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Envelhecer

Já passava das 11 horas da manhã e ainda precisava comprar algumas mercadorias para preparar o almoço. Quando entrei no supermercado a procura dos itens, logo na entrada me deparei com uma moça em um pequeno quiosque ajeitando gelo numa espécie de balde. Perguntei o que ela estava oferecendo e ela disse que eram drinks de vários tipos: um de maçã verde, outro de limão e um avermelhado à base de guaraná chamado “Balada”. Respondi a ela que podia me servir o último, “já que tenho cara de quem frequenta baladas todo fim de semana“. Ela sorriu de forma jovial, serviu a bebida e eu continuei a minha saga pelo mercado.

Foram necessários apenas alguns passos para descobrir o que havia acontecido. Um pouco espantado e surpreso, mas, ao mesmo tempo, experimentando uma espécie de súbita lucidez, percebi que a piadinha que eu havia acabado de dizer à moça do quiosque não foi dita por mim. Apesar de ter saído dos meus lábios, não fui eu quem a falou.

Foi meu pai. Por instantes me dei conta que essa era uma das suas tiradas prediletas, um dos seus chistes mais comuns; uma espécie de humor britânico misturado com as piadas autodepreciativas típicas da cultura judaica. Apesar de ser uma pessoa séria e sisuda, ele era um sujeito otimista e bem-humorado, mas de um humor de poucas gargalhadas; mais ironia e menos deboche. Ele passou a última parte da sua vida descrevendo de forma divertida dos percalços da velhice, os desafios da “melhor idade”, a desconsideração da cultura com os idosos, o etarismo e, porque não, o desinteresse das mulheres pelos velhos, a quem consideravam seres  assexuados.

“Já era madrugada quando a porta do elevador se abriu e a moça entrou. Ela apenas sorriu para mim; claro, sentiu-se segura ao lado de um velhinho”, dizia ele sorrindo. Todavia, eu entendia o que havia por trás do seu gracejo. Ele fazia piada com a dor de envelhecer e com a frustração de “manter o desejo quando não mais o despertava”, como ele mesmo dizia. Talvez preferisse que ela tivesse medo; afinal tratava-se de um homem que poderia, talvez, “avançar”. Mas não… ele era considerado, aos olhos dela, totalmente inofensivo. “É diferente ser inofensivo por não querer – o que seria uma escolha – do que por não poder – que é apenas uma limitação”, dizia ele.

Depois dessa reflexão nos corredores do supermercado, muitas das minhas atitudes passaram a fazer sentido. Por mais que lutemos contra a matriz que nos constitui, somos inexoravelmente ligados a ela. Meu pai era antissocial, avesso às festas, introspectivo e sério. Durante minha juventude tentei ser diferente disso, me envolver com mais pessoas, ter amigos, mas ao amadurecer fui percebendo o quanto meu temperamento se aproxima do seu. Por mais que isso possa me incomodar, minha velhice será mesmo muito semelhante à dele, cada vez mais encolhido, menos visível, mais caseiro, mais silencioso… e mais insignificante.

Talvez, como ele, eu morra rodeado de não mais do que três ou quatro pessoas. Ele também dizia, e eu agora confirmo, que “envelhecer é preparar-se para as mortes”. Sim, assim mesmo no plural: são as perdas inevitáveis, as quais somos obrigados a experimentar no percurso da vida: a perda da juventude, da beleza, da atração e das memórias. Depois se vão os avós, pais, amigos, irmãos, parceiros de vida. E no fim, o nosso próprio invólucro de carne sucumbe à degenerescência, mas antes dele perdemos a relevância e a importância para aqueles que um dia nos admiraram. Nossas teses ficam antigas, solapadas pelo novo e pelo moderno. Nossa visão de mundo sucumbe aos acontecimentos e nossos vaticínios se perdem nas encruzilhadas do tempo. É preciso estar preparado para o tanto que se vai, continuamente.

Quando eu tinha por volta de 7 anos os amigos fizeram uma festa na vizinhança, com fogueira, comes e bebês, jogos, brincadeira e cantoria. No meio da festa, o vizinho, um amante da ópera, cantou uma ária; logo depois, outro vizinho tocou acordeon e cantamos todos juntos cantigas italianas. Enquanto isso as crianças faziam corrida de saco, cabo de guerra e se empanturravam de docinhos. Foi tão divertido que 60 anos de distância não apagaram da minha memória. No meio da festa meu pai chegou. Sentou-se em um banquinho e ficou sorrindo acompanhando a farra. Ao fim da festa, quando estávamos retirando os materiais e arrumando a bagunça, eu perguntei, ainda extasiado pela folia, se ele não havia achado aquela festa a melhor coisa da vida. Ele sorriu e sua sinceridade me impressiona até hoje:

“Não. Eu não gosto de festas. Acho bonito ver as pessoas se divertindo, mas isso não me afeta”.

Olhei para o meu pai com horror, uma estranheza como se ele tivesse segurando um sorvete de pistacho na mão e dizendo não gostar. Como assim não gosta do melhor da vida? Como não gostar da alegria sem freios, das piadas, da cantoria e das brincadeiras? Como poderia alguém não se afetar pelas músicas, o colorido, as empadinhas, a algazarra, o alarido dos fogos de artifício e as risadas de quem se passou na bebida?

Hoje eu sei. Percebo em mim a mesma marca, o mesmo feitio de personalidade, avesso aos arroubos de alegria desmesurada. O mesmo gosto pelo isolamento, o silêncio e a reflexão mais elaborada. As conversas com pouca gente, a profundidade dos argumentos, as piadas sutis. Poderia ser uma maldição, mas eu considero uma homenagem. Se tirei do meu pai algumas poucas virtudes, por que deixaria de receber também algumas de suas características menos atraentes? A genética, agora o sei, vem num pacote fechado…

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Avós

Vi em uma postagem sobre a terceira idade uma pesquisa controversa sobre as “atividades de lazer” dos velhos. Muitos poderiam pensar que “cuidar e conviver com netos” estivesse nos primeiros lugares, mas esse não foi o caso. Em primeiro lugar estava “ler” (acho difícil que esta pesquisa tenha sido feita no Brasil) em 4⁰ lugar estava viajar. E cuidar dos netos, qual a posição nesta pesquisa? Pois estava em 18⁰ lugar.

Claro que estes resultados só podem ser levados em consideração ao conhecer a pesquisa e saber como as perguntas foram feitas. “Cuidar de netos” é uma tarefa, jamais um hobby. Conviver mais com esta geração pode ser fonte de prazer para os velhos, e também uma tremenda sobrecarga, e a diferença vai estar na materialidade das condições econômicas. É muito diferente cuidar de netos por um tempo determinado – e com espaço, tempo livre e condições – do que ter a obrigação de vesti-los, educá-los e alimentá-los diariamente porque os pais estão trabalhando. Além disso, quando se trata de questionar o desejo de ter filhos e, depois deles, os netos, é importante atentar para o fato que estes temas estão ancorados nas camadas mais primitivas do inconsciente. Não se trata de uma questão racional e objetiva, que pode ser decidida analisando uma planilha, mas algo que nos obriga a questionar valores, e estes são subjetivos por definição. Desejar ter filhos e netos é uma questão que não é passível de discussão, a não ser para, por meio de uma análise profunda, procurar entender as razões para desejá-los ou não. A ninguém cabe discutir o peso da paternidade ou da maternidade para o outro, muito menos o prazer de conviver com os netos.

Entretanto, hoje em dia já existem dados objetivos sobre o tema. É sabido que a convivência com os netos aumenta a saúde, o bem-estar e a longevidade dos velhos. O convívio com a geração mais jovem oferece aos idosos sentido, direção e motivo para continuar vivendo – e bem. Muito disso foi estudado no “Efeito Vila” (Village Affect) quando os fatores que levam à longevidade foram analisados em comunidades onde existem muitas pessoas centenárias. Descobriu-se que dar aos velhos convivência com pessoas da mesma idade e relevância na sua condição de “sábios” orientadores das crianças, aumentava seu prazer de viver e, portanto, seu tempo de vida. Por esta razão, ao lado dos valores subjetivos da nossa relação com a maternidade, a paternidade e a “avosidade”, existem elementos demonstrando que a proximidade entre estas gerações é positiva para os jovens – que adquirem experiência e uma percepção mais alargada de mundo – e para os idosos – que recebem dos netos o estímulo para uma vida mais longa e produtiva.

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Filhos

São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.

Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.

Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.

Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.

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Senectude – ou Crepúsculo

Chega um tempo em que a fragilidade dos corpos nos obriga a abrir mão de um dos bens mais preciosos: a autonomia, valor que tanto exaltamos quando tratamos dos direitos humanos mais elementares. Todavia, em algum momento da existência precisaremos deixar a autonomia em nome da manutenção da própria vida. Esse é um tema que percorre a vida de quase todos, e eu mesmo passei isso com meus avós paternos e minha mãe. Em um determinado momento nossos familiares – em especial os avós e depois os pais – perdem sua independência e sua autonomia em função da fraqueza, de alguma doença, da idade avançada ou das perdas cognitivas. A forma de reagir a esta situação é variável, mas ela estará inscrita nos detalhes de toda a vida pregressa de quem envelhece, e por isso é muitas vezes possível prever como cada um lidará com este evento.

Muitos, como meu avô, lutaram contra a inexorabilidade da sua dependência; resistiu o quanto pode, mas foi literalmente carregado à força para fora de casa. Outros, como minhas avós, minha mãe e minha sogra, aceitaram de forma mais tranquila, como se esta passagem fosse uma parte natural da vida – alguém cuidaria delas como elas cuidaram de tantos durante suas vidas.

Talvez aqui seja possível estabelecer uma diferença essencial entre a vivência da senescência para os homens e para as mulheres, mesmo sabendo que esta vivência será sempre única e pessoal. Para os homens a perda da autonomia é muitas vezes vista como um golpe mortal em seu amor próprio. Retire-o de seu domínio e ele se tornará vulnerável, fraco e impotente. Por seu turno, muitas mulheres (todas da minha família) se comportam de forma dócil e aceitam o fato de que, em algum momento, é chegada a hora de serem cuidadas e amparadas, da mesma forma como o destino determinou que cuidassem de tantos filhos e netos. Já meu pai sempre disse que não aceitaria os cuidados de ninguém. Deixou isso claro quando ficou viúvo aos 90 anos e não aceitou se mudar para a casa de qualquer um dos filhos. Quando, por fim, adoeceu, morreu muito rápido, sem se submeter à “tortura” de viver sob os cuidados de alguém. Antes dele meu avô, por sua vez, xingou, sapateou e nunca perdoou meu pai por tê-lo retirado de sua casa, mesmo quando sequer conseguia se mover. Nunca aceitou “viver de favores”.

Para o homem sua casa é seu mundo, e de minha parte, já reconheço de que material sou feito. Portanto, não tenho dúvida alguma de que também vou resistir até onde tiver força. Viver sob o cuidado alheio é humilhante para quem sempre valorizou a liberdade e a autodeterminação.

Algum momento, entretanto, haverá em que alguém chegará ao meu ouvido e dirá: “Pai, não dá mais. Chega. Não vamos aceitar ver você sofrendo por este orgulho insano. Você terá que sair de onde está e ficar sob os nossos cuidados”. Nesse momento eu saberei que não tenho como me defender e, mesmo resistindo, serei obrigado a aceitar. Diante desse destino inescapável, eu já me preparo para perdoar meus filhos e netos pela palavras duras que sei que vou ouvir; é melhor fazer isso enquanto ainda existe lucidez suficiente. Aceitar o declínio da vida é preparar-se lentamente para a morte. Antes mesmo, quando percebemos nossa sutil e crescente desimportância na tessitura da vida, já é o momento de compreender que estas são as suas sábias regras, e que cabe tão somente aceitar o quinhão que a nós é determinado.

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Julgamentos

A idade nos oferece alguns presentes um pouco desagradáveis como dores nas juntas, a queda dos cabelos, um estômago mais sensível e uma memória que a cada dia se torna mais apagada. Por outro lado, a maturidade nos ensina – pela pedagogia das múltiplas quedas – a não julgar o semelhante com tanto fervor. O tempo de vida recomenda duas coisas: não jogar pedras por erros que você mesmo poderia ter cometido e não sofrer por ser o último a sair do avião.

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Lacração

Muitas pessoas colecionam arrependimentos durante a vida, mas vamos combinar que não é possível atravessar o charco da vida sem embarrar os pés. Eu também tenho a minha lista de erros constrangedores, que poderiam ser organizados em lista alfabética, mas sobre eles eu tenho outro sentimento, igualmente pernicioso: a vergonha.

Sim, eu tenho vergonha principalmente por ter cedido a uma tentação terrível, que muitos sequer reconhecem como um defeito, mas que é tão grande a ponto de destruir potencialidades incontestes: a tentação de agradar.

Sim, tenho vergonha de ter dito certas coisas apenas porque sabia que isso ia agradar meus interlocutores. Fico corado ao lembrar das vezes em que falei determinadas palavras sabendo da satisfação que colheria de quem as escutou. Isso é a melhor definição de “lacração“: a ideia que suas manifestações serão aceitas e bem recebidas não pela verdade que contém, mas pelo efeito emocional que geram nas pessoas que as escutam. No meu tempo a isso se chamava “jogar para a torcida“, uma prática corriqueira entre os políticos, mas que atrasa o crescimento pessoal e coletivo.

Hoje eu me envergonho muito de ter aceito a imposição da opinião alheia, de ter acolhido a pressão do contexto, de não ter falado verdades inconvenientes, de não ter sido mais impopular do que já sou. “Mea culpa, mea maxima culpa”.

Meu pai, quando ficou velho (pelo seu próprio critério subjetivo) costumava dizer algumas verdades dolorosas e depois complementava: “Já tenho X anos; conquistei o direito de ser sincero”. Eu ficava satisfeito de poder ouvir alguém que me dizia coisas pouco agradáveis e que o fazia mesmo sabendo que a recepção não seria das melhores. Isso foi algo que invejei demais e que me fez acreditar na promessa das “benesses da senectude“.

Hoje eu creio que, se algum valor há em envelhecer, talvez este seja alcançar o lugar onde é possível ser fiel a si mesmo.

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1200

Há exatos 20 anos, 1999, nos umbrais do século XXI, eu comecei a escrever. Velho mesmo, quase quarentão. De pronto deixo claro que não acredito em nenhum sujeito que começou a escrever depois de ser oficialmente ancião, mas eu não escrevia porque queria, apenas porque precisava. Não se tratava de prazer, mas de compulsão. Antes disso eu apenas lia, e com exceção de raros esquetes humorísticos (entre eles um chamado “O círculo do gelo”), eu não me interessava em escrever. Foi a dor, a angústia e a noção cada dia mais intensa de que me resta pouco tempo de vida que me fizeram colocar no papel tudo o que me passa pela cabeça. Literalmente tudo: pensamentos, histórias, chamamentos, citações descobertas e histórias. Histórias tristes ou bizarras. Piadas em profusão, inobstante serem engraçadas ou não – na minha família a regra é “o importante é a quantidade e não a qualidade”. Tenho medo de morrer e guardar comigo uma história que apenas eu sei.

Sei que me resta pouco tempo e gostaria de deixar em algum lugar todas as histórias que eu porventura tomei conhecimento. Fico triste ao saber que dezenas delas não podem ser contadas, pois as pessoas que dela participam poderiam se ofender. Por vezes eu penso em um parto, uma expressão de alguém, uma piada, uma historieta ou o projeto de um grande romance (como o do homem que lia na prisão, ou a história de Eneida, a mulher que fumava e fazia do sexo sua arma mais poderosa) e me apresso a escrever antes que os detalhes evaporem de minha memória.

Hoje escrevi o texto de número 1200 no meu blog, que comecei a organizar apenas em 2012. O que escrevi antes disso está soterrado nas listas de discussão das “Amigas do parto”, ou no “Parto Humanizado”. Outras poucas recuperei e usei como material para os meus dois primeiros livros, o “Memórias do Homem de Vidro” e “Entre as Orelhas”.

Sei da desimportância do que eu escrevo, mas realmente a qualidade da escrita nunca foi o meu objetivo máximo. Eu comparo esta compulsão com a árvore genealógica que meu pai me deu de presente há alguns anos. Era, em verdade, um pedido singelo para ser lembrado, poder ver o seu nome num quadradinho que, ao mesmo tempo que tinha suas raízes num passado distante, oferecia sementes para os que vinham abaixo. Um desejo ilusório, quase pueril, de imortalidade.

Também estou ciente do amargo que aguarda minha senectude, e sei o quanto será difícil para um velho ter que suportar o que virá. Outrossim, reitero que tudo faria de novo e que esta vida é curta demais para ser encarada com temor.

Evoé!!!

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Velhice

Se é verdade que “os cabelos brancos são bonitos, mas são tristes” eu vou mais além e digo que a velhice é bela porém lúgubre, e a nostalgia nada mais é do que a saudade de um mundo menos belo, mas cuja esperança o tornava mais feliz. A tristeza da velhice é a desilusão; a alegria da juventude é imponência das fantasias.

Carolina de Mont’Alverne, “Manuscritos da Guerra”, Ed. Shapiro, pág 135

Carolina Amaral de Mont´Alverne é uma poetisa maranhense, nascida em Imperatriz em 1950. Alfabetizou-se aos 18 anos de idade através do Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização – tendo concluído o ciclo secundário com a idade de 25 anos através do “Artigo 99”. Entrou para a faculdade de Letras logo a seguir e começou a escrever poesias assim que tomou controle das letras e das palavras. Publicou seu primeiro livro de poesia chamado “Vitupério” através de uma produção caseira, com mimeógrafo e “stencil”, distribuindo as cópias entre amigos, colegas e professores. Depois foi convidada a participar de coletâneas com escritores iniciantes até que pôde lançar seu primeiro livro oficial, “Imperoza” em que apresenta sua poesia romântica entrelaçada com o ambiente semiárido de sua região e sobre a Reserva Biológica do Gurupi, o que restou da mata Atlântica no Maranhão. Escreveu “Manuscritos da Guerra” como uma série de poesias sobre a fome, a falta de recursos, o abandono e os preconceitos de classe com as populações do interior do nordeste. Mora em São Luis, é casada e tem 4 filhos.

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Drama no vagão

Entro no metrô em São Paulo na estação da Sé (vim errado para o Siaparto) e observo que os bancos estão todos ocupados. Grudo minha mão no ferro que paira sobre minha cabeça e equilíbrio o corpo quando o vagão arranca de súbito. Encaro as pessoas sentadas cuidando de suas próprias vidas e deixo meu pensamento se esvaziar. Assim, desatento, me assusto ao sentir as leves batidas sobre meu ombro direito e quando volto a cabeça para trás vejo um rapaz corpulento e sorridente apontando para algo ao seu lado. Ainda sem entender, percebo-o insistindo e, só bem depois, me dei conta do desastre que acabara de acontecer.

Ninguém falou nada, não houve protestos, entre os presentes. Todos em silêncio foram cúmplices. O jovem continuava apontando para o canto do vagão e eu, sem saber o que fazer, me encaminhei para lá. Não havia como fugir.

Dois passos adiante vejo o assento azul reservado aos idosos. Sentei-me conformado ao lado de uma senhora. Ao jovem só pude dizer um constrangido “obrigado”, mas tive vontade de esganar sua boa educação e sua absurda gentileza. Tentei explicar, em pensamento, que estou muito longe de merecer esta deferência. Afinal, 6 meses não são 6 dias!!!!

Preferi resignar-me e chorar em silêncio. “Maldita barba branca”, disse eu em pensamento. Pensei que ficar parecido com o Alexandre Frota traria alguma vantagem. Ledo engano!!! A senhora no banco ao lado, ao me ver soluçar, apenas segurou minhas mãos e disse:

– Sei o que voce está passando. Já sofri isso também. Agradeça por ele não ter lhe chamado de “vovô”.

Segui em silêncio fúnebre vislumbrando à frente o lúgubre primeiro dia do resto da minha vida.

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Sobre a Verdade e os Velhos

Eu confesso que usei a estratégia de confrontar a realidade com minha sogra e minha mãe quando suas consciências começaram a dar sinais de enfraquecimento. A principio, como quase todos fazem, eu apresentava a elas o mundo real que seu entendimento desafiava. Mostrava à minha sogra que nao se ajustava os óculos no horario de verão, e à minha mãe que ela não morava mais na velha casa da Anita Garibaldi onde viveu na infância. Sorria pelo constrangimento e pela confusão que passavam. Eu achava que devia trazê-las para o meu mundo, para nāo perdê-las de vez

O tempo passou. Minha sogra faleceu e minha mãe tem hoje a alma enclausurada em um envoltório de matéria. Quase não fala, apenas se alimenta… e sonha.

Hoje eu tenho dúvidas se devia mesmo falar a elas a verdade. Até porque, é preciso definir o que é a “verdade” a ser dita. Quando em minha mãe se aprofundou a demência senil eu mudei de postura. Depois de um tempo parei de lhe dizer a “verdade” porque percebi de forma nítida que ela habitava em um mundo paralelo, onde os valores e os parâmetros eram bastante diferentes dos meus. A verdade, em sua alma, tinha outro formato. Falar para ela que já havia me ligado três vezes para falar do mesmo assunto, ou que seu pai (falecido há 50 anos) não viria buscá-lá não fazia mais sentido. Não via razão alguma em trazê-la para o meu mundo concreto e fazê-la provar reiteradamente o gosto amargo da angústia e do abandono.

Com a mesma lógica que privamos as crianças de verdades que elas não podem alcançar (papai Noel, morte, abandonos, violência, separações) adaptando estas informações no tempo e na capacidade delas, assim eu resolvi fazer com minha sogra e depois com minha mãe. A “tirania do real” não poderia ser uma arma de tortura constante, obrigando uma mente limitada a lidar de forma repetida com a dor de suas perdas.

A verdade não é fim, é meio. Usá-la sem um objetivo de mitigar a dor e a angústia retira seu sentido libertador.

Entendo as disposições em contrário, até porque já usei a estratégia da verdade crua, mas o tempo me fez mudar de visão sobre aqueles cujo apagamento insidioso da mente nos obriga a olhar a verdade com outra perspectiva.

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