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Velhas paixões

Ficar velho é uma prática constante de surpresa consigo mesmo. Não há um dia que se passe sem que eu me assombre com minha imagem refletida na parede da memória. Olho para minhas ideias da juventude e me surpreendo ao encará-las como quem olha para uma antiga paixão. “Como pude amá-la tanto, exaltá-la com tanta devoção, a ponto de sequer conseguir imaginar viver sem ela?”.

Pois o endurecimento insidioso das articulações tem, como consolo, o alargamento das nossas percepções do mundo. O que outrora nos parecia uma lei, dura e incoercível, passa a ser um conselho, uma diretiva, uma escolha entre tantas. O que nos parecia imperdoável, nos parece apenas humano.

A velhice nos traz o direito de reconsiderar, reavaliar, esquecer e transmutar.

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Jovem de Novo

Existem basicamente dois tipos de filmes de “volta ao passado”. Inobstante o truque de mágica envolvido nessa passagem, em um deles a pessoa retorna à sua persona de garoto ou adolescente e volta ao passado dentro de seu próprio corpo. Espanta-se ao ver sua imagem renovada no espelho, mas mantém a mentalidade e o conhecimento acumulados nos anos passados. Um exemplo clássico é “Young Again”, de 1986, com Keanu Reeves. Por outro lado, existe um outro tipo de filme em que a volta ao passado faz o personagem encontra-se, e até interagir consigo mesmo. Neste caso duas facetas separadas pelo tempo – jovem e maduro – interagem no mesmo espaço. O exemplo mais conhecido é a brilhante trilogia “De Volta ao Futuro”, onde os personagens encontram a si mesmos em outras épocas.

Vou me deter na primeira, porque durante toda a minha vida escutei expressões de remorso sobre acontecimentos ao estilo: “queria voltar no tempo, ter de novo 25 anos e agir diferente diante daquele acontecimento”. Ou ainda: “queria retornar à minha juventude, mas mantendo a cabeça que tenho hoje”. Eu então pergunto: seria bom ter um corpo jovem em uma cabeça madura? Seria bom para a humanidade ter jovens de 25 anos com a maturidade de velhos? Mais ainda: seria suportável para um sujeito ter sua cabeça madura confinada em um corpo jovem?

Digo isso porque penso que existem decisões que só tomamos porque a juventude, a energia e o ímpeto da pouca idade são mais fortes do que o juízo e o bom senso. As coisas – certas e erradas – que fizemos no passado são fruto da energia vital vigorosa que coordenava nossa vida. Boa parte das conquistas da humanidade ocorreram porque a impetuosidade estava à frente da sensatez, o que nos impeliu a aventuras arriscadas mas que acabaram trazendo descobertas novas e progresso. Duvido que um Menelau mais velho teria atacado Troia apenas para retomar sua Helena do troiano Páris. Mas um jovem o faria, mesmo às custas de uma década de guerra.

Muitos, como eu, foram pais muito cedo. Se a minha cabeça à época fosse como hoje é provável que não tivesse filhos tão cedo, ou talvez nem os tivesse. Nossa progressão na vida parece uma disputa entre desejo e razão, onde a razão vai aos poucos tomando o espaço do desejo com o passar do tempo. Entretanto, a razão nos dificulta a decisão de arriscar, e o desenvolvimento da cultura sempre se dá através dos passos mais largos que damos pela coragem de enfrentar os riscos.

Uma juventude artificialmente madura nos levaria à contenção do furor das descobertas, bloquearia a energia das aventuras e estancaria a busca pelas novidades arriscadas. Tomaríamos muito menos decisões incorretas, cometeríamos poucos equívocos e erraríamos bem menos, por certo; todavia, nossa maturidade extemporânea nos impediria de avançar através dos nossos erros e das descobertas que fazemos através deles.

A maturidade na juventude não seria o paraíso de sabedoria que imaginamos. Talvez fosse uma verdadeira tragédia, que condenaria os corpos jovens a uma vida mais segura, porém insossa e previsível. Até porque somos constituídos tanto pelos nossos erros quanto pelos nossos sucessos e acertos.

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Analfabeto

Mia Couto, nesta imagem acima, reconhece a relatividade dos seus saberes quando confrontados com saberes outros, muitos deles completamente desconhecidos pela nossa experiência sensorial cotidiana. Esta é a mesma perspectiva que o biólogo Jared Diamond descreveu em seu livro “Armas, Germes e Aço” sobre sua convivência entre os bosquímanos da Nova Guiné. Conta-nos ele que, em uma específica situação na floresta da Guiné, Jared e um grupo de nativos ficaram presos na floresta, sem comida e sem poderem avançar, pois nativos de um grupo hostil os haviam cercado. A solução foi aguardar a chegada do dia para encontrar uma rota de fuga segura. Atingidos pela fome, resolveram procurar víveres ali mesmo na mata, e assim um dos aborígenes saiu pelos arredores para coletar cogumelos. Armaram suas barracas simples e aguardaram a chegada do nativo com o jantar improvisado.

Em alguns minutos o jovem trouxe uma sacola cheia de cogumelos de vários tamanhos, cores e tipos. Jared, do alto de sua arrogância ocidental, perguntou se ele tinha certeza de que aqueles cogumelos eram comestíveis e não venenosos. Como bom ocidental, tinha apenas o conhecimento superficial de que existem cogumelos alucinógenos e até alguns capazes de produzir intoxicações mortais. Indignado, o nativo, auxiliado pelo tradutor, começou a falar ininterruptamente, e deu uma aula completa sobre os 50 tipos diferentes de cogumelos daquela região, além dos locais onde podem ser encontrados, seu sabor e suas qualidades medicinais.

Foi uma dura lição para o explorador branco e cosmopolita. Naquela região o desengonçado, o inculto e o analfabeto era ele.

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Morte

Tive muita sorte. Meu pai morreu em 2021 depois de 3 meses de hospitalização na luta contra um câncer. Eu sempre soube que meu pai tinha defeitos, como qualquer pessoa, mesmo que seus defeitos pareceriam brinquedos diante dos meus – bem elaborados e profissionais. Apesar disso, quando ele morreu ninguém se aproximou de mim para lembrar de suas falhas e seus erros, e ninguém ficou repetindo ininterruptamente para mim e para meus irmãos algum de seus deslizes. Creio que as pessoas ao meu redor sabiam que, na morte, é preciso respeitar a dor dos que ficam, e preservar o amor e o carinho que nutriam pela alma que se vai. Espero que quando for a minha hora, que não deve tardar, as pessoas tenham a mesma consideração. Publiquem todo o seu ódio apenas quando meu corpo, corroído pelas bactérias e desfeito das fibras que o sustentavam, esteja frio, cego e surdo, preparado para voltar à terra, ao pó e ao esquecimento.

A todas estas pessoas, eu agradeço.

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Doutores precoces

Sobre médicos se formando com 20 anos de idade…

Imaginem pedir conselhos e orientações de vida – sobre sexualidade, relacionamentos, crises vitais, separações – para um garoto de 20 anos de idade, sem filhos, recém começando a namorar e que vive na casa dos pais. Acham que funcionaria? Pois eu digo que essa fantasia de adolescentes “geniais” que com pouca idade acumulam conhecimento pode funcionar com enxadristas e instrumentistas, jamais com clínicos.

A ideia de que os médicos são técnicos que acumulam informações sobre a saúde e sobre tratamentos medicamentosos é um erro grosseiro; para isso tem o Google. Um bom médico se constrói a partir da empatia e da escuta dinâmicas, isentas de preconceito, e ambas são capacidades que se desenvolvem durante décadas de prática. É impossível criar maturidade sem que lentamente se produzam mudanças na alma; a mente humana é incapaz de amadurecer a despeito do tempo.

Fico escandalizado com juízes que julgam seus semelhantes antes dos 30 anos, assim como acho absurdo doutores – aqueles com PhD – dando aulas em universidades com tão pouca idade. Como julgar sem ter conhecido minimamente o espírito da transgressão? Como ensinar sem ter aprendido o que apenas a vivência ensina? A essas pessoas pode sobrar informação técnica – muitos são devoradores de livros – mas lhes falta experiência de vida, cimento fundamental para a construção da sabedoria. Ouso dizer que a decisão sabia de Salomão de dividir uma criança ao meio – para assim descobrir sua verdadeira mãe – não foi tomada por ser ele um magistrado genial, mas por ser velho e conhecer a alma humana, em especial a alma de uma mãe.

Certa vez perguntaram a Jacques Lacan: “Qual a maior virtude de um psicanalista?” e sua resposta foi simples e curta: “a idade”. Por que deveria ser diferente com um clínico que se posta diante de um sujeito sofrendo suas dores físicas e morais?

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Humaniza

escadaria

“Para mudar o mundo é necessário coragem para produzir o enfrentamento necessário, resiliência para suportar os ataques inevitáveis e sabedoria para entender as dores que surgem como elementos de uma trilha natural de crescimento.”

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Velhice

idoso-feliz

“Se queres ser justo com tua existência não reclame da velhice. Se ela te tira o viço e o frescor, a ânsia e o vigor, pelo menos te oferece a sabedoria e, acima de tudo, a paciência para não te angustiares tanto com as injustiças do cotidiano. Olhar o necessário envelhecimento da carne com brandura e condescendência te oportuniza encontrar virtudes na tua alma que a própria consciência desconhecia.”

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A Princesa e as Escolhas

A princesa e seu cavalheiro

Então, a decisão para o galante cavalheiro foi pronunciada com severidade:

“Podes escolher entre estas opções, nobre senhor. Poderás ter a mais bela mulher de dia, para mostrar nas festas, para os visitantes, para os assuntos oficiais e para a corte. Por outro lado, terás uma mulher horrenda em tua cama, pegajosa e malevolente, por quem terás repulsa.

A outra opção também te será complexa: Poderás ter uma mulher horrenda e asquerosa durante o dia, que te envergonhará diante do reino inteiro, comportando-se como uma ogra nas festas, nas recepções e nos encontros com os signatários de outros reinos. Em compensação terás uma mulher linda, graciosa, meiga, sensual e carinhosa a compartilhar contigo os lençóis. Ela afagará teu cabelo, te dará conforto após as batalhas e pronunciará palavras de apoio diante de tuas angústias.

Agora tu tens o poder de escolher qual das duas faces desta maldição preferes: a mulher linda à luz do dia e perante os olhos de teus súditos, mas horrorosa quando o sol desaparece nas montanhas; ou aquela feia na luminosidade das horas mas delicada e desejável quando o véu da noite cobre a todos nós com seu breu.”

O nobre cavaleiro olhou para um ponto fixo no horizonte e depois de poucos instantes de reflexão respondeu:

A mim não cabe decidir sobre a vida de outrem. Se ela será feia ou bonita, desejável ou repugnante é uma decisão que só pode estar nas suas próprias mãos de princesa. A mim cabe apenas o direito de querê-la ou não. Não posso modificá-la diante do meu desejo, minhas ideias e minhas escolhas.

Respirou profundamente, olhou para aqueles que lhe dirigiram a palavra e completou: “Deixem que ela decida como a maldição se fará. Prefiro viver ao lado de uma princesa que seja capaz de decidir sobre sua própria vida.

E quando lhe foi oferecida a oportunidade de escolher como desejava ser perante seu amante o feitiço que nela habitava sumiu. Sim, de forma instantânea ele se foi, pois esta era a chave que a libertaria: o direito restituído de escolher o próprio destino e ser protagonista da própria vida. Liberta das amarras milenares do poder obliterante de uma cultura machista ela agora podia escolher seu caminho, fazer o que bem desejasse, dizer o que lhe viesse à mente, abrir seus lábios e beijar a quem seu desejo apontasse e amar aquele que seu coração abraçasse. Assim, solta, pôde finalmente seguir seu desígnio humano de cumprir com os mais altos fins de sua existência.

Fechando o livro, o velho olhou para os olhos do seu netinho e completou: “E assim ela viveu, feliz para sempre, mas não tenho sequer a certeza de que tenha se casado com o príncipe que a libertou. É possível, claro, mas é igualmente razoável que tenha até ficado só. E digo isso por uma única razão: o que aconteceu depois de cair o feitiço só ocorreu porque ela assim escolheu”.

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