Arquivo da tag: silêncio

Leah

O indicador no canto inferior direito do computador apontava 31 de dezembro, anunciando os estertores do ano que se preparava para findar. Solitária em sua casa, Leah terminara as tarefas de limpeza e se preparava para uma noite solitária na frente da TV. Resolveu como última ação, olhar sua caixa de e-mails. No meio de uma lista infindável de “promoções imperdíveis”, encontrou a mensagem de Karen, uma amiga de muitos anos. Abriu o e-mail e leu a curta mensagem.

Terminou de ler o e-mail e manteve os olhos parados na fissura entre o marco da porta e a parede descascada de seu velho apartamento. Sentada à frente da tela do computador e tendo a janela mais ao lado, podia ver os carros desviando uns dos outros na sua frenética busca por espaço, tentando chegar em casa para a ceia de ano novo. Nada naquela tarde prenunciava o que ocorreria a seguir. A notícia a pegou de surpresa, como uma tempestade de turbulências e tremores que aparece no meio de um dia normal de verão.

“Patrick está morrendo”, dizia o texto curto que ainda jazia parado na tela do computador. Karen obteve informações de seu estado por intermédio de amigos comuns. “Leucemia, estágio final”, continuava o texto, que terminava com um “achei que você gostaria de saber”. Os sentimentos dentro de Leah estavam em ebulição, num profundo contraste com sua face inexpressiva e o olhar que teimava em se manter fixado na pequena rachadura ao lado do marco da janela, como se a procurar algo, escondido ali, que pudesse lhe dizer como deveria reagir.

“Patrick sempre foi um covarde, um traidor”. Era só o que podia pensar. “Não havia em seu ser nenhuma fibra de virtude, nenhuma célula capaz de metabolizar honra e respeito. Todos os humanos recebem, pelo menos uma vez na vida, um teste para provar seu caráter. Patrick teve em suas mãos o grande desafio, e falhou miseravelmente. Diante do júri, sabendo que seu depoimento seria fundamental para estabelecer a verdade, escondeu-se, mentiu com seu silêncio, deixou-se covardemente silenciar, por medo de que a verdade o pudesse comprometer”. Leah ainda tentou fixar em seus olhos, enquanto lhe faziam a pergunta que mudaria o destino dela, mas ele baixou a cabeça diante do seu olhar. “Um covarde, cuja mentira flui por todos os poros”.

Depois de alguns instantes tentando descobrir o que pensar e fazer, abriu sua bolsa e dela retirou o celular. Com rápidos golpes na tela descobriu o nome de seu ex-amigo, que depois desses anos todos ainda dormia na sua lista de números. Ficou olhando para os dígitos à sua frente por alguns momentos até que seu dedo pressionou a combinação numérica. Não era justo que ele morresse sem que fosse possível dizer do desprezo profundo que sentia por ele. Era preciso dizer que seu silêncio, sua mentira muda, sua covardia a haviam marcado por todos esses anos. Queria lhe dizer o quanto de mal havia lhe causado, não apenas com sua separação e os danos financeiros, mas também por sua autoestima destruída, sua descrença na justiça e sua falta de fé na humanidade. Patrick simbolizava o que de pior houvera em sua vida. Uma amizade destroçada pela fraqueza de caráter e a falta de escrúpulos. Uma vida cheia de projetos jogada no lixo, desperdiçada como um papel sujo.

Depois de alguns segundos, ouviu o sinal de chamada. Alguém atendeu do outro lado, uma mulher. Uma namorada, enfermeira, familiar; já não tinha nenhuma importância. Leah disse que era uma “velha amiga” e desejava falar com Patrick. A mulher disse que ele estava muito fraco, mas colocaria o telefone em seu ouvido. Ouviu o som do telefone tocar o ouvido de Patrick e sua voz, mais grave do que se acostumara a ouvir.

– Olá, quem é?

Leah manteve-se em silêncio por instantes, tentando entender seus sentimentos. Do outro lado da linha estava o homem que mais odiou em toda sua vida, um amigo cuja amizade foi degenerada por acontecimentos desastrosos, mas que traiu sua confiança e sua amizade, deixando caírem sobre ela as culpas que, na verdade, lhe pertenciam. Por isso Leah teve a vida destroçada e os seus sonhos sepultados. Era o momento de dizer a ele o quanto de dor ainda carregava, e o quanto a morte prematura que ele enfrentava iluminaria seu espírito. Com voz quase sussurrava, ela respondeu:

– Sou eu, Leah.

Ele ficou em silêncio, talvez chocado pela surpresa. Um tempo depois, respondeu.

– O que deseja Leah?

Agora as lágrimas tomavam conta do seu rosto, correndo livremente pelas suas bochechas rosadas e caindo como uma fina cachoeira de ressentimento sobre o teclado do computador. Suas mãos tremiam e seus dentes crispavam, mas não conseguia dizer palavra alguma. Finalmente, após respirar profundamente, respondeu…

– Apenas desejar um feliz ano novo. Boa sorte.

Não esperou sua resposta e desligou. Colocou as mãos na cabeça e chorou profusamente. Talvez, seu desejo de um ano novo feliz tenha sido a mais sofisticada forma de crueldade que foi capaz de formular. Uma vingança dura e quase tão silenciosa quanto aquela da qual foi vítima.

Edgar Kensington Moore, “Happy New Year” da coletânea “Tales from the Fireplace” (Contos da Lareira), Ed. Rutherford, pag. 135

Edgar Kensington Moore foi um escritor britânico nascido em Sheffield em 1937. Estudou artes cênicas na Escola de Teatro William Shakespeare, na sua cidade natal, ainda quando cursava o ensino médio. Aos 21 anos casou-se com Melinda Fergusson e foram morar em Manchester, onde criaram seus três filhos. Foi em Manchester que Edgar produziu seus livros, em especial seus contos sobre a classe operária inglesa. Em “Tales from the Fireplace”, seu último livro publicado, ele mostra uma coletânea de contos relacionados à solidão das grandes cidades, sendo cada capítulo dedicado aos pequenos dramas cotidianos que surpreendem os solitários, desde o anúncio da morte de um desafeto, um bolo de aniversário para tia Betsy e até um acidente doméstico com o gato “Sparky”. Em todos os contos a temática é a dor e a angústia que se encontram acompanhadas da solitude, a dolorosa falta de um ombro para apoiar nossa cabeça ou para secar as inevitáveis lágrimas. Todas as suas personagens são mulheres, desde adolescentes até as idosas que apenas esperam a morte. É possível que este livro tenha como inspiração sua própria mãe, cujo marido faleceu na Batalha da Inglaterra em 1940, fazendo da viuvez precoce que testemunhou em sua mãe uma cicatriz em sua própria vida. Sua mãe criou seus dois filhos (Edgar e seu irmão mais velho George) solitariamente e jamais se envolveu novamente com homem algum. Pouco antes de morrer em 2020, Edgar contou que ver sua mãe sozinha escutando o rádio, costurando e ajeitando os filhos para a escola o marcou profundamente, em todos os sentidos, e talvez tenha sido por isso que escolheu o ofício da escrita, onde a solidão é a companheira mais constante. Edgar faleceu em 2020 de pneumonia, aos 83 anos, em sua casa em Manchester. Deixou a mulher Melinda e os filhos Harvey, Jeffrey e Andrew.

Deixe um comentário

Arquivado em Contos

Dor

Ela talvez coubesse no estereótipo mais comum das professoras da escola secundária. Velha, por certo, mas para um garoto de 14 anos esse conceito começa nos 40 anos e segue em diante. Portanto, não há como saber com exatidão. Lembro apenas do seu rosto redondo, cabelos curtos, saia comprida, óculos, sempre rodeada por uma pilha de pastas com a chamada das várias turmas. Naquela manhã sua imagem não estava tão diferente do que eu havia me acostumado a ver, mas algo no seu caminhar mais lento que o normal denunciava algo. Chegou na nossa sala enquanto a resenha ainda corria solta. Colocou os cadernos de chamadas sobre a mesa à frente e ficou olhando por alguns instantes para a parede ao fundo da sala, sem dizer nada.

Ela era professora de psicologia, uma cadeira inusitada no segundo grau. Foi através dessa professora que encontrei os conceitos de eu, supereu e id pela primeira vez. Foi com ela que a turma debateu as motivações inconscientes de nossas atitudes, o mal estar na sociedade e as fases iniciais do desenvolvimento psíquico das crianças. Talvez ela tenha desempenhado um papel importante no despertar das crianças para os mistérios e os segredos da mente, mas jamais teve a oportunidade de comprovar. Talvez essa seja a sina dos professores: nunca saber o quanto impactaram o futuro daqueles a quem ensinaram. Continuou a olhar por um longo tempo em silêncio para um ponto invisível do infinito cósmico, enquanto aguardávamos a chamada. Depois de alguns minutos olhou para os papéis empilhados e delicadamente abriu a primeira pasta. Antes de dizer o primeiro nome, suspirou fundo e falou com a voz embargada.

– Vocês desculpem a professora. Eu não deveria ter vindo dar aulas hoje, mas percebi que ficar em casa sozinha seria muito pior. Não sei o que eu faria olhando para as paredes. É muita tristeza, mas não sei como lidar com isso. Desculpem, desculpem.

Ficou mais alguns segundos imóvel e com os olhos marejados. Depois deixou sair uma frase que mais parecia um gemido do fundo da alma.

– Ontem à noite meu filho morreu.

A sala, repleta de adolescentes barulhentos e cheios de vida, congelou. Ninguém disse palavra alguma. Era possível ouvir a respiração entrecortada da professora. Dos seus olhos brotou uma lágrima e eu senti no peito uma dor estranha que só conheceria décadas mais tarde. A dor surda da perda, da inevitabilidade da morte, o vazio a preencher cada espaço da vida. O som escuro e abafado do silêncio mordaz. Uma porta que se fecha, ou como diria Chico:

“Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais”

Não havia o que dizer. Olhei para o lado e vi meus colegas paralisados. Não era comum para nós vermos adultos chorarem. Ninguém ali poderia acudir aquela alma sofrendo a mais tormentosa das dores. Éramos crianças diante de uma realidade de adultos. O silêncio foi quebrado apenas após a professora retirar da sua bolsa um lenço delicado e secar as lágrimas e o óculos. Olhou para a turma, sorriu timidamente, pediu desculpas mais uma vez e falou…

– Amanda?

E seguiu dizendo em ordem alfabética o nome de todas as testemunhas de sua dor.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Elogio, ainda

Quando passei no vestibular, aos 18 anos, marquei de encontrar com os amigos no local onde as listas com os nomes dos aprovados seriam afixadas nas paredes. Fomos então aguardar no Estádio do Inter, onde funcionava um dos cursinhos pré-vestibular da época. Estas cenas, por certo, seriam impossíveis em um mundo como o de hoje, onde a aprovação seria enviada para seu celular em casa. Pois nos anos 70 as listagens de aprovação vinham impressas em papel e os estudantes corriam desesperados para encontrar – ou não – seu nome nas listas produzidas pelo CPD da Universidade.

Na hora em que as listas apareceram corri para a parede da sala e fui um dos primeiros a ver meu nome impresso. Estava ao lado do meu irmão e da minha namorada – também aprovados – e meus amigos, que estavam lá pela farra. Fizemos festa ali mesmo, na hora, com tinta, água e tesoura; não sobrou um fio sequer na minha cabeça. Depois de comemorar brevemente com a turma, voltei para casa, esgotado pelas emoções daquele dia. Ao chegar, foi meu pai quem abriu a porta. Olhou minha cara suja de tinta e minha cabeça raspada e deu um “meio sorriso”, bem característico para quem o conhecia. No disse uma única palavra. Não me deu parabéns e nem sequer tapinhas nas costas. Ficou em silêncio enquanto eu percorria o corredor de casa para tomar banho. Depois jantamos e, mais uma vez, nenhuma palavra foi dita.

Assim como os sonhos são organizados enquanto os descrevemos, as palavras só fazem sentido quando são escutadas. Também os silêncios encontram sua maior eloquência no momento em que deixam imóveis as membranas timpânicas. De todos os elogios que recebi na minha vida, a mudez do meu pai no momento em que eu adentrava a vida adulta foi o mais intenso e significativo. Do vão misterioso que emoldurava sua fala sem palavras brotava a confiança de que esta vitória nada mais era do que algo esperado para quem ele tanto confiava.

Muitas vezes o elogio verdadeiro está em não elogiar…

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Não existência

Para uma criança, ser ignorada por sua mãe é a maior violência possível. Em seu mundo pequeno, onde o amor da mãe é a luz que lhe garante a vida, esse silêncio pode ser destruidor. Eu lembro do castigo mas grave usado em uma tribo africana que se resumia a ignorar peremptoriamente o condenado. Ninguém podia se referir a ele ou mesmo reconhecer sua existência. Segundo os pesquisadores nenhum condenado aguentava mais de 6 meses. Todos definhavam e morriam.

Acho que é exatamente que isso ocorre com as crianças quando são ignoradas por suas mães. Algumas não se matam apenas porque não saberiam como fazer

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Silêncios

A imagem da “enfermeira pedindo silêncio”, que está na parede de tantos hospitais, e a observação da Margot Zetzsche sobre o tema, me trouxeram à memória um fato que Robbie me contou há alguns anos. Ela me descreveu a visita que fez a um hospital que havia iniciado um protocolo de “humanização”, o qual se limitava ao uso irrestrito de analgesias de parto. Além da visão completamente equivocada do que seja humanização (onde analgesias irrestritas seriam o OPOSTO desse conceito), o responsável pelo centro obstétrico – um anestesista, que surpresa – estava plenamente convencido de que a falta de gritos, sussurros e gemidos era um avanço civilizatório. Quando Robbie adentrou o centro obstétrico este médico, de forma altiva e orgulhosa, observou: “Viu? Percebeu o silêncio? Abolimos os gritos das pacientes com nossa política de analgesias para todas.”

Robbie escutou respeitosamente a descrição dos “avanços” descritos pelo profissional, mas não deixou de se questionar o quanto estes silêncios traziam de perguntas a procura de respostas. Qual o significado profundo da falta de vozes, gritos primais, choros e gemidos que se tornaram ausentes numa cena de parto?

No meu modesto entendimento, essa prática tem muito menos a ver com a diminuição das dores das pacientes e muito mais com o arrefecimento da angústia que estes gemidos inequivocamente produzem nos ouvidos dos cuidadores. Este seria, muito provavelmente, o “silêncio dos inocentes”, a mudez de quem foi despida não apenas de suas vestes, mas também de sua autonomia, sua identidade e sua voz. Se os gemidos são parte da subjetividade de uma mulher, o silêncio é mais uma forma de uniformizá-las, e assim, retirar-lhes a incômoda subjetividade.

Humanizar o nascimento nada tem a ver com a supressão química da dor, mas se refere a uma atitude que se propõe a situar esta dor como elemento constitutivo da mãe que nasce (a ponto de fazê-las suportáveis e até ausentes), impedindo que o ambiente, as vozes, os olhares e as mensagens catastrofistas sejam potentes o suficiente para inserir a gestante no círculo vicioso de Medo-Tensão-Dor.

A proposta de humanizar nascimento não pode ser resumida a um protocolo químico, invasivo e medicalizante da assistência para silenciar mulheres, mesmo quando na superfície possa parecer sedutora a simples ablação da dor de uma gestante. Humanização do nascimento é muito mais do que isso: é uma compreensão profunda desse evento e uma visão transformadora do nascimento como fator determinante para o resto da vida das pessoas que dele participam.

Deixe um comentário

Arquivado em Parto

Silêncio

Não, Petra, você está enganada. Não há paralisia neste silêncio que paira no ar. Não confunda com apatia a mudez da tempestade que antecede o trovão. Em verdade esse vazio nada mais é que a reverência da vida ao estrondo das mudanças inevitáveis.

Karl Batterman, “The Neverending War”, ed. Capri, pág. 135

Karl Batterman é um escritor inglês nascido em Leicester em 1869. Filho de pai operário e de uma família de 10 irmãos (entre eles o líder do “Labour Party” Jeffrey Batterman, morto na revolta dos trabalhadores de Manchester em 1902) escreveu várias novelas que eram publicadas em jornais de Londres. Contemporâneo de Sir Arthur Conan Doyle, rivalizava com ele na preferência popular. Escreveu “A Study in White” como uma sátira à obra de seu compatriota, falando da história do Inspetor Legendre, um policial beberrão e desastrado que, com muita sorte e ações do acaso, conseguia desvendar casos em que a polícia inteira fracassava. Sua obra “The Neverending War” escrita em 1905 foi tomada por muitos críticos contemporâneos como uma previsão sarcástica dos fatos que redundaram na eclosão de duas grandes guerras mundiais. De uma certa forma, seus personagens agiam diante da inevitabilidade de uma catástrofe iminente, o que, de fato, acabou tragicamente ocorrendo. Morreu em Suffolk em 1915.

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Contos

Calaboca

Não tenho nenhuma dúvida dos meus inúmeros privilégios, e mais alguns que a maioria nem percebe. Entretanto, nenhum deles me obriga a ficar quieto diante de uma discordância ou mitificar a fala alheia como se fosse dotada de valor inquestionável. Não; reconhecer seus privilégios e de onde provém sua fala não é o mesmo que se calar culposamente e permitir que outra fala seja opressora. Oferecer o contraditório sem jamais atacar os sujeitos de quem discorda é um ato de civilidade.

Sei como começam as desqualificações e o “calaboca” sutil dos grupos que acreditam no monopólio das narrativas – que se expressa pelo desprezo à fala alheia – mas sei também onde terminam. Para mim o “lugar de fala” é um câncer que impede o debate, mesmo que eu concorde plenamente com a ideia que o sustenta. Entretanto, esse recurso é usado de forma a criar exclusividade de discursos que, por serem incontestes e não sofrerem contraditório, viram dogmas pétreos que emperram qualquer movimento. E podemos citar qualquer movimento libertário pois, mais cedo ou mais tarde, a sedução de ter a fala última (ou única) nos debates contamina qualquer ativista.

No movimento de humanização do nascimento esse problema ocorreu desde o seu surgimento e certamente 70% da minha reconhecida e inquestionável antipatia vem do fato de que eu nunca baixei a cabeça para as pessoas que me mandaram calar a boca, até porque acho que feminismo, parto, nascimento, racialismo, direitos LGBT ou Palestina Livre são assuntos humanos que me atingem direta ou indiretamente, e por essa razão eu tenho o direito – e o dever – de me manifestar diante de erros ou condutas que considero equivocadas.

Sobre o fato recente, a morte violenta de um ser humano me atinge diretamente, mesmo que eu não seja mulher, negra ou lésbica, porque compartilho com Marielle algo muito mais importante do que estas diferenças: a minha condição humana. Se é impossível entender por completo a “dor de ser quem ela foi”, existem dentro de mim dores que só eu sei e apenas eu compreendo a dimensão, mas que podem produzir ressonância com as dores dela por similitude, assim como os sofrimentos de tantas outras pessoas. Para isso Terêncio já dizia “Sou humano e nada do que é humano me é estranho”, deixando claro que qualquer experiência do humano existe em todos nós e pode ser despertada pela empatia.

Se as pessoas não entenderem essa ideia simples também de nada adiantará fazerem campanhas por qualquer solidariedade, porque se nada além do meu mundo particular me diz respeito como seria possível mobilizar alguém na busca por ajuda?

Enclausurar as falas e as ideias e liberá-las apenas aos escolhidos é sintoma de degeneração e fragilidade. Escutar todas as vozes, em especial as discordantes – mesmo respeitando e hierarquizando os lugares de onde elas provém – é um elemento de sucesso de um movimento.

Sou solidário ao movimento palestino e não passo de um branquelo de origem europeia, mas das vítimas da limpeza étnica só recebo abraços e sorrisos pela minha simpatia à sua luta de libertação. Talvez porque eles não precisem me odiar para forjar uma identidade.

Jamais aceitarei “calaboca” disfarçado de “lugar de fala”.

Deixe um comentário

Arquivado em Parto, Violência

Silêncios

Desculpe a minha confusão, mas as vezes é difícil entender as razões pelas quais algumas mulheres mandam os homens calarem a boca quando o assunto é parto, nascimento e maternagem. Esse silenciamento ocorre porque, para estas pessoas, os homens não têm o direito de falar sobre estes assuntos (afinal mulheres nascem de partos, homens são colhidos em árvores). Sempre fico na dúvida sobre a motivação real para tais atitudes: seria o simples desejo de silenciar os homens ou uma legítima queixa contra a falta de voz das mulheres sobre um assunto do qual elas mesmas foram impedidas de falar nos últimos 300 anos?

Faço um convite apenas para que se lembrem de alguns homens como Gonzales, Marcus, Cláudio e Moyses, Jorge, Bráulio, Paulo, Frederick, Michel e tantos outros que defenderam o protagonismo feminino quando as próprias mulheres ainda estavam socialmente frágeis para lutar com suas próprias vozes. Aliás, foi o exemplo desses homens que auxiliou as mulheres a produzir seu próprio discurso construir seu protagonismo.

Então eu pergunto: será possível lutar por essa causa sem precisar o tempo todo silenciar os homens, em especial aqueles que pavimentaram a estrada quando as trilhas ainda eram escassas e pedregosas?

Eu desconfio que a estratégia das mulheres para buscar solidariedade nas causas femininas é apenas catastrófica.

Ninguém entre os homens contemporâneos deseja roubar o protagonismo das mulheres neste aspecto tão feminino da vida, mas porque a insistência em desautorizar as suas falas? Qual a vantagem disso?

Fico imaginando as opções que surgiram à minha frente nas ultimas três décadas. Eu poderia ter esperado 30 anos até surgir uma mulher para defender essas causas no meu meio, valorizando assim o “lugar de fala” delas. Talvez esses 30 anos de espera não custaram nada para quem está distante, mas muitas mulheres puderam se nutrir dessa prática ao longo desse tempo. Será que a voz dos homens é mesmo tão inútil e desnecessária ou apenas revela um outro silêncio?

Se a estrada era ruim por culpa dos homens (poderíamos ficar mais alguns meses conversando só sobre este tema) mais uma razão para permitir que eles falem e desfaçam os erros históricos do patriarcado aplicado ao parto, nascimento e maternagem.

O que eu não entendo é por que algumas mulheres acham que para que elas sejam ouvidas precisam calar os outros atores sociais que também tem algo a dizer. É como se o “espaço” das falas fosse tão escasso que para que elas falem é necessário que todos os outros se calem.

Lembram daquele tempo quando uma mulher falava de futebol e um ogro próximo dizia: “Amorzinho, cala a boca e vai fazer um café pra nós”. Lembram disso? Pois é, por mais que algumas vezes seja difícil notar, é justo dizer que melhoramos um pouco. Por que então a insistência em imitar o pior de nós?

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Silêncio

images-36

“O silêncio é o momento mais sagrado de uma análise. Cultiva-se através do aprendizado duro e da intimidade com nossos próprios limites e dores. Entretanto, rompê-lo demanda coragem e sabedoria. A fala do analista é um caminhar às escuras em uma loja de cristais.”

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Ódio

Ódio

Não gosto o suficiente de você para lhe criticar, muito menos ofender. Sei que uma agressão de minha parte poderia ter como consequência – mesmo que teórica e improvável – uma reflexão e autocrítica suscitada em você. Entretanto, como meu ódio por você é visceral e incontrolável, usarei sobre si a mais mordaz das crueldades: ficarei em silêncio, calado e silente diante dos seus insultos e, assim fazendo, lhe condenarei a continuar exatamente onde está, imóvel e paralisado, infenso aos giros do tempo.

Wesley Hodgkin, “Wind of Time”, ed. Schummer Press, pág.135

Wesley Walter Hodgkin nasceu em Tulsa, Oklahoma e estudou na Booker T. Washington High School. Serviu na Força Aérea Americana após o término do ensino médio e morou em Ramstein, na Renânia, na base americana existente em solo alemão. Foi nesse período que escreveu seu livro de estreia, um romance que conta a história (segundo ele, baseada em fatos reais) da paixão entre um soldado americano e uma dissidente russa. “Nothing to Tell” (Nada a dizer) narra os conflitos éticos, morais e sexuais que se intensificaram com a guerra fria, mostrando o lado humano das diferentes ideologias e a perversidade inerente a qualquer de nossas relações afetivas. Em “Wind of Time”, seu derradeiro romance, ele descreve as agruras de um viciado em crack para dissolver dívidas do passado e resgatar o que lhe resta de vida. Foi casado com James Arlington, e teve dois filhos adotivos. Faleceu em 1994 de causas naturais.

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Contos