Arquivo do mês: junho 2023

Suprema corte

Tenho, há muitos anos, uma curiosidade: ao mesmo tempo em que Gilmar Mendes questiona a formação do juiz que fala “conje“, e desconfia do concurso público que o admitiu na magistratura, lembramos que este mesmo juiz, ainda muito jovem, foi convidado a ser assessor da ministra Rosa Weber no STF. Esta ministra foi a mesma que protagonizou o monstrengo jurídico do “não tenho provas, mas a literatura me permite”, um contorcionismo usado uma única vez e apenas para condenar um político que era o “Ficha 1” para suceder Lula na presidência do país. Por que um sujeito nitidamente desqualificado atingiu postos tão altos em tão pouco tempo? Quem está por trás desse personagem?

Mas minha pergunta não deve fazer pensar que tenho simpatias pela Suprema Corte. Até um relógio parado acerta duas vezes por dia. Por isso não aceito a moda atual da esquerda gratiluz identitária que se expressa pela exaltação de ministros da Suprema Corte. “Te amo STF”, dizem eles para qualquer atitude violenta do Xandão. Só pode ser piada. Até o Dudu Bananinha alertou: “As esquerdas ainda não notaram que é da esquerda que virão as próximas vítimas?”.

Então o autoritarismo do STF agora pode ser aplaudido porque a decisão aparentemente está em sintonia com nossos sentimentos de vingança? Esquecemos o silêncio do STF para o impeachment ilegal de Dilma? Vamos passar pano para as ilegalidades inconstitucionais cometidas nos julgamentos de Lula, que só não destruíram o Brasil pela sorte de termos uma VazaJato? Por acaso seria justo ter um “Serjomoro Vermelho” para nos vingar, burlando as regras do judiciário para nos beneficiar? Ou será que ainda acreditamos na ideia de que a justiça burguesa poderá nos salvar?

Será que não percebem que a mão que (agora) afaga é a mesma que (logo em breve) apedreja?

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Minorias

Dave Chapelle (comediante de stand up americano) conta uma história muito interessante em seu último espetáculo. Após um dos seus shows – politicamente incorreto, como todos deveriam ser – foi ele confrontado por uma mulher trans que não gostou de suas piadas. Ele respondeu como é de praxe “Sinto muito que tenha se ofendido. São piadas, não tem a intenção de ofender, mas de nos fazer pensar”, etc. Ela não aceitou a desculpa, e dois enormes amigos gays que estavam ao seu lado resolveram interceder, ameaçando Dave. Houve uma breve troca de insultos. Como legítimo representante da “hood” Dave pagou pra ver. Cerrou os punhos e disse “bring it on”, chamando os dois para a briga.

Um dos gays, então, calmamente pegou o telefone e… chamou a polícia.

“Foi aí que eu entendi com mais profundidade a dinâmica das minorias”, disse Dave em seu show. “Excetuando-se eu, todas as pessoas nesse encontro eram brancas. Os gays se sentiram ofendidos por serem uma minoria oprimida, mas tão logo a situação chegou no limite do confronto físico eles imediatamente se tornaram parte da maioria branca, pois só um branco seria capaz de chamar a força do Estado para resolver um conflito”.

Num passe de mágica, pularam de uma minoria ofendida para uma maioria opressora. Fossem eles gays negros e jamais chamariam os tiras. Numa comunidade de pretos (hood) a polícia sai batendo indiscriminadamente, e não quer saber quem foi o “Clifford que fez a queixa” – todos são iguais para a borracha do cassetete. Precisa ser muito branco para confiar que a intermediação da polícia em uma briga lhe trará alguma vantagem.

A esquerda brasileira deveria aprender com isso. Cada vez que vejo parlamentares ou membros da esquerda exaltando as forças do estado burguês, acreditando que judiciário pode lhes proteger, eu lembro dessa história. Essas instituições servem à proteção da burguesia e não servem ao cidadão pobre que vive nos cinturões de pobreza, e também não estão a serviço daqueles que dão apoio político ao proletariado. Quem fica o tempo todo pedindo censura, exigindo a cassação de cegas parlamentares e apelando às instituições acaba se chamuscado com a própria fogueira que tanto abanou.

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Abandono

Talvez a cena que mais me chocou ao ver “Freud além da Alma”, filme de John Huston de 1962 com Montgomery Cliff e roteiro de Jean Paul Sartre, foi a cena em que Breuer, que funcionava para Freud como uma figura paterna, lhe diz que jamais arriscaria sua reputação para defender as ideias sobre as origens da histeria que ele havia formulado, dizendo não acreditar nas tolices por ele escritas. Naquele momento, em que suas ideias eram atacadas de forma vil pelos médicos da Ordem Médica de Viena, o abandono de uma figura tão importante para sua vida teve uma repercussão determinante e decisiva. Talvez tão importante quanto a morte do seu pai, o abandono de Breuer trouxe sombras à relação que ele manteria dali em diante com a própria Medicina.

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Elogios

É evidente que existem elogios sinceros e justos. Não há dúvida que nossas ações – ou muitas delas – são merecedoras de apreço e consideração. Não há razão para desconfiar de qualquer palavra positiva sobre você, seu caráter, suas ideias ou o seu trabalho.

Todavia, os elogios podem ser grandes armadilhas. Muitas pessoas lhe elogiam para receber como recompensa um presente futuro: uma dívida de consideração e apreço. As pessoas podem lhe elogiar esperando de volta a mesma consideração e admiração. Portanto, acreditar em elogios, mesmo quando aparentemente não há retorno objetivo, é uma atitude no mínimo arriscada, pois que o ganho de quem elogia é inconsciente e subliminar.

Elogios devem sempre ser escutados com clara desconfiança. Raramente produzem benefícios, porém podem nos tornar arrogantes e presunçosos, pois carregam o pior dos venenos: a confiança exagerada em si mesmo.

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Jornadas, uma década depois

Estive com a minha família nas jornadas de junho em 2013, mais por curiosidade do que por interesse em participar de algum ato político. Eu já tinha iniciado meu rompimento definitivo com o reformismo e com a esquerda liberal, portanto não trazia comigo muita fé nas manifestações limpinhas da classe média. Chegando ao lado do Palácio do Governo a população se aglomerava enquanto se ouviam os gritos de “chega”, “abaixo a corrupção”, “não é pelos 20 centavos” entre outros bordões, que se tornaram famosos à época. Havia um nítido entusiasmo juvenil, parecido com o movimento surgido poucos anos depois que defendia o uso de shorts curtos pelas meninas de uma escola burguesa da capital do Estado. Confundíamos a puerilidade das liberdades burguesas com exercício da cidadania.

Na rua estava a classe média. Não havia operários serventes, trabalhadores, empregadas ou faxineiras. Claro, havia pobres, mas estes aproveitavam para vender refrigerante e cachorro quente para os jovens da pequena burguesia. Entrementes, algo me chamou a atenção logo que cheguei ao evento: percebi uma estrutura organizada para receber os inflamados discursos, o que deixava claro a existência de uma fonte de recursos que promovia o evento. “Quem paga?” perguntei retoricamente, recebendo de todos o silêncio como resposta.

Subindo pela rua que fica ao lado do fórum em direção à praça da Matriz, eu vi um pequeno grupo de não mais do que meia dizia de jovens tentar desenrolar uma grande bandeira vermelha com duas ferramentas pintadas de amarelo cruzadas ao centro. Foram imediatamente impedidos de fazê-lo por um grupo bem maior de transeuntes que seguiam na mesma direção. O grito deles ecoa até hoje: “Sem partido, sem partido”, gritavam. Para minha surpresa o grito percorria como eco pelas redondezas, chocando-se com as paredes externas da catedral e atingindo com força o Palácio do Governo onde, à frente, erguia-se o palanque. Como assim “sem partido”? Por que haveria a necessidade de bloquear a paixão partidária, a perspectiva política que unia os sonhos de grupos de cidadãos? E por qual razão estávamos todos juntos em manifestação? Contra o quê? Contra quem? Por qual ideal?

Para um bom observador seria fácil entender que a luta era contra a própria política. Foi nessas manifestações que surgiu o MBL, um movimento de direita, que surgiu à margem dos partidos, cuja intenção era expurgar a esquerda do cenário nacional através das redes sociais, das mentiras repetidas “ad nauseam”, das “fake news”, do deboche, do ataque ao feminismo, às liberdades civis e com uma paixão explícita ao neoliberalismo. Apesar de ter surgido fora das organizações partidárias, logo depois seus representantes se uniram aos partidos tradicionais da direita brasileira. “Sem partido, se for de esquerda e popular; se for partido burguês está liberado“. Não só isso; eles foram partícipes diretos do golpe de 2016 emprestando apoio a Eduardo Cunha e aos atos a favor do impeachment fraudulento. O cerne das reivindicações era destruir a própria política, transformando-a em uma prática tecnocrática bem afeita ao “fim da história”.

Os avanços da esquerda com os governos de Lula e Dilma se tornaram insuportáveis à burguesia. Não havia como aceitar o risco de que, findo o governo Dilma, o PT lançasse uma nova candidatura e completasse duas décadas de poder. Havia que se criar um ataque moral à esquerda, pois que era difícil criticar governos que haviam produzido uma melhora significativa em todos os parâmetros da vida nacional. Assim como os ataques à Getúlio, Juscelino e Jango o foco seria a moralidade, o “mar de lama”, a roubalheira, a sujeira ética. Não foi possível com o mensalão, mas seguiria com as “pedaladas” e depois com o Triplex e o sítio de Atibaia. O sucesso dos seguidos ataques nos levou a seis anos de retrocessos com Temer e Bolsonaro, e a destruição de inúmeras conquistas populares.

Existem duas vertentes na esquerda para explicar as jornadas. A primeira diz que as manifestações foram orgânicas, fruto da insatisfação popular, mas que saíram do controle e foram sequestradas pela direita, pelos agentes da burguesia e pelo mercado financeiro. A outra vertente é que as “jornadas” foram desde o início pontas de lança para o golpe, organizadas desde o princípio para tal, assim como as primaveras coloridas, as manifestações na Praça da Paz, o Euromaidan e todas as outras iniciativas imperialistas pelo mundo afora. Ou seja, havia um dedo da CIA nas manifestações, da concepção estratégica à execução.

Eu não tenho mais nenhuma ilusão quanto à capacidade do Império de financiar golpes, por isso acredito que eles estiveram por trás dessas iniciativas desde o seu surgimento. Escolha você em qual perspectiva prefere acreditar. Eu creio, como Lula, que por pior que possa parecer à vista desarmada, não há solução melhor para um país que não passe pela política. Suprimi-la, por seus inquestionáveis defeitos, significa abdicar da própria vida democrática.

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Sono

No meu tempo de residência existia uma expressão muito utilizada por nós chamada “pós plantão”. Ela servia para exemplificar qualquer incapacidade cognitiva temporária que afetava as nossas atitudes. Tipo “esqueci onde deixei a chave do carro”, e todo mundo dizia “ehhh, seu pós plantão”. Outra era esquecer uma prescrição, ou nao lembrar de avaliar uma paciente e depois dizer “Bahh, esqueci… total pós plantão mesmo”.

Havia até um residente que, de tão avoado, era chamado “Juninho Pós Plantão“.

Também servia para gracejos sexuais. Garotos e garotas avaliavam os atrativos dos colegas usando essa expressão. Para os meio-feios (como eu) elas diziam “Ahh, quem sabe, num pós plantão, né?”. Ou seja, para achar interessante tinha que estar com o sensório e a capacidade de julgamento levemente abalados.

Isso apenas mostra o que muitas pesquisas esclarecem sobre a baixa a qualidade das atitudes tomadas após noites mal dormidas. Um exemplo típico é esse estudo com alunos de escolas médicas do Paquistão que demonstra a baixa qualidade de aprendizado por um regime de noites mal dormidas. Diz a conclusão: “Estudantes de medicina do Paquistão têm má qualidade de sono, o que tem um impacto negativo em seu desempenho acadêmico. O sono adequado é essencial para refrescar os alunos todos os dias e ajudá-los no aprendizado e no processamento da memória.”

Desta forma parece razoável aceitar o quanto é essencial para o aprendizado de Medicina que estudantes e seus tutores compreendam os efeitos negativos da privação de sono para os acadêmicos. É fundamental que o ensino de medicina (e enfermagem, assim como obstetrícia) seja desta forma humanizado, otimizando o aprendizado ao levar em consideração o que a ciência já conhece sobre os efeitos do sono adequado sobre nossa mente.

Quantos erros diagnósticos não ocorreram em decorrência de um regime desumano e cruel sobre alunos e residentes? Não seria possível transformar o “rito de passagem” da residência médica (segundo a perspectiva de Robbie Davis-Floyd) fosse menos violento para os médicos em formação?

Creio que sim…

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Medicina Suave

Profissionais médicos são ensinados (e levados) a servir aos gigantes da Indústria Farmacêutica durante toda a sua formação acadêmica – algo que continua durante sua vida profissional. Estas empresas os manipulam através de uma gigantesca máquina de propaganda, que também atinge os pacientes. Até mesmo subornos e falsificações são recorrentes nessa indústria. Não há dúvida que 99% dos médicos jamais terão consciência dos cordéis que os controlam, e mesmo aqueles que se dão conta ainda assim continuarão sendo manipulados, porque esta associação lhes garante poder e significado social.

Entretanto, esse controle das corporações sobre a consciência dos profissionais tem seu custo. Hoje, nos estados Unidos e no Canadá, 20% dos adultos entre 40 e 79 anos tomam 5 ou mais medicamentos prescritos a cada dia. Pesquisas informam que em 2020 mais de 150.000 pacientes tiveram mortes prematuras causadas por drogas legalmente prescritas, e cerca 4-5 milhões de internações hospitalares foram realizadas, um custo astronômico para qualquer sistema de saúde. .

“Ser médico é algo muito mais importante do que ser um mero despachante de drogas”, já me dizia Max nos tempos da Escola Médica. Há muito mais no encontro do médico com seu paciente do que aplicar drogas, muitas delas perigosas, outras tantas inúteis e uma boa parte causadoras de mortes prematuras. O médico é, antes de tudo, um pedagogo, cuja tarefa precípua deveria ser mostrar os caminhos de cura ao seu paciente. Sempre que a medicina é impositiva e prescritiva ela aliena o paciente do controle de sua própria saúde e, em última análise, de seu próprio destino. Se a doença é uma construção do sujeito diante das rotas por ele mesmo traçadas, a ação invasiva da medicina – ao olhar a enfermidade e desconsiderar o enfermo e suas alternativas – desloca o poder para fora do doente, alienando o sujeito de si mesmo.

Questionar e criticar o abuso de drogas está na contramão da sociedade capitalista, que criou impérios gigantescos baseados na indústria farmacêutica. Da mesma forma, lutar pela fisiologia do parto, aguardar os tempos corretos, oferecer suporte contínuo e afeto incondicional também agridem a mentalidade moderna tecnocrática, que exige o uso da tecnologia sempre que possível. Todavia, em ambos os casos – no uso abusivo de drogas e na tecnogia exagerada no parto – não se trata de uma maldição, algo sobre o que não temos qualquer ingerência. Não, por serem construções humanas podem ser, por nós, revistas. Assim, a cura para essas doenças sociais depende tão somente de nós mesmos.

Entretanto, é fundamental entender que a humanização do nascimento e o fim do abuso de drogas prescritas jamais vão ocorrer dentro do modelo capitalista. Para alcançar estes objetivos na saúde será necessário mudar a estrutura econômica da nossa sociedade, fazendo com que os avanços médicos sirvam às pessoas, e não ao capital.

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