Arquivo da tag: Chico Buarque

Millôr

Quando adolescente e jovem sempre fui fã do jornalista Millôr Fernandes, por seu humor ácido e por uma característica que acho admirável em escritores: assim como Oscar Wilde, ele era um genial frasista. Nesta época eu abria a Veja apenas para ler a coluna do Millôr. Gosto muito de uma frase sua, que uso até hoje, quando vejo um grupo de pessoas falando mal de alguém de forma inexorável e dura: “O mundo tem muitos canalhas, mas estão todos nas outras mesas” (pág. 100). Sendo ele um emérito frequentador de botecos cariocas, essa frase certamente a criou entre um e outro Chopp com os amigos. Ele tinha outra característica que eu achava criativa e original: escrevia uma simples frase e colocava abaixo uma nota de rodapé em caixa baixa do tamanho da folha. Ou seja: funcionava como algumas obras artísticas da pintura moderna, que se resumem a poucos rabiscos em uma tela branca, mas sobre as quais se escrevem gigantescas teses de doutorado, retirando delas muito mais do que o próprio autor seria capaz de imaginar.

Mas, para além de seu humor ácido, sua visão política cheia de ceticismo, e sua rixa histórica com outro ídolo meu, Chico Buarque (que chegou às vias de fato), ele também é uma imagem viva do jornalismo e da sociedade – carioca e brasileira – de sua época. Seus comentários e frases sobre a sociedade e, em especial, as mulheres, são uma forma muito clara de olhar a cultura dos anos 60-70. Por estas razões comprei o livro Millôr Definitivo – A Bíblia do Caos” assim que foi lançado, pois ali se concentravam as suas melhores “tiradas”, seus pensamentos, sua perspectiva política (mesmo sobre fatos datados) e seu humor de acidez inconteste. Categorizados por palavras chave, estão listados 5142 pensamentos, máximas, conceitos, aforismos, devaneios, etc. para se poder absorver o que ele deixou como testemunho, registros de um astuto observador da realidade brasileira.

Entre as suas manifestações, uma me chamou a atenção: a forma como falava despudoradamente das meninas de Ipanema, pré-adolescentes com 13 anos de idade. Imaginem o furor que causaria essa manifestação de admiração sobre o corpo de “crianças” de 13 anos nos dias de hoje, descrevendo-as com sua “graça e sensualidade”. Certamente seria cancelado sem dó, e talvez fosse até criminalmente perseguido. Entretanto, a idade me permite recordar que, quando da publicação destas frases não havia a consciência que hoje temos sobre o tema. Não causou nenhum escândalo suas frases sobre meninas muito jovens, assim como à época não nos chocamos com Caetano ou Jerry Lee Lewis. Não existia a noção, que hoje temos, de proteger a sexualidade emergente das meninas, que ainda eram vistas da mesma forma como os antigos as viam: objetos para o deleite masculino, sem consideração sobre sua maturação afetiva, emocional, psíquica e até social. Ou seja: Millôr escreveu sobre sua época, sobre o entorno no qual se inseria e também com o material do campo simbólico que absorvia e vertia para o papel. É preciso ter com ele a mesma consideração que deveríamos ter com Allan Kardec, Fernando Pessoa e Monteiro Lobato quando se referiram à negritude em seus livros. Se suas obras podem ser criticadas hoje (e devem) elas merecem ser vistas sem anacronismo, inseridas em sua época e avaliadas pelo contexto no qual foram escritas.

De qualquer forma, Millôr continua sendo um dos meus escritores favoritos. Deixou um legado de crítica política inteligente e vigorosa, sem jamais abrir mão do humor como linha condutora de seus textos.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Sintomas nas esquinas

Em uma das esquinas mais nobres – e caras – da cidade de Porto Alegre será inaugurado um dos símbolos mais emblemáticos da sociedade do capitalismo tardio: uma farmácia.

O que se pode pensar de uma sociedade onde, em cada esquina, das mais simples às mais nobres, se ergue impávido um ponto de venda de drogas? Que sinalização isso dará aos escafandristas de um futuro distante, quando mergulharem no oceano quente dos nossos valores mesquinhos? Que dirão os paleontologistas intergaláticos ao constatar que nossa sociedade precisava se drogar para suportar a carga que a vida cotidiana propiciava? Que acharão os sábios de um futuro não tão distante sobre a nossa vinculação às soluções exógenas para os dramas da alma?

Essa epidemia mereceria uma análise mais profunda, mas parece evidente que, se acreditarmos que uma sociedade é um organismo vivo, formado de células – que somos nós – esse fato social é um sintoma local de uma enfermidade sistêmica, uma nódoa, uma mancha, um cancro. Todo tumor é a tentativa desesperada que o organismo encontra para circunscrever o mal que ameaça a totalidade da economia orgânica. As farmácias e as “academias” – outra proliferação acelerada na tessitura das cidades – são a tentativa frustra que o “organismo social” encontra para remediar o desacerto crônico que ataca a sociedade. Por um lado oferecem uma gama enorme de bengalas e lenitivos para aliviar as dores causadas por uma construção social injusta e malévola; de outro lado, as academias nos cedem o sonho de mudar as formas, imaginando que, assim modificadas, elas transformarão o conteúdo.

Por que tantos sedativos, estupefacientes, calmantes, analgésicos e remédios anti-vida? Quem saberá encontrar o amor que outrora existiu, se nas ruínas dessa civilização apenas encontrarem nossa vã tentativa de afastar a dor? Quem vai decifrar os hieróglifos sinistros da tristeza estampada nos rótulos dos remédios? Os analistas do futuro terão um rico e vasto material para entender o que nos movia, se é que sobrará algo para ser decifrado.

“Os historiadores em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigos sintomas
Fragmentos de receitas, queixas
Mentiras, relatos e dores
Vestígios de estranha civilização.
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Doutores serão sempre amáveis
Futuros doentes, quiçá
Adoecerão sem saber
Com a dor que eu um dia
Deixei pra você”

Grato, Chico

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Visitar o Passado

O mestre Rubem Alves nos propõe a seguinte reflexão:

“Se você amou muito um lugar não faça a besteira de visitá-lo. Isso porque você vai pensando que encontrará o tempo daquele lugar, mas o tempo não estará mais lá. É melhor você ficar com a antiga imagem na sua cabeça…”

O mesmo vale para as coisas que te emocionaram ou te fizeram rir na infância. Eu, por exemplo, nunca assisto “Três Patetas” por essa mesma lógica. As piadas são as mesmas, mas eu mudei; não sou mais a criança que rolava de rir das palhaçadas que eles faziam. Tenho medo de que a minha incursão às piadas do passado desfaçam a mística que eu nutro pela alegria simples dessa época. E não é sequer necessário se reportar aos programas em P&B dos anos 40; até “Os Trapalhões” não teriam hoje o mesmo impacto dos anos 80 – e talvez fossem cancelados, assim como seria o “humor de bullying” dos Três Patetas.

Pode ser uma imagem de 1 pessoa

O tempo é um juiz severo, por vezes cruel, e somente os gênios vencem a barreira dos anos; estes a gente conta nos dedos das mãos. Grace Kelly seria linda ainda hoje, Marylin Monroe(*) não. Beethoven, Bach, Vivaldi, Pixinguinha e Chico ultrapassaram décadas, enquanto a maioria dos músicos de sucesso de hoje serão esquecidos em alguns pouco anos.

Acredito ser possível visitar os lugares que amamos outrora, mas apenas se tivermos plena consciência de que eles se mantiveram parados – num prédio, num filme, numa música, numa piada – mas nós, e o mundo que nos cerca, continuamos seguindo em frente. Se é verdade, como dizia Heráclito de Éfeso, que “é impossível cruzar duas vezes o mesmo rio”, também é justo dizer que não vamos nos emocionar duas vezes com o mesmo filme, lugar ou música, pois que se eles ainda são iguais, nós já não somos mais os mesmos.

Tenho uma amiga que foi abandonada pela mãe no parto. Esta mãe era muito jovem, bonita e ambiciosa, mas sua filha nasceu prematura e com graves problemas de saúde. Deixou a filha ainda no hospital, aos cuidados do pai, e voltou ao seu país de origem. Esta criança cresceu sob os cuidados do pai e da madrasta, que a adotou com poucos meses de vida. Sempre carregou a imagem da mãe linda e frágil que a abandonou por ser imatura demais para as responsabilidades da maternidade.

Passados mais de 30 anos decidiu-se por conhecê-la. Juntou o marido e os filhos e rumou ao encontro da mãe biológica, uma senhora que morava em um continente distante e que formou outra família, já com filhos e netos. Infelizmente para minha amiga esta visita foi o momento mais destrutivo de sua vida. A imagem de mãe que acalentara por tantos anos foi totalmente despedaçada pela mãe real, e desse trauma ela jamais se recuperou totalmente. Conhecer sua mãe verdadeira, para além das idealizações, foi um choque profundo demais, talvez porque ela não estava preparada para entender que o mundo de todos havia andado, seguido o fluxo dos tempos, enquanto sua imagem materna permanecera estática por mais de três décadas.

Se queres mesmo penetrar em seu passado deixe todas as ilusões de fora; não espere encontrar lá algo que tenha para si agora o mesmo valor de então.

(*) De maneira alguma eu acredito que Marylin Monroe seja “feia”. Aliás, quem chamasse Marylin de feia deveria ser preso – ou internado. Todavia, essa Marylin de formas rechonchudas nos dias de hoje não seria Miss nem da escola secundária. Ela está fora dos padrões de beleza de agora. Sua beleza teria valor nos anos 50, mas hoje seria desvalorizada. Mulheres como Marylin nos dias atuais estão fazendo dieta e tratamentos caros para celulite. Não existe aqui um julgamento de mérito; apenas pontuo que os padrões de beleza são mutantes, e nos padrões contemporâneos ela não se encaixaria.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Roupa suja

A não ser que seja apenas uma jogada puramente comercial – e não seria nenhuma novidade – desdenhar do seu ex amor, atacá-lo publicamente, desprezar sua nova paixão e expor em praça pública sua ferida de amor próprio, como fez a famosa Xá-Quira na música em que fala de Piqué e sua nova namorada, lembra o famoso bordão do futebol da Globo:

– Galvão!!!
– Fala Tino…
– Sentiu…

A melhor tradução para uma mulher que deu a “volta por cima”, recuperando sua autoestima após a perda de uma paixão foi escrita de forma magistral por Chico Buarque:

“Quando você me deixou meu bem
Me disse pra ser feliz, e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume…
… obedeci.”


E eu não duvido que por trás de toda essa novela não exista um gigantesco golpe publicitário em que ambos acabem ganhando. No mundo do capitalismo e do espetáculo nada é impossível. E, antes que me acusem de pautar as reações das mulheres, isso vale tanto para os homens quanto para elas. Shakira pode fazer o que bem desejar, mas isso não garante a ela a prerrogativa de acertar. Neste caso em especial, expor-se e aos seus filhos não me parece uma saída nobre.

Essa humilhação dela vale o lucro que aparentemente fez com a música de desforra que lançou no mercado? Dinheiro? É só isso que alimenta sua alma? Tipo, Silvio Santos “Topa Tudo por Dinheiro”. Vale a pena essa exposição? Vale a pena desnudar sua ferida narcísica para milhões? Se o dinheiro é a medida, é provável que sim; caso contrário, lamentável. Ainda acredito que chorar é infinitamente mais nobre, pois significa exercer o luto de uma perda. Como diz o Chico “morrer de ciúme, quase enlouquecer“, mas depois virar a página e ressurgir.

Será mesmo que o Piqué está preocupado com a música dela? Sério? E os filhos deles, como ficam nessa batalha?

Humilhar-se publicamente, imaginando atingir seu amor é triste e degradante. Acreditar que esse desprezo vai atingir seu ex-marido é como tomar veneno e esperar que o outro morra. “O ódio é um ácido que corrói o próprio frasco que o contém”. A melhor resposta a alguém que lhe abandona é ser feliz e provar a si mesmo(a) que a vida continua depois do fim de um amor. Meu pai sempre me dizia: “Quer ficar livre de alguém? Passe a gostar dele; enquanto o estiver odiando será eternamente seu escravo”

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Reis do Povo

Pelé e Lula na Comemoração do cinquentenário do primeiro mundial (1958)

Já é possível sentir o bater de asas dos abutres esperando o Pelé morrer para despejar seu racismo em forma de críticas morais ao Rei do Futebol. Não é fácil para o Brasil Branco exaltar um Rei Negro. Nunca o aceitaram, e não será agora. Agora nas redes, e do alto de sua pureza moral, identitários estão postando críticas à vida privada de Pelé, numa tentativa de destruir a imagem do maior ídolo do esporte mais importante do planeta.

Sempre que eu escuto a narrativa da filha é nítido que aqueles que a contam não conhecem a história toda e estão fazendo críticas baseadas em meias verdades, mentiras e fofocas. Poucos se dão ao trabalho de escutar os dois lados do enredo. Mas antes desse episódio Pelé já era atacado por “não ajudar Garrincha” – sendo desmentido por Elza Soares – ou de “não ter ido ao seu enterro“, como se cuidar do craque das pernas tortas (que jamais foi seu amigo) fosse sua obrigação. Sempre existiu uma enorme patrulha sobre quaisquer atos de Pelé, como se o fato de ser negro e famoso lhe conferisse uma dívida com os brancos que permitiram a sua notoriedade.

Quando Pelé dedicou o milésimo gol às crianças, naquele jogo emblemático no Maracanã contra o Vasco, foi porque não passava de um ingênuo que estava fazendo demagogia. Quando levou o nome do Brasil para todo o mundo, sendo eleito o maior atleta do século XX e patrimônio da humanidade, o fez apenas por dinheiro. Se foi o maior jogador do mundo é apenas porque “naquele tempo era mais fácil”, mesmo que as agruras do futebol violento a que foi submetido nos anos 60-70 fossem inimagináveis quando comparamos com o que é praticado nos dias de hoje.

Em verdade os ataques a Pelé muito se assemelham às agressões sofridas por Lula desde que este se destacou como líder no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista. Quando Lula ressaltou a importância de dona Marisa na criação do PT em seu velório foi atacado por estar fazendo comício sobre um corpo já sem vida. Se Lula vai a um restaurante caro é um “comunista gourmet”, mas se faz um piquenique com dona Marisa e carrega um cooler de isopor na cabeça é porque não passa de um populista criando um personagem. Quando Lula visitou um apartamento, sem jamais ter a posse do mesmo, foi caçado impiedosamente por uma horda de promotores fanáticos e um juiz corrupto.

A verdade é que, inobstante o que façam, Pelé e Lula jamais serão aceitos pela burguesia deste país exatamente por serem quem são: representantes das camadas populares, do povo pobre, dos descamisados, dos negros, dos operários, dos mulatos, nordestinos e retirantes. Ídolos dos torcedores cuja alegria máxima é o gol e heróis para os pobres que sonham com uma vida digna para sua família. Não há perdão para os ídolos que, emergindo das camadas inferiores da sociedade, tornam-se ícones planetários por suas habilidades, seja no esporte ou na política.

Não terei pena daqueles que resolverem tripudiar sobre o corpo frágil do Rei do Futebol, o atleta máximo do século XX, o maior gênio que o esporte já criou neste planeta. Eu me impressiono muito com o esforço imenso que algumas pessoas fazem para odiar Pelé. Pois eu digo: odeiem o Chico Buarque também. Apesar de ser branco, se procurarem bem vão achar alguma razão para ele ser cancelado. Vamos, sei que imaginação não lhes falta.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Adiós, Pablo

Mais do que um cantor cubano de músicas românticas e com sonoridades magníficas, Pablo Milanés era um artista de raro talento e múltiplas facetas. Pablo nasceu em 24 de fevereiro de 1943 em Bayamo, capital da província de Granma, uma das maiores cidades da região do Oriente da ilha. Pablo era filho de um soldado chamado Ángel Milanés e sua mãe, uma costureira na cidade, se chamava Conchita Arias.

Diz-se que sua mãe exigiu que a família se mudasse para Havana para que Pablo tivesse mais oportunidade de estudo, e a partir daí passou a frequentar o conservatório de música. A década de 1950 do século passado foi considerada por muitos como a fase de ouro da música cubana, com grandes músicos e intérpretes despontando inclusive na cena artística dos Estados Unidos. Nesta sua ida para Havana ele aprendeu piano com os grandes artistas da época, explorando harmonias e tonalidades que marcaram seu estilo musical.

Com a chegada dos grupos rebeldes, liderados por Fidel Castro, e com a subsequente queda do ditador Fulgêncio Batista em 1959, um movimento cultural e nacionalista floresceu, calcado nas ideias do nascente socialismo que se enraizava no povo cubano. Surge aí o movimento “Nova Trova“, criado por Pablo juntamente com baluartes da música cubana como Silvio Rodriguez e Noel Nicola. Pablo Milanés foi casado cinco vezes e foi em homenagem à sua segunda esposa, Yolanda Benet, sua música mais famosa, a qual compôs e que rodou o mundo em inúmeras versões. Também dedicou “Cuando tú no estás” à sua última esposa, a espanhola Nancy Pérez, com quem viveu na Espanha desde 2004.

A reputação de Pablo Milanés cresceu como um dos pioneiros desta novo movimento artístico, uma corrente profundamente associada à crescente onda de libertação na América Latina. Uma das marcas deste movimento foi sua temática anti imperialista, que criticava a política dos Estados Unidos em relação à América Latina.

Pablo Milanés, por fim, teve um desacerto com seu amigo Silvio Rodriguez (foto) em especial por declarações que Silvio considerou “grosseiras e implacáveis”, e “sem o menor compromisso com o afeto”, isso no ano de 2011, quando Pablo já estava vivendo fora de Cuba.

Hoje, 22 de novembro de 2022 – o dia do músico – morreu Pablo Milanés devido a problemas hematológicos, dos quais sofria há muitos anos. Desde 2017 mudou-se para Madri na Espanha para poder tratar melhor de sua doença. Hoje, aqui no Brasil, muitos dos que acompanharam sua carreira estão cantarolando mentalmente a belíssima canção “Yolanda” para homenageá-lo. Eu, entretanto, só consigo pensar em “Canción por la Unidad Latinoamericana“, que aparece nas vozes de Milton e Chico Buarque no espetacular disco “Clube da Esquina 2” de Milton Nascimento. Esta é a música que nos mostra um Pablo Milanés apaixonado pela visão anti imperialista, a qual buscava a unificação de todos os países da América Central, Sul e Caribe.

Na juventude eu costumava declamar os versos dessa canção só para me exibir, pois ela nos conclama para algo que as esquerdas sempre levaram como bandeira: a unidade dos povos da América para se contrapor ao imperialismo brutal, cruel, desumano e destrutivo aplicado a todos nós pelas nações do norte. É uma música que canta a esperança de um porvir de solidariedade entre os povos, exaltando a proximidade cultural que nos conecta – na religião, na cor, na música, nos costumes e no passado de lutas e exploração – e deixando claro que nossas diferenças são artificiais, construídas pelos colonizadores que exploram nossos povos.

Naquela época nós cantávamos a versão de Chico Buarque, que não tinha na letra os heróis da libertação que constam na versão original de Pablo Milanés, provavelmente porque a ditadura militar jamais permitiria a inclusão de personagens tão odiados pelas classes burguesas, cuja memória e evocação trazem pavor a todos os opressores. Deixo aqui, então, a letra que ele escreveu com a homenagem merecida a Bolívar, Martí y Fidel, grandes heróis da luta pela unidade das Américas, na busca pela liberdade, pela autonomia e em direção ao socialismo.

“…Lo pagará la unidad
De los pueblos en cuestión
Y al que niegue esa razón
La Historia condenará
La historia lleva su carro
y a muchos los montará
Por encima pasará
De aquel que quiera negarlo
Bolívar lanzó una estrella
que junto a Martí brilló
Fidel la dignificó
Para andar por estas tierras
Bolívar lanzó una estrella
que junto a Martí brilló
Fidel la dignificó
Para andar por estas tierras.”

Gracias Pablito, por tus sueños, tu alegria, tu passion e tu verdad!!!

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos, Política

A Mãe do Canalha

Elizabeth Bathory, a Condessa Sanguinária

Na música “O Meu Guri” Chico Buarque nos descreve de uma forma tocante e poética a perspectiva de uma mãe sobre as desventuras de seu filho, que era um pivete, um menino ladrão, um meliante. A forma amorosa e cálida como ela descreve seu “guri” sempre me tocou de uma forma muito especial porque revela algo muito significativo: todo sujeito, por pior que seja, já foi uma criança cheia de sonhos, recebeu amor de sua mãe – ou de alguém ocupando esse lugar – e já carregou em seu sorriso nossos sonhos e projetos.

Quando me falam de uma figura odiosa – do atual presidente aos policiais rodoviários de Sergipe que executaram Genivaldo – eu tento imaginá-los crianças, cheios de sonhos, de esperanças, abrindo-se para a vida. Imagino como se fossem meus filhos, e tento imaginar como poderia acomodar a reprovação de seus atos com o amor que teria por eles. Penso que eles tiveram mães, que por certo devotaram a eles o afeto que as mães sempre oferecem. Assim, penso que a maldade que eles carregam é devida a algo que aconteceu no meio do caminho, tropeços que os desviaram do melhor rumo. Todavia, por certo eles um dia foram crianças a quem abraçamos, desejamos felicidade e em quem depositamos toda a esperança no futuro.

Também quando uma dessas figuras se vai desse plano eu penso naqueles que choram sua partida, por piores que tenham sido ao nosso olhar. Não há ninguém que seja tão mau e deteriorado que não seja digno de um amor, de um afeto, de uma boa lembrança e, se formos olhar pelos olhos de sua mãe, ele será para sempre “o seu guri”.

Os canalhas também tiveram suas mães, também tomaram banho de chuva, tiveram seus amigos diletos, brincaram na rua até escurecer e igualmente tiveram seus sonhos e planos. O que nos diferencia deles são minúsculos detalhes numa trajetória acidentada, que pode levar qualquer um para o desvio, para o erro – ou para o sucesso. Mais do que nossas diferenças, o mais chocante na natureza humana são nossas semelhanças, e o que nos separa – no longo matiz que distancia o facínora do gênio e do anjo – são esses pequenos desvios de rota.

Sim, até os(as) canalhas têm mãe…

Imagem: “A famosa “Condessa sanguinária” figura entre as mulheres acusadas de serem as maiores assassinas da história, já tendo servido de inspiração para muitos escritores e cineastas. Sua imagem é pejorativamente associada à de uma pessoa obcecada pela juventude, a ponto de se banhar em sangue para preservar a própria beleza. Numa época em que era comum a nobreza castigar a criadagem desobediente, Elizabeth Bathory foi apontada como causadora da morte de diversas pessoas. As acusações de assassinato em torno dela aumentaram e uma ordem de investigação contra a mesma foi executada. Em 1610, um caderno de propriedade da nobre foi encontrado contendo o nome de aproximadamente 650 vítimas.”

1 comentário

Arquivado em Pensamentos

Cancelamento

A tragédia de eleger ídolos é o fato inexorável de que eles sempre vão trair esse amor, mais cedo oi mais tarde. Cancelar suas próprias músicas em nome de um movimento “woke” absurdo, autoritário, reacionário e cafona exatamente agora, quando essa moda está em plena decadência, é uma tristeza e uma decepção.

Mas será que ele vai cancelar o resto? Quer apostar como é fácil achar machismo em TODAS as suas músicas, dependendo da paranoia de quem analisa? Pois agora vou cantar “Com açúcar, com afeto” com mais prazer ainda, e vou fazer isso como uma profissão de fé na liberdade da arte e um libelo contra o obscurantismo autoritário da geração “woke”.

Anotem aí: é por esse tipo de censura sobre obras artísticas – ou seu nome atual, “cancelamento” – que a direita ganha força. É uma TRAGÉDIA ver gente da esquerda aplaudindo que músicas, quadros, livros, artigos e debates sejam cancelados, interrompidos e/ou proibidos.

O desastre que a “geração floco de neve” produz no pensamento de esquerda é imensurável. Oferecer a grupos específicos o direito de apagar a memória, cancelar a história e desvirtuar os acontecimentos do passado é digno dos piores pesadelos orwelianos. Quando vejo críticas ao autoritarismo e à censura que estes grupos apregoam é com tristeza que percebo que elas partem da direita, e as vezes até de seus grupos mais extremistas.

Com essa esquerda identitária e autoritária que temos, quem precisa de direita?

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Adeus amor…

Durante muitos anos escutei os lamentos de dor das mulheres cujos parceiros ganhavam asas e partiam. Eram histórias carregadas de sentimento, de afetos cortados, de amores interrompidos, de partidas, de camas vazias, de perguntas sem resposta.

Uma dessas histórias me marcou pela tristeza da protagonista. Ela era tão grata ao ex-parceiro que jamais se permitiu odiá-lo, e também porque percebeu a dor compartilhada pela chegada do fim. Certa noite chegou em casa do trabalho e encontrou o marido sentado no sofá da sala, no escuro, com a cabeça entre as mãos e soluçando. Atônita, abraçou-o e perguntou o que havia ocorrido. Como ele não respondia, questionou se houve “algo no emprego”, “dinheiro”, “sua mãe”, “família” e ele só movia a cabeça negando.

Subitamente, ela percebeu que só lhe restava como alternativa aquilo que mais temia. “Sou eu, então?” disse ela, o que ele respondeu balançando a cabeça afirmativamente, gesto que se repetiu quando ela fez a pergunta derradeira e fatal:

– Então… você não me ama mais?

Em outras vezes a reação trazia a crueza das feridas abertas. Indignação, raiva, desprezo. Choro e ranger de dentes. E quanto mais odiavam, mais dolorido era o luto. Aprendi errando a não dizer nada nessas horas. Acabei descobrindo que a identificação com o “outro opressor” podia ser facilmente estabelecida.

“Vocês são sempre assim, todos iguais!!!”, diziam algumas, esperando uma “defesa da classe” que com o tempo percebi inútil e ineficaz. Eu apenas silenciava, oferecendo minha mudez como eco às suas lágrimas. Eu intuía que aquela quantidade imensa de projetos e planos fracassados, transformados em cinza de sonhos, precisava encontrar na palavra seu necessário escoadouro.

Muitas vezes quis abraçar e acalentar estas almas sofridas, mas sabia o quão arriscado estes movimentos são. No fim, creio que o melhor é permitir que a dor de esgote, que curse seu caminho por completo, que passe por todas as paragens e que siga até o fim da linha. Sem atalhos ou desvios.

O Merthiolate do tempo acabava servindo como remédio infalível. A ardência corrosiva do abandono aos poucos dava lugar à aceitação, e depois dela a reconstrução. Para muitas era possível entender e perdoar, abrindo espaço para um novo amor. Sabiam elas que odiar era “adorar pelo avesso”, impedindo o corte duro e necessário dos laços que outrora foram sua razão de viver.

Escrevi isso porque meus ouvidos encontraram “Atrás da Porta” hoje, onde Chico Buarque, na voz de Elis, conta todas estas milhões de histórias com a simplicidade genial dos poucos versos.

“Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar

Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua”

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Joga Pedra!!

Sabe o que eu acho curioso? O Brasil inteiro está com ódio daquela moça que atacou o rapazinho que, de tanto apanhar, pediu para sair. Só vejo mensagens de ódio contra ela. Ela é a Geni nacional e, como toda a Geni, cumpre uma importante função social. “Ela serve prá apanhar, ela é boa de cuspir, maldita!!”

Enquanto existir uma pessoa que encarna a maldade e o mal do mundo nosso ego se sente aliviado. Tipo “Eu sou mau – às vezes – mas nunca fiz isso que ela fez. Ela sim é ruim de verdade”. Ufa, que alívio. Ela é também nosso Judas, e podemos malhá-lo à vontade para dar vazão ao nosso ódio e às nossas frustrações.

Por outro lado, eu não acho que ela – escondida entre os muros daquela casa – sabe do ódio que atraiu nas últimas semanas. Ela, como todos nós, não tem a capacidade de saber o quanto suas ações afetam os outros. Temos uma enorme condescendência com nossas ações e para elas sempre encontramos explicações, razões e claras justificativas, que quase sempre não fazem sentido para os outros, pois que não conseguem enxergar de forma “correta”, da maneira como nós vemos.

Tenho certeza que ao saber do que aconteceu com ela aqui fora a sua reação será o espanto e a incredulidade. “Como assim? Eu? Não pode!!!”. Talvez – apenas uma suposição – em seu íntimo ela já tenha uma pequena suspeita, mas que fica soterrada por um sistema muito eficiente de proteção emocional.

Porém, isso não se aplica à essa artista, mas vale para todos nós. Somos uma construção do olhar do outro, e sem isso é impossível saber quem realmente somos. Essa moça é um pouco de cada um de nós, mas por sorte não temos câmeras a acompanhar nossas patifarias cotidianas. Somos muito mais incorruptíveis por mediocridade do que por virtude.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos