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Diferenças

Hoje em dia vejo muitas manifestações de mulheres nas redes sociais gritando aos quatro ventos que não precisam de homem para nada. São vozes celebrando a independência do jugo multimilenário do patriarcado. Afirmam com toda a autoridade a desnecessidade dos “machos” – e essa palavra é usada com absoluta conotação depreciativa, como que reforçando a condição animalesca de quase metade da população mundial. Claro, dizem que ainda precisam de marceneiros, entregadores, maquiadores, lixeiros etc., homens que fazem serviços que para elas nunca foram interessantes ou desejados, mas explicam que estes apenas oferecem seu trabalho mediante um pagamento. Portanto, por não serem serviços mediados pelo afeto, não se enquadram na sua celebrada independência. Ou seja: dizem que não necessitam que os homens façam para elas algo que demandaria uma dívida, algo que precisaria ser pago de alguma outra forma. Eu sei, é um pouco confuso, mas por trás dessa manifestação eufórica existe uma inequívoca alegria com a libertação feminina da dependência que tinham dos homens em relação a muitas coisas. Não vejo nada de ruim neste tipo de busca pela autonomia, apenas acho curioso o quanto isso não faz parte da história masculina.

Em verdade eu sinto inveja desse sentimento, já que nunca o tive. Eu confesso que preciso das mulheres para ser feliz e nunca me esforcei para esconder essa falta. Sobre isso posso atestar o quanto minha esposa, filhas, irmã, neta, tias e amigas são fundamentais para o que eu poderia chamar de “felicidade”. Sou dependente dos afetos das “fêmeas”, e não tenho nenhuma vergonha em admitir isso. Na dualidade que constitui o mundo, depender do outro é parte integrante do que nos define. Por isso essas manifestações soam engraçadas aos ouvidos atentos dos “machos”: não conheço nenhum homem que orgulhosamente bate ao peito e afirma desprezar qualquer coisa que venha das mulheres, tratando-as como desnecessárias. Mesmo os gays – que não precisam delas para o prazer – têm apreço especial por elas, e alguns as tomam como exemplo de imagem a ser glorificada.

Essa questão da “necessidade do outro” me faz lembrar de dois filmes que assisti na minha juventude, bem na época em que os meus filhos estavam nascendo. O primeiro deles é um filme americano de 1968 chamado “Inferno no Pacífico” com Lee Marvin e Toshiro Mifune, onde dois sobreviventes de uma batalha naval – um soldado norte-americano (Lee Marvin) e um oficial japonês (Toshiro Mifune) – ficam isolados em uma ilha deserta do Oceano Pacífico durante a II Guerra Mundial. Eles são inimigos, desejam matar um ao outro e lutam por potências em guerra, mas percebem com o tempo que, apesar de suas diferenças essenciais, a chance de sobrevivência aumentaria muito para ambos caso resolvessem cooperar ao invés de combater. O outro chama-se Inimigo Meu, uma ficção científica de 1985 com Dennis Quaid. Neste, ao invés a batalha no Pacífico, a luta é interplanetária, entre o nosso planeta e o planeta Dracon. Após uma perseguição com naves no espaço, Davidge (Dennis Quaid) fica preso em um asteroide deserto com seu inimigo Jeriba Shigan (Louis Gosset Jr) e, assim como no filme sobre a guerra dos americanos contra o Japão, descobrem que para sobreviverem seria necessário que esquecessem a animosidade e investissem em uma atitude de cooperação. Assim o fazem, e acabam desenvolvendo uma curiosa amizade, onde ambos aprendem com as diferenças marcantes entre as culturas. Uma parte interessante do filme é que, no meio do enredo, o alienígena Jeriba dá à luz um “bebê Drac” (Zammis) com a ajuda do “parteiro” terráqueo. Ou seja, o bebê nasceu através de uma fecundação assexuada, por partenogênese. Durante o parto (por uma abertura abdominal) Jeriba explicou a Davidge que assim se reproduziam as linhagens no planeta Dracon – sem encontros sexuais, apenas pela clonagem, criando uma cópia de si mesmos em um novo sujeito. Esta, sim, seria autonomia máxima sonhada por alguns: a independência total do outro, sem que houvesse qualquer razão especial para que a sociedade se organizasse em grupos. O sujeito se bastaria, não seria necessária nenhuma troca.

Passei boa parte da minha vida imaginando como uma sociedade assim constituída poderia existir, e a minha conclusão é que este tipo de organização social serviria tão somente para bactérias e protozoários. Não é a toa que a união sexuada foi criada no processo evolutivo: ela permite o aperfeiçoamento pela diversidade, e diversidade em biologia é riqueza e segurança. Uma sociedade onde todos fossem iguais seria catastrófica. Pois é exatamente a diversidade entre homens e mulheres o que mais me encanta. Olhar o mundo pela perspectiva do outro é uma forma de produzir crescimento pessoal. Por isso viajar é tão enriquecedor, além de ser a melhor vacina contra os etnocentrismos – conhecer o estranho é essencial para incorporar seus valores e respeitar sua visão de mundo. Para mim, outra forma interessante – e essa pode ser feita mesmo sem sair do lugar – é olhar o mundo pelos olhos das mulheres, tentando entender como elas configuram as coisas, as pessoas, as relações, os afetos, as características especiais e a forma profunda de decifrar o universo. Meu amigo Max, quando nos deparávamos com alguma coisa estranha ou incompreensível feita por uma mulher, sempre me dizia “Entenda: uma pessoa que sangra todos os meses e é capaz de carregar outra no ventre jamais vai traduzir o mundo com as mesmas palavras que nós”.

Caso as mulheres desaparecessem da face da Terra, depois de 80 séculos de patriarcado, o mundo, as fábricas, os governos, as religiões e a civilização como um todo talvez não sofressem nenhuma mudança drástica em curto prazo; a água continuaria correndo das torneiras e a luz elétrica ainda iluminaria nossas noites. Entretanto, é certo que a humanidade mergulharia numa tristeza sem fim, como se a cor de tudo viesse a desaparecer e o mundo passasse a ser constituído apenas por penumbras e vultos desfocados. Caso os homens, esses inúteis, desaparecessem da face da terra, em uma semana o que restou da humanidade estaria acendendo fogueiras esfregando gravetos. E isso ocorreria por muitas décadas, até que esta sociedade unipolar se desse conta do quanto os homens têm valor, pela sua especial forma de traduzir o mundo. No fundo eu penso que ambos os filmes falam da mesma verdade: muito mais do que digladiar em torno de uma suposta supremacia ou da desimportância do outro em nossa vida, é muito mais proveitoso usar a oportunidade que eles nos oferecem de crescer através das diferenças.

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A Encruzilhada da Esquerda

A polêmica a partir das manifestações do humorista do Porta dos Fundos expõe de forma clara e didática a decisão essencial que caberá às esquerdas no futuro próximo, um embate que representa a própria sobrevivência de suas ideias. Não restará alternativa que não passe por uma decisão fundamental: ou mantemos nossas mãos atadas pelo identitarismo, fazendo o jogo das elites, dividindo a classe trabalhadora e debatendo costumes em posição prioritária ou partimos para a unificação das pautas da classe operária, aquelas que historicamente nos constituíram e que fazem – ao contrário do que a esquerda liberal que Gregório representa e apregoa – da luta de classes sua tarefa precípua e fundamental.

Para alguns, a defesa do humorista deveria ocorrer para não municiar a direita com um debate que nos desgasta. Penso diferente; esta questão não é, conforme alguns articulistas, um “tiro no pé” ou um fratricídio pois não se trata de “dividir a esquerda” com pautas secundárias, até porque é mais do que evidente que a esquerda já foi dividida de forma arbitrária para que, amansada e domesticada, tratasse de questões marginais, como os costumes, os gays, a visibilidade, a diversidade, os trans, os direitos de minorias, o racismo etc. Por certo que estes temas não são desimportantes mas, quando olhamos as origens dos dramas contemporâneos, percebemos que estão atrelados ao sistema de poderes burgueses que comanda o agir social. Desta forma, deslocar o discurso da esquerda para a marginalidade dos temas sociais tem a clara intenção de forçar o abandono da sua pauta mais radical: a luta de classes e o fim do capitalismo.

A manobra foi sendo silenciosamente construída pelo Partido Democrata americano como forma de criar uma esquerda mansa, a chamada esquerda “moderna”, uma esquerda “anticomunista”, que superou os embates contra a burguesia e procura a “conciliação” com o capital, envolvida pelo clima de “fim da história”. Todos sabemos que essa conciliação é impossível, e já temos décadas de evidências de que nesse embate a classe trabalhadora será sempre sacrificada. Mas, na sede do Império, era preciso criar a ilusão de um “atalho”, para que um único partido governasse, ilusoriamente dividido em duas facções – idênticas na essência e diferentes na aparência.

Não só fizeram isso com seu país, como também exportaram esta estratégia para sua região de domínio – o seu quintal. Não é à toa que os grandes think tanks imperialistas – George Soros, irmãos Koch, Fundação Ford, Fundação Gates, etc. – apostam e investem pesado em instituições do mundo inteiro cujas pautas são identitárias, porque isso força a criação de uma esquerda confiável, não combativa, não operária, sem o fervor anticapitalista e também porque sabem o quanto estes temas têm a potencialidade de dividir e enfraquecer a luta operária. Oferecem a coleira à própria esquerda para, por fim, controlá-la.

A ideia de que precisamos de defensores de pautas no Supremo Tribunal Federal é algo que deveria causar arrepios em qualquer um que admira o direito e que já teve a curiosidade de entender porque aquela senhora que segura as balanças está vendada. Para entender isso não é necessário muito esforço; bastaria lembrar o estrago irreparável que um juiz, representante da burguesia e defensor de uma pauta – a destruição do PT e da esquerda – fez na Lava Jato. E não esqueçam, que a extrema direita até hoje o defende exatamente pela sua parcialidade (e não apesar dela), como se fosse justo à um magistrado assumir a defesa aberta de um dos lados.

Não acredito na possibilidade da esquerda se manter relevante no século XXI sem que as pautas identitárias sejam expurgadas da linha de frente de suas demandas. Ou somos a resistência ao capitalismo decadente através da luta de classes ou é melhor desistir do sonho por uma sociedade mais fraterna e mais justa, onde as pessoas não sejam mais divididas por castas. Se não for pela radicalidade da luta anticapitalista então teremos que aceitar que um negro, gay, indígena, mulher ou trans apresentando o Fantástico – ou sentando numa cadeira do STF – já estará de bom tamanho.

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Diferenças

Tenho uma tese que carrego há décadas. As divergências morais e intelectuais entre os humanos são muito pequenas. Assim como nas minúsculas diferenças genéticas que temos com nossos primos primatas, as distâncias entre gênios e sujeitos comuns são ainda menores. No grande espectro são desprezíveis. As nossas discrepâncias são muito menores do que as semelhanças. Ainda mais posso dizer entre gêneros e “raças”. Não há qualquer diferença moral ou intelectual entre homens e mulheres, ou entre qualquer etnia.

A diversidade observada pode ser facilmente explicada pela história e pela geopolítica dos últimos 80 séculos, o que não é nada se levarmos em conta que isso representa menos de 5% do tempo em que vivemos na Terra. Exaltar um grupo especial ou desmerecer outro com essencialismos provou-se tolo e sem embasamento. Acreditar que homens são mais burros ou violentos que mulheres e que negros são mais nobres que brancos – e vice-versa – só serve a quem semeia divisões e mentiras.

Não é apenas a quantidade de informação o elemento essencial para a valorização de um profissional, mas o valor que se dá às pessoas que realizam estas funções. Não fosse assim um astrofísico ganharia mais do que um astro… de futebol, e uma professora ganharia o mesmo que um médico e assim por diante. A valoração que damos é muito mais política e cultural do que baseada no acúmulo de saberes e técnicas.

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O Hiper Macho

Sempre achei que os puros homossexuais seriam estes, ao estilo Donovan, porque neles existe a masculinidade exclusiva, hiper masculina, certeira, indubitável, positiva, com a veneração do falo e a total supressão do feminino.

Nessa perspectiva masculinista o gay efeminado, delicado, suave, frágil seria “apenas” um sujeito que adora mulheres a ponto de imitá-las em seu gestual e na preferência por homens; ele não seria o “gay genuíno”. O guerreiro, o gladiador, o super atleta seriam os reais paradigmas masculinos máximos, onde as mulheres representariam a falta de tudo quanto valorizam e admiram.

Donovan é o melhor exemplo de um mundo sem diversidade, pobre em tudo o que a mulher é capaz de oferecer enquanto pensamento e sentimento feminino. Suspeito que por trás de tanta masculinidade está um sujeito com um medo terrível do que significa a pergunta que cada mulher nos apresenta.

Pensamento engraçado: imaginar o Donovan atendendo um parto ou cuidando de um bebê. No meu ponto de vista o mundo de Donovan seria tão miserável quanto uma sociedade de Amazonas.

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Epistemicídio do Parto

Quando iniciei a atender partos de cócoras por estas bandas tal proposta era tratada como “parto de índio”. Colaborou para isso o fato de que o mestre Moyses Paciornik incentivava seu uso a partir da observação dos povos indígenas que mantiveram esta prática aqui no Brasil.

Todavia, o uso da expressão “índio” ou “indígena” era carregada de um preconceito óbvio e indisfarçável. Atender partos assim era aceitar a manutenção de práticas nativas que teriam sido suplantadas pelo rigor científico e metodológico que chegou aqui com os colonos brancos e europeus. Aceitar a posição de cócoras como uma postura materna válida para o período expulsivo significava a adoção de um paradigma já “suplantado”, que deveria ser abandonado como um anacronismo sem sentido.

É evidente – agora – que se tratava de um epistemicídio planejado, e a tentativa de garantir para a assistência branca e europeia uma narrativa hegemônica. Para mim ficou muito claro que agir em contraposição à prática submissa da litotomia (com a paciente deitada de costas na mesa) era também rebelar-se contra a monocultura do parto. Esta proposta era ofensiva aos olhos dos médicos daquela época, e todas as falácias eram usadas no sentido de tornar a postura de cócoras um absurdo e até uma violência.

Nunca tive dúvidas que adotar uma atitude contra-hegemônica seria difícil e passível de sofrer todo tipo de abusos e “bullying”, até porque mais do que tratar de uma manifestação cultural – como uso de medicamentos, rezas, rituais ou práticas esotéricas – o nascimento tem muitos outros significados ocultos, pois “implica, em um único evento, vida, morte e sexualidade”, como dizia Holly Richards. Apoiar a visão de pluralidade e diversidade no parto jamais poderia ser um ato impune.

Da mesma forma como a opção pelo modelo de parteria, o parto extra hospitalar, a homeopatia como alternativa primeira e até a abordagem da psicanálise, a mudança das “posturas de parir” visavam estabelecer uma barreira à homogeneização da assistência, uma contra narrativa que se opunha ao empobrecimento da compreensão de um fenômeno ímpar e subjetivo, carregado de elementos sexuais potencialmente transformadores.

Hoje em dia o reconhecimento da importância dessa variabilidade cultural já está mais presente, mas ainda é evidente a tendência da Academia e do ensino de obstetrícia para uma visão monolítica e fechada em suas práticas “científicas”. Entretanto, sem a compreensão do parto como evento SUBJETIVO e CULTURAL jamais teremos uma assistência plenamente satisfatória.

Veja mais sobre epistemicídios aqui.

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O que se é

“Se você continuar engolindo sapos para parecer bonzinho e mansinho, vai sofrer um revertério nas tripas e quem vai se ferrar é você”

Em outras palavras: diga a sua verdade, mesmo que isso signifique ser mal tratado por pessoas que não aceitam a diversidade de opiniões ou que acham que a paz do silêncio é melhor que os inevitáveis conflitos que a livre opinião acarreta. Não aceite ser silenciado pelos lacradores que preferem os aplausos à verdade.

Seja íntegro e expresse sua perspectiva de mundo acima da aceitação frouxa e pueril que poderá receber. Saboreie a dor e a delícia de ser o que se é….

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Da nossa inutilidade

É bem provável que os homens venham a se tornar paulatinamente desimportantes e inúteis para a reprodução. Talvez seja mesmo o que nos espera ali na esquina e é lícito imaginar que seguimos nesta direção.

Entretanto, a ciência também descobre aceleradamente meios de produzir gestações fora do útero, e a facilidade de construir um espermatozóide deve ser tão complexa quanto a de construir um óvulo. Assim sendo, a desnecessidade de mulheres na perspectiva biológica também é uma sombra no futuro. Isso sem falar nas gestações implantadas no peritônio de homens e sua subsequente suplementação hormonioterápica. “Homens-mãe” pairam sobre nosso espectro de possibilidades há muito mais tempo do que a criação de “girinos biônicos“.

Para quem acha o sexo oposto um entrave à felicidade e uma fonte inesgotavel de mágoas insolúveis, tais avanços tecnológicos poderão ser encarados como boas notícias. Para aquela “minoria” que enxerga a diversidade psíquica advinda do dimorfismo sexual uma das chaves para o nosso sucesso neste planeta, podemos antever o prenúncio do Armagedom.

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Principiante

Doutor

Primeiros dias de trabalho no primeiro emprego. Não tinha mais de 27 anos mas carregava uma cara de 20. Trabalhava nesta clínica privada durante a manhã, enquanto à tarde atendia no hospital da aeronáutica. A essas “clínicas de passagem” (“fico aqui até achar algo melhor”) chamávamos “trambiclínicas“. Estão em extinção nos dias de hoje, mas quando me formei havia muitas.

Abri a porta e chamei por um nome de menina. Ela entrou, acabrunhada e tímida. Talvez não imaginasse um doutor adolescente. Quem sabe tivesse medo de me dizer algo, ou escutar alguma coisa que não queria.

Falou de umas dores no seio e algumas outras questões menos importantes. Ela era bonita como são as meninas nessa idade, e seu sorriso era tímido e juvenil. Tinha 19 anos e era estudante. Morava com o pai, e mãe e uma irmã.

Antes de pedir exames, colher o papanicolau e escrever uma receita protocolar resolvi perguntar-lhe sobre sua vida. Talvez houvesse ali algo a dizer.

– Como é sua vida sexual?, perguntei, fingindo uma maturidade e isenção que somente a idade garante.

Ela me olhou sem pestanejar e respondeu “boa”.

– Algum problema com as relações?

– Nenhum, disse ela, parecendo querer abreviar a conversa. Comecei a ter relações há 4 anos e nunca tive problemas.

– Anticoncepcional?, insisti

– Não tomo anticoncepcional, doutor.

Meu semblante ficou severo. Sua resposta de alguma forma me irritou. Esse sentimento pude sentir muitas vezes na vida. Uma mulher que não cumpre nossas “ordens” não está apenas prejudicando sua saúde, está desafiando nosso poder. Aprendi isso de uma maneira brutal ao tentar entender a raiva – às vezes ódio – que os profissionais sentem ao ver pessoas que se recusam a fazer uma cirurgia, tomar uma droga, ou ir para um hospital para ter um filho. Tais recusas são tomadas como ofensas e desconsideração com a autoridade do profissional. Nossa resposta, que deveria ser de acolhimento e respeito pelas decisões soberanas de quem nos procura, em geral é estruturada como violência. Não é lícito aos pacientes desmerecem nosso saber.

– Camisinha? Diafragma? Coito interrompido? DIU? Tabelinha?

A todas estas me respondeu negativamente, sem piscar um olho.

Resolvi agir com a delicadeza de um viking à mesa do jantar após uma batalha.

– Filha (iniciei com a arrogância típica dos donos da verdade, médicos e bispos), você não acha que é muita irresponsabilidade da sua parte agir desta forma em relação à sua vida sexual? Tem 19 anos, estuda, vive com os pais, não tem emprego, não tem renda, tem relações há 4 anos e não usa nenhuma proteção contra uma gravidez indesejada. Você acha certo agir assim? Acha justo que uma gravidez arruíne a sua vida e entristeça sua família? Não lhe parece uma atitude sem juízo?

Ela ficou por alguns instantes me olhando sem nada dizer. Finalmente arqueou as sobrancelhas e me respondeu com uma expressão de desconforto:

– Doutor, eu só tenho relações com meninas.

Silêncio. Passados alguns instantes percebi cada centímetro da minha pele ruborizar. Na minha face o vermelho brilhante denunciava a falha, a incompetência e o preconceito. Tentei falar algo, mas a voz não saía. Queria dizer algo para dar a impressão que “tudo estava bem” e que eu achava “a coisa mais normal do mundo”. Afinal somos treinados para estas situações.

Mentira. Somos produzidos em série para interpretar exames e cuidar de um corpo falsamente biológico. Achamos o erro na molécula, o equívoco no hormônio, a fissura no osso mas na arte do enfrentamento com a crueza da palavra somos garotos que, diante de uma mulher de verdade, nada sabem dizer. Falta-nos a voz. Para saber como enfrentar o choque da fala do outro somente se conquistarmos a mais excelsa das virtudes de um medico: a idade, que por vezes nos brinda com a sabedoria.

O constrangimento havia me roubado a voz e a pose. Dos frangalhos de uma arrogância tola, filha da insegurança infinita que jamais me abandonou, consigo forças para uma última frase, que poderia abrir – ou não – as portas para um novo contato, certo que o anterior havia morrido em sua última fala. Depois de um breve suspiro, pergunto:

– Desculpe. Podemos começar tudo de novo?

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