
O Masculino Ameaçado
— Nadine, preste atenção no que vou lhe dizer. Não existe isso de “homens têm uma vida mais fácil”. Isso é sexismo, tão grave quanto o tipo que nós, homens, lançamos historicamente contra as mulheres. Se você combate os preconceitos, seja contra todos, e não somente contra aqueles que particularmente te afetam.
Max parecia irritado, mas só para quem não o conhecia. Ele tinha essa forma apaixonada e teatral de apresentar seus argumentos. Quando elevava demasiadamente o tom de sua voz, eu simplesmente fazia um sinal com a mão junto com as palavras “menos, Max, menos”, e ele entendia a necessidade de dosar sua emoção. Nossa conversa já durava algumas horas, mas até então um não se atrevia a olhar para o relógio. O cheiro do café que sobrara do meu “expresso” sobre a mesa misturava-se com o suave perfume de Nadine, que sentara ao meu lado. Ambos éramos a plateia de Max. Tanto nós gostávamos de escutá-lo quanto ele adorava suas “apresentações”. Nadine estivera provocando-o, dizendo que a maternidade, o parto e a menstruação tornavam, inequivocamente, a vida das mulheres muito mais complexa e sofrida. Dizia ela que a natureza fora injusta com a distribuição de sofrimento imposto aos gêneros. Nadine claramente defendia, mesmo sem saber, a tese da “queda do paraíso”, afirmando que o sofrimento das mulheres no parto e no ciclo menstrual estava diretamente ligado a um “defeito de fabricação”, que o Divino havia determinado e a cultura, ratificado. Max não aceitava essa visão do feminino, e sempre que essa questão aparecia nas nossas conversas sua reação era emocional. Ele continuou a sua explanação:
— Desde que nos decidimos pela diferença sexual, há alguns milhões de anos, as coisas sempre foram assim, digamos, complicadas. Somos dois, caminhando juntos em uma estrada que sequer sabemos ao certo onde leva. Nessa aventura de criarmos a complementaridade no outro, o que nos sobrou de concreto é que apenas um dos gêneros engravida, e isso é um fato biológico com repercussões tremendas. Assim, todos nós, homens e mulheres, somos “nascidos de mulher”. Essa diferença da biologia nos separa inexoravelmente. Entramos nessa vida egressos da calidez escura de um ventre feminino.
— Por milhares de anos, a nossa estrutura social propiciou uma formatação estável de papéis, em que mulheres e homens nasciam com uma trilha predeterminada na existência. Por milhares de gerações, isso não foi questionado. Era tão “da vida” como o nascer e o pôr do sol, a sucessão das estações e a lua trocando sua face. Hoje as coisas mudaram, e a insegurança veio no pacote da liberdade de escolhas.
— Por outro lado, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, adentrando bolsões de exclusividade em que apenas os homens tinham acesso, acabou provocando um efeito dominó, em que, obviamente, os homens acabaram sendo atingidos. É impossível mudar as mulheres sem que os homens sejam afetados.
— Na sociedade, estamos interconectados através de “vasos comunicantes”. Quando alguém se modifica, imediatamente provoca uma reação em quem se encontra próximo. A busca das mulheres por autonomia e liberdade acabou produzindo nos homens uma necessária, e por vezes complexa, adaptação a esta “nova mulher”.
— Mas o que houve com os homens? — Max deu ênfase na pergunta. — Erram os que pensam que os homens continuam em uma “vida boa”, enquanto as mulheres estão sofrendo por jornada tripla, excesso de trabalho, filhos, casamento, etc. Homens sofrem hoje, agudamente, de um processo crônico de insegurança. Somos condenados a mostrar incessantemente nossa função no planeta. Como diriam os psicanalistas, precisamos “matar um leão por dia para mostrar ao nosso pai”.
— Com a evidente emancipação das mulheres, a situação piorou. Se antes éramos os guerreiros e provedores necessários, somos o que agora? Se antes matávamos o javali na floresta e trazíamos o suprimento de proteína fundamental à alimentação do bando, para o que somos realmente necessários neste mundo em transformação?
— O aparecimento na TV de séries que discutem as fragilidades masculinas é apenas um sintoma de uma mudança grave e profunda na sociedade, em que o único resultado previsível é o medo e a insegurança. É pura ingenuidade achar que os homens não sofrem! A questão dos “nomes, descendências e patrilinearidade” que foi por nós tantas vezes discutida levanta a ponta do véu da insegurança masculina. Henci Goer, nos capítulos finais de Obstetric Myths…, desenvolve a tese de que a configuração de nossa sociedade se ergue em função da inveja ancestral que os homens nutrem pelo processo feminino de parturição. Diante da magia e do maravilhoso espetáculo do nascimento, o homem primitivo teria dito:
“Isso eu não posso fazer, mesmo com a mais refinada racionalidade. Diante da minha impotência frente à magia do nascer, só me resta sair por aí, construindo cidades, impérios, culturas, instituições, e conquistando o espaço cósmico.”
— E agora, Ric? O que resta aos homens? Estaríamos nos umbrais de uma sociedade em profunda e dramática transformação? Rompidos os liames que nos prendiam ao processo gestatório natural, qual a utilidade dos homens na face da terra?
Nadine escutava com viva atenção, mas percebi no seu olhar uma expressão de clara curiosidade. Em um mundo dominado pelo patriarcado, era no mínimo curioso escutar um homem falar das normalmente inconfessas fragilidades do gênero masculino. Max continuou sua explicação, com a mesma mistura de coreografia e mise-en-scène.
— E agora, meus caros amigos, não falta mais nada. No Japão, pesquisadores conseguiram fazer a reprodução de um camundongo utilizando o material genético de duas fêmeas. O processo de criação dessa vida em laboratório dispensou completamente a parcela masculina da fecundação. Nenhuma colaboração do camundongo macho. A vida se reproduzindo como nunca havíamos imaginado anteriormente. Que significado tem isso para o mundo? O que veremos a partir de agora? O que falta para nos assombrar? Será que estamos mesmo às portas de um “Admirável Mundo Novo”, e ainda sem “tranca e sem porteira”, no dizer dos gaudérios?
Olho para Nadine e lanço um sorriso. Ela me devolve um levantar de sobrancelhas e um arregalar de olhos, demonstrando certo espanto com as palavras e profecias de Max. Por outro lado, parecia se divertir com o discurso do nosso enfático colega. Ambos tentávamos descobrir até onde aquela conversa poderia nos levar. Max nos olhou e disse que iria nos contar uma história.
* * *
Vou contar para vocês um sonho revelador que tive alguns anos atrás. Nesse sonho, eu acordo como o “Dorminhoco” de Woody Allen, em um local desconhecido e frio, deitado em uma cama dura e coberto com um alvo lençol. Não foi necessário muito tempo para me dar conta de que estava em um hospital. Os equipamentos sofisticados e desconhecidos pendurados nas paredes, assim como os artefatos ligados aos meus braços e minha cabeça, deixavam claro que, mais do que em um simples hospital, eu estava em uma clínica do futuro. Alguns minutos de angustiante atordoamento se passaram até que um grupo de jovens mulheres, médicas ou talvez enfermeiras, adentrassem a sala em que eu me encontrava. Uma delas, a mais velha, aproximou-se de mim e após algumas explicações inaudíveis levantou de um só golpe a minha camisola, expondo minhas vergonhas. Eu não conseguia me mover mesmo ordenando às minhas pernas que se mexessem, o que é uma característica nos meus pesadelos. As “estudantes” examinavam meus órgãos externos com uma clara curiosidade científica. Escutava cochichos e comentários, mas me era impossível entender seu conteúdo. Notei que não havia nenhum estudante homem, mas aos poucos percebi que naquele hospital inteiro parecia não haver nenhum representante do sexo masculino. As pessoas que entravam e saiam constantemente do quarto também eram todas mulheres. Talvez eu estivesse em um hospital ginecológico ou coisa assim. Passados alguns minutos, as mulheres deixaram a sala, com exceção da mais velha que, aproximando-se de mim, falou com uma voz firme e pausada:
— Caro Dr. Maximilian, você veio do passado, resgatado por uma das nossas máquinas do tempo. Desculpe pelo incômodo e pela situação embaraçosa em que o colocamos. Você faz parte de nossa aula de história natural, e essas moças que o examinaram são alunas do curso. Não se preocupe, pois em breve voltará para a sua era, que nós chamamos de “pré-história”, e de nada se recordará. Somos a sua civilização, em um futuro distante. Como deve ter percebido, você é uma curiosidade em nossa aula por ser homem. Nossa sociedade aboliu os homens há muitos anos.
Minha percepção estava correta. A ausência de homens entre as pessoas presentes na aula era mais do que uma coincidência. Realmente não havia mais homens no mundo. Comecei a suar e tremer.
— Não há mais homens na terra — continuou ela. — Há alguns séculos, eles aos poucos se tornaram pouco úteis, sendo utilizados apenas para específicas tarefas nas quais o seu conteúdo exagerado de testosterona ainda era necessário. Com o tempo, foram escasseando, principalmente em função dos sistemas modernos de seleção cromossômica, até que, sob o reinado da Rainha Madonna XII, eles foram oficialmente extintos. Aqui nesse hospital são guardados espécimes de sêmen, congelados há séculos, para o processo de fecundação. Há muitos anos, desenvolvemos a capacidade de escolher geneticamente os espermatozoides, e apenas os que contêm carga X são aproveitados, sendo o resto desprezado. Nossa sociedade é composta apenas de mulheres. Casamos, fazemos nossas filhas em laboratório e gestamos bebês em chocadeiras artificiais; temos uma vida sexual agradável e não temos guerras há muitos séculos.
A tudo eu escutava com horror. Tentei me beliscar, mas não conseguia me mover, atado que estava aos equipamentos de transporte espaço-tempo. Resignei-me: era impossível fugir do sonho. Com visível comiseração, ela continuou sua explanação.
— Perto da sua era, nós, mulheres, começamos a nos evidenciar em vários setores antes dominados por vocês. As tarefas sociais, outrora divididas por uma falsa “especificidade”, passaram a ser compartilhadas plenamente por ambos os sexos. Cada vez mais percebíamos que a diferenciação sexual já havia cumprido sua parte no desenvolvimento e no aperfeiçoamento da espécie, mas sua importância era cada vez mais questionada. A tecnologia estava às portas de nos oferecer um grande avanço, e talvez o mais dramático de todos: a seleção cromossômica, que nos ofereceria a ferramenta derradeira para o controle da reprodução. A partir de então, podíamos escolher o sexo de nossos filhos através da tecnologia que separava os espermatozoides.
— Foi o que aconteceu. Os homens começaram a ser preteridos ao nascer, porque sua força se tornara desnecessária em um mundo absolutamente mecanizado. As mulheres, por ainda serem “matrizes”, passaram a ter mais valor nas opções de reprodução do que os homens. Estes continuaram a conviver conosco, mas aos poucos seu número foi diminuindo. Algumas mulheres até se casavam com homens e tinham seus filhos da maneira primitiva — chamada “biológica” — mas eram discriminadas e encaradas com preconceito. Eram tratadas como ‘selvagens’, adoradoras do passado, e sofriam um processo de exclusão social. Com o tempo, poucas mulheres ainda se aventuravam a fazer seus filhos de forma natural. O sexo passou a ser um componente de recreação, e não mais uma parte fundamental da reprodução.
— Separamos sexo de procriação; gravidez de maternidade e amamentação de maternagem. Finalmente estávamos livres do nosso destino cruel. Nossa tecnologia resgatou-nos inclusive do pecado original, pois não mais sangrávamos há muitas décadas, até que o próprio processo de parto deixou de ser um fardo para nós com o advento das modernas “chocadeiras humanas”.
— Os homens tornaram-se claramente inúteis, e com o passar do tempo foram escasseando. Os que sobravam moravam em guetos, afastados das cidades, e eram rudes, ignorantes e decadentes. Por fim desapareceram, como tantas espécies na história do nosso planeta.
A professora respirou fundo e, mirando bondosamente meus olhos, concluiu seus comentários:
— Por isso você foi trazido aqui. Veio para ser mostrado como uma curiosidade às alunas de história natural. Não se preocupe, a aula já acabou. Entrará em sono profundo e despertará em sua cama, no passado, sem se recordar de nada. Obrigado por sua colaboração.
Passou a mão sobre meu rosto e sorriu. Saiu sem olhar para trás, deixando na sala um perfume de “Patchouli”. Fechei os olhos e tentei entender. Somos então os últimos de nossa raça! Somos o ocaso de uma linhagem de guerreiros, gênios, mártires e tiranos. Somos os últimos homens na terra. A tecnologia acabou com os cromossomos Y, relegados a ficar apenas em laboratórios assépticos e serem descartados na lixeira por falta de uso. Derramei uma lágrima por meus filhos e netos…
Nossa busca por sentido e significado após a revolução sexual resultou nisso: nada. Não fomos capazes de descobrir uma função digna e específica para a masculinidade no nosso planeta. Fadados ao desaparecimento, acabamos exterminados pela nossa própria inutilidade. Nossa decadência foi paulatina e culminou com um inglório término. Derramei mais algumas lágrimas pela honra masculina do passado, por Einstein, Aníbal, Gengis Kahn e Gandhi. Meu pranto imóvel foi interrompido pela chegada de uma mulher alta e corpulenta, usando um avental comprido e branco. Ela se postou ao meu lado, colocou-me um garrote no braço e sorriu.
— Você vai dormir agora, companheiro. Em breve não se lembrará de nada. Mas tenha fé. Existe esperança.
Senti a agulha fria penetrar minha veia e o líquido gelado resfriar meu braço. Antes de cerrar pela última vez minhas pálpebras, olhei para a enfermeira corpulenta para, pelo menos em pensamento, dizer “adeus”. Pensei na expressão “companheiro” e no significado que emprestávamos a essa palavra em “nossa época”.
Ela então, sorrindo, abriu seu avental branco e me mostrou sua intimidade. Quase gritei ao ver. Em verdade, se pudesse, gritaria.
Era um homem. Com todos os apetrechos que um homem deve ter. Estava tudo ali. Como? Tentei falar, mas ela (?) me impediu. Fechou imediatamente o avental e sussurrou em meu ouvido:
— Não faça força, amigo. Logo, logo você vai dormir. Tenha apenas esperança. Somos a “resistência”. Trabalho para a espionagem do nosso grupo. Roubamos os cromossomos “Y” das lixeiras do laboratório e estamos construindo uma pequena comunidade de homens e mulheres. Tenha fé. Temos mulheres que nos apoiam. Somos poucos, mas um dia reverteremos o mal que o sexismo causou a este mundo.
Mais uma vez tentei lhe responder, mas o líquido que fluía através das veias do meu braço começou a atingir meu cérebro. O sono, qual manto aveludado de amortecimento, veio vindo lentamente. As imagens foram a princípio se tornando turvas, para finalmente desaparecerem na bruma densa, mas terminei minha “passagem” pelo futuro com um tênue e tímido sorriso de esperança nos lábios.
Acordei em minha cama, ainda sentindo uma apreensão no peito e a camiseta encharcada de suor. Meus olhos paralisados na brancura do teto do quarto e minha posição de braços abertos me provavam que o sonho fora certamente “real”. Eu ainda sentia no meu corpo os aparelhos que me prendiam à cama do hospital, mesmo sabendo que nada havia. Levantei ainda assustado e corri para o banheiro. Abri os botões do pijama com nítida afobação e senti alívio ao constatar que tudo estava no lugar. Fiz xixi de pé, e nunca na minha vida urinei com tanto orgulho e satisfação.
* * *
Não pude conter uma sonora gargalhada no final da história de Max. Ele era um palhaço. Adorava contar histórias recheadas de humor e teatralidade. Nadine olhou para mim e depois voltou seus lindos olhos azuis em direção ao nosso criativo colega. Sorriu do sonho de Max, que ela chamou de “versão misógina do Planeta dos Macacos”, mas disse que os homens eram especiais demais para simplesmente desaparecerem. Segundo ela, havia muito mais na masculinidade do que apenas uma necessidade procriativa. O olhar meramente pragmático e utilitarista é capaz de, pela sua absoluta incompletude, produzir as aberrações que Max apresentara. Pensar em sociedade e cultura sem levar em consideração os valores que nós cultivamos só pode produzir uma visão distorcida e unimodal da realidade.
— Nadine acredita no masculino, Max. Não seja tão duro — disse-lhe eu. — Em verdade, penso também que as razões meramente genéticas não seriam suficientes para, em um futuro distante, produzir uma sociedade sem gêneros. Mesmo com a tecnologia nos oferecendo a oportunidade da gestação sem os pares, existe uma necessidade muito mais significativa para as diferenças entre os sexos, desde o advento da racionalidade, qual seja, o relacionamento. Eu acredito que homens e mulheres podem oferecer a diversidade psicológica fundamental para o equilíbrio e, em se falando de natureza e genética, “diversidade” é um conceito fundamental.
Nadine concordou e ainda arrematou dizendo que não só acreditava no masculino como tinha por ele notável admiração. Disse que só se alcança força e estabilidade através da combinação dos polos opostos da biologia humana. Os homens mais admiráveis eram aqueles que misturavam em si ambos os componentes, feminino e masculino, enriquecendo-se das experiências possíveis. O mesmo ocorria com as mulheres, em que o trânsito no universo da masculinidade lhes oferecia a oportunidade de entender o mundo também pelo olhar masculino.
Ainda tive a oportunidade para mais um comentário.
— Pelo sim pelo não, é melhor não facilitar, Nadine. É possível que sejamos mesmo, como Max nos mostrou, “animais” em extinção. Apresse-se. Talvez em muito pouco tempo, será difícil encontrar algo de bom no mercado.
— Patu Saleh, tolinho — respondeu ela.





