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Memórias do Homem de Vidro – 13

O Masculino Ameaçado

— Nadine, preste atenção no que vou lhe dizer. Não existe isso de “homens têm uma vida mais fácil”. Isso é sexismo, tão grave quanto o tipo que nós, homens, lançamos historicamente contra as mulheres. Se você combate os preconceitos, seja contra todos, e não somente contra aqueles que particularmente te afetam.

Max parecia irritado, mas só para quem não o conhecia. Ele tinha essa forma apaixonada e teatral de apresentar seus argumentos. Quando elevava demasia­damente o tom de sua voz, eu simplesmente fazia um sinal com a mão junto com as palavras “menos, Max, menos”, e ele entendia a necessidade de dosar sua emoção. Nossa conversa já durava algumas horas, mas até então um não se atrevia a olhar para o relógio. O cheiro do café que sobrara do meu “expresso” sobre a mesa misturava-se com o suave perfume de Nadine, que sentara ao meu lado. Ambos éramos a plateia de Max. Tanto nós gostávamos de escutá-lo quanto ele adorava suas “apresentações”. Nadine estivera provocando-o, dizendo que a maternidade, o parto e a menstrua­ção tornavam, inequivocamente, a vida das mulheres muito mais complexa e so­frida. Dizia ela que a natureza fora injusta com a distribuição de sofrimento im­posto aos gêneros. Nadine claramente defendia, mesmo sem saber, a tese da “queda do paraíso”, afirmando que o sofrimento das mulheres no parto e no ciclo menstrual estava diretamente ligado a um “defeito de fabricação”, que o Divino havia determinado e a cultura, ratificado. Max não aceitava essa visão do feminino, e sempre que essa questão aparecia nas nossas conversas sua reação era emocional. Ele continuou a sua explanação:

— Desde que nos decidimos pela diferença sexual, há alguns milhões de anos, as coisas sempre foram assim, digamos, complicadas. Somos dois, caminhando juntos em uma estrada que sequer sabemos ao certo onde leva. Nessa aventura de criarmos a complementaridade no outro, o que nos sobrou de concreto é que apenas um dos gêneros engravida, e isso é um fato biológico com repercussões tremendas. Assim, todos nós, homens e mulheres, somos “nascidos de mulher”. Essa diferença da biologia nos separa inexoravelmente. Entramos nessa vida egressos da calidez escura de um ventre feminino.

— Por milhares de anos, a nossa estrutura social propiciou uma formatação está­vel de papéis, em que mulheres e homens nasciam com uma trilha predetermi­nada na existência. Por milhares de gerações, isso não foi questionado. Era tão “da vida” como o nascer e o pôr do sol, a sucessão das estações e a lua trocando sua face. Hoje as coisas mudaram, e a insegurança veio no pacote da liberdade de escolhas.

— Por outro lado, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, adentrando bolsões de exclusividade em que apenas os homens tinham acesso, acabou pro­vocando um efeito dominó, em que, obviamente, os homens acabaram sendo atingidos. É impossível mudar as mulheres sem que os homens sejam afetados.

— Na sociedade, estamos interconectados através de “vasos comunicantes”. Quando alguém se modifica, imediatamente provoca uma reação em quem se en­contra próximo. A busca das mulheres por autonomia e liberdade acabou produ­zindo nos homens uma necessária, e por vezes complexa, adaptação a esta “nova mulher”.

— Mas o que houve com os homens? — Max deu ênfase na pergunta. — Erram os que pensam que os homens continuam em uma “vida boa”, enquanto as mu­lheres estão sofrendo por jornada tripla, excesso de trabalho, filhos, casamento, etc. Homens sofrem hoje, agudamente, de um processo crônico de insegurança. Somos condenados a mostrar incessantemente nossa função no planeta. Como diriam os psicanalistas, precisamos “matar um leão por dia para mostrar ao nosso pai”.

— Com a evidente emancipação das mulheres, a situação piorou. Se antes éra­mos os guerreiros e provedores necessários, somos o que agora? Se antes matá­vamos o javali na floresta e trazíamos o suprimento de proteína fundamental à alimentação do bando, para o que somos realmente necessários neste mundo em transformação?

— O aparecimento na TV de séries que discutem as fragilidades masculinas é apenas um sintoma de uma mudança grave e profunda na sociedade, em que o único resultado previsível é o medo e a insegurança. É pura ingenuidade achar que os homens não sofrem! A questão dos “nomes, descendências e patrilineari­dade” que foi por nós tantas vezes discutida levanta a ponta do véu da insegu­rança masculina. Henci Goer, nos capítulos finais de Obstetric Myths…, desen­volve a tese de que a configuração de nossa sociedade se ergue em função da inveja ancestral que os homens nutrem pelo processo feminino de parturição. Di­ante da magia e do maravilhoso espetáculo do nascimento, o homem primitivo teria dito:

“Isso eu não posso fazer, mesmo com a mais refinada racionalidade. Diante da minha impotência frente à magia do nascer, só me resta sair por aí, construindo cidades, impérios, culturas, instituições, e conquistando o espaço cósmico.”

— E agora, Ric? O que resta aos homens? Estaríamos nos umbrais de uma soci­edade em profunda e dramática transformação? Rompidos os liames que nos prendiam ao processo gestatório natural, qual a utilidade dos homens na face da terra?

Nadine escutava com viva atenção, mas percebi no seu olhar uma expressão de clara curiosidade. Em um mundo dominado pelo patriarcado, era no mínimo curi­oso escutar um homem falar das normalmente inconfessas fragilidades do gênero masculino. Max continuou sua explicação, com a mesma mistura de coreografia e mise-en-scène.

— E agora, meus caros amigos, não falta mais nada. No Japão, pesquisadores conseguiram fazer a reprodução de um camundongo utilizando o material genético de duas fêmeas. O processo de criação dessa vida em laboratório dispensou completamente a parcela masculina da fecundação. Nenhuma colaboração do camundongo macho. A vida se reproduzindo como nunca havíamos imaginado anteriormente. Que significado tem isso para o mundo? O que veremos a partir de agora? O que falta para nos assombrar? Será que estamos mesmo às portas de um “Admirável Mundo Novo”, e ainda sem “tranca e sem porteira”, no dizer dos gaudérios?

Olho para Nadine e lanço um sorriso. Ela me devolve um levantar de sobrancelhas e um arregalar de olhos, demonstrando certo espanto com as palavras e profecias de Max. Por outro lado, parecia se divertir com o discurso do nosso enfático co­lega. Ambos tentávamos descobrir até onde aquela conversa poderia nos levar. Max nos olhou e disse que iria nos contar uma história.

*   *   *

Vou contar para vocês um sonho revelador que tive alguns anos atrás. Nesse so­nho, eu acordo como o “Dorminhoco” de Woody Allen, em um local desconhecido e frio, deitado em uma cama dura e coberto com um alvo lençol. Não foi necessá­rio muito tempo para me dar conta de que estava em um hospital. Os equipamen­tos sofisticados e desconhecidos pendurados nas paredes, assim como os arte­fatos ligados aos meus braços e minha cabeça, deixavam claro que, mais do que em um simples hospital, eu estava em uma clínica do futuro. Alguns minutos de angustiante atordoamento se passaram até que um grupo de jovens mulheres, médicas ou talvez enfermeiras, adentrassem a sala em que eu me encontrava. Uma delas, a mais velha, aproximou-se de mim e após algumas explicações inau­díveis levantou de um só golpe a minha camisola, expondo minhas vergonhas. Eu não conseguia me mover mesmo ordenando às minhas pernas que se mexessem, o que é uma característica nos meus pesadelos. As “estudantes” examinavam meus órgãos externos com uma clara curiosidade científica. Escutava cochichos e comentários, mas me era impossível entender seu conteúdo. Notei que não havia nenhum estudante homem, mas aos poucos percebi que naquele hospital inteiro parecia não haver nenhum representante do sexo masculino. As pessoas que en­travam e saiam constantemente do quarto também eram todas mulheres. Talvez eu estivesse em um hospital ginecológico ou coisa assim. Passados alguns minu­tos, as mulheres deixaram a sala, com exceção da mais velha que, aproximando-se de mim, falou com uma voz firme e pausada:

— Caro Dr. Maximilian, você veio do passado, resgatado por uma das nossas má­quinas do tempo. Desculpe pelo incômodo e pela situação embaraçosa em que o colocamos. Você faz parte de nossa aula de história natural, e essas moças que o examinaram são alunas do curso. Não se preocupe, pois em breve voltará para a sua era, que nós chamamos de “pré-história”, e de nada se recordará. Somos a sua civilização, em um futuro distante. Como deve ter percebido, você é uma curi­osidade em nossa aula por ser homem. Nossa sociedade aboliu os homens há muitos anos.

Minha percepção estava correta. A ausência de homens entre as pessoas pre­sentes na aula era mais do que uma coincidência. Realmente não havia mais ho­mens no mundo. Comecei a suar e tremer.

— Não há mais homens na terra — continuou ela. — Há alguns séculos, eles aos poucos se tornaram pouco úteis, sendo utilizados apenas para específicas tarefas nas quais o seu conteúdo exagerado de testosterona ainda era necessário. Com o tempo, foram escasseando, principalmente em função dos sistemas modernos de seleção cromossômica, até que, sob o reinado da Rainha Madonna XII, eles foram oficialmente extintos. Aqui nesse hospital são guardados espécimes de sêmen, congelados há séculos, para o processo de fecundação. Há muitos anos, desen­volvemos a capacidade de escolher geneticamente os espermatozoides, e apenas os que contêm carga X são aproveitados, sendo o resto desprezado. Nossa soci­edade é composta apenas de mulheres. Casamos, fazemos nossas filhas em la­boratório e gestamos bebês em chocadeiras artificiais; temos uma vida sexual agradável e não temos guerras há muitos séculos.

A tudo eu escutava com horror. Tentei me beliscar, mas não conseguia me mover, atado que estava aos equipamentos de transporte espaço-tempo. Resignei-me: era impossível fugir do sonho. Com visível comiseração, ela continuou sua expla­nação.

— Perto da sua era, nós, mulheres, começamos a nos evidenciar em vários seto­res antes dominados por vocês. As tarefas sociais, outrora divididas por uma falsa “especificidade”, passaram a ser compartilhadas plenamente por ambos os sexos. Cada vez mais percebíamos que a diferenciação sexual já havia cumprido sua parte no desenvolvimento e no aperfeiçoamento da espécie, mas sua importância era cada vez mais questionada. A tecnologia estava às portas de nos oferecer um grande avanço, e talvez o mais dramático de todos: a seleção cromossômica, que nos ofereceria a ferramenta derradeira para o controle da reprodução. A partir de então, podíamos escolher o sexo de nossos filhos através da tecnologia que sepa­rava os espermatozoides.

— Foi o que aconteceu. Os homens começaram a ser preteridos ao nascer, por­que sua força se tornara desnecessária em um mundo absolutamente mecani­zado. As mulheres, por ainda serem “matrizes”, passaram a ter mais valor nas op­ções de reprodução do que os homens. Estes continuaram a conviver conosco, mas aos poucos seu número foi diminuindo. Algumas mulheres até se casavam com homens e tinham seus filhos da maneira primitiva — chamada “biológica” — mas eram discriminadas e encaradas com preconceito. Eram tratadas como ‘sel­vagens’, adoradoras do passado, e sofriam um processo de exclusão social. Com o tempo, poucas mulheres ainda se aventuravam a fazer seus filhos de forma na­tural. O sexo passou a ser um componente de recreação, e não mais uma parte fundamental da reprodução.

— Separamos sexo de procriação; gravidez de maternidade e amamentação de maternagem. Finalmente estávamos livres do nosso destino cruel. Nossa tecnolo­gia resgatou-nos inclusive do pecado original, pois não mais sangrávamos há muitas décadas, até que o próprio processo de parto deixou de ser um fardo para nós com o advento das modernas “chocadeiras humanas”.

— Os homens tornaram-se claramente inúteis, e com o passar do tempo foram escasseando. Os que sobravam moravam em guetos, afastados das cidades, e eram rudes, ignorantes e decadentes. Por fim desapareceram, como tantas espé­cies na história do nosso planeta.

A professora respirou fundo e, mirando bondosamente meus olhos, concluiu seus comentários:

— Por isso você foi trazido aqui. Veio para ser mostrado como uma curiosidade às alunas de história natural. Não se preocupe, a aula já acabou. Entrará em sono profundo e despertará em sua cama, no passado, sem se recordar de nada. Obri­gado por sua colaboração.

Passou a mão sobre meu rosto e sorriu. Saiu sem olhar para trás, deixando na sala um perfume de “Patchouli”. Fechei os olhos e tentei entender. Somos então os últimos de nossa raça! Somos o ocaso de uma linhagem de guerreiros, gênios, mártires e tiranos. Somos os últimos homens na terra. A tecnologia acabou com os cromossomos Y, relegados a ficar apenas em laboratórios assépticos e serem descartados na lixeira por falta de uso. Derramei uma lágrima por meus filhos e netos…

Nossa busca por sentido e significado após a revolução sexual resultou nisso: nada. Não fomos capazes de descobrir uma função digna e específica para a masculinidade no nosso planeta. Fadados ao desaparecimento, acabamos exter­minados pela nossa própria inutilidade. Nossa decadência foi paulatina e culminou com um inglório término. Derramei mais algumas lágrimas pela honra masculina do passado, por Einstein, Aníbal, Gengis Kahn e Gandhi. Meu pranto imóvel foi interrompido pela chegada de uma mulher alta e corpulenta, usando um avental comprido e branco. Ela se postou ao meu lado, colocou-me um garrote no braço e sorriu.

— Você vai dormir agora, companheiro. Em breve não se lembrará de nada. Mas tenha fé. Existe esperança.

Senti a agulha fria penetrar minha veia e o líquido gelado resfriar meu braço. An­tes de cerrar pela última vez minhas pálpebras, olhei para a enfermeira corpulenta para, pelo menos em pensamento, dizer “adeus”. Pensei na expressão “compa­nheiro” e no significado que emprestávamos a essa palavra em “nossa época”.

Ela então, sorrindo, abriu seu avental branco e me mostrou sua intimidade. Quase gritei ao ver. Em verdade, se pudesse, gritaria.

Era um homem. Com todos os apetrechos que um homem deve ter. Estava tudo ali. Como? Tentei falar, mas ela (?) me impediu. Fechou imediatamente o avental e sussurrou em meu ouvido:

— Não faça força, amigo. Logo, logo você vai dormir. Tenha apenas esperança. Somos a “resistência”. Trabalho para a espionagem do nosso grupo. Roubamos os cromossomos “Y” das lixeiras do laboratório e estamos construindo uma pe­quena comunidade de homens e mulheres. Tenha fé. Temos mulheres que nos apoiam. Somos poucos, mas um dia reverteremos o mal que o sexismo causou a este mundo.

Mais uma vez tentei lhe responder, mas o líquido que fluía através das veias do meu braço começou a atingir meu cérebro. O sono, qual manto aveludado de amortecimento, veio vindo lentamente. As imagens foram a princípio se tornando turvas, para finalmente desaparecerem na bruma densa, mas terminei minha “passagem” pelo futuro com um tênue e tímido sorriso de esperança nos lábios.

Acordei em minha cama, ainda sentindo uma apreensão no peito e a camiseta encharcada de suor. Meus olhos paralisados na brancura do teto do quarto e mi­nha posição de braços abertos me provavam que o sonho fora certamente “real”. Eu ainda sentia no meu corpo os aparelhos que me prendiam à cama do hospital, mesmo sabendo que nada havia. Levantei ainda assustado e corri para o ba­nheiro. Abri os botões do pijama com nítida afobação e senti alívio ao constatar que tudo estava no lugar. Fiz xixi de pé, e nunca na minha vida urinei com tanto orgulho e satisfação.

*   *   *

Não pude conter uma sonora gargalhada no final da história de Max. Ele era um palhaço. Adorava contar histórias recheadas de humor e teatralidade. Nadine olhou para mim e depois voltou seus lindos olhos azuis em direção ao nosso cria­tivo colega. Sorriu do sonho de Max, que ela chamou de “versão misógina do Pla­neta dos Macacos”, mas disse que os homens eram especiais demais para sim­plesmente desaparecerem. Segundo ela, havia muito mais na masculinidade do que apenas uma necessidade procriativa. O olhar meramente pragmático e utilita­rista é capaz de, pela sua absoluta incompletude, produzir as aberrações que Max apresentara. Pensar em sociedade e cultura sem levar em consideração os valo­res que nós cultivamos só pode produzir uma visão distorcida e unimodal da reali­dade.

— Nadine acredita no masculino, Max. Não seja tão duro — disse-lhe eu. — Em verdade, penso também que as razões meramente genéticas não seriam sufici­entes para, em um futuro distante, produzir uma sociedade sem gêneros. Mesmo com a tecnologia nos oferecendo a oportunidade da gestação sem os pares, existe uma necessidade muito mais significativa para as diferenças entre os se­xos, desde o advento da racionalidade, qual seja, o relacionamento. Eu acredito que homens e mulheres podem oferecer a diversidade psicológica fundamental para o equilíbrio e, em se falando de natureza e genética, “diversidade” é um con­ceito fundamental.

Nadine concordou e ainda arrematou dizendo que não só acreditava no masculino como tinha por ele notável admiração. Disse que só se alcança força e estabili­dade através da combinação dos polos opostos da biologia humana. Os homens mais admiráveis eram aqueles que misturavam em si ambos os componentes, feminino e masculino, enriquecendo-se das experiências possíveis. O mesmo ocorria com as mulheres, em que o trânsito no universo da masculinidade lhes oferecia a oportunidade de entender o mundo também pelo olhar masculino.

Ainda tive a oportunidade para mais um comentário.

— Pelo sim pelo não, é melhor não facilitar, Nadine. É possível que sejamos mesmo, como Max nos mostrou, “animais” em extinção. Apresse-se. Talvez em muito pouco tempo, será difícil encontrar algo de bom no mercado.

— Patu Saleh, tolinho — respondeu ela.

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Homens

Sou um defensor do masculino desde que, na condição de marido, lutei pelo direito de estar presente no nascimento dos meus filhos. E minha posição não foi baseada no benefício que isso poderia trazer à minha esposa à época; muito mais do que isso, foi pela crença de que minha presença nos partos seria benéfica para mim, na construção constante do homem que pretendia ser. Assim, minha trajetória na humanização do nascimento não se estabeleceu numa perspectiva identitária; não acredito que as mulheres devam ser tratadas com mais respeito por serem especiais ou pela sua especial condição de mulheres, mas porque compartem com todos sua condição humana. Não é por outra razão que devem ser tratadas com a máxima atenção e dignidade: por serem divinamente humanas.

Por esta razão me incomodam as publicações onde os homens são tratados como “a grande ameaça às mulheres”. Dizem “se não houvesse homens não seria necessária a proteção que oferecem a elas”, como se o único risco que as mulheres correm nesse planeta está nos homens que, com elas, compartilham os espaços do mundo. Penso que tal visão deturpada do masculino é obra destes tempos atuais, onde o necessário questionamento do patriarcado resulta em exageros e distorções inevitáveis. Ora, os homens, desde a aurora da humanidade, protegem as mulheres e seus filhos da natureza indômita, de um urso faminto, de um leão, de um tornado traiçoeiro, da chuva inclemente e da falta dela, da seca trágica que nos fez movediços, da falta de comida, da escassez de abrigos, da falta de proteínas essenciais para o crescimento encefálico e na proteção da comunidade ameaçada por outros grupos.

A campanha de desvalorização e criminalização do masculino não é capaz de elevar o feminino, mas expõe uma perspectiva curiosa sobre a imagem que as mulheres fazem dos homens. Esta visão, por sua vez, não se encontra nos homens em relação ao feminino. O que se poderia dizer de um homem que viesse a afirmar “não preciso de mulher para nada”? Ora, que tolo, diríamos; os homens já nascem com a marca dessa necessidade estruturando sua incompletude; nenhum homem ousa afirmar sua liberdade absoluta das mulheres. Trazemos na memória celular a dívida impagável com as mulheres pelo ensinamento de amor que recebemos. Já algumas mulheres acreditam numa delirante autossuficiência, como se a civilização que todos usufruímos não fosse uma construção dos homens, da sua coragem, obsessão e dedicação, e da qual as mulheres usufruem tanto quanto eles.

Os homens podem ser – e não raro são – uma ameaça real para as mulheres, e a violência contra elas é uma dura realidade, mas estas também os ameaçam – e muito. Convido a pesquisar o “mapa da violência” e os dados do IPEA sobre violência doméstica. Todavia, essa não é a definição justa para os homens, assim como mulheres que espancam seus filhos não são a definição correta para “as mulheres”. Além disso, são os homens as maiores vítimas da violência que se estabelece no patriarcado; 92% de todas as mortes violentas acontecem entre os homens. Não por outra razão, uma sociedade que os obriga a matar um leão todos os dias faz com que os suicídi*s sejam 4x mais prevalentes entre eles. Que vida fácil é esta no patriarcado que faz os homens terem uma vida mais curta, com mais sofrimento por depressão, sendo eles as vítimas preferenciais de homicídios e autocídios?

Por fim, reduzir os homens a agressores violentos ou estupradores em potencial é tão danoso e grosseiro quanto reduzir as mulheres a objetos sexuais manipuláveis e descartáveis. Estas generalizações agridem a imensa maioria de homens e mulheres deste planeta. Uma minoria ínfima de homens comete algum tipo de violência contra mulheres, e colocar esta minúscula fração como sendo a imagem definidora e emblemática do masculino é uma violência absurda contra os homens e o legado de criatividade, coragem e sacrifício que fizeram para que todos – inclusive suas mulheres – pudessem acender a luz de suas casas e beber água potável da torneira, ou mesmo pudessem ler este post na tranquilidade de suas casas.

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Homens

Nunca vou esquecer o dia que fui assistir um filme e a pessoa que estava comigo começou a elogiar o ator principal da trama – um famoso galã de Hollywood – de uma maneira completamente diferente daquela que eu me acostumei a ouvir por anos a fio. Exaltava as suas qualidades masculinas, sua força, seus traços másculos, elogiava seus braços e pernas, seu sorriso dolorido, sua ternura positiva, sua imposição, seu destemor, sua coragem, sua nobreza e sua especial devoção à mulher que amava. “Queria eu ser esta mulher, para ter um homem desses ao meu lado”, me disse.

Nunca havia escutado tantos elogios a um homem e tanto encantamento com suas qualidades, sem retirar dele o fato de ser homem, sem dizer que ele era “feminino” por expressar seu afeto, sem querer transformá-lo em uma versão masculina domesticada. Pelo contrário: o admirava exatamente por ser homem e deixar claro o quanto isso pode ser verdadeiramente bonito e fascinante.

Passei muitos anos da minha vida envolvido em um universo de ataques aos homens e ao masculino, a ponto de que aquelas palavras produziram um choque estético, uma surpresa, um espanto pela devoção tamanha ao que os homens representam na cultura e na vida de todos. A descrição que ouvi dos valores de um homem naquela noite eu nunca esquecerei. Depois de décadas de críticas – muitas delas justas – descrevendo-os como estúpidos, grosseiros, malévolos e ignorantes, as palavras que escutei abriram uma porta de admiração há muito trancada.

O filme era “Nasce uma Estrela”, o ano 2019 e o ator Bradley Cooper. Ao meu amigo gay que assistiu este filme ao meu lado agradeço a oportunidade de escutar sua particular perspectiva sobre os homens, e o quanto ela significou para mim. 

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Para facilitar o cancelamento

O sexismo é irmão dileto do racismo e de todas as formas de preconceito. Acreditar que os ataques a um determinado gênero e condição seja “justo” em função de questões dramáticas que vivenciamos no cotidiano acaba por legitimar os ataques às raças, às orientações sexuais e às identidades, ao invés de produzir um arrefecimento dessas ações. Aceitar que homens sejam tratados como “malévolos e inferiores”, “estúpidos e grosseiros” baseando-se na experiência pessoal com eles é o mesmo que tratar negros, gays, mulheres, imigrantes e qualquer outra minoria de forma violenta ou diminutiva baseando-se em generalizações ou em sua experiência pessoal negativa.

Eu não tolero preconceitos que colocam gênero, classe, raça, origem, orientação sexual etc. em uma escala de valores, dos mais nobres aos mais perversos. Não acredito que nossos genes produzem diferenças no que diz respeito às condições morais e intelectuais. Diante disso deixo bem claro que qualquer pessoa que escreve a frase sexista “Nem todo homem, mas sempre um homem”, está convidado a me cancelar peremptoriamente; não precisa sequer se despedir. Lutei contra todos aqueles que tratavam pequenos deslizes naturais de mulheres em ambiente de trabalho dizendo coisas parecidas com isso (“tinha que ser mulher”, por exemplo), portanto não vejo porque deveria aceitar que este tipo de manifestação abjeta, asquerosa, nojenta e que atenta contra metade da população do mundo possa ser válida.

A criação de um mundo de equidade não vai passar por derrubar o poder dos homens para a criação de uma opressão por outro gênero, mas através da abolição de qualquer opressão baseada no sexo, na cor da pele, na classe social, na origem e na identidade sexual dos sujeitos que coabitam conosco neste planeta. Atacar os homens e o masculino, creditando a eles todo o mal do mundo (e fazendo vista grossa para as perversões cometidas por mulheres) é um dos mais importantes fatores para a manutenção dos preconceitos, pois que ataca a essência imutável de todos nós – nossa estrutura de sujeito – algo que não pode ser modificado e elaborado.

Quem ataca os homens e o masculino, tratando-os como inferiores e tolos, não honra seu pai, seus irmãos, seu marido, seus filhos homens e tudo o que o masculino criou na humanidade. Quem faz o mesmo com as mulheres, desonra todas aquelas que lutaram e se sacrificaram para que estivéssemos aqui.

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Homens

Homens foram ensinados a proteger as mulheres acima das próprias vidas, e essa é a verdadeira essência do modelo patriarcal. A expressão “Mulheres e crianças primeiro” não surgiu do nada, nao veio do vento, mas expressa um dos mais profundos valores da civilização. Ela significa que, no patriarcado, a vida das mulheres e das crianças será protegida acima de tudo pois são mais valiosas do que a dos homens, e a mais profunda obrigação masculina é proteger a ambos. Esse é um tipo de privilégio oferecido às mulheres que é difícil de reconhecer em uma sociedade que penaliza os homens unicamente pela sua condição masculina.

Isso não significa que o patriarcado seja belo, justo ou não contenha contradições, e por essas falhas deverá ser substituído. Entretanto, é absurdo imaginar que o que move esse modelo é o ódio dos homens pelas mulheres, ou o prazer em oprimi-las. Muitas ativistas identitárias ainda acreditam que o amor dos homens por elas é falso, interesseiro e seu único objetivo é explorar e objetificar as mulheres. Por outro lado, o amor das mulheres seria puro, angelical, desinteressado e respeitoso, o amor de Maria por Jesus. Ou seja, para estas ativistas as mulheres seriam moralmente superiores aos homens.

Sabem qual o nome disso? Sexismo, o mais abjeto dos preconceitos.

Para dar a verdadeira perspectiva do significado do homem na civilização eu convido estas meninas a subir no edifício mais alto de sua cidade, aquele que puder oferecer a vista mais ampla possível. Olhem lá de cima até conseguirem ver a linha do horizonte. Depois disso olhem os carros, as ruas, as roupas, as torres, os fios de luz, o telefone na mão das pessoas, as casas, as praças, as fábricas… tudo. Quando tiverem feito esse passeio visual pensem: tudo isso aqui, literalmente, sem tirar nada, foi construído por esses homens que são desprezados e chamados de “interesseiros” e abusadores. Toda obra humana, até onde nossa vista alcança, foi feita pela mão dos homens, e para eles devemos ser agradecidos.

Toda a civilização foi construída pelo gênio masculino, e muitos foram os homens que lutaram e morreram para construir este mundo que conhecemos, da mais simples choupana até uma estação espacial. E o fizeram para que suas mulheres e filhos tivessem uma vida mais digna, mais segura e mais livre. Esse desprezo pelos homens é o fator que mais atrasa as conquistas das mulheres, porque além de injusto é ingrato e violento. A plena emancipação das mulheres não vai se dar pela exclusão dos homens, muito menos usando desprezo e humilhação como estratégia.

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Terraplanismos

Mais de uma pessoa da minha bolha de mídia social olhou para o cartaz abaixo e observou que os palestrantes são todos homens. A insinuação é clara: só homens são estúpidos o suficiente para acreditar em terraplanismo.

Eu iria mais adiante: são todos brancos e heterossexuais; alguém explica? Assim sendo, por esse fato relevante e incontestavel, podemos afirmar a superioridade moral e intelectual de mulheres, negros e gays sobre a escória planetária: homens brancos heterosexuais.

Certo?

Eu ia puxar a lista de prêmios Nobel do ano passado, onde a imensa maioria é feita de homens também. Isso significa que…

Significa que preconceito de gênero tem duas mãos e que a existência de “opressores e oprimidos” não impõem que usemos as mesmas armas que causam e mantém a opressão sobre determinados grupos. Insinuar que os homens são mais idiotas e as mulheres mais sábias – e vice-versa – apenas mantém vivo e resplandecente o preconceito e o olhar negativo sobre o “gênero de lá”, o outro, o que “não somos nós”.

É possível fazer crítica de gênero sem essencialismos morais ou intelectuais. É possível criticar de forna insistente e intensa o preconceito com as mulheres cientistas – por construções históricas do patriarcado – sem insinuar que mulheres são mais inteligentes (ou menos ignorantes) que seus parceiros homens. Fica a questão: por que é tão difícil assumir que somos iguais nesse terreno? Por que seria preciso diminuir o outro gênero para enaltecer o nosso?

Os estudiosos da terra plana (sim, eles estudam o tema) podem estar errados e confusos sobre suas crenças, mas não o fazem por serem homens, mas por serem crédulos, e a credulidade não ataca apenas portadores de cromossomas Y.

A tolice e a excelência – ao que tudo indica – tem uma distribuição bem democrática na nossa espécie. Por esta razão vejo com igual gravidade tais manifestações preconceituosas e as antigas piadas que associavam a burrice com a tonalidade do cabelo de algumas mulheres. Não vejo sentido em continuarmos a estimular tais comportamentos.

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Masculino

Atlas

Nenhum homem jamais saberá o quanto sofre uma mulher, nem tampouco o que há de gozo em sê-lo. Também nenhuma mulher poderá entender o dilema masculino, sentido no peito, na dureza que vem ou que falta, na saliva que seca, na perna que fraqueja, nas costas nunca suficientes, na bala que cruza a rua e se choca ao peito, na guerra que escolhe os meninos, no filho que nunca viu e do qual nunca soube, do leão que naquele dia não matou, o olhar severo do pai, o avanço chamado abuso e a espera chamada covardia, o desejo tesão, o cansaço fraqueza, a vaidade crime, o medo fracasso.

E nenhuma víscera a crescer em seu corpo que lhe possa, por fim, garantir a masculinidade angustiosa, frágil e incerta.

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