assunto? Que sabem eles daquilo que dá dentro da gente que não devia, que é feito estar doente de uma folia?
Havia uma perspectiva muito prevalente no discurso da classe média: a vantagem de “esperar” para ter relações só no dia do casamento, entrar na igreja de branco, ser pura, imaculada, etc. mas é claro que essas determinações eram direcionadas apenas às mulheres. Aos homens a iniciação sexual era incentivada, assim que houvesse possibilidade; isso diminuiria o risco de ser “bicha”. Muitos homens dessa época relatam os traumas desse tipo de violência. Na escola uma colega desapareceu das aulas e suas amigas me disseram que estava grávida. Depois do nascimento do bebê ela visitou as antigas colegas na escola e levou as fotos do casamento. Perguntei porque o vestido era rosa e todas me olharam como se tivesse dito uma enorme bobagem. “Ela não casou virgem, seu burro!!”, disseram elas sussurrando e fazendo gestos para eu fechar minha boca. Sim, até esse tipo de constrangimento era comum para as meninas.
Esse tipo de constrição sobre o exercício da sexualidade das mulheres gerava no imaginário masculino uma divisão de classes: havia aquelas “para casar”, as intocáveis, e aquelas para transar – as outras. Tive amigos da época que tinham uma noiva virgem e uma outra namorada com quem transavam. Quando questionei a um deles se achava certo, respondeu que achava justo, pois “precisava aprender com alguém” para ser “bom de cama” no casamento. Tive amigas, que agora estão com 70 anos, que casaram virgens. Uma delas me contou que havia muito controle, muita pressão, e mesmo os namorados tinham medo de exigir uma “prova de amor”. Sim, pois se ela cedesse aos seus avanços, quem garantiria que não cedeu antes para outro? Como saber se não seria infiel depois? Das mulheres era cobrada uma fidelidade à virtude.
Ainda havia muita gente que defendia essa ideia e exaltava a “honra feminina”, mas os anos que se seguiram foram lentamente sepultando essa questão nas culturas ocidentais. O debate foi aos poucos desaparecendo e talvez o que ainda resta é o tabu da monogamia – que igualmente vai se tornando cada vez mais frágil. Apesar disso, até agora não descobri um modelo que seja mais seguro (não necessariamente melhor) do que o casamento, pelo menos no que diz respeito aos filhos. O futuro dirá se esse mito vai resistir.
Mariah Carey, cantora americana vencedora de vários Grammy, processou Jack Packer, seu ex-marido milionário, e ganhou por volta de 5 milhões de dólares (a pedida inicial era de 50 milhões) com o argumento de que ele, durante o tempo em que passaram juntos, “desperdiçou o tempo dela”. Ela ainda manteve consigo o anel de noivado que o namorado a havia presenteado, cuja avaliação supera os 10 milhões de dólares. O argumento utilizado pela estrela da música foi de que o ex-marido teria feito ela se mudar de Nova York para Los Angeles, e que isso teria atrapalhado sua vida.
Outro argumento é de que seu ex havia feito alguns comentários desagradáveis para uma de suas assistentes durante suas férias na Grécia, o que teria lhe causado desgostos e o cancelamento de shows na América do Sul. Sobre o tema a única coisa realmente relevante é a forma de tratar um antigo parceiro: “alguém que atrapalhou sua vida financeira, desperdiçando seu precioso tempo”. A respeito desse embate sobre as sobras de um relacionamento li algumas piadas (e as piadas são sempre sagradas), alguns chistes e vários comentários maldosos sobre a Diva, mas muitas mulheres comemoraram a decisão. Afinal, quem não se sente representada? Quem não olhou para o seu marido Ken e pensou: “Esse cara é um atraso na minha vida de Barbie”? Pois eu pergunto: deveriam comemorar? O simples fato de penalizar um homem que é descartado vale essa sensação de revanche?
Eu creio que essa comemoração não tem muito sentido. Esse tipo de processo acaba fomentando ainda mais a ideia de que o casamento, para os homens em especial, está se tornando um péssimo investimento. A queda vertiginosa no número de casamentos pode estar relacionada com o risco que se cria entre eles de que suas vidas financeiras poderão ser destruídas pela parceira, levando a uma percepção negativa dos compromissos e dos laços familiares. No final resta a pergunta: que tipo de vantagem para as simples mulheres mortais representa essa “vitória” de uma rica artista americana?
Não se trata de voltar no tempo, imaginando ser possível resgatar um passado de “equilíbrio” e paz na família. Freud, em especial, ao analisar a histeria na virada do século XIX para o século XX, mostrou que a construção da família mononuclear é um projeto calcado na repressão e na opressão da sexualidade, e jamais poderia ser considerada um modelo perfeito de estrutura social. A histeria foi, portanto, a forma de desvelar a estrutura corroída da família mononuclear. Entretanto, a monetarização da vida, a transformação de afetos em mercadoria e a indenização pelo tempo compartilhado mostram que invadimos um terreno perigoso, onde a vida passa a ser mensurada muito mais pelas questões econômicas envolvidas do que pela intensidade das emoções vividas.
Na estrutura capitalista da vida cotidiana resta o fato de que, na sua ponta mais extremada, os afetos se transformam em excremento, tudo vira dinheiro, nada resta, nada deixa marcas e os amores se dissolvem como areia ao vento.
Era uma vez… uma famosa Drag Queen que resolveu se casar, mas para isso resolveu fazer a maior festa da história da cidade. Dinheiro não seria o problema, e para isso resolveu fazer um evento grandioso o suficiente para entrar na história. Não apenas convidou o mais caro buffet, alugou o clube mais chique da região, os garçons mais gatos, o serviço de manobristas mais top, luzes, palco, convidados da alta burguesia, etc, como também prometeu o mais fantástico de todos os vestidos de noiva, uma arte jamais produzida pela criatividade humana.
No dia do casamento a noiva chegou em uma limousine prateada, dirigida por um motorista negro, alto e forte escolhido pelo nome: Jarbas. Logo ao chegar ao local a multidão cercou o carro para ver a noiva e sua promessa de glamour; todos queriam ver o espetáculo que ela prometera. Quando a porta da limousine se abriu de dentro dela saltou uma perna esguia e forte cujo calcanhar era adornado por uma pulseira recheada com pedras preciosas. Nós pés um salto agulha de uns 18cm; um sapato Loubotin branco cravejado de joias. Acima do joelho uma jarreteira cor-de-rosa com fios dourados deixava a panturrilha ainda mais realçada e delicada. A pele estava alva e brilhante pela sessão de massagens e cremes hidratantes recebida no “dia de noiva”.
O vestido era apenas deslumbrante. Feito com renda Soutache, apresentava um cordão a contornar os desenhos proporcionando um aspecto de profundidade aos florais, mais justo à cintura e estruturado. As modistas que se aglomeravam na calçada estavam espantadas e abismadas, pois se tratava de um vestido de noiva clássico, requintado, sofisticado e com um toque todo especial de atrevimento.
– Calma, gente, calma!!! Esperem!! É apenas a aia!!!!!
Era a Drag Queen, avisando que o melhor ainda estava por chegar. Pois na data histórica de 30 de junho de 2023, o Brasil inteiro festejou a inelegibilidade… da aia.
Primeiramente é importante deixar claro este conceito. Amor romântico não é isso que muitas das pessoas imaginam; aliás, quase todos confundem esse conceito quando se trata das formas de constituir uma sociedade. Amor romântico é casar (ou qualquer relação semelhante que objetiva constituir uma família) por amor, e não por qualquer outro interesse. Essa criação social é relativamente jovem na história da humanidade, e ainda hoje existem milhões de casamentos que não ocorrem por amor, fora do esquema que temos aqui, e que ocorrem por contrato de divisão de terras, divisão de poder, por escolha dos pais, para fazer filhos, por interesses jurídicos (green card, por exemplo), por rituais familiares, etc.
O Japão possui uma longa história de casamentos arranjados, chamados “omiai”. Este país mudou bastante a partir da 2a guerra mundial e a forçosa ocidentalização que se obrigou pela invasão americana e hoje em dia muitas pessoas estão escolhendo parceiros que conhecem e amam. Há não menos de 20 anos o total de casamentos Omiai era de 20%, mas hoje estima-se que cerca de 5% a 6% dos japoneses ainda usam o modelo do casamento arranjado e aceitam ter seus parceiros escolhidos por outras pessoas. Os casamentos arranjados ainda são a norma na Índia, mas há uma tendência crescente de algumas mulheres escolherem seus próprios parceiros, ou simplesmente não se casarem. Ou seja: o casamento romântico que parece morrer aqui, lá na Índia está recém nascendo e florescendo, e se tornando – só agora – a norma.
Esses casamentos arranjados, que foram o padrão da humanidade por séculos, costumam ser uma instituição muito mais sólida, firme, forte e permanente. Como dizia Contardo Calligaris, “o casamento é uma instituição sólida, a única coisa que o enfraquece e ameaça é o amor”. Todos nós percebemos o quanto o casamento de nossos avós eram bem mais duradouros que os atuais, mas também muitos se espantam (ou ficam horrorizados) ao descobrir que muitos destes nossos antepassados… jamais se amaram.
Enquanto isso, o casamento por amor romântico é uma novidade recente onde o sentimento afetivo (amor) é o principal elemento de união, não havendo outras amarras explícitas para o contrato. Não são escolhas parentais e não são valores materiais os objetivos dos que escolhem o parceiro, o objetivo não é monetário e não há interesses escusos.
Algumas pessoas dizem que este tipo de união é fracassada, tendo em vista que na idade madura mais da metade das pessoas já estão separadas desse amor. Pois foi esse meu interesse ao perguntar: se não for esse o modelo de casamento – por amor – qual seria? Voltar a ter casamentos por dinheiro, escolhidos pelos pais? Pessoas fazendo filhos sem se conhecer? Máquinas de gestação extra corpórea? Relações fugazes? Longos namoros sem coabitação? Filhos criados por comunidades de mulheres? Paternidade dispersa? Pessoas vivendo sozinhas e se encontrando apenas por sexo (como ocorre em parte da juventude de hoje)?.
Claro que qualquer um pode escolher o seu modelo, mas isso não se configura um padrão social, apenas uma forma de resolver sua vida erótica, e sobre essa questão social se apoia a pergunta inicial. Alguns perguntaram “para que precisamos modelos?”, que é uma pergunta válida para o sujeito, mas se vamos tentar entender as tendências sociais é importante questionar as razões pelas quais escolhemos formas de guiar as práticas de união social – em especial aquelas que vão produzir filhos e manter nossa espécie.
Portanto, não estou falando de “amor verdadeiro”, “amor eterno”,“amor real e sincero” e muito menos do conceito de “romantismo”, ou seja, “práticas externas e explícitas de demonstração de afeto e paixão por uma pessoa”. Isso é outro assunto. O amor romântico pode ser silencioso e discreto, basta ser movido tão somente…. por amor.
É possível acordar quase tudo num compromisso afetivo, tipo um casamento. Posses, espaços, funções, finanças, herança e limites. Só não é possível determinar por contrato as diminutas frações desse consórcio relacionadas ao desejo. Não por coincidência, são as únicas realmente definitivas desde a criação do amor romântico.
O casamento, por outro lado, despojado dessas parcelas quase insignificantes, é uma instituição sólida, pétrea, que resistiu a milênios de ataques quase sem abalo. A única ameaça ao seu domínio veio desse elemento estranho, fissura aberrante da ordem cósmica, elemento irracional e violento que o consome, ao qual chamamos…. amor. O amor romântico, por sua vez, é tão contraintuitivo que só pode ter sido uma invenção tardia. Pense bem: numa perspectiva evolutiva, em locais com alto nível de mortalidade por doenças e conflitos, num contexto de guerras, perdas, fome, etc. qual seria o sentido em se ligar afetivamente (de forma romântica) a alguém, sabendo que este amor poderia se esvair tão facilmente?
Um contrato bem alinhavado, feito com um desconhecido e com funções e tarefas bem circunscritas, funcionaria muito melhor.
Marguerite D’Alembert, nome artístico da escritora e cineasta Marie Dufour, nasceu em Nantes em 1960 e passou toda a sua infância na Côte D’Azur, na cidade de Cannes, onde desde a mais tenra infância se tornou uma estudiosa e amante da sétima arte. Estudou cinema da Sorbonne e após sua graduação começou a acompanhar grandes diretores do cinema nacional francês. Foi assistente de cena de François Truffaut nas filmagens de “De repente, um domingo”, que foi o último filme dirigido por ele. A partir destes encontros iniciou uma exitosa carreira como diretora de comerciais, curta metragens e documentários. Começou a escrever crítica literária e de cinema no Le Figaro em 2005 e publicou seu primeiro livro de contos em 2007, com o título “Mariposas imortais”, título de um conto premiado sobre os dramas e as delícias de envelhecer. Em “Cette chose qu’on appele amour” ela fala sobre amor e relacionamentos, fracassos, perdas, amor na maturidade, solidão, desejo e saudade. É casado com o diretor Pierre Gosciny (“Oceano em Chamas”, “Cais”, “Poderia ser verdade”) desde 1987 e tem 3 filhos. Mora em Paris.
Na verdade eu acho que ainda é arriscado colocar “amor” e “casamento” na mesma frase quando estamos olhando para figuras da história. Essas instituições milenares não podem ser analisadas pelo prisma do “amor”, e por isso acredito ser justo colocar esta palavra entre aspas quando ela é analisada na perspectiva do tempo. Relações amorosas a unir as pessoas são um acontecimento recentíssimo na história da humanidade, algo de poucas gerações apenas.
Aliás, o casamento enquanto estrutura social sempre foi bastante estável, mas o grande responsável pela sua destruição foi o próprio amor. Enquanto o amor era dedicado a outras coisas – filhos, por exemplo – o casamento enquanto instituição estava a salvo. Foi sua entrada na equação dos encontros sociais o deflagrador da sua ruína, o desmanche do sólido castelo construído desde o início do patriarcado.
O amor e suas consequências significam a destruição dos casamentos. Se estabilidade social fosse um objetivo a buscar ele deveria ter se mantido na forma protocolar e insípida como foi 99% do tempo em que vivemos na terra.
Sempre me perguntei se haveria alguma razão para que eu fosse um sujeito romântico. Aqui vou conceituar “romântico” como alguém que acredita no amor entre duas pessoas, que pensa que uma relação assim pode gerar filhos e que constituir uma família pode ser um dos objetivos mais nobres da vida. Não se trata do romantismo de gestos externos como flores, bombons, declarações grandiloquentes ou, modernamente, carro de som na porta da casa – substituindo as serenatas. Não… apenas a crença no amor entre duas pessoas.
E vejam, coloco a crença no amor romântico apenas como mais um fetiche humano, tão válido quanto qualquer outro – cintas-liga, poliamor ou roupas de couro incluídas. É uma conexão afetiva de ordem irracional, portanto infensa às análises racionalistas e objetivas. Não acho que alguém se torna “superior” por se dedicar a essa fantasia, mas reconheço que os românticos assim definidos se tornam sujeitos mais fáceis para manter relacionamentos duradouros.
Escrevo isso porque arrumando livros antigos dos meus pais encontrei uma singela pista para o meu acanhado romantismo: uma carta que minha mãe escreveu ao meu pai uma semana antes de ganhar seu primeiro filho, meu irmão mais velho. A carta é um primor de romantismo, como não se encontra mais na literatura, mas também explica porque as mulheres nos anos 50-60 tinham muito mais facilidade para parir. O estado se espírito da minha mãe poucos antes do “grande dia” era de pura excitação com o que estava para ocorrer. Não havia uma linha sequer de angústia, preocupação ou temor, apenas uma viva ansiedade para ter seu filho nos braços…. e uma alegria imensa em poder cumprir aquilo que o “destino” havia legado a ela. Outros tempos, por certo…
Achei invasivo mostrar a carta inteira escrita por ela, mesmo que ambos já tenham partido, mas creio que a última frase é um primor de amor romântico e retrata bem as mulheres de sua época, que apostavam sua felicidade no amor profundo por seu companheiro e por seus filhos, dedicando-se uma vida inteira para que eles fossem felizes.
Lendo a derradeira frase daquela simpática missiva parece que estou assistindo uma novela escrita pela cubana radicada no Brasil Glória Magadan…
“My romance doesn’t need a castle rising in Spain Nor a dance to a constantly surprising refrain Wide awake I can make my most fantastic dreams come true My romance doesn’t need a thing… but you” Carly Simon – My Romance