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Mortes

Escutei uma fala da Marilena Chauí que dizia algo que penso há muito tempo. Citando Freud, ela lembrava das relações entre dois fenômenos sociais e clínicos: a emergência do narcisismo das redes sociais e a depressão. Dizia ela que estes fenômenos são indissociáveis. Por isso é tão comum atualmente vermos ao lado de tanta exibição potencializada pelas redes sociais um contingente crescente de pessoas sofrendo o drama da depressão.

O narcisismo exige a atenção total, o sequestro do olhar alheio através da exibição exaustiva e ininterrupta do sujeito. Corpos, carros, casas, comidas, lugares, amores, tudo serve para garantir a captura da atenção pelo narcisista. O grande problema é que não existe satisfação para Narciso; a atenção e o amor a ele oferecidos jamais serão suficientes. Quanto mais recebe, mais precisa; o desejo de atenção não tem fim, nem sossego. Esse sujeito, cuja atenção recebida é o alimento que o sustenta, em algum momento deixa de recebê-la na quantidade costumeira, e é nesse momento que aparece a sombra da depressão. Da mesma forma como ocorre em um viciado, a falta do olhar de admiração lhe produz dor e desespero. A depressão é a resposta mais frequente.

Quantos artistas multimilionários sucumbiram à depressão e seus atalhos, como o álcool e as drogas? Quantos degeneraram através da dualidade “narcisismo – depressão”? Ainda mais grave, quantos tiveram suas vidas abreviadas pela decisão autocida em meio a um severo quadro depressivo?

Isso me faz pensar sobre uma das lições do meu pai: viver é preparar-se para a morte, mesmo quando ela chega ainda em vida. Sim, durante nossa existência passamos por várias mortes, e para elas faz-se necessário estar preparado. Ao chegar à juventude morre em nós a infância; depois da chegada dos filhos matamos a juventude para alcançar a vida madura. A chegada da velhice traz a morte das ilusões, e com a falta destas podemos finalmente vislumbrar a sabedoria. Por certo que sempre sobra um pouco de infância para a vida inteira e mesmo a maturidade e a velhice não eliminam todas as ilusões. Entretanto, elas deixam de ser as protagonistas quando as ultrapassamos. Nossa vida é marcada pela sucessão de perdas que nos atingem, e por elas somos constituídos.

Somos passageiros fugazes da vida, e só a morte física pode nos libertar da opressão da matéria. Viver é aceitar o necessário esquecimento a que, por fim, seremos submetidos. Cabe a nós plantarmos as sementes de nossas ideias, semear amores e deixar marcas de nossa breve passagem para que a elas seja possível sobreviver ao nosso necessário desaparecimento. Que se mantenham o nosso afeto, nossas palavras e nossas ideias.

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Memórias do Homem de Vidro – 15

Febre

— Nem sou eu que o digo — falou Maximilian com o dedo em riste. — Está nos melhores compêndios atualizados de pediatria. E da pediatria mais alopática e conservadora possível: não existe justificativa para baixar a febre de uma criança durante um episódio de hipertermia, salvo situações bem específicas e raras. Digo que a febre deve ficar alta mesmo, porque ela tem evidentes efeitos terapêuticos.

— Você está sendo mais uma vez exagerado, Max.

Nadine cruzou os braços e fechou o cenho. Não acreditava nas condutas exage­radamente conservacionistas que Max frequentemente utilizava. Para ela, o uso das evidências científicas era correto, mas até um determinado limite.

— Exagerado? Não creio — continuou meu amigo. — Exagero seria não entender as limitações de uma mãe e condená-la por usar drogas em seu filho. Nisso cer­tamente estaremos de acordo. Nossa cultura é muito sedutora no uso de medica­mentos, e não usá-los depende de uma postura muito corajosa e determinada, que só se sustenta com informação e atualização constantes. A febre (mas pode­ríamos falar da diarreia, dos vômitos, da tosse, das dermatites, etc.) é um dos mais fabulosos mecanismos de defesa elaborados pelo nosso organismo. O Ric, aqui presente, deve lembrar quando juntos tivemos uma aula sobre febre, em um curso de medicina social. Quando confrontados com as características essenciais da febre, pensamos: “A febre é tudo o que um antibiótico gostaria de ser”. Ficamos ambos apaixonados pelos mecanismos fisiológicos de adaptação produzidos pelo processo febril, e ao mesmo tempo chocados com o que a biomedicina mercanti­lista nos fez acreditar, apenas para nos vender remédios a rodo. A febre é um dos mais belos exemplos dos equívocos produzidos pela incompreensão dos proces­sos adaptativos de que a espécie humana é capaz. Hahnemann, pai da homeopa­tia, cunhou uma frase que, pela radicalidade e significação, nunca mais saiu da minha cabeça: “A doença é a outra face da saúde”. Eu costumo sempre dizer que “a doença é o estado alterado do bem estar”. Ficamos “doentes”, alterados, para preservar nossa “saúde”, equilíbrio.

Nadine espichou o olho para mim, em uma atitude conhecida. Queria ver minha reação às palavras de Max, cuja euforia e paixão pareciam transbordar em cada palavra que pronunciava. Este, sem se deixar interromper pela nossa troca de olhares, continuou seu discurso, mantendo seu olhar fixado em Nadine.

— A hipertermia é uma máquina fantástica de modificações orgânicas. A febre aumenta a velocidade dos macrófagos, que são as células de defesa da linhagem branca, aumenta a diapedese, ou seja, a capacidade dos glóbulos brancos de romper a parede dos vasos e atacar os microrganismos na intimidade dos tecidos. Além disso, aumenta a capacidade fagocitária dos leucócitos, que é a habilidade de “comer” bactérias e vírus. Aumenta o metabolismo intensamente para cada grau acima de 37, incrementando a capacidade de defesa pela mobilização do organismo. A febre nos “põe para baixo” produzindo fadiga, cansaço e debilidade, o que é um fenômeno adaptativo dos mais sábios, porque nesses momentos o indivíduo necessita de repouso e resguardo. Se a febre não produzisse isso, quem se protegeria? A temperatura corporal elevada também é importante na destruição de bactérias e vírus e, além disso, sinaliza aos outros animais humanos a pre­sença de uma doença infecto-contagiosa, o que nos auxilia a preservar os que ainda estão sãos. Qual grávida não recebe orientações, pelo menos no início da gravidez, de não segurar no colo uma criança febril?

— Muito mais há a falar sobre as maravilhas da febre, mas seria enfadonho, ta­manhas são as suas vantagens para o processo de recuperação da homeostase. Atentem, meus colegas, apenas para esta observação: quanto maior a febre, maior a capacidade de adaptação presente e maior a energia do indivíduo. É por essa razão que principalmente crianças pequenas fazem febres altas, e o uso da expressão “fazem” é proposital, porque somos ativos em relação a ela, porque a sua energia vital é muito forte e poderosa.

A tudo eu ouvia em silêncio. Maximilian dominava a todos com sua emoção e seu conhecimento. Era todo paixão e veemência. Nadine, mesmo quando discordava, pedia para que Max lhe desse a sua opinião, porque ninguém escutava Max sem se contaminar pelo seu entusiasmo. Quando falava, agitava os braços, fazia mími­cas, representava, modificava a voz para se adaptar ao personagem que imitava. Eu sempre fui seu fã número um. Pensava que Max era uma daquelas pessoas absolutamente indispensáveis em qualquer ramo do conhecimento, porque unia em um só indivíduo a paixão, o saber e o conhecimento apurado. Tinha energia para combater um sistema em que não acreditava, mas ao mesmo tempo era pró­digo em apresentar as comprovações científicas do que afirmava. Acreditava no conhecimento como elemento de libertação e tinha a medicina como meio de levar consolo diante das agruras de uma vida breve e sofrida, sem com isso considerar-se um emissário divino infenso aos erros e dúvidas. Resolvi romper meu silêncio e ilustrar a descrição que Max nos oferecia.

— Eu tenho uma história interessante sobre febres, e acredito que você gostará dela, Max. Acho que você, Nadine, deverá ter um pouco de paciência. Sei que não é o modelo com o qual você lida, mas escute com atenção, pois talvez isso possa ajudá-la a compreender melhor a minha forma de pensar o adoecimento. É uma breve história sobre as febres e seus significados ocultos.

*   *   *

Há alguns anos, eu morava ao lado da casa em que vivia um casal de russos: Baba, “mamãe”, e Deda, “papai”. Gostavam de ser chamados pelos seus apelidos familiares em russo, até mesmo pelos vizinhos. Ambos fugiram de Stalin, che­gando ao nosso país com seus filhos pequenos após o término da segunda guerra, em 1949. Perderam muitos parentes vitimados pela fome e pelo frio, re­sultado da própria guerra na Rússia. Durante a fuga, seu segundo filho, de pouco mais de dois anos, pereceu de pneumonia durante uma evasão. Ambos tiveram uma vida sofrida e cheia de percalços, mas encontraram no Brasil um lugar tran­quilo em que puderam criar seus três filhos. Deda era um veterinário de renome em seu país, e acabou se tornando um dos introdutores das técnicas de insemina­ção artificial de gado no Brasil.

Pois no meio de uma madrugada sou chamado por Baba para atender seu “Peter” — Deda. Disse-me que ele estava estranho, parado, com o rosto vermelho e “de­primido”. Ele já estava com mais de 80 anos, mas era um homem forte e vigoroso. Lá chegando encontrei Deda deitado na cama. Apresentava o rosto avermelhado e tinha a respiração alterada. Perguntei-lhe o que havia ocorrido e ele respondeu “Nada. Apenas estou com um pouco de falta de ar e me sentindo fraco”.

— Ten tosse? Vômito? Dor de barriga? — indaguei enquanto avaliava seu pulso

A essas perguntas me respondeu negativamente. Baba, por trás dele, fez um mu­xoxo. Olhou-me firmemente, preocupando-se em que o marido não percebesse seus sinais para mim. Fazia “não” com as mãos e apontava para o marido, fe­chando o punho contra o peito, como se estivesse a bombear algo. Entendi que ela estava me dizendo que a emergência do quadro em seu esposo tinha origens emocionais. Verifiquei a temperatura: 40 ºC. Febre alta, que em homeopatia consideramos os episódios febris acima de 39,5 ºC. Como pode um homem de 80 anos produzir tamanha temperatura? Lembrei-me das aulas do curso de homeopatia: “Fique calmo. Este homem está mobilizado”. Ele estava usando toda sua capacidade curativa para buscar a nor­malização do organismo. Era importante respeitar a forma específica como um indivíduo escolhe seu caminho.Pedi que sentasse para que eu escutasse seu coração e pulmões. O coração es­tava acelerado, mas isso era obra da febre. Nada mais de importante ou significa­tivo na ausculta cardíaca. Os pulmões: consolidação em base de pulmão esquerdo. Crepitações finas. Diag­nóstico: pneumonia em base pulmonar esquerda. Temperatura, ausculta pulmonar positiva. Nada mais havia a diagnosticar. Uma pneumonia clássica.

— O que tenho, Ricardino? — perguntou Deda com o seu indefectível sotaque russo.

E agora? Digo o que ele tem de supetão? Peço que vá a um hospital para exa­mes, submetendo-o às rotinas escravizantes e coisificantes das emergências hos­pitalares? Se eu lhe disser o diagnóstico, não vou assustá-lo mais ainda? Por ou­tro lado, posso omitir a verdade?

— Deda — perguntei eu. — Tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. São im­portantes para que eu possa entender o que o levou a desenvolver esse quadro febril. Por que o senhor ficou assim? O que aconteceu?

Ele pareceu momentaneamente desconcertado. Não sabia o que dizer. Fez um cara de desentendido, mas foi interrompido por Baba.

— Deda, meu amor. Fale para o Ricardo. Conte do álbum de fotografias.

Seu rosto então se modificou. Ele agora estava sério, taciturno, e as sobrancelhas curvaram-se para baixo. Não era mais possível dissimular os conteúdos afetivos escondidos por detrás do sintoma.

— Fale Deda — insistiu Baba. — Conte ao doutor porque você ficou assim.

Ele começou então a explicar o porquê do seu estado.

— Eu estava limpando a biblioteca, Ricardino. Estava retirando a poeira de antigos livros de veterinária quando encontrei um velho álbum de fotografias da família. Ali estavam as fotos antigas dos meus tios, pais, irmãos e sobrinhos.

Começou a chorar. Posso imaginar o que a visualização de familiares que ficaram perdidos em um passado tão remoto, separados por guerras e oceanos, poderia produzir em um velho sobrevivente de tantas atrocidades.

— Continue Deda — disse eu.

— Pois, enquanto eu folheava as páginas do álbum, olhei para o relógio da biblio­teca que mostrava ser hoje o dia 30. Pois foi exatamente em um dia 30 que o meu genro morreu em um estúpido acidente de automóvel. Ricardino, todas as pes­soas do álbum estavam mortas, até o meu genro, que morreu ainda muito jovem.

Agora estava chorando copiosamente, abraçado pela sua companheira de lutas, alegrias e tristezas.

— E qual foi seu sentimento, Deda? O que você pensou vendo as pessoas que um dia amou naquele álbum, todas já tendo passado para a outra vida? O que sentiu?

Ele parou um pouco para pensar, mas depois me olhou no fundo dos olhos e disse:

— Medo, Ricardino. Muito medo. Muito medo, medo, medo.

Abraçou-se a Baba e continuou a chorar como criança. Esta me lançou um gesto de interrupção, dizendo que ele estava no seu limite. Deda era um homem senti­mental, marcado pelas dores, traumatizado pelas tragédias. Olhou as imagens de morte e saudade estampadas no velho álbum e reconheceu que sua hora um dia chegaria. Pensou na própria morte e no fato de, talvez, deixar Baba sozinha, que por décadas o amparou e auxiliou. Temeu a morte porque percebeu que, por mais que a houvesse enganado nas fugas, no frio, na fome e no próprio pelotão de fu­zilamento que um dia enfrentara, fatalmente ela ainda seria a vencedora. Dela não há escapatória, e as fotos antigas e amareladas de familiares que já se foram es­tavam a lhe mostrar a infalibilidade de seus desígnios. Era a peça que faltava ao interrogatório: a causalidade. A causa emocional pro­funda estava escondida. Poderíamos ter encerrado o encontro médico nas triviali­dades do diagnóstico somático, mas preferimos, tal qual escafandristas, perscrutar as profundezas escuras das motivações inconscientes. Nada mais complexo, po­rém nada mais revelador. O medo de atingir tais profundidades é que nos faz ad­mitir uma medicina tão superficial como a que lidamos na contemporaneidade. A questão é que, de forma espelhar, adentrar a intimidade de um paciente nos faz enfrentar nossas próprias falibilidades e limitações. Quem quer bancar o mergu­lhador de inconsciências em um mundo de rasas e ilusórias aparências?

Nossa medicina faz tal qual a história do homem que perdeu sua chave. Procu­rando insistentemente por ela, acaba esbarrando em um amigo, que se oferece para ajudá-lo. Passada mais uma hora de procura inútil, o desesperançado amigo lhe pergunta: “Tem certeza de que perdeu a chave aqui, embaixo do poste de luz?”. O dono da chave então responde: “Não, eu não perdi minha chave aqui! Perdi lá embaixo na rua, mas lá está tão escuro que resolvi procurar cá em cima, onde está mais claro”.

Fazemos com os sintomas emocionais e psicológicos dos nossos pacientes o mesmo que o protagonista da historieta faz com o breu que esconde sua chave. Fugimos da escuridão das incertezas e das dores profundamente escondidas, porque elas nos amedrontam e afugentam. Preferimos a claridade ilusória de exames laboratoriais e sinais clínicos manifestos aos sentidos. Mesmo sabendo da importância dessas características somáticas na elucidação dos mistérios di­agnósticos, é certo que elas representam apenas a ponta do iceberg que constitui o sofrimento construído pelos pacientes. A humildade de encarar um universo re­côndito dentro de cada ser que sofre é a principal ferramenta para se encontrar uma forma mais completa e abrangente de auxílio. Somente munindo-se da cora­gem fundamental para encarar a escuridão dos nossos sentimentos é que pode­remos, também, ajudar a quem nos solicita assistência e conforto.

Estava feito o diagnóstico, e o tema essencial do quadro era o medo. Crise de medo, febre alta, pele quente e seca, consolidação pulmonar em base esquerda, sede, aparecimento abrupto da sintomatologia. Um remédio brotava, dentre muitos que eram sugeridos: Aconitum napellus. Falei com Baba e perguntei se devia lhe dizer exatamente o que tinha. Ela res­pondeu que, se fosse possível, seria preferível omitir a expressão “pneumonia”, para não deixá-lo ainda mais atemorizado. Concordei com a ideia, mas expliquei que lhe diria exatamente o que tinha, procurando não amedrontá-lo mais ainda com essa palavra.

— Deda — disse eu de forma pausada. — Há uma infecção na base do seu pul­mão esquerdo. Você está com febre alta, mas não há justificativa para diminuí-la. Ela está cumprindo uma função importante no seu sistema de adaptação e defesa. Prefiro que ela se mantenha como está, ok? Estou lhe receitando um medica­mento homeopático que o senhor vai tomar de duas em duas horas. A febre ainda vai continuar mais um pouco, mas quero que o senhor comece agora a medica­ção, por isso eu lhe deixo os glóbulos que trouxe na minha botica. Combinado?

Ele concordou. Mexeu com a cabeça afirmativamente sem dizer palavra alguma. Ainda estava afetado pelas emoções. Baba passava a mão em sua alva cabeça, e lhe dizia palavras carinhosas em russo. Levantei-me e, quando estava para sair, ele ainda me disse:

Ricardino, eu vou ficar bom dessa pneumonia, não é?

Tive que rir. Não adiantaram os meus truques. O velho veterinário não ia se deixar enganar dessa forma. Era idoso, mas estava longe de ser bobo.

— Não, Deda — disse eu sem conter o sorriso. — Não é dessa vez que vão levá-lo.

Voltei à sua casa naquela mesma manhã. Encontrei Deda ainda abatido, mas sentado na mesa da cozinha e tomando café. Escutei seu pulmão e parecia estar a mesma coisa, mas o ânimo havia voltado parcialmente e a febre não havia mais se manifestado.

— Como está? — perguntei.

— Muito melhor — disse ele sorrindo.

No outro dia, o pulmão estava limpo, pouco mais de 24 horas depois. Nem um sinal de secreção ou ruídos estranhos. A febre acabara, porque já havia cumprido seu destino, pensei eu. Mesmo estando ainda fraco, estava lúcido, ativo, alegre e sem sintomas preocupantes. Ok, Deda, pensei eu. Você a enganou mais uma vez. Baba me lançou um sorriso de gratidão e Deda me deu um abraço à moda russa, com bastante força e fortes batidas nas costas.

*   *   *

Nadine manteve-se séria durante a minha breve história, mas percebi que, mesmo com algumas discordâncias, ela acreditava na possibilidade de que o psiquismo dos pacientes tivesse influência decisiva no aparecimento de sintomatologia, mesmo que complexa e de difícil interpretação. Nadine aos poucos começava a lidar com a questão da “psicossomática”, termo que Max deplorava — porque divi­dia “psique” e “soma”, que para ele eram indissociáveis — mas que para mim so­ava como o reconhecimento da mútua influência entre os aspectos psicológicos e fisiológicos manifestos pela energia vital em um determinado indivíduo.

Max acompanhou a história de longe, até porque já a conhecia, mas me lançou um sorriso assim que ela terminou.

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Nunca mais

Há muitos anos uma paciente me contou que, algum tempo após se casar, viu seu marido desaparecer por várias horas. Quando confrontado, a explicação que deu de onde estivera não foi muito convincente. Uma amiga sua havia desaparecido na mesma hora, com uma explicação igualmente frágil, e ela imediatamente juntou as histórias. Na sua cabeça, mesmo que ambos negassem, algo havia ocorrido. Ela decretou o fim do seu casamento e assim o fez. Anos mais tarde, quando perguntei a ela o quanto de certeza tinha sobre aquele evento, e se considerava que realmente houve um encontro amoroso, ela me deu uma resposta muito significativa.

–  Não sei e não importa; hoje tenho certeza de que este fato não foi decisivo. O casamento havia terminado meses antes, e eu apenas buscava uma boa desculpa para dar fim àquela relação. Aquele fato – e só agora tenho essa clareza – serviu de forma oportuna para este fim. Mas foram necessários muitos anos para reconhecer essa verdade.

– Por que, então, seu casamento havia acabado? Se é que você sabe….

Ela suspirou e tentou colocar o sentimento em palavras.

–  A admiração se foi. Eu creio que o amor se sustenta por cuidado e admiração. Existe amor quando admiramos algo no outro: coragem, inteligência, beleza física, posição social, etc, algo que nos faz reconhecer uma virtude. Amar também é um compromisso de cuidado. “Quem ama cuida”, sabe? Eu deixei de admirá-lo porque ele não pareceu ter qualquer conexão com meu filho, nosso filho, e isso foi determinante. Sua distância e seu desinteresse mancharam a visão que tinha dele; estas falhas secaram a fonte de admiração que tive por tantos anos. Não houve nenhuma briga, nenhuma voz se levantou, nenhuma raiva; apenas uma pequena vela se apagou em meu coração, deixando tudo escuro.

Colocou as mãos nos joelhos e baixou os olhos para continuar

–  Hoje eu penso naquele fato mal explicado como um alivio; eu finalmente poderia dar corpo a um sentimento etéreo, diáfano, inexplicável e sujetivo. Durante muito tempo eu tive medo de confessar a ele minha infelicidade e receber como resposta um cliché desesperador: “Mas o que eu te fiz? Não te falta nada em casa. Eu nunca levantei a mão e nunca te tratei mal. Diga o que eu fiz!!”. Eu não teria nada para responder, pois não haveria como mostrar a ele o vazio que eu carregava no peito.

Eu achei a historia dela muito pedagógica, e a carreguei por muitos anos. Pensava nela sempre que tentavam me explicar a razão por terem rompido com alguém e fiquei convencido que nossos sentimentos são fugidios, enganosos, traiçoeiros e muitas vezes se escondem por detrás de fatos corriqueiros, pois admitir as reais motivações de nossas ações seria insuportável – ou pelo menos embaraçoso. É difícil admitir que nossas escolhas e desistências são por vezes causadas por egoísmo ou oportunismo, e por isso colocamos acontecimentos banais para carregarem por nós essa culpa.

Por outro lado, estas despedidas são sempre muito tristes. Já tive oportunidade de pensar sobre amigos que estiveram muito próximos e que, subitamente, vi desaparecer qualquer admiração. Nessas ocasiões meu sentimento sequer era de raiva, mas de luto, como a me defrontar com um triste adeus. “Não poderei jamais voltar a ser amigo dessa pessoa, nunca mais”. Sei que algumas histórias se modificam através do perdão, mas também sei que os vasos quebrados não retomam sua forma original. Algumas amizades lamento profundamente terem desaparecido do meu horizonte, mas reconheço que estas perdas são inevitáveis e fazem parte da trilha dolorosa e cheia de percalços que constitui nossas vidas.

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Paixões

Vi hoje o post de um sujeito exaltando sua “alegria por não saber nada do que acontecia no contexto do futebol mundial“. Ponderei que sem a paixão não há dor e nem alegria. Sem elas não há gozo, ou como diria minha mãe “joie de vivre“. Não digo que só é possível haver prazer na vida através do futebol, apenas que, para este sujeito, esta porta se encontra fechada; o futebol não será uma via para alcançar as dores e prazeres das grandes vitórias e das dolorosas derrotas. Ou seja, não haverá como viver seus dramas através do teatro deste jogo.

Para mim, que gosto e vivo o futebol, seria o mesmo que, diante da morte abrupta de Gal Costa, e a comoção que se criou a partir do seu anúncio, alguém afirmar “Quanta alegria não saber quem foi esta artista”. Bem, admito que não sofreria a dor que agora nos atinge, mas também teria de renunciar a sua arte e tudo de bom e transcendente que dela brota.

Prefiro a sabedoria do para-choque: “Melhor amar e perder do que jamais sentir o gosto do amor”. Ou melhor ainda, como diria Paul Simon, I am a rock, and a rock feels no pain, and an island never cries. Se quiser abolir a dor terá que, inexoravelmente, desistir do prazer.

Após explicar minha escolha pelo pagamento do pacote completo da vida, com suas dores e sabores, ele achou por bem me bloquear. Bem…. ainda assim prefiro a dor do bloqueio do que a paz de não defender as paixões. 

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Desapego

Eu posso entender as pessoas, como meu pai, que sofreu muito depois que mais de 60 anos de convívio com a minha mãe foram interrompidos pela sua partida. Talvez essa perda fez desgastar muito da sua vontade de permanecer nesse plano. Admiro esse amor que despreza o tempo e a senescência da carne. No caso dos meus pais houve uma união que se manteve firme e forte, algo cada dia mais difícil de encontrar em um mundo de amores fugazes e inconstantes.

Apesar da imagem positiva que sempre guardei dessas uniões, não vejo nelas um valor absoluto. Não há porque acreditar que os casamentos – de qualquer tipo – deveriam continuar para além do tempo em que são úteis e construtivos a ambos. Parece que todos admiram e invejam relações duradouras, mas poucos são aqueles que sabem os martírios que por vezes estão escondidos por trás dessas uniões.

É comum a gente se apiedar do sobrevivente que fica entre nós quando a morte leva o parceiro. A gente diz “coitado” ou “tadinha” porque sabe que a morte de um será devastadora para o outro. Já a morte de alguém que nos é indiferente não nos maltrata nem desanima. Parece que amar é investir na dor de perder.

“Amam-se tanto que o amor deles é sua maior fragilidade”. Como um avarento que, de tão apegado às posses, sofre por antecipação pelo medo de perder sua riqueza. Talvez o segredo esteja mesmo no despojamento. Desapegar-se não apenas das cargas e riquezas materiais, mas também dos afetos, dos ressentimentos, das mágoas e ódios… e dos amores. Quanto mais apego, mais dor

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Nathalie

Nathalie cruzou as mãos sobre os joelhos e manteve seus olhos baixos, fixados em um ponto abaixo do horizonte plúmbeo. Tinha-os tristes e as linhas que os circundam eram marcadas por nuvens densas a cobrir de sombras seu rosto.

– Nada pode preencher este vazio, Nick. Não há sequer palavras que possam ser ditas. Talvez aqui esteja mesmo o “encontro das pontas” que Denny falou. Se não é possível descrever em palavras a emoção fulgurante do nascimento, também a morte só pode ser descrita se for sentida na carne. Nada do que é dito faz sentido diante da ausência, do vão, do nada que nos recobre.

Nick, engoliu em seco e pensou que seu silêncio diria mais do que qualquer frase. Olhou os olhos secos de Nathalie e sentiu nos próprios braços, como uma cãibra, a dor da impotência. Queria acalentar sua amiga, mas não há abraço suficiente para um momento de dor como esse.

Nathalie continuou, depois de suspirar e girar os olhos pelo teto, sem poder fixá-los em nada.

– Sabe o que sinto, Nick? Uma sensação incrível de perda. Como um membro arrancado sem aviso. O desejo de caminhar e perceber que faltam as pernas, ou de afagar quando se foram os braços.

– Mas… Nick balbuciou meias palavras, mas foi interrompido pela fala de Nathalie.

– O que me vem à mente é saber que o que eu mais gostava já não poderei fazer. Não tenho agora comigo as festas, as viagens, o nascimento dos nossos filhos e a chegada dos netos. Essas são luzes brilhantes que iluminaram nosso caminho e jamais as perderei da lembrança. Entretanto, o amor não se sustenta apenas por estes alicerces, mas pelos humildes tijolos que lhe dão forma. Em minha mente agora está um prato da comida que ele mais gostava, o barulho da chave no portão da casa, seus passos arrastados no pequeno hall, sua face cansada e o sorriso que ele colava no rosto quando sentia o cheiro da sua comida predileta.

– Entendo, murmurou Nick

– Que sentido há em viver quando aquele sorriso simples, por um encontro banal, se perde na poeira de uma história comum para sempre?

Nathalie deixou correr uma lágrima tímida enquanto o sol se recolhia e avisava ao relógio o fim de mais um ciclo.

Jeremy S. Woolworth, “Bridge to Nowhere”, Ed Sargasso, pág 135

Jeremy Sean Woolworth é um escritor americano nascido em Rodman, Nova York, em 1935. É descendente de uma família de milionários americanos descendentes de Frank Winfield Woolworth que abriu a gigantesca rede de lojas Woolworth, inaugurada em 1879. Apesar de seu berço dourado, jamais se interessou pelos negócios – que seus irmãos levaram adiante – e se dedicou desde muito cedo à literatura. Fez em seus livros uma excelente descrição da sociedade americana prévia à segunda guerra mundial e, depois dela, com a sombra do macarthismo assombrando a liberdade de expressão que atingiu artistas, jornalistas e escritores – incluindo ele mesmo, o que culminou com sua prisão pela comissão liderada pelo senador Joseph McCarthy. Em “Bridge to Nowhere” descreve o terror entre os círculos literários pela perseguição política liderada por elementos conservadores em pleno surgimento da guerra fria.

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Doulas da Morte

Recebi hoje a ligação de um amigo de mais de 4 décadas que me fez refletir sobre uma questão muito relevante. Gostaria que algumas pessoas pudessem contribuir para estas ideias que me parecem importantes.

Esse amigo perdeu um familiar há poucas semanas vitimada pelo câncer, após uma luta longa e cansativa. Agora volta a se ocupar desta questão com a internação da mãe, também acometida da mesma afecção. Durante os cuidados de hoje com a mãe percebeu que a paciente da cama ao lado era uma jovem mãe em tratamento contra uma neoplasia, e imediatamente lhe veio à mente as inúmeras lembranças do caso de sua irmã que havia há pouco falecido. Ao conversar com essa moça (não tinha mais de 40 anos) percebeu que ela e seu marido estavam passando por fases de adaptação à doença semelhantes àquelas que reconheceu em sua irmã. A empatia com eles foi imediata. Alcançou-lhes alguns livros que dispunha, trouxe palavras de estímulo, abriu espaço para reflexão e ofereceu seu tempo para ajudar, se eles assim o desejassem.

Meu amigo ainda tinha coladas, na parede da memória recente, as imagens das lutas e dilemas pelos quais passou nos últimos anos no enfrentamento da inevitabilidade da morte.

Foi então que se lembrou de mim e resolveu ligar. Disse ele:

“Querido amigo, acompanho sua luta pelo parto humanizado e, em especial, pelo modelo das doulas. Pelo que sei elas são mulheres (grande maioria) que ajudam outras mulheres no processo de passagem, um rito milenar que as transforma de mulheres em mães através da gravidez e do momento mágico do parto. Parece mesmo que o humano, diante das suas passagens inevitáveis, carece do suporte carinhoso a lhe minorar as dores e agruras do processo. Por isso queria lhe perguntar algo que me parece relevante no meu atual estágio de vida”.

Nesse momento eu já intuía o que estava por ouvir, e meu coração já se encontrava em sintonia e concordância com sua iniciativa. Ele continuou:

“Se é verdade o que os estudos nos falam sobre a eficiência das doulas na passagem do parto, por que não seria possível admitir que o mesmo principio fosse positivo se aplicado em outra “passagem”, a morte, o desencarne, a fronteira final? Não seria interessante criar uma “doula para a morte”? Não seria interessante capacitar pessoas comuns que pudessem ser um auxílio NÃO técnico, não psicológico, não médico e nem de enfermagem para dar suporte afetivo, psicológico, espiritual e social àqueles que estão próximos do fim da vida física?”

É claro que a ideia me cativou, e por isso convido os amigos que façam um input de sugestões ou críticas a esta proposta para que possamos saber o que seria possível fazer nesse sentido.

Quem gostaria trabalhar como doula nesta outra ponta da vida?

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