Arquivo da tag: tragédias

Ícaro

O maior inimigo do sujeito é a arrogância; a autoconfiança exagerada produz as maiores tragédias. Por certo que é difícil o exercício da contenção e da humildade quando as rêmoras que cercam o tubarão não se cansam de elogiar suas habilidades e talentos. Todavia, a autoestima delirante é tão viciante quanto ilusória. A queda, portanto, é sempre espetacular. A tragédia que vemos na cúpula da República de Curitiba é o melhor exemplo da queda de Ícaro, pois os falsos heróis que hoje se encontram esfacelados, outrora vagavam cegos em direção ao sol, hipnotizados por seu brilho ofuscante.

O poder irrestrito é a única régua para medir o caráter.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos, Política

Homo adaptabilis

Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Segundo Séneca, nós sofremos mais na imaginação do que na realidade. FATOS"

Meu pai dizia que o que mais o assombrava na humanidade era sua capacidade de adaptação. Ele era um racionalista, um humanista que nutria uma enorme fé no ser humano, sua criatividade, sua incrível maleabilidade e – em especial – sua adaptabilidade. Ele me contou que, quando trabalhava nas centrais elétricas do Rio Grande do Sul – a CEEE – conheceu um engenheiro elétrico, imigrante húngaro, que chegou ao Brasil fugindo dos horrores da segunda guerra mundial. Meu pai o descrevia como um homem fechado, bruto, profundamente anticomunista, marcado por tristezas profundas, ressentimentos e dores da alma. Hoje seria, por certo, um bolsonarista ressentido, se ainda fosse vivo.

Todavia, apesar de se sentir muito distante de sua visão política, meu pai tinha por este sujeito uma profunda admiração, em especial por sua impressionante resiliência. Certa feita, durante um momento de maior descontração, o engenheiro sisudo e calado lhe contou alguns detalhes da sua dramática história na Europa, o que levou meu pai quase às lágrimas. Durante a 2a grande guerra ele havia perdido a mulher e os filhos pequenos, vítimas dos bombardeios alemães em sua cidade. Se isso não fosse o suficiente, viu sua casa ser destruída, e com ela tudo o que possuía. Não lhe sobrou nada, nem recursos ou afetos. A guerra lhe roubou tudo o que havia construído.

Na miséria e sem futuro, colocou seu diploma de engenharia elétrica numa pequena mala junto com as poucas peças de roupa que conseguiu salvar e entrou em um navio que o levasse a para longe. Seu destino era “outro lugar”, qualquer um que fosse distante o suficiente de suas tragédias e do vazio que lhe restou como lembrança.

Sim, Deus é um cara gozador e adora brincadeiras, e na barriga da miséria ele virou brasileiro. Chegou ao sul do Brasil ainda com juventude no corpo, e teve tempo de reconstruir sua história, sua profissão e sua vida. Casou de novo e teve filhos – que hoje devem ser velhos como eu a contar para os netos as histórias tristes do avô na guerra absurda e fratricida da qual participou.

Lembro dessa história sempre que penso nas pequenas e grandes tragédias que se abatem sobre mim – ou sobre todos nós. Creio que, se o velho húngaro foi capaz de refazer sua história movido apenas pela ânsia de viver, agarrado à pulsão de vida como tábua de sobrevivência, por que haveríamos de desistir diante de dores tão menores? Talvez, se lhe fosse perguntado na juventude se suportaria todas estas perdas, diria que “não”, que não haveria como superar a perda da mulher, dos filhos, de suas coisas e até do seu país. Ele, como muitos de nós, não acreditaria em sua capacidade de se reconstruir a partir dos escombros a que foi reduzido. Pois, a despeito de sua própria descrença, foi lá e teimosamente sobreviveu. Mais do que isso; ainda teve a ousadia de ser – ao seu jeito – pleno e feliz.

Meu pai sempre falava deste homem quando desejava apaziguar as dores lancinantes que a vida muitas vezes nos obriga a sofrer. E depois, com um sorriso afável, sempre dizia: “Por pior que pareça, vai passar”.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Emoções estupefacientes

É muito comum ver as análises morais dos jogadores e técnicos serem feitas à posteriori, ou seja, adaptamos os valores morais dos personagens aos fatos depois que estes ocorreram. A vitória ou a derrota nos fazem enxergar a moralidade dos nossos representantes de forma diversa ou mesmo antagônica. Todos se arvoram à condição de “experts” em comportamento humano, e até uma monja – com qualificações desconhecidas no futebol – faz críticas mordazes e severas ao técnico da seleção.

Por isso, somente depois do fracasso, conseguimos observar o quanto Tite é insensível assim como só agora vemos como é absurdo o salário astronômico que nossa neurose paga aos jogadores. Só agora acordamos para a covardia dos nossos diante das decisões em campo. Tudo isso teria sido esquecido bastando para isso acertar dois pênaltis.

Ao mesmo tempo nosso espírito macunaímico descobre em menos de 24 horas declarações impressionantes de humildade que partem de gente como Messi e outros jogadores vencedores, muitas delas criadas pela equipe de relações públicas que os assessoram. Mostramos gestos do craque argentino e os interpretamos como sinais de enfrentamento ao imperialismo, mesmo quando chegam de um craque que vive às custas do dinheiro europeu há 20 anos. Além disso, passamos pano para o deboche que os hermanos submeteram os holandeses após o jogo. “Ahhh, é do jogo…”

Como eu disse, é compreensível é até lícito tentar colocar as derrotas em linhas lógicas de causalidade; achar causas para fatos é um efeito inescapável do crescimento encefálico, do qual não podemos nos livrar. Porém, deixar-se levar pelas emoções depressivas é ficar refém da paixão, a qual não nos permite enxergar uma rota segura de vitórias no futuro. Acreditar que perdemos porque Neymar e os demais jogadores são ricos, e o Marrocos chegou às quartas porque seus jogadores são pobres e patriotas é se perder na superficialidade dos fatos. E as demais explicações (Messi é humilde, Argentina tem raça, Messi é vencedor, Marrocos tem liderança, França só tem sorte, Inglaterra sendo Inglaterra, Croatas tem amor ao seu país, etc.) também são carregadas de emocionalidade e lhes falta conexão com a realidade.

Não cobro racionalidade ao tratar de uma elegia à irracionalidade como é o futebol. Da mesma forma não peço aos amantes que usem a razão quando o fogo das paixões lhes consome os sentidos. Peço apenas calma, em ambas as situações. Muitas tragédias acontecem quando deixamos de lado a maior conquista da nossa trajetória humana: esta fina camada de matéria cinzenta que envolve nosso cérebro e nos confere a razão.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Fake News

“MINISTRO do STF, Gilmar Mendes almoçando com o FILHO do Lula, em Roma/Itália, no dia 09 de outubro de 2022.”

Nas páginas dos amigos bolsonaristas encontramos estas pérolas da desinformação, adquiridas diretamente das sombras do WhatsApp: o Ministro do STF Gilmar Mendes almoçando com o “filho do Lula” em Roma no meio do segundo turno. Um simples olhar com atenção bastaria para ver que o sujeito na foto não lembra qualquer filho do presidente Lula. Entretanto, o Porsche dourado, a mansão no Uruguai, as lojas Havan e o triplex também eram facilmente desmentidos; por que, então, tantos acreditaram?

Eu pergunto: como puderam tantos acreditar nessas tolices? Como puderam receber estas mensagens pelo WhatsApp e imediatamente as disseminaram, sem ao menos verificar se a Havan era do “véio”, se a JBS já tinha dono, se na mansão já havia moradores e se o barbudinho na imagem não é qualquer outra pessoa?

A resposta é a necessidade premente de acreditar em qualquer fato – mesmo mentiroso – que confirme suas crenças. Por isso as pessoas acreditaram no “estado de sítio” há alguns meses, ou na prisão do Ministro Alexandre de Moraes logo após a vitória de Lula. Trata-se do conhecido “viés de confirmação“, um mecanismo psicológico primitivo que nos força a crer nas interpretações da realidade que confirmam as nossas crenças mais primitivas, as quais são originadas dos nossos afetos e emoções, não dos estratos superiores da razão.

Isso explica tragédias como Jonestown, onde 900 seguidores de Jim Jones tomaram cianureto, seguindo as ordens do seu mestre e guru. Também nos permite entender toda a idolatria dos extremistas de Waco, no Texas, vítimas de um incêndio que provocou a morte de 76 membros da seita davidiana em 1993, entre elas 23 crianças e o próprio líder, o pastor Koresh.

Somos constituídos de um núcleo de medos primitivos, tendo a angústia como sentimento fundador. Por sobre este medo essencial, colocamos uma grossa camadas de crenças irracionais (Deus, evolução, causa e efeito, progresso, justiça divina, determinismo, etc) que aliviam a nossa angústia estabelecendo uma relação de causalidade para os eventos caóticos da vida.

Por sobre esta camada de crenças aplicamos uma fina camada lógica, um verniz de intelecto, uma fachada tênue de racionalidade, que nos afasta dos medos sem, no entanto, eliminá-los, mas que nos oferece a sublime ilusão de sermos seres autônomos e conscientes. Tão brilhante é esta camada externa que ela nos ofusca e nos engana, fazendo-nos pensar que somos conduzidos pela luz da razão, quando em verdade ela funciona mais como uma máscara frouxa a esconder nossa estrutura primitiva e pulsional.

Não é por outra razão que somos presas fáceis das fake news. Elas são apenas a água refrescante que nossa alma sedenta de confirmação tanto deseja. Diante de tanto desejo, nossa razão minúscula é uma combatente frágil e minúscula. Via de regra, é derrotada pela avalanche de informações que desejamos ardentemente acreditar, sendo elas falsas ou não.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos, Política

Golfinhos

Lembrei por ocasião do debate sobre a exaltação da “cesariana salvadora” e os “malefícios do parto normal” da velha história dos “bons golfinhos”. Uma historia sobre viés de percepção….

Há um mito que conta que os golfinhos são bons e que tem o costume de empurrar os náufragos para a praia. Vários relatos existem de pessoas salvas por golfinhos depois de barcos virados. A fama desses mamíferos sempre foi positiva entre nós e estas histórias sempre reforçam essa percepção. O problema surgiu quando, mais recentemente, se observou a ação dos golfinhos a partir de um helicóptero durante um naufrágio.

O que se viu foi surpreendente. Os golfinhos, em verdade, brincam com as pessoas e as empurram para QUALQUER lado – inclusive para longe da costa – mas só aqueles que – por sorte – são empurrados para praia sobrevivem para contar a historia. Daí ocorre a boa fama de salvadores que, como pode se ver, não é merecida. As mortes causadas pelo brincalhões aquáticos nunca foram computadas a eles, pelo menos até sabermos a verdade.

O mesmo ocorre em muitas situações do parto. Nos “sequelados do parto normal” a culpa só pode ser do parto, da natureza cruel, da “vagina dentada destruidora de crânios” e dos profissionais relapsos que “nada fizeram” mesmo tendo a “tecnologia salvadora” à mão. Nos sequelados da cesariana houve, por certo, uma fatalidade. Afinal “fizemos tudo o que podia ser feito“. Como se poderia culpar o uso da tecnologia se ela é o sustentáculo da emergência e hegemonia do saber obstétrico sobre a parteria?

Sem entender essas armadilhas psicológicas jamais fugiremos da fatalidade do “imperativo tecnológico” que nos obriga à intervenção pela crença cega na IDEOLOGIA tecnocrática.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Chacina

images-14

O assassino era como o monstro de Frankenstein, composto por centenas de pequenos fragmentos de rancor e decepção. Uma estrutura de ódio, retalhos de misoginia, um pouco de raiva, umas pitadas de indignação seletiva e um punhado generoso de auto condescendência. E como pano de fundo, o amor deteriorado e doentio.

Não há nada de novo na sua fala e nos seus sentimentos, assim como não há nenhuma novidade em salitre, carvão e enxofre. Entretanto a mistura desses elementos produz a força destruidora da pólvora, enquanto a combinação de indignação, culpa, frustração, banalização da violência, machismo e uma mente frágil e doente produz incontáveis tragédias.

Só o amor é capaz de produzir este tipo de horror que nos agride e tritura a alma. O amor, quando desvirtuado, é maligno e destrutivo, mas ainda assim é amor. Sim, é domínio, é ódio, é desprezo, é possessividade e angústia. E ainda assim é amor. O contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença, mas a loucura e o ciúme não conseguem brotar da aridez de um coração indiferente.

O contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença, mas a loucura e o ciúme não conseguem brotar da aridez de um coração indiferente.

Não é justo “romantizar o amor”, no sentido de enxergar nele apenas sua potencialidade positiva. O amor pode ser doce e calmo, mas também furioso e agitado. Preferimos não olhar para esta face do amor, mas ela é igualmente verdadeira.

Não se trata de macular o amor, mas tirar-lhe a máscara. Ódio e desprezo são legítimos filhos do amor, e por isso mesmo, onde houver ódio e desprezo podemos procurar um amor corrompido que de imediato ele se mostra em todas as suas nuances.

É preciso enxergar o amor em suas infinitas dimensões, e entender que até a lua, por mais resplandecente e brilhante que seja, possui seu lado escuro.

Para reflexão, trago este texto de Slavoj Zizek:

“Mas o conjunto da realidade é só isto. É estúpido. Está lá fora e eu não ligo pra isso. Amor, para mim, é um ato extremamente violento. Amor não é “eu amo todos vocês”. Amor significa que eu seleciono algo e é, de novo, esta estrutura de desequilíbrio, ainda que este algo seja só um pequeno detalhe, uma frágil pessoa individual. Eu digo “eu amo você mais que qualquer coisa” e neste preciso sentido formal, o amor é o mal.” 

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Terra arrasada

terra arrasada

Todas as supostas vitórias trazem consigo o germe da frustração. O que parece ter sido o ápice de uma conquista retumbante muitas vezes não é mais que o prenúncio de uma tragédia. A expulsão dos romanos da Judeia, e a libertação de um povo dominado, veio apenas alguns anos antes do extermínio, a destruição e a diáspora. Aqueles que comemoraram o arbítrio, apenas porque lhes interessa a vingança, estão semeando a brutalidade que lhes recairá no futuro.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Pensamentos

Tragédias

O debate sobre tragédias recentes tende a ser pouco racional e com tendência à emocionalidade exacerbada tendendo à violência explícita. Isso a gente sabe de longa data.

Nos vários lugares em que fui marcado para debater um mau resultado recente em um parto domiciliar (deviam me marcar nas tragédias hospitalares também) os argumentos passavam por grosseiras, ofensas, escárnio, deboche, absurdas interpretações de texto e ataques constrangedores à língua portuguesa, sem que as questões básicas de medicina baseada em evidências, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia feminina e – acima de tudo – o conhecimento MÍNIMO do que seja uma doula e suas atribuições, fossem respeitados.

Quando, após várias ofensas pessoais, um senhor (creio ser médico) me disse que doulas não passam de uma “idiotisse” eu pensei: “Chega“. Percebi que, com este tipo de abordagem e linguagem, não é possível qualquer debate que produza benefícios para a solução dos dilemas da assistência ao parto em um mundo de convulsões na questão de gênero, onde as mulheres não aceitam mais caladas nenhum “abre as pernas“, “deita ali” ou “cala a boca“.

Em casa ou no hospital.

Deixe um comentário

Arquivado em Política