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Miúdos

Tenho sete descendentes, dois filhos e seis netos, dos quais um partiu muito cedo para o outro plano. Fui testemunha do desenvolvimento de todos eles. O engatinhar, os primeiros passos, as primeiras palavras e frases. Eu estive junto de todos eles quando nasceram e no lento processo de se ajustarem à vida. Constatei as dificuldades, as quedas, os tropeços, as vitórias e as lutas constantes, assim como as tristezas inerentes à condição humana. Com isso, acumulei uma razoável base de dados oriunda da observação do intrincado processo de crescimento infantil.

Apesar dessa experiência, sou forçado a reconhecer que pouco entendo da vida e seus enigmas. Tudo isso é ainda para mim um profundo mistério. Todavia, longe de ser um defeito, usufruo dessa incompetência com especial deleite. Cada dia no convívio com os miúdos reserva uma surpresa e uma novidade. Percebi que os conhecimentos adquiridos pela criação de várias crianças – direta ou indiretamente – não me capacitam a entender aqueles que agora percorrem o caminho que os outros já trilharam há tempos. Cada um carrega o fardo e a delícia da existência dentro do seu tempo e a partir de suas curiosidades. Nenhum deles engatinhou do mesmo jeito, falou com a mesma idade ou sorriu pelas mesmas caretas e piadas. Todos são almas distintas, com uma perspectiva especial do mundo.

Digo isso apenas porque sempre vi muitas mães e pais descrevendo seus filhos e pedindo conselhos sobre o que fazer para que a criança desenvolvesse determinadas habilidades. Minha resposta era que elas precisam, cada uma a seu jeito, de amor e atenção, além do alimento para o corpo e a proteção contra as agruras do mundo; o resto elas descobrem por si. Meus filhos e netos são fontes inesgotáveis de ensinamentos e oportunizam a redescoberta diária dos encantos da vida. As crianças são a expressão máxima da maravilha que se criou nesse pequeno e pálido ponto azul, perdido na infinita tessitura do universo.

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Histórias médicas

Há basicamente três tipos de escritos médicos que eu me acostumei a ler, tanto na literatura em geral quanto na internet. Existem milhões de textos nessas categorias, e não poderia ser diferente. Ao lidar com a vida, a morte e todas as manifestações da libido, não seria possível à medicina deixar de produzir escritos sobre a profusão de emoções que permeiam as consultas e tratamentos, desde os encontros em consultório até as cirurgias sofisticadas e complexas que são correntes na atualidade. Poucos lugares são mais privilegiados para entender o drama da vida humana do que aquele onde se encontram os guardiões da doença e do sofrimento, da redenção e da cura. Não à toa, grandes literatos foram médicos, como Moacyr Scliar, Arthur Conan Doyle, Anton Tchekov, Ferdinand Céline, Oliver Sacks, William Somerset Maugham, François Rabelais, John Keats, etc…

O primeiro tipo de texto que eu reconheço é o escrito técnico, não o trabalho científico academicamente estruturado, mas aquele onde o objetivo é expor um caso clínico, uma história que ocorre ao redor de um diagnóstico e um tratamento, mesmo que envolto por reflexões de ordem filosófica ou ideológica. Nestes, o centro é a patologia, a doença, a enfermidade como um ente que se apossa do sujeito, toma conta dele e, por fim, o faz sucumbir – ou se salvar, normalmente pela ação médica. Nestes casos a patologia é a protagonista, como uma sombra maligna que ameaça o sujeito que, desesperado, se joga nos braços da medicina em busca de salvação.

O segundo tipo tem como foco o paciente. Durante anos me acostumei a ler histórias onde médicos escrevem sobre as curiosidades que os pacientes lhes contam. Por vezes o paciente é tratado como ingênuo, desatento, inculto, que trata suas doenças por nomes curiosos e “errados” e traz à consulta fantasias sobre o funcionamento do corpo. Diz coisas “engraçadas”, como “operar-se da pênis” (o apêndice) ou que teve “febre interna”. A descrição dos clientes é muitas vezes jocosa e, por vezes, desrespeitosa. Por certo que existem também as descrições de dramas, visões pessoais, dilemas terríveis, alegrias esfuziantes e as perspectivas dos doentes sobre a própria doença e a morte. Na área do parto e nascimento são muito frequentes as descrições do parto quem têm como foco as lutas do casal por uma gestação digna, os dilemas da gestação, a busca pelo protagonismo, as escolhas pelo parto normal, a decisão pelo local de nascimento, a luta contra o sistema e os resultados colhidos nestes desafios.

O terceiro grupo é sobre o próprio médico. Neste tipo especial de texto, o médico é o centro das histórias e é sobre sua atuação que gira o núcleo dramático da narrativa. Sua atenção, a precisão do diagnóstico, a descoberta da doença rara, a paciência, a argúcia, a persistência, a coragem são valores que frequentemente aparecem nessas descrições. Também é usual o paternalismo típico do discurso médico, a postura bondosa e condescendente e as narrativas heroicas, onde o médico é travestido de super herói, que sacrifica seu tempo, sua saúde e sua família em nome da cura dos seus pacientes.

Neste último grupo, e bem mais raro, se encontram os textos que estimulam posturas críticas em relação à ação da medicina e ao próprio proceder médico. Essas são as narrativas mais importantes e de qualidade superior, pois que pressupõem a coragem de tocar nas próprias feridas, tanto sobre o significado último da arte médica na cultura quanto nas fragilidades do médico, seus medos, suas angústias, suas aspirações, seus desejos e suas fantasias de onipotência. O profissional que tem a coragem de se olhar no espelho e descrever a si mesmo com a dureza necessária já é merecedor de toda admiração. Poucos ousam apontar suas máculas e falhas; aqueles que o fazem, demonstram força e um singular senso de integridade.

Não há dúvida que a medicina é um palco especial para as narrativas da vida. Ela está presente no seu início e no seu fim, com um olhar especial sobre as pontas da nossa curta passagem por este plano, mas também sobre todos os percalços dessa travessia complexa e tortuosa. As reflexões dos médicos se tornam extremamente criativas quando quem as escreve se afasta do ufanismo arrogante do “salvador” ou do “abnegado curador” e se aproxima do sujeito com todas as fragilidades humanas a quem foram oferecidas as ferramentas de um saber milenar para levar adiante seu ofício. O médico sofistica sua escrita quando descreve o choque entre o saber do médico e os dramas e dores do seu paciente como um encontro de almas, pois é dessa matéria única que são feitas as consultas.

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Filhos

São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.

Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.

Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.

Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.

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Mundo às escuras

Sempre que eu vejo as representações do surgimento do planeta, ou mesmo o aparecimento posterior desse profundo mistério chamado “vida” – a organização complexa que surge da matéria inerte – eu tenho uma sensação estranha. Apesar das maravilhosas demonstrações do que poderiam ter sido as etapas de vulcanismo, das chuvas infinitas, a criação dos oceanos e as primeiras estruturas vivas surgidas em suas águas mornas – já mais recentemente – eu me surpreendo que toda esse período enorme da história do planeta ocorreu “às escuras”.

Sim, porque a complexidade dos globos oculares surgiram há poucos milhões de anos, ainda no período Cambriano, por volta de 545 milhões de anos passados. O período Cambriano, meio bilhão de anos atrás, foi um pico de produção e diversidade de vida, como poucos na história da Terra. Nenhuma evidência da existência dessa estrutura é encontrada em períodos anteriores a ele, mas uma grande variedade de olhos é encontrada no registro fóssil de Burgess Shale, que ocorreu no Cambriano Médio.

Assim, os 3.5 bilhões de anos anteriores a este período ocorreram sem testemunhas oculares. Ressecamento da crosta, vulcões em erupção, o surgimento da flora, o aparecimento das primeiras bactérias, os moluscos, os maremotos, nada disso foi visto por nenhuma criatura. Foi necessária a criação da Geologia e das imagens geradas por computador para podermos imaginar como teria sido esse período e transformá-lo em imagens majestosas e impressionantes. 

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Bolhas

Cena 1: Meu avô morreu aos 94 anos na casa do meu pai. Estava cansado e tinha problemas respiratórios crônicos. Morreu de gripe. Acordou pela manhã e avisou o meu pai que era seu último dia. Distribuiu seus pertences – entre verdadeiros e imaginários – para os filhos e netos. No meio da tarde, e com muita dificuldade respiratória, chamou meu pai e disse “Deu…”. Fechou os olhos, expirou pela última vez e foi encontrar minha avó no outro plano.

Até pouco antes de morrer mantinha o hábito de tomar whisky “on the rocks” todas as tardes. Um dia uma parente notou o copo servido ao seu lado e tentou retirá-lo discretamente. Quando viu, meu avô puxou o copo para si e disse “não mexa no meu scotch!!”, ao que ela falou “não faz bem para você tomar isso todos os dias”. Ele respondeu com aquela cara vermelha e mau humorada dos ingleses: “Tenho mais de 90 anos e vou partir em breve. Deixe-me ao menos morrer feliz”.

Cena 2: Trabalhei muitos anos com pacientes renais em uma clínica de diálise. Os pacientes tinham dietas severas, com ausência quase total de sal, o que torna a comida sem sabor algum. Havia entre eles um garoto de 20 anos que morava na periferia da minha cidade. Era dependente químico, tinha um bebê recém nascido e os rins destruídos. Sobrevivia pela hemodiálise que fazia duas vezes por semana. Mais de uma vez fui buscá-lo no banheiro onde se escondia para comer pó de K-Suco. Uma segunda-feira sua esposa ligou para a clínica dizendo que ele não viria fazer a diálise. Montou uma festa em casa no fim de semana onde bebeu, comeu de tudo e avisou que seria seu último dia de vida. Disse “não quero mais viver uma vida sem gosto”. Morreu no domingo à noite.

Cena 3: o Garoto da Bolha, filme com John Travolta e baseado em fatos reais. Ausência de funcionalidade do sistema imunológico, o que o obrigava a viver dentro de uma bolha. O filme inteiro é sobre a vida insuportável e solitária do garoto, preso em seu mundo de plástico. A cena final do filme é sua fuga da bolha e o contato com o mundo de verdade.

Essas histórias me vem à memória quando acusam de irresponsáveis (com razão) as pessoas que resolvem fazer festa, abraçar, beijar, transar, ir à praia e fazer compras. Talvez o pensamento simplista delas seja “de que vale a vida sem poder vivê-la de verdade?”.

Para mim é fácil apontar o dedo para essa gente, já que tenho os genes da fobia social e vou passar o resto da minha vida isolado e solitário, mas o que dizer das “pessoas das pessoas”, os extrovertidos, os amorosos, os carentes e os amantes? É justo acusá-los de exigirem o direito de viver uma vida feliz, ao lado de quem amam?

Sim, eu sei. A pandemia, o afastamento, o vírus, a segurança dos OUTROS e não apenas a sua, etc. Tudo isso é verdade é não há como discordar. Eu apenas acho errado condenar ao inferno as pessoas que se rebelam contra uma vida infeliz e encarcerada. Se podemos condenar as atitudes que negligenciam a epidemia também acho que é justo entender quem apenas sonha com uma vida miseravelmente normal.

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Ética

Eu me acostumei a ouvir a acusação de “radical” por muitos anos. Na verdade este radicalismo que tanto eu ouvia como ofensa e com dedos rígidos apontados se resumia apenas a… cumprir a lei. Chamar de radical é uma forma usual de acusar o outro para desobrigar-se de fazer o que é certo. Assim quando você acha uma carteira na rua e se esforça para achar o dono e alguém lhe diz, constrangido pela sua atitude: “Ora, não precisa ser tão radical; achado não é roubado”...

… é sim; não existe “meia-ética”, e jamais será abusivo tratar com respeito aqueles com quem se divide essa curta estrada chamada vida.

Mary Lemont Ashcroft, “Pictures in Exhibition”, Ed. ELP, pág. 135

Mary Lemon Ashcroft é uma professora de direito em Yale Nasceu em Siracusa, USA e durante muitos anos exerceu sua profissão na famosa banca de advogados Cohen, Weisberg and Ashcrof. Nestes anos dedicou-se a muitas causas sociais, como o movimento “pro-choice” – pelo direito ao aborto legal – pelos direitos dos negros e o “Black Lives Matter” e igualmente pela defesa das pessoas trans. Suas experiências com os movimentos sociais americanos a estimularam a escrever “Pictures in Exhibition”, que mostra um mapa do preconceito sexual, étnico e de orientação sexual nos Estados Unidos através das inúmeras histórias reais retratadas no livro. É casada com Peter Ascroft, igualmente advogado e que serviu como consultor do governo democrata de Bill Clinton. Mora em Siracusa e tem dois filhos.

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A Força do Silêncio

Nikolai acordou quando uma lâmina de luz invadiu sorrateiramente a cela lambendo seu corpo encolhido. Abriu os olhos com sofreguidão, afastando as pálpebras e permitindo que o sol esquentasse sua cara amassada e pálida.  O brilho luminoso que tocava seus cabelos loiros e revoltos parecia produzir uma chama em sua cabeça. Resmungou um pouco e reclamou da hora. Não era fácil dormir durante a noite ao som dos gritos, os barulhos dos ratos, a conversa dos carcereiros e os sons variados da noite, os cães, os gatos, as corujas e os camburões que chegavam ao portão central trazendo novos hóspedes. Tudo isso fazia sua cela solitária ser invadida por milhões de pequenos pacotes de som, muitos deles misturados e sem distinção, enquanto alguns chegavam solitários e nítidos. A noite na prisão era cheia de vazios preenchidos por angústias e medo. Ergueu seu corpo esquálido e resolveu se refugiar do calor do sol, deu dois passos e colocou-se na face oposta da pequena cela, onde a sombra ainda cobria de penumbra a parede descascada. Ajustou suas costas nuas no vão entre a parede e um ressalto da viga e sentiu o vinco do concreto a lhe machucar as costelas. Apesar de passar horas durante o dia encostado naquela parede, nunca havia sentido o vinco do ressalto a lhe incomodar. Afastou-se por momentos da parede e olhou para o pequeno vão atrás de si para entender porque seu corpo parecia não caber mais naquele espaço.

Anos já se haviam passado desde que pela primeira vez foi colocado na pequena cela solitária. Não havia engordado, por certo. Sua perda de peso já contava mais de 20 quilos desde que ali chegara. Como poderia então seu corpo subitamente não caber mais num espaço que sempre foi usado para fugir do sol impiedoso que lhe castigava nas manhãs de verão? Olhou mais uma vez para o pequeno vão entre a viga e a parede branca. De súbito fechou os olhos, girou a cabeça em direção à porta enferrujada e suja da cela e, depois de alguns instantes puxando pela memória, tentou recordar as imagens que deveria estar vendo. Descreveu mentalmente a porta de ferro verde, a portinhola de baixo por onde lhe chegava o pão duro e a sopa de peixes, o grunhido que faz ao abrir, os sapatos dos carcereiros, o ar que entra quando ela eventualmente é aberta, o vaso sanitário imundo que está no canto contíguo e o sol colorindo com sua luz o chão poeirento.

Depois do exercício, abriu os olhos e se assustou com as imagens que viu sobrepostas à sua lembrança. Tudo em sua mente estava levemente diferente. Em pânico se ergue, empurra suas costas contra a parede e decide contar os passos até a porta da cela. Menos de quatro passos. Muito impreciso. Prefere, então, contar com os pés. Equilibra-se como um bailarino de corda bamba e coloca um pé disforme e sujo depois do outro, cutucando seu calcanhar cascurrento com a unha do dedão. Contou catorze pés e mais quatro dedos da mão. O sentimento era de assombro e pânico. Pensou por alguns instantes estar alucinando, mas resolveu olhar os rabiscos na porta de ferro, feitos com o cabo de seu garfo, nos primeiros dias em que ali havia chegado. Leu seu nome “Nikolai” arranhado na porta, com a letra trêmula que lhe sobrou após uma noite de espancamentos.

Não havia em sua mente mais nenhuma dúvida, e um frio gelado percorreu o estreito espaço de sua coluna. Aquela era a sua velha cela imunda, e ela estava encolhendo.

Nikolai Kuznetzov, “Сила молчания” (A Força do Silêncio), Ed Dubrov, pag 135.

Nikolai Kuznetsov é um escritor russo, nascido em São Petersburgo em 1958. É irmão do também escritor Anatoli Kuznetsov, apesar de terem mães diferentes, pois a mãe de Nikolai morreu de tifo pouco depois de sua morte e seu pai Sergei Kuznetsov casou-se com sua segunda esposa Maria, e tiveram seu único filho Anatoli. Enquanto Anatoli participava de manifestações e escrevia textos de protesto Nikolai dedicou-se às letras estimulado fortemente pelo irmão, cuja luta em defesa dos direitos LGBT muito o influenciou. Apesar de não ser homossexual esteve preso, assim como seu irmão, pelas passeatas e demonstrações das quais participou em defesa da comunidade LGBT. Escreveu “A Força do Silêncio” ainda na penitenciária em Moscou, para onde foi levado após uma prisão arbitrária sob a acusação de profanar a bandeira da federação Russa. É casado com Ekaterina Fedorov, e tem duas filhas: Natália e Malinka.

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Os Tempos e as Dores

Certo que perdemos muito tempo antes de empreender um tratamento para nossos dramas psíquicos. Certo também que sempre lamentamos não ter começado a resolvê-los antes de se agravarem. Não há como fugir dessa culpa. Todavia, todo aquele que consegue resolver seus problemas numa roda de cerveja é porque realmente não estava “pronto” para procurar uma psicóloga para auxiliá-lo na busca das origens profundas de suas angústias.

A mesma lógica eu usaria para o sujeito que quer colocar um quadro na parede ou fazer uma mudança na casa que se limitava a trocar os móveis de posição. Nesse caso não era necessário um arquiteto ou engenheiro. Pela simplicidade do problemas, soluções simples. Posso oferecer mil exemplos com médicos, advogados, cozinheiros e decoradores com este mesmo raciocínio.

Minha tese é que para procurar uma analista – e vou me deter na análise – é necessário ter passado por estes passos intermediários sem sucesso, como um processo lento de maturação. Comprar roupas, trocar de namorado(a), rezar, viajar, emagrecer, fazer cirurgia plástica, mudar de emprego etc. são ações que podem aplacar a sua angústia, caso esta seja superficial e conjuntural. Entretanto, depois que todas estas atitudes foram tomadas e o vácuo na alma ainda estiver presente e a dor ainda persistir, somente aí teremos o momento adequado de procurar uma análise. Antes disso o sofrimento imposto pelo tratamento psicanalítico será muito penoso e provavelmente intolerável.

Assim sendo, não há como procurar tais recursos sem um quinhão adequado de neurose. A curiosidade ou a “vontade de resolver alguns problemas” não são motivações suficientemente fortes para empreender tal aventura nos domínios do inconsciente.

” And,of course, there’s the financial problem of people who really need and want a psychological help but that such a thing is not available, or is too expensive so that the regular person cannot afford it. Certainly, millions would get relief for their pains and suffering if we offer them adequate psychological treatment instead of giving the false idea that consumerism is the ultimate path to happiness.”

Portanto, não se culpe por ter retardado por tanto tempo sua procura por uma ajuda mais profunda. As borboletas nos ensinam que sair do casulo demanda uma espera para secar as asas. Se ela se apressar, cai sob o peso das asas molhadas. Para nós, o tempo para amadurecer o mergulho no inconsciente é o exato tempo de aceitar a dor como ferramenta de crescimento.

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