Arquivo da tag: paternidade

Dia dos Pais

Sim, acho muito errado usar esse dia para esses ataques aos homens e aos pais, mas parece que as mídias sociais ficam recheadas de mensagens negativas sobre eles. Apenas peço que usem os outros dias para isso. Nunca vi alguém publicar algo destrutivo, ressentido e agressivo contra mães e mulheres no dia das mães. “Ah, mas não existe mãe ruim”.

Existe sim. Muitas. Milhares, milhões. Mães que abandonam, que maltratam e que espancam. Mães que até matam. Mas elas são a ÍNFIMA MINORIA das mães. A IMENSA MAIORIA das mães é feita de mulheres devotadas e amorosas com seus filhos e sua família, e no dia dedicado a elas não seria justo tratar o todo por uma parte tão insignificante.

Pois a maioria dos pais ao meu redor se preocupa com seus filhos, com as suas crianças e se dedica a elas. A maioria diria com toda a força dos pulmões “mulheres e crianças primeiro!!” diante de uma tragédia. Não pensaria meio segundo em arriscar a vida em nome dos filhos.

Entretanto, muitas mulheres aproveitam esse dia para atacar o masculino e a paternidade e o usam para despejar seu ressentimento contra todos os pais. Não poderei jamais ver isso com bons olhos. Façam isso nos outros dias. Aproveitem o dia dos pais para elogiar os bons pais que existem. Aproveitem para reconhecer NESSE ÚNICO DIA, as qualidades da paternidade. Quem não tem bons exemplos no seu pai ou seu marido fale genericamente, dos outros pais, do genro, do sogro, de quem quiser. Respeitem um dia entre 365 de um ano.

Esperem SÓ ATÉ AMANHÃ para odiar de novo com todas as forças esses “miseráveis” que andam por aí, “inúteis depósitos de testosterona”.

Só hoje, por favor….

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Emoções Compartilhadas

Amamentação e Cama Compartilhada

Todos haverão de concordar que um tempo de cama compartilhada auxilia tanto a mãe na tarefa de amamentar quanto tranquiliza o bebê – para quem sua mãe e “o mundo” são a mesma coisa. Concordamos também que, em nome da autonomia da criança, esta proximidade de corpos deve ser abandonada em algum ponto da infância. O problema é estabelecer este ponto de corte, esta castração simbólica do poder da criança sobre o corpo da mãe, pois que a nossa própria maturação enquanto sujeitos dependerá desse afastamento.

Eu já fui bem radical sobre esse tema logo após me graduar. Achava justo que esse corte fosse o mais precoce para auxiliar na autonomia e independência das crianças. Também acreditava que a amamentação devia ser interrompida num ponto determinado, por volta dos dois anos, pelas mesmas razões. Pensava, com honestidade, que era função social do médico educar as mulheres a fazer esta separação da forma mais rápida, olhando para o desmame e a colocação no berço como a retirada de um band-aid emocional, uma muleta que devia ser abandonada.

O tempo foi me deixando mais maleável, sem dúvida. Hoje prefiro acreditar que, com raríssimas exceções, mães e bebê acabam encontrando um consenso sobre amamentação e cama compartilhada. Chega um determinado momento em que os dois se “olham estranho”, lançam um sorriso que preenche o espaço entre ambos e percebem que aquela relação, com tamanha proximidade, não cabe mais para eles. Assim se dá um desenlace amigável e ambos passam para uma nova fase da sua relação.

Percebi também que muito do que eu dizia sobre o tema era uma composição complexa entre racionalizações e conteúdos psíquicos inconfessos e inconscientes. Para mim é inegável que a cama compartilhada e a amamentação são movimentos eróticos entre os personagens da “cena primária”, nos quais os homens são fatalmente excluídos. Muito das teorias sobre o tema são produzidas sob essa pressão patriarcal. Para os homens, as emoções ativadas diante dessa cena são angustiantes e conflituosas, mesmo quando existe a alegria esfuziante e genuíno afeto envolvido nesse encontro. No meu caso, era óbvio o quanto a manutenção dessa ligação parecia embaraçosa, mas levou muito tempo para perceber o quanto havia de preconceito e bloqueios pessoais envolvidos.

A medicina, como representante e mantenedora dos valores patriarcais, sempre terá uma postura conservadora, tanto na expropriação do parto – desde sua entrada na atenção – quanto no afastamento das mães de suas crias, exatamente porque este afeto denuncia e desafia os poderes patriarcais estabelecidos.

Manter essa união “mãebebê” sob máxima proteção e cuidado deveria ser a tarefa mais sagrada de todos os cuidadores, pois que os efeitos desse contato harmonioso perduram por toda a existência, fortalecendo a saúde física e mental dos sujeitos. Infelizmente, nossos próprios medos e fragilidades impedem que este encontro seja o mais suave e tranquilo possível.

Nossa missão enquanto profissionais do parto e da puericultura deve ser a proteção da fisiologia e do contato, fugindo sempre que possível da artificialidade e do afastamento. Para isso é preciso que cada cuidador se permita encantar com a magia de uma mãe amamentando seu filho e repousando ao seu lado com total segurança e liberdade.

Deixe um comentário

Arquivado em Parto

Filhos, quando

Tive filhos muito cedo. Fui pai aos 21 anos, mas sei que o capitalismo não aceita mais estas escolhas. “É cedo demais, precisa terminar os estudos”, dizem. Depois se estabelecer, fazer mestrado, doutorado, viajar e conhecer o mundo. Filhos se tornaram acessórios e perderam a prioridade. Devemos ainda ter filhos? Creio que sim, mas sei que pela primeira vez na história minha opinião pode ser contestada. Porém, para além da decisão de tê-los outra pergunta se impõe: “Ok, mas quando?

Muitos dirão: “Apenas quando tiver maturidade e condições (financeiras) para esse empreendimento“.

Isso só vai acontecer para a classe média bem depois dos 30 anos. Muitos se aproximam perigosamente dos 40 anos, quando os riscos genéticos se associam à natural queda da fertilidade. Assim sendo, do ponto de vista genético, orgânico e fisiológico, a época mais adequada para ter filhos é a terceira década, mas não é a mais escolhida por fatores culturais. Mesmo sendo socialmente mais seguro, ter filhos mais tarde é muito pesado.

Tive meus filhos ao acaso, por descuido, mas creio que se não fosse assim teria logo depois. A paternidade sempre foi um objetivo primordial na minha vida. Hoje percebo que o que à época pareceu “azar” foi, em verdade, muita sorte. Devo muito do que sou ao aprendizado com meus filhos. Tive ainda a chance de ser avô aos 52 anos, e ter tempo e saúde para ajudar na educação dos meus netos. Quando vejo amigos de quase 50 anos encarando a dureza da paternidade – com muito menos energia que eu tive – só posso sentir pena. Não é fácil e demanda muita força e dedicação. Por isso digo que a melhor época para ter filhos nessa sociedade é quando guardamos a energia necessária para uma tarefa de tamanha magnitude.

Aliás, ao dizer que tive filhos “por descuido” ou , “ao acaso” cometo uma simplificação, ou mesmo uma mentira. Essas ações são sempre carregadas de desejo, seja ele inconsciente ou não. Há sempre uma volição escondida sob a tênue camada de racionalidade que nos abriga de medos ancestrais. Excetuando-se os casos de violência, sempre há intenção nesses deslizes. A pulsão de vida não se importa muito com nossa frágil racionalidade. Sua força e potência é necessária para a manutenção da vida e, portanto, não seria essa conquista tão recente forte o suficiente para ameaçá-la.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Domínios

Mais de uma vez escrevi sobre a questão dos “domínios” nos âmbitos familiares, que sempre me pareceram tão importante quanto o desejo real de participação. Mas num universo onde os homens são sempre culpados, como questionar este ponto importante? O caminho mais fácil é sempre o maniqueísmo…

A perspectiva contemporânea que aborda de forma mais equilibrada os espaços de conflito nas tarefas do lar é um sopro de frescor na aridez dos embates acusatórios. Ainda hoje reconheço como padrão a prática de acusar os homens de não participarem das tarefas domésticas e da educação dos filhos. Apesar de ser uma queixa verdadeira, ela deixa de apresentar outras facetas da realidade que são, via de regra, negligenciadas.

Uma das questões pouco abordadas é o que chamo de “domínios”. Eles se referem aos espaços de controle e saber reconhecidos, confinados a um gênero. É esse tipo de controle que faz muitos homens levantarem para ver um barulho estranho na porta dos fundos, abrirem o capô do carro para ver o defeito ou pegarem a chave do carro quando a família vai sair. O mesmo que faz as mulheres decidirem de forma autocrática a comida, as roupas e o tipo de educação dos filhos. São domínios culturalmente construídos dentro do patriarcado, mas que apenas enxergamos quando somos vítimas, não quando estamis na posição de opressores.

Muitos homens – e mulheres – se adaptam a essas construções milenares – por comodismo ou cansaço – mas muitos começam a questionar tais posições. Por que não posso (homem) arrumar – ou escolher – a roupa do meu filho? Por que não posso (mulher) dirigir o carro quando a família sai? Por que não posso (homem) decidir a comida que todos vamos comer? Por que não posso (mulher) trocar o pneu do carro ou fazer tarefas mais pesadas da casa?

Para haver equilíbrio é necessário que todos aceitem as mudanças e concordem com as inevitáveis concessões. Homens precisam ter o direito de participar dessas decisões sem o martírio das críticas e sem o peso do escárnio de suas companheiras que se sentem invadidas em seus domínios. As mulheres também precisam ter o direito de “invadir” as funções historicamente assumidas por homens sem sofrer com o deboche e o desprezo que estes oferecem como resposta ao que sentem como a tomada de um lugar cativo que lhes era destinado.

Os domínios antigos estão paulatinamente ruindo. Creio que o desmanche os limites pode ser celebrado como uma nova era de colaboração. Todavia, para que isso ocorra é preciso que a desconstrução de modelos ancestrais seja um exercício constante para os homens e também para as mulheres.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Ginetes

Rita era uma mulher de 45 anos, bonita, separada e de voz doce. Tinha dois filhos adolescentes e vivia em um belo apartamento num bairro nobre da mesma cidade em que eu morava. Seu casamento com um arquiteto conhecido havia sucumbido há alguns anos, e a história dessa relação eu ainda preciso escrever, antes que a memória venha a me trair. Certamente um enredo de mistério, romance, aventura e tragédia…

Mas não era essa a história a contar. Em um encontro da Igreja Rita conheceu um senhor divorciado que tinha uma idade semelhante à sua. Pai de dois filhos adultos, um casamento desfeito há uns 10 anos, proprietário de terras em uma cidade do interior. Cristão fervoroso, defensor da família e dos bons costumes. Conservador. Era advogado, mas não atuava; vivia tão somente dos proventos que recebia das terras que arrendava para o plantio de arroz.

Começaram a namorar depois de um certo tempo, e a relação parecia boa. Ambos maduros, com filhos crescidos, sem problemas financeiros. Rita era professora estadual, mas além disso ganhava uma polpuda pensão do seu ex-marido. Os filhos de ambos eram quase independentes.

Depois de algumas semanas de namoro formal o namorado lhe faz um convite especial. Precisaria ir à sua cidade no interior para resolver assuntos pendentes relacionados à sua propriedade rural e a convidou para acompanhá-lo. Aproveitaria a ocasião de uma feira agropecuária na cidade para fazer essa visita. As “gineteadas”, os “tiros de laço”, a festa popular e todas estas atividades da cultura do interior poderiam ser divertidas, mesmo para uma mulher cosmopolita como Rita. Ela aceitou.

Partiram no dia combinado para a cidade. Lá encontraram uma festa típica das cidades pequenas, com a elite de agricultores e pecuaristas que dominam a cena e os inúmeros subalternos que tocam o espetáculo. Barraquinhas de comidas típicas, mulheres com vestidos rendados, jovens imitando a estética caubói, música sertaneja por todos os cantos, filas para o banheiro e gente por todo o lado.

Vamos assistir a “gineteada”, disse ele. Sei de uns bons ginetes que vão se apresentar hoje.

Participar de uma gineteada é “cavalear”, ou “cavalgar”. Na prática consiste em permanecer montado no cavalo que, através da dor, é estimulado a saltar, arquear o corpo e dar pinotes. Rita conhecia a prática de filmes e de fotografias, mas nunca havia visto uma de tão perto. Aproximou-se da pequena mureta que separa o público do tablado de areia e serragem que protege os cavaleiros das inevitáveis quedas e ali ficou observando as provas. Ficou vivamente impressionada com a agilidade e destreza dos ginetes e percebeu o quanto seu namorado vibrava com cada corcoveada e a cada manobra executada pelos exímios montadores.

Subitamente percebeu que ao lado uma moça se aproxima do seu namorado e suavemente lhe bate no ombro. Retirando os olhos do espetáculo, ele gira o corpo na direção dela, que se posta logo atrás.

– Oi, está lembrada de mim?, disse ela sorrindo.

Ele pareceu meio desconcertado e sem jeito. Tentava recordar as feições, mas não as situava no tempo e no espaço.  Fazia um esforço que só foi interrompido quando ela mesma lhe disse o nome.

– Claro que me lembro, disse ele constrangido. Como você está? Faz tempo que não lhe vejo. Tudo certo?

A jovem – que teria idade para ser sua filha – apenas lhe devolveu o sorriso e disse:

– Eu estou muito bem. Não se preocupe. Queria apenas que você conhecesse o seu filho.

Dizendo isso ergueu nos braços o menino que carregava pela mão, que não passava de três anos de idade. Aproximou-o do peito, enquanto o namorado de Rita o fitava com certo espanto. Porém, nada disse, e foi ela quem falou:

– Pode ficar tranquilo. Assista seu show. Achei apenas que devia mostrá-lo a você. Adeus e felicidades.

Ele respondeu ao adeus e girou novamente o corpo para o tablado onde os ginetes se esforçavam para manter seus corpos atados ao lombo dos cavalos ariscos e assustados. Depois de alguns instantes, voltou o rosto para Rita, que se mantinha estática e sem conseguir falar.

Olhou-a com um sorriso patético e falou:

– E não é que saiu bonito como o pai?

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Com açúcar com afeto

Ele sentou-se na poltrona à minha frente enquanto escutávamos ao longe a melodia serena da vida, envoltos na bruma matinal e escutando os pássaros alvissareiros.

– Então Ric, quer saber como foi?

– Pode contar

– Diga aí uma droga que já ouviu falar. Qualquer uma.

Minha relação com as drogas sempre foi de aversão e uma certa repulsa. Quando nos anos 90 criei o PAOH – Protocolo de Assistência Obstétrica Humanizada – um simples protocolo de atendimento baseado em premissas simples de acompanhamento ao parto de baixo risco, um dos elementos fundamentais na lista de seis itens era “Uso judicioso e restrito de medicamentos durante o trabalho de parto”. Portanto, minha distância com as drogas incluía tanto as drogas ilegais quanto as legais, posto que ambas possuem efeitos perigosos para a economia orgânica. Entendia eu que a “legalidade” de uma droga não se referia à sua periculosidade ou dano possível, mas a questões contextuais e culturais ligadas ao seu controle e produção. Maconha é ilegal e cachaça é legalizada, mas o álcool tem uma mortalidade milhares de vezes superior à maconha. Portanto, eu sabia o quanto esse valor era volátil na sociedade. As descrições de Freud sobre seu uso de Cocaína no início do século passado são curiosas, enquanto as propagandas com médicos fumando e fazendo publicidade de Camel – aliado ao (agora) estranho patrocínio da indústria do tabaco às instituições médicas – também nos ajudam a entender um pouco mais a complexidade do tema.

Fiquei olhando para Bruno com atenção enquanto pensava em uma resposta para seu desafio. Não queria dizer uma droga muito simples para não ser considerado ingênuo, mas também nenhuma muito pesada para não ser ofensivo. Ele continuava parado à minha frente com um sorriso instigante. Era alto, levemente grisalho e ostentava uma barba bem cortada.

– Cocaína, disse eu finalmente.

Com um sorriso respondeu

– Muito, doutor. E por muitos anos. Diga outra.

– Maconha? Heroína? Metanfetamina? Crack?

A todas elas me respondia afirmativamente, e para cada uma acrescentava outras em sua longa lista de drogas experimentadas. Todas tinham sua história, as quais descrevia como quem relata as lembranças de uma amante do passado: um início fulgurante, a lua-de-mel, a convivência conturbada e o longo martírio de um final catastrófico.

Levantou-se do assento em que estava e foi até a estante logo atrás. Trouxe um grosso livro de capa dura em que se lia na capa “O Pão dos Deuses”, de Terence de McKeena, uma espécie de enciclopédia das drogas. Folheei algumas páginas lustrosas ricamente ilustradas com fotos de plantas, equipamentos, cigarros artesanais, cachimbos e seringas.

– Estou limpo há três anos, doutor. Nada mesmo. Fiz essa promessa a ela.

Olhamos ambos para o quarto onde a ação se desenrolava. Ali, sua mulher respirava profundamente enquanto aguardava que suas contrações voltassem. Seu semblante era sereno, no intermezzo melífluo entre duas ondas de contração. Atrás dela a doula massageava suas costas deixando o ambiente com um suave aroma de lavanda. Abraçada a ela a parteira dançava os passos de uma dança tão antiga quanto conhecida. São dois prá lá, dois prá cá. Respire fundo, deixe seu corpo se inundar de energia.

Ficamos escutando por alguns segundos os sons do quarto adjacente enquanto eu fechava o livro de capa dura à minha frente.

– Sabe qual foi a mais difícil de largar?, perguntou

– Nunca tive que largar nenhuma, disse eu, quase envergonhado da minha caretice. Eu diria que o cigarro, pelo menos é o que tantos pacientes me disseram ser tão complexo e difícil.

Ele abriu um sorriso.

– Negativo. Não digo que larguei o cigarro de forma fácil, mas nem se compara à droga mais difícil de todas elas. Abra de novo o livro, está nas primeiras páginas.

Folheei as páginas brilhantes desde o início até o momento em que ele me pediu para parar e apontou para um montinho de grãos brancos.

– Esse aí, doutor. Para mim o açúcar foi a droga mais difícil para me libertar.

Sorri com ele. Subitamente me senti um viciado e pensando comigo “Não, eu paro quando quiser”….

Nossa conversa se manteve entre risadas, comentários sarcásticos e sussurros até o momento que Zeza me chamou.

Completou”, disse ela, com aquele sorriso cheio de satisfação que eu bem conhecia.

– Você pode ir para a banheira agora, se quiser, disse ela para a bela menina que sentia suas últimas dores.

Zeza se posicionou à sua frente, enquanto a doula permanecia ao lado. O marido abraçou-a por trás firmemente, enquanto esperávamos pela chegada do bebê. Seu corpo semissubmerso se contorcia a cada onda contrátil, e depois relaxava no espaço silente entre elas. A tudo eu observava atentamente, mantendo a câmera a postos para gravar o momento da chegada.

Enquanto as velas ao redor da banheira iluminavam o espaço do banheiro minha atenção se concentrava no rosto sereno da mãe e me perdia pensando sobre os significados últimos dessa passagem. Quando vejo o momento inexplicável do apagamento neocortical, o mergulho na “partolândia” e o mistério eterno deste momento para o mundo masculino eu sempre lembro do sorriso de Elisabeth Davis no documentário “Orgasmic Birth” ao dizer “Se lhe dissessem que esta é a maior aventura possível da existência humana e que aqui está o mapa, você recusaria?

Os minutos se sucederam na velocidade dos gemidos enquanto mantivemos o nosso silêncio solene diante do que estava para acontecer. As chamas das velas tremulavam a cada suspiro mais longo, a cada palavra que saía dos lábios da bela menina. Zeza, a postos, finalmente aponta discretamente seu indicador para me mostrar a emergência dos cabelos do bebê. O momento da chegada se aproximava.

Se há um momento nessa cultura em que as máscaras caem, é este. As carapaças pétreas que seguram nossa experiência cotidiana se desfazem diante da explosão de emoções e significados que emergem durante o nascimento. Sei que nada será como antes, amanhã…

O momento tão esperado se aproximava e eu podia sentir na pele o silêncio de Bruno. Não havia um som, uma palavra, apenas os músculos retesados de seus braços e o olhar parado sobre o ventre de sua mulher. Abraçado a ela ele aguardava calado o momento decisivo.

Zeza virou seu olhar para mim e eu percebi o sinal. Na próxima contração ele viria. O silêncio se fez ainda mais ruidoso e só foi interrompido com o grito primal, seguido do som das mãos de Zeza retirando o bebê da água e colocando-o de frente para o sorriso de êxtase de sua mãe. Registrei o momento mágico com minhas mãos trêmulas, firmes o suficiente para não estragar a imagem. Em mais um momento e o bebê silenciosamente se aninhava no colo da mãe.

Foi então que o silêncio da cena foi novamente interrompido. Como a erupção de um vulcão, Bruno gritou com o máximo de seus pulmões. Gritou não como um grito de vitória, ou de consagração, mas como algo muito mais profundo e inquietante. E sobre seu grito sobreveio outro, e mais outro e depois outro.

Zeza olhou para mim com alguma preocupação. A conversa anterior sobre as drogas me deixou preocupado, confesso. E se ele estivesse entrando em uma espécie de surto? E se ele se descontrolasse? E se algo ocorresse que colocasse a todos – em especial ele mesmo – em risco?

Olhei para Zeza e a doula e nossos olhares mudos tinham o mesmo sentido: era melhor tirá-lo da cena até que se acalmasse. Foi então que eu lhe fiz um convite irrecusável:

– Bruno, quem sabe deixamos as mulheres com essa parte e vamos tomar um café na cozinha?

Apelei para o meu vício. Talvez assim, assumindo diante dele uma parceria no universo das adições, ele se sentisse compelido a me acompanhar.

– Claro, disse ele. Eu passo um café para nós.

Colocou-se de pé, e secou o corpo com a toalha pendurada. Foi até seu quarto e rapidamente trocou a bermuda que usava. Entrou comigo na cozinha, mas não conseguia controlar-se diante das emoções que havia presenciado.

– Ric, foi muito demais. Foi algo espetacular. Foi mágico.

Colocava as mãos à frente do rosto e caminhava inquieto de um lado para o outro da cozinha, e seus passos se deixavam acompanhar pelo chiado da chaleira. O aroma do café em pó invadiu o recinto enquanto ele continuava a falar.

– Tudo Ric, não apenas o momento da chegada do bebê. Não somente o êxtase, mas tudo que o precedeu. Não se trata de valorizar o prazer de receber sua filha nos braços, mas poder valorizar a completude da experiência humana. O medo, a angústia, a espera, a tensão, a ansiedade pelo momento de sentir na pele a maciez de um bebê. Todas essas emoções fazem parte do pacote, e seu valor é imenso exatamente por isso. Como podem escolher conscientemente trocar esta rica experiência por nascimentos mediados pela tecnologia, onde as emoções são engarrafadas, pasteurizadas, controladas por máquinas e onde recebemos apenas a parte final, sem que o ciclo todo tenha se completado?

Tomou um pouco de fôlego, respirou profundamente e fixou o olhar em algum ponto do infinito cósmico. Olhou mais uma vez para mim e disse:

– Ric, eu usei todas as drogas do mundo, tive todas as sensações que a vida pode oferecer. Participei das viagens lisérgicas mais doidas e mais bizarras. Andei pelo vale das sombras e consegui milagrosamente chegar até aqui. Por isso mesmo posso te afirmar que nenhuma sensação chega sequer perto desta que acabo de sentir. Nenhuma experiência supera esta e nenhum barato consegue ultrapassar esta emoção.

Nenhuma descrição de uma experiência sensorial poderia ser mais clara sobre a temática do gozo e do prazer, e só alguém que esteve por tantos anos envolvido no mundo da adição química poderia dar uma explicação tão rica quanto esta.

Verteu a água fumegante sobre o coador repleto e serviu uma xícara para mim. Ofereceu açúcar e eu menti que não queria. Ele sorriu da minha falsidade.

Enquanto ele se preparava para sentar na mesma poltrona em que estivera nas horas que antecederam, algo milagroso ocorreu.

O telefone tocou.

Bruno titubeou por instantes antes de atender. O bebê não tinha sequer 10 minutos de vida, e alguém ligava. O que seria?

– Alô, pois não?

Eu o acompanhava com o olhar, tentando adivinhar as palavras que só ele ouvia. Não era preciso mais do que metade das falas para saber do que se tratava.

– Sim, pai, está tudo bem. A bebê acabou de nascer. Não, estamos mesmo em casa, mas depois eu explico. Não se preocupe estamos muito bem. Não, não pesamos ainda, mas ela é linda e saudável. Assim que soubermos mais detalhes vamos informar. Ela está com a enfermeira e sua auxiliar aprendendo a mamar. Amanhã vocês podem vir aqui fazer uma visita. Claro pai, muito obrigado. Sim, eu sei…. claro que eu sempre soube.

Sua voz ficou mais pesada, mais grave. Ele estava visivelmente emocionado. Pensei em me levantar e deixa-lo a sós falando com o pai, mas não houve tempo para isso.

– Agora eu também sou pai, e talvez eu possa finalmente entendê-lo. Um beijo pai e obrigado.

Ao longe escutamos o choro forte da bebê. Tomei um gole de café amargo e me diverti com o vapor que pulava da xícara para embaçar meus óculos. Melhor assim; prefiro que não vejam um velho obstetra chorar.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Parto

Pai, sempre

Pai é pai;
mãe é mãe.
Pai não é amigo.
Amigo se briga e até podemos esquecer; pai, entretanto, é pra sempre, até depois que morre. (…) não esquecendo a vital importância do pai, esse novo integrante da família, que chegou para tornar mais doce e terna a função difícil e complexa de mostrar aos pequenos os limites do mundo.”

Ziegfried Blatt, “Liczne funkcje rodzicielstwa” (As inúmeras funções da paternidade). Ed Jutrzenka, pag 135

“Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa que a necessidade de sentir-se protegido por um pai”. (Sigmund Freud)

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Pensamentos

Para um pai que nasce

paternidade

A paternidade é um mergulho no abismo profundo das perguntas deixadas sem resposta. O fazer-se pai é reconstruir-se a partir das próprias fragilidades; é reencontrar-se na criança que acalentamos, buscando nela a solução para as dúvidas que deixamos para trás. Para além das respostas que perseguimos, tornar-se pai permite a um homem a dádiva do perdão, pois lhe possibilita perdoar o próprio pai nas inexoráveis falhas que a condição humana lhe impôs. Sem a paternidade, e o necessário sofrimento que ela nos obriga percorrer, perdemos esta grande oportunidade, ficando à mercê de vivências outras, fora do escopo de nossa própria experiência de vida. Por sua força e relevância, não há como negar que poucas experiências humanas podem ser mais criativas e potencialmente transformadoras. Depois de 34 anos assistindo partos e nascimentos é impossível não se admirar com o impacto que este evento provoca nos pais que, junto com seus filhos, nascem durante a explosão de emoções que circundam o parto.

Ao mesmo tempo em que produziu notáveis melhorias na sobrevida de mães e bebês, em especial na assistência aos casos de risco, o paradigma tecnocrático de assistência ao nascimento – por sua ênfase na técnica e na intervenção em detrimento do apoio e do cuidado – objetualiza e coisifica as gestantes, encarando-as como bombas-relógio prestes a explodir, tornando-se assim uma das maiores ameaças contemporâneas ao parto normal. O Brasil tornou-se um exemplo internacional de má prática  obstétrica, onde o abuso e o exagero na prática de cesarianas – além de inúmeras outras violências obstétricas – mostram o risco de mantermos a hegemonia deste modelo de assistência. É imperativo que se faça uma crítica severa ao paradigma médico de atenção ao parto normal para não perdermos por completo a conexão com um evento tão importante na construção da condição humana.

“Somos o que somos porque nascemos de maneira bizarra e incomum”. O nascimento humano, único em sua forma e consequências, determina as características especiais que nos distinguem. Da altricialidade de nossos rebentos – a extremada desproteção dos recém nascidos – originada por sua prematuridade neuronal, surge a “estranha anomalia da ordem cósmica, fissura na tessitura biológica e ato falho da obra divina: o amor“. Segundo Freud “se amor existe ele é o sentimento que une uma mãe ao seu bebê, fonte de onde todos os outros amores serão derivados”.

Existe ainda uma outra maneira de exercitar a paternidade de forma desafiadora e criativa: tornar-se pai de uma menina. Dos meninos pensamos tudo saber, tudo entender; afinal eles cursam o  caminho que nossos pés já andaram e nossos olhos já viram; as pedras sobre as quais tropeçam seus delicados pezinhos também estavam lá quando as trilhamos há poucas décadas. Deles queremos que se pareçam conosco, que sigam nossos passos, que torçam pelo mesmo time e que honrem nosso nome. Mas o que podemos esperar delas, que nascem como suas mães, que nos parecem tão estranhas e sempre nos confundem com sua especial visão do mundo?

O nascimento de uma filha nos coloca diante de um desafio duplo: a obrigação de enfrentar as dúvidas e temores da paternidade acrescentados ao desafio de entender o “feminino em botão”, a flor delicada e firme que desabrocha em frente aos nossos olhos atônitos e que nos oferece o ensinamento contundente da diferença. Como cuidar do desenvolvimento de seres que sempre nos pareceram enigmáticas, misteriosas e incompreensíveis? Se por um lado esta tarefa é grandiosa, também o é aterrorizante. Sabemos das marcas que a imagem de um pai produz na construção que essa menina fará de sua própria sexualidade e vida madura. Um pai será a matriz de valores e atitudes por sobre os quais ela vai estabelecer suas parcerias. A paternidade , assim estabelecida, vai impor ao novo pai uma revisão profunda de suas atitudes com relação às mulheres, na  medida em que deixamos de ser sujeitos de nós mesmos e passamos a ser espelhos onde aqueles pequenos olhos sequiosos de aprendizado procuram ensinamentos e exemplos de vida.

Apesar das angústias e do temor diante do gigantismo da tarefa, ainda assim poucas experiências na vida podem se equiparar ao desafio de construir-se pai. As cenas que acompanhei nas ultimas três décadas, onde sisudos homens vertiam lágrimas da mais profunda e genuína emoção ao levarem pela primeira vez seus filhos aos braços, formam um caleidoscópio de imagens que jamais serão apagadas da parede da memória. Ali, na escuridão cálida de uma cena de nascimento, entre sussurros, gemidos, medos e expectativas, se escondem os segredos mais profundos que regem a nossa esperança de imortalidade.

Ricardo Jones

Obstetra

Pai de Lucas e Bebel, avô de Oliver, Henry, Ava, Eric e Inácio. (Theo, in memoriam)

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Dez simples razões para ser pai

Olizinho

Minhas 10 razões pessoais para acreditar que a paternidade é uma bênção, mesmo quando chega de forma inesperada…

  1. Um filho lhe dá a garantia que a linha da vida que lhe foi confiada não terminou em você.
  2. Um filho lhe dá a esperança de que vai fazer o que você não foi capaz de realizar ou conquistar.
  3. Um filho lhe oferece a oportunidade de entender e perdoar seu próprio pai.
  4. Um filho lhe ajuda a olhar o mundo por outra perspectiva, muito mais ampla e complexa.
  5. Um filho lhe ajuda a rever pontos obscuros da sua própria infância e colocá-los em perspectiva.
  6. Uma filha (aqui o gênero faz sentido) lhe ensina muito mais sobre a alma feminina do que qualquer outra mulher da sua vida, mesmo sua mãe, irmã ou sua esposa.
  7. Um filho é um pedaço de você que lhe será apresentado em capítulos durante décadas, de forma sempre surpreendente.
  8. Um filho é a esperança de que sua vida, por pior que tenha sido, terá valido a pena.
  9. Um filho é alguém que lhe faz acreditar que o mundo faz sentido.
  10. Um filho lhe ajuda a suportar a vida quando a desilusão chegar.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Protegido: Pai

Este conteúdo é protegido por senha. Para visualizá-lo, digite a senha abaixo.

Digite sua senha para ver os comentários.

Arquivado em Contos, Ficção