Arquivo do mês: julho 2020

Serra

José Serra deveria ser preso se comprovado que cometeu crimes?

Se José Serra cometeu os crimes pelos quais é suspeito, que se estabeleça algum tipo de reparação. Combater o primitivismo no judiciário e na cultura não significa aceitar a impunidade, mas imaginar que a retirada da liberdade de alguém deveria ser revestida de uma extrema excepcionalidade, reservada para casos de risco iminente à vida das pessoas.

Todavia, prisão para idosos é pura crueldade e não é solução para nada. Pelo menos no Brasil não é, mas desafio que me apresentem algum país desenvolvido que acredita em encarceramento como remédio adequado para a criminalidade – e que não seja o catastrófico exemplo da sede do Império.

Vou mais adiante: se Serra fosse preso sairíamos todos perdendo. O país, por ter que arcar com acomodações e cuidados médicos de um sujeito depauperado dentro de um sistema penitenciário sem recursos e falido e o criminoso por ser exposto a um tratamento cruel e desumano dentro dos nossos presídios superlotados. Também é digno de nota que este sujeito em especial já é prisioneiro de sua condição de saúde frágil.

Aliás, não esqueçam que não há nada mais à direita no espectro politico – e até fascista – do que desejar que seus adversários sejam presos. Quem é de esquerda é abolicionista penal, recusa o encarceramento como punição padrão para os crimes, tanto quanto é contrário à uma policia militarizada, cruel e genocida. Quem gosta de sair gritando “prendam”, “que apodreçam na cadeia” está infectado por uma ideologia punitivista arcaica, derivada da contaminação por filmes americanos, onde se anda de pistola na cintura, exaltam-se justiceiros e o ícone máximo é a cadeira elétrica.

É preciso amassar esses velhos conceitos e jogá-los na lata de lixo da história.

Por uma questão de justiça eu gostaria apenas de complementar dizendo que, a despeito de erros que porventura tenha cometido, José Serra fez uma excelente administração no Ministério da Saúde, onde plantou as sementes para programas importantes até nos governos do PT, em especial no que diz respeito às políticas de saúde para a mulher e as bases da humanização do nascimento.

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Arquivado em Política, Violência

Iconografia

A expressão do rosto de ambos é o que deveria ser mostrado nas novelas, nos filmes e apresentado para as crianças na escola. A felicidade contagiante da imagem conta mais sobre a realidade profunda do parto do que compêndios de obstetricia, por conjugar de forma holográfica uma serie de verdades escondidas. A iconografia do parto, desde que a Medicina se apoderou do evento patologizando-o no seu intento expropriativo, nos deixou como legado as imagens da dor, do abandono, do sofrimento, do medo e do horror. Por muitas décadas a face do parto foi a emergência, a tragédia, o drama e a defectividade essencial do processo. A culpa seria, a partir de então, das das mulheres e seu mecanismo falho, seus úteros débeis e suas vaginas dentadas.

Por outro lado, desde a emergência da especialidade médica no parto, o canto de sereia da alienação feminina do evento se fez ouvir. Primeiro ao admitir que cirurgiões operando na lógica da intervenção tomassem conta de um evento fisiológico, onde a regra deveria ser da não-intervenção, do respeito aos ciclos e da paciência com os tempos. Depois retiraram das mulheres a ambiência calorosa e reasseguradora que por milênios as cercou, levando-as para hospitais frios e assépticos, onde a lógica que contamina suas paredes é a da doença e das ações etiocêntricas.

Ato contínuo, a família foi apartada da gestante, os bebês de suas mães, o leite foi separado do peito e os cirurgiões se tornaram os intermediários entre os núcleos familiares e a cultura patriarcal, usando o momento de pura energia transformativa como uma porta de entrada para doutrinar mães e bebês para seu lugar submisso na cultura.

A obstetricia, assim estabelecida, vem a se tornar um braço poderoso do patriarcado na cultura do Ocidente.

A partir desses dois pontos – os cirurgiões no comando e o parto hospitalar – o caminho para a total alienação do parto estava pavimentado. O controle panóptico do pré-natal, as drogas, os exames, as ultrassonografias (em sua maioria) inúteis e invasivas, a ilusão biologicista do controle total e a mecanização extrema de todo o processo foram os seguimentos naturais.

A foto perturbadora de um casal sorrindo e feliz no momento do nascimento, experimentando essa passagem com êxtase e alegria, causa espanto porque o modelo obstétrico, ao tornar esse momento um “ato médico” não consegue apreender a gama infinita de manifestações sociais, fisiológicas, emocionais, psicológicas e espirituais que esse evento comporta. Ao se ater apenas nas questões mecânicas e biológicas, com foco especial na patologia e cobertos pelo manto do medo, é natural que as cesarianas – com sua imagem ilusória de segurança, limpeza, ciência e silêncio – se tornassem a fotografia padrão dos nascimentos no Brasil.

Criamos um mapa tão distante da realidade que a essência profunda do parto desapareceu e, quando sua real imagem aparece na tela da cultura, ela causa espanto e assombro.

Para mudar a cultura do parto também é necessário mudar sua iconografia. Cabe a nós, testemunhas do milagre, retratá-lo em sua mais completa grandiloquência.

Foto de Anna Galafrio

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O Penhasco dos Sonhos

A mensagem veio dobrada em um papel amassado que Jason colocou em meu bolso momentos antes de entrarmos na sala do magistrado de apelações do condado. Resolvi abrir, com discrição, pois poderia ser algo importante, algum ponto especial a dizer – ou calar – diante do Juiz durante a sessão. Meus dedos procuraram as pontas da pequena dobradura e a abriram. Coloquei os óculos e li o que estava escrito com a letra desengonçada de Jason.

– Martin e a mulher estão mortos. Acidente de carro.

Levantei os olhos a procura de Jason, mas ele não mais estava na sala. Como auxiliar de defesa ele não tinha obrigação de estar ali, apenas o meu defensor. Olhei de novo para o papel com a respiração ofegante, sem saber o que dizer. Percebi que estava corado. Sim, eu me sentia envergonhado.

Martin era a razão de toda a minha desgraça. Se eu estava em uma sala fria aguardando um juiz prepotente e estúpido para analisar minha causa eu devia isso a Martin. Fora ele que, por inveja do meu sucesso rápido na banca de advogados do seu pai, havia me denunciado à polícia por defender uma mulher negra e pobre por posse de drogas, hospedando-a em minha própria casa. Sua acusação – falsa e absurda – era de intermediar a venda de drogas e esconder uma fugitiva. Sabia de suas ligações espúrias com a polícia, mas acima de tudo percebia seu ciúme doentio pelo fato de eu ser admirado por seu pai. Desde o início do processo soube que Martin estava por trás de tudo. As drogas plantadas, o falso testemunho de Bridget, a pressão sobre o pessoal na polícia. Seu cinismo ao me oferecer ajuda foi nauseante. Diante disso eu o odiei com todas as minhas forças. Imaginei toda a sorte de sofrimentos e tragédias para ele. Fantasiei todas as desgraças imagináveis para ele para os seus.

Inclusive essa.

Agora eu me envergonhava dos meus pensamentos. Olhava para os lados como se soubessem à minha volta o quanto desejei este terrível infortúnio. Mais ainda; senti culpa por desejar tanto, e com tanta veemência de espírito, como se minha vontade estivesse magicamente conectada por meio de cordéis etéreos ao acidente fatal. Uma culpa a mais com a qual teria que lidar.

Leonard Doohan, “Cliff of Dreams” (Penhasco dos Sonhos), ed. Bethesda, pág. 135

Leonard Doohan é um escritor americano nascido em Corpus Christi – Texas em 1977. O romance jurídico/policial “Penhasco dos Sonhos” de Leonard Doohan (seu melhor livro, ainda melhor que “Eu, Vincent”, que virou filme com Jennifer Coolidge no papel de Laura/Vincent) foi escrito imediatamente após cumprir pena no Ventress Correctional Facility em Clayton, Alabama (USA). A partir desse livro, que combina memórias pessoais com relatos recolhidos de colegas de penitenciária, ele inaugurou uma sequência de 14 obras nas quais ele escreve especificamente sobre o universo “white trash”, os “rednecks” do sul dos Estados Unidos, a cultura masculina decadente e a idolatria por figuras como Trump. Vive ainda hoje em Galveston no Texas, com seu cão Jax, e está escrevendo um romance sobre o lado pouco conhecido e obscuro da família Bush.

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Jean Wyllys e a Palestina

Eu gosto de algumas posições do Jean e muitas das causas que ele defende, apesar de ser critico de algumas outras. Por isso mesmo, por admirar sua coragem e apoiar algumas pautas (como a humanização do nascimento), eu fiquei profundamente decepcionado com sua ida à Palestina, através de um convite mequetrefe da Universidade para debater “diversidade”, caindo no alçapão do pinkwashing sionista. Enquanto estava lá, no “convescote racista” do qual participou, ele chegou a escrever alguns textos defendendo sua presença no seminário. As explicações eram eivadas do mais primário dos relativismos, ao estilo “os dois lados tem suas culpas”, “é preciso paz“, “o terrorismo precisa acabar“, “Israel tem o direito de existir“, “não aceitamos antissemitismo“, etc. Para terminar oferece a novidade de propor a “solução de dois Estados”, um judeu e outro árabe palestino.

Ora, qualquer um que se debruça sobre o tema sabe que a solução de dois Estados foi boicotada por Israel. O plano SEMPRE foi, desde 1948, a limpeza étnica e o genocídio. Hoje, com as invasões sistemáticas da linha verde, a solução de dois Estados é impossível, e só resta a solução de UMA Palestina – como nação multiétnica. Uma nação, vários povos. Como a Bélgica ou a Suíça, por exemplo, ou mesmo a África do Sul, que venceu o Apartheid. Jean é o representante da esquerda sionista no Brasil que precisa ser confrontada, que precisa parar de beber da propaganda de Israel e reconhecer os crimes à humanidade perpetrados contra a população Palestina nativa.

Entretanto, por Jean ser homossexual e negro, ele sabe muito bem o que é preconceito, racismo e exclusão. Tenho a esperança de que esta conversa com Lula seja mais um tijolo a edificar uma troca de postura diante da causa Palestina. As pessoas podem aprender com seus erros e rever suas posturas.

Espero que Jean tenha a sabedoria para apagar esta mácula em sua biografia.

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Lost in Space

Para que vocês possam aquilatar o que o confinamento é capaz de fazer com uma pessoa, hoje eu assisti o filme piloto dos “Perdidos no Espaço” o original de 1965.

O filme é profundamente tosco, primário mesmo, e serviu como base para a série que lhe seguiria, mas não tinha a figura do Dr Smith. Assim, a série que foi lançada logo após teve que começar do zero e inventar um novo início, incluindo o personagem de Jonathan Harris. O filme tem os mesmos personagens e nomes da serie que o seguiu, com exceção do Júpiter II, que se chamava “Gemini XII”. O ano de saída da terra foi 1997 e eles ficaram viajando até 2001, quando ocorreu a falha do sistema e acabaram descendo em um planeta desconhecido e montanhoso, mas com atmosfera.

No filme piloto as roupas ainda não eram o modelito da série, mas este traje, tipo papel alumínio. Aliás, o problema na nave – que os deixou “Perdidos no Espaço” – foi produzido por um acidente (ao contrário da série posterior, onde a culpa foi do Dr Smith), em que a nave foi atingida por uma chuva de meteoros – que mais pareciam bolotinhas de papel. Muito mal feitos… mas tudo bem, o ano da produção foi 1965. O monstro com o qual lutam no planeta onde desceram é muito pior do que a pior das criaturas do Spectreman. Absolutamente ridículo…

O piloto de Perdidos no Espaço pretendia ter como pano de fundo o que estava acontecendo naquele período: o programa Apolo e as naves Gemini. Apenas 4 anos depois do início da série a Apolo 11 pousaria na Lua. Quando perceberam que o projeto de “Perdidos no Espaço” seria um brutal fracasso (apoiada na ideia de uma nova “Família Robinson” perdida, agora no espaço), resolveram incluir dois elementos novos, essenciais para o sucesso (até inesperado) que tiveram: o Dr Smith e o robô, que salvaram a série.

Ahhh, e quando lançaram a série tiraram a música tema de “O dia em que a Terra parou” e colocaram a música do jovem e genial John Williams para a abertura. Inesquecível.

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Monogamia

Eu sou do tempo em que virgindade era um valor social. Caiu estrondosamente sem deixar vestígios. Por isso mesmo acredito nessa dinâmica e na ação do tempo sobre mitos e tabus. A monogamia é um passo mais longo e talvez sua queda leve mais tempo. Quem viver verá…

Entretanto, restará ainda o cuidado com as crianças, que demanda esforço conjunto. Eu vivi desde a minha infância a descoberta da paternidade e dos cuidados paternos. Escrevi sobre isso e desagradei algumas pessoas, mas é fato que os homens dessa geração são muito mais próximos dos seus filhos do que todas as gerações anteriores. Quando comparo os cuidados parentais do meu filho com aqueles oferecidos pelo meu pai e avô (e até por mim mesmo) existe um fosso gigantesco de proximidade, cumplicidade e cuidado direto com os filhos.

Assim, houve uma explosão do papel social masculino com os cuidados de bebês e crianças e um decréscimo inegável na importância da maternidade da vida das mulheres, a ponto de haver grupos que a rejeitam por completo. O que era o destino inexorável de todas elas passou a ser apenas uma de tantas vertentes de realização em suas vidas. Para os homens uma descoberta, para as mulheres uma libertação.

Se houve mudanças substantivas no terreno da “posse sobre corpos alheios”, e o questionamento contemporâneo sobre as relações “fechadas”, eu ainda fico reticente com os casamentos abertos onde há filhos para criar. “Abrir” para deixar mulheres (mais uma vez) desamparadas não me parece justo. Precisaremos criar uma nova instituição para isso, caso contrário os casamentos de coabitação e monogâmicos continuarão prevalecendo.

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Consulta Virtual

Depois de 35 anos de análise dei uma parada em função da pandemia. Fui convidado a continuar na modalidade “à distância”. Via Skype ou Whatsapp.

De pronto me neguei.

Entendo a necessidade de manter os atendimentos. Entendo que é possível manter uma análise à distância e compreendo o ineditismo da pandemia em termos de confinamento, mas não consegui aceitar para mim este modelo. Até porque não aceitaria atender assim, salvo emergências.

Após receber o convite fiquei pensando sobre as “sessões virtuais” e cheguei a conclusão que minha dificuldade em aceitá-las tem a ver com a sacralidade que reconheço nesse tipo de encontro.

Não apenas o contato direto com o terapeuta me parece essencial mas todo o ritual que o cerca – sair de casa, pensar no caminho, aguardar uns minutos antes de ser chamado, voltar para casa, ruminar sobre o que foi discutido, tomar decisões. Todos esses passos fazem parte do processo. Para além das terapias, também é um ritual que está impregnado na forma como se estabelecem os encontros médicos. Três décadas escutando pacientes me mostrou que existe muito mais numa visita ao médico do que as palavras ditas na brevidade de uma consulta.

Muitas vezes o não dito é mais importante do que o debatido, assim como as palavras podem ser menos importantes do que os silêncios. As vezes sobrevém a sedução de pensar “mas era algo simples, olhar um exame“, mas as coisas são simples tão somente na aparência. Cada encontro desses carrega um fardo de angústias, tensões, histórias, lembranças e um pedido sutil de ouvidos benevolentes em uma escuta gentil e respeitosa. Muitas consultas eliminam sintomas bastando para isso sentar e chorar um pouco.

Em silêncio.

Para além disso, as questões do “olhar”, que considero muito importantes, são fundamentais. Lembro das queixas de pacientes sobre seus médicos quando diziam “ele nem olhou para mim”. Isto é, ele não reconheceu sua dor, sua tristeza, sua angústia.

Sei que sou cafona, boko-moko e saudosista. Sei também que talvez não haja saída ou futuro para este médico que, não só estava presente mas ia na sua casa e sabia o nome do seu cachorro. Sei que os vínculos hoje são tênues e os médicos carregam epítetos estranhos e despersonalizantes como “médico do posto” ou “médico do convênio”, sem rosto, sem nome, sem estilo e sem história. Todavia, a velhice apenas deixou mais evidente uma crença da juventude:

“O maior remédio que um médico pode oferecer ao seu paciente é sua presença e sua escuta isenta de preconceitos, e nenhuma cura verdadeira ocorre sem vínculo” (adaptado de Balint)

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