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Imperfeições

Se a sua parceira não tivesse os defeitos que tanto lhe incomodam, ainda assim lhe escolheria para partilhar a vida? Sem as imperfeições que ela carrega, ainda assim você seria útil ou atraente para ela?

Talvez você não fosse mais interessante para ela, nem necessário. Não é justo abandonar essa perspectiva. Se ela não fosse gordinha, estaria com você? Se ela não fosse pobre, ainda assim se encantaria pela sua “personalidade”? Se ela não fosse insegura, continuaria ao seu lado? Se ela não fosse desequilibrada, ainda sim estaria consigo? Sem sua extremada carência, ainda assim lhe olharia com ternura e carinho?

Agora mude os gêneros acima e pergunte: se você não fosse gordo, feio, pobre, inseguro, frágil, angustiado, dependente ainda assim estaria com sua atual companheira(o)? Pense nisso. Quem seria você se não tivesse as amarras que o prendem ao mundo da contenção? Não há como saber sem passar pela prova, mas existem vários exemplos para nos mostrar o que nos tornamos quando perdemos alguns desses “defeitos”. Pensem no jogador de futebol que aos 24 anos faz seu grande contrato e fica milionário – literalmente da noite para o dia. Olhe a cantora sertaneja que “estoura” nas paradas de sucesso e passa a contar seus milhões. Olhe para o pobre funcionário que ganha na loteria. Depois desses eventos, como ficaram suas vidas? Como ficaram seus valores e suas exigências?

Como nos ensinava Marx, temos os valores da classe em que estamos, não daquela de onde viemos. Somos produto do entorno, do campo simbólico que nos rodeia, e somos uma chama de vida nutrida pelo desejo. Somente podem criticar aqueles que abusam do poder os que, tendo visitado o reino da opulência, colocaram cera nos ouvidos para não escutar suas sereias. Todos os outros se iludem com seus reais valores e limites, que muito mais refletem o quanto podemos do que o valor que realmente temos.

Pensem nisso…

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Os burgueses

Tenho um amigo que por muitos anos se dedicou ao trabalho com os necessitados. Pertencia à uma ONG que constantemente precisava de dinheiro para bancar alimentação e estudos para crianças em situação de rua. Por essa atividade, tornou-se um “pedinchão” profissional: procurava o departamento social de empresas para que fizessem doações à sua causa. Passou anos a fio nessa atividade. Certa feita foi levado a conversar com a mais rica empresa do Estado, que costumeiramente auxiliava a sua e outras instituições de suporte social. Nesta circunstância foi convidado a falar com a esposa do presidente em sua própria casa, pois que ela coordenava o setor de assistência social, como é comum ocorrer com as “primeiras damas” destas megaempresas. Esse encontro com um membro da burguesia o marcou profundamente.

Meu amigo descreveu os pormenores do encontro, assim como da casa, com detalhes indispensáveis: os seguranças, como foi recebido pelos criados da casa, os móveis, o interior da mansão, a espera pela chegada da “madame” e a breve conversa que tiveram, onde em poucas palavras ele descreveu o projeto da sua instituição. Saiu do encontro com a promessa de que lhe seria dado pelo menos uma parte dos recursos que precisava. O relato do encontro nos seus aspectos pessoais também é bem esclarecedor. Disse-me este amigo que, apesar da riqueza e da opulência, os anfitriões do breve encontro eram “pessoas muito simples”, “cordiais”, “educadas” e que ouviram atentamente suas explicações sobre os planos da instituição e suas necessidades financeiras. “Eles são gente como nós”, me disse ele, com um sorriso.

“Não há dúvida que somos feitos da mesma matéria frágil que os constitui”, pensei eu. Entretanto, em uma sociedade estratificada em classes, estamos inexoravelmente distantes e, mesmo que de forma artificial, habitamos mundos bastante diferentes. E para entender o universo sofisticado onde transitam e os valores que mobilizam estas pessoas é importante armar-se com a devida consciência de classe. Esse encanto pelo glamour dos ricos e a percepção enganosa de sua “simplicidade” me fez lembrar outra história. Certa feita, uma amiga, que também é uma famosa doula, foi convidada a atender uma paciente do outro lado do mundo – literalmente. Para isso foi buscada de avião duas semanas antes do parto e ficou hospedada aguardando o trabalho de parto em um dos inúmeros aposentos da mansão da família mais rica daquele país – uma riqueza vinda do império de comunicação que seu pai havia criado. Sua descrição do jovem casal de herdeiros foi muito semelhante à do meu amigo. Para ambos, o contato com a aristocracia, mesmo que em níveis diferentes, foi uma experiência marcante, e para eles os ricos eram essencialmente iguais a nós: pessoas simples e humildes quando despidas de suas capas profissionais e quando deixavam de lado sua persona social. “They are simple people, just like us”, disse ela.

Contrariamente ao que dizia Hemingway, que afirmava que “os ricos são iguais a nós, apenas com muito mais dinheiro”, eu prefiro entender esse fenômeno da mesma forma como o jornalista Chris Hedges o percebe quando descreve a patologia dos ricos. Nascido de uma família de classe média baixa, sendo seu pai um pastor luterano e sua mãe uma professora, Chris Hedges foi agraciado com uma bolsa de estudos em uma escola frequentada apenas pelos extremamente ricos, local onde estudam apenas os filhos de bilionários dos Estados Unidos. Nesta condição de “penetra” em um mundo ao qual não pertencia, ou como um escafandrista que, sendo do mundo de ar explora um universo aquático, ele foi capaz de observar com olhar crítico os efeitos que a riqueza obscena – e o poder que dela deriva – produz nas pessoas, em especial nas crianças.

Sua experiência o fez entender esta concentração de riqueza como um tumor, uma doença corrosiva capaz de transformar tudo – e todos – em mercadoria, bens de consumo e utensílios precificados, os quais podem ser usados e descartados. O fato de viverem em bolhas onde as únicas pessoas do povo com quem convivem são criados e serviçais os faz acreditar – mesmo que racionalmente digam o contrário – que os outros, os que vivem fora da bolha, existem somente para servi-los. Sentem-se especiais, ungidos, eleitos de uma casta diferenciada. Como duvidar disso se todos ao seu redor se comportam como que confirmando essa percepção? Para Chris Hedges o dinheiro em quantidades praticamente infinitas destrói a humanidade que existe em nós, transformando-nos em máquinas de consumo. Sem a interdição do mundo real, como escapar da loucura?

Meus amigos, em seu breve contato com a vida dos aristocratas, deixaram-se seduzir pela aparente simplicidade de suas relações pessoais, sem se aperceber que se trata de uma máscara, uma estratégia de marketing. Aliás, a própria ação de “caridade” cumpre essa função: oferecer uma face humana à perversidade da sociedade de classes, e um alívio para culpas inconfessas. No íntimo existe na alma de todo bilionário a noção de que sua riqueza é imoral e que só ocorre pela expropriação do trabalho alheio. Muita gente se sacrifica para que sua opulência possa ser desfrutada e ele mesmo não precise trabalhar; seu dinheiro trabalha por si.

O mais chocante, para mim, nestes relatos foi a constatação de que os meus amigos realmente acreditavam estar na presença de pessoas “especiais”, devotando a eles a mesma reverência de um aldeão quando encontrava alguém da nobreza. Um encantamento que surge da crença arraigada na sociedade de classes, que nos faz crer que que somos intrinsecamente diferentes em nossa essência, e é esta essência o que nos oferece valor e mérito diferenciados. Uma sociedade verdadeiramente civilizada jamais permitiria que seres humanos fossem colocados em prateleiras diferentes no armário da vida. O deslumbramento dos meus amigos sinaliza que ainda estamos distantes dessa utopia.

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Classe

Perder eleição é momento, justiça social é um objetivo em longo prazo. À maioria expressiva do povo do Brasil sofre lavagem cerebral como todos que, mesmo sendo pobres, votam nos partidos dos ricos, acreditando que socialismo significa “não trabalhar”, quando é o OPOSTO: o capitalismo é que lhes dá o privilégio de não trabalhar e viver do trabalho alheio.

Ou achamos mesmo que os filhos dos milionários nos quais votamos trabalham e se esforçam igual a nós?

Não esqueça que passamos por um golpe. Lula ganharia a eleição de não fosse impedido por um juiz corrupto e uma mídia vendida. Mas eles sabiam que era necessário convencer os tolos – que consomem fake news pelo whatsapp – de que o problema do Brasil é a “corrupção do PT”. Veja… fomos tão estupidamente enganados que nem nos demos conta que (re)colocamos no poder o CENTRÃO, os partidos mais acusados de corrupção da história do Brasil. Pior, fazemos ainda vistas grossas para a corrupção da familícia do presidente. Sequer comentamos mais o fato de que nunca houve uma prova sequer contra o presidente Lula.

Em verdade, não queremos mesmo acabar com a corrupção; nunca foi do interesse da elite e dos poderosos terminar com isso. O que não suportamos é a justiça social; não desejamos acabar com a miséria, a fome ou a falta de moradias dignas. Não aceitamos pobres viajando de avião, ou comprando carros e TVs. E tudo isso porque nos consideramos “ricos”, diferentes dos pobres, apenas porque alguns tem o título de “doutor”, ou porque o mercadinho ou a lojinha nos fazem ganhar um pouquinho mais do que nosso vizinho.

Tolos… nunca faremos parte da festa dos ricos. No máximo seremos os garçons ou flanelinhas para os carros deles. Talvez o médico que vai atender a bebedeira deles e seus vômitos de canapés com Champagne.

Falta espelho. Falta ver quem somos. Falta reconhecer a classe onde fincamos nossos pés.

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Cesarianas e classe social

Durante os anos 90 eu atendi um parto, num hospital de periferia, que eu nunca esqueci pelos seus significados sobre o dilema das cesarianas. Os pacientes deste hospital eram egressos de uma vila popular muito pobre do cinturão que cerca Porto Alegre. No entanto, este parto em especial, era de uma família levemente mais abonada. Não traziam nas roupas ou nas palavras os estigmas da pobreza que eu estava acostumado a ver em quase todas as outras famílias que procuravam o centro obstétrico. O pai do bebê a nascer estava presente e a gestante tinha um pouco mais de idade do que a adolescência habitual.

Depois de admitida em trabalho de parto inicial o esposo me chamou para falar. Perguntou, de forma respeitosa e com palavras bem escolhidas, como estava sua esposa e o que deveria esperar para as próximas horas. Eu lhe respondi que estava tudo bem e que o parto só deveria ocorrer em várias horas. Ele aquiesceu com a cabeça e me cumprimentou, avisando que iria embora e voltaria mais tarde. Voltei para minha sala, mas antes que eu pudesse fechar a porta ele bateu no meu ombro e disse:

– Desculpe, doutor. Esqueci de dizer que, se precisar fazer uma cesariana, dinheiro não será o problema. Somos pobres, mas temos condições de arranjar o que o senhor cobrar.

Expliquei a ele que aquele era um hospital público, e que nenhum tipo de pagamento era necessário, muito menos permitido, mas que ele tivesse confiança que tudo faríamos de melhor para sua esposa e seu bebê. Porém, aquele homem assustado havia me mostrado que o parto normal de sua esposa significava não uma opção pela segurança e pelas boas práticas – o que verdadeiramente é – mas a submissão a um modelo imposto pela sua condição de pobre. As cesarianas ocupavam em seu imaginário “aquilo que se pode escolher quando se é de outra classe“.

A raiz da epidemia de cesarianas no Brasil está na divisão de classes. As pessoas não fazem escolhas racionais nesse campo. Muitos casais compram um convênio médico logo após casarem apenas para serem atendidos de forma “diferenciada” no parto. Cesarianas servem como símbolos de status que a classe média utiliza para se afastar do que significa ser pobre, “a quem não cabe escolha“. Para mudar esta tragédia no Brasil é fundamental mudar a imagem que todos temos da cesariana e do parto normal, desvinculando a escolha cirúrgica de uma opção pela segurança e como emblema de ascensão social.

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Abusos

Estive circulando na medicina por 39 anos e as atitudes desrespeitosas e abusivas dos estudantes, residentes, preceptores e professores sempre ocorreram. Não acredito que exista uma “crise” real surgida há poucas semanas ou meses, mas apenas uma publicidade maior para um problema centenário. Não há nada que me faça pensar que na minha época de estudante a atitude dos alunos em relação a pacientes e familiares era melhor. Em verdade, lembro de alguns episódios que seriam impensáveis nos dias de hoje, tamanho o desrespeito e o desprezo com as mulheres, em especial.

O que temos agora são mecanismos mais rápidos e eficientes de disseminar a informação e uma cultura mais madura para denunciar abusos, mas o comportamento dos estudantes e médicos continua o mesmo das últimas 4 décadas. O problema pode ser melhorado com a vigilância sobre a formação e o reforço de conteúdos éticos na faculdade (nada a ver com ética médica, que tem muito mais a ver com Maçonaria e lealdade corporativa), mas nada vai mudar de verdade sem questionarmos quem são os brancos (87%) classe média alta (80%), filhos ou irmãos de médicos (40%) que constituem o corpo discente da maioria das faculdades de medicina do país.

Esse perfil de entrada é a base para entendermos o brutal fosso de valores, ideias, visões de mundo, perspectivas e posturas que separa os médicos do universo de pacientes que são por eles atendidos. Sem que essa distância seja encurtada toda e qualquer transformação será apenas parcial e/ou paliativa.

Não basta aumentar a carga horária da disciplina de deontologia médica para “passar uma cal branca sobre a casa rachada“. Não é com este tipo de atitude que vamos fazer uma revolução paradigmática. Precisamos debater que médicos queremos e quem estamos formando. Como bem sabemos, os médicos chegam à faculdade egressos de um estrato social completamente diverso dos pacientes que virão a atender, mas a escola médica, ao invés de tentar consertar este desvio e esta perversão ainda reforça os preconceitos, assim como a visão classista e excludente dos alunos. Os exemplos vem de cima; o preconceito é uma cátedra sem professor titular, mas que todos os alunos conhecem desde o primeiro dia do curso. É por isso que as pessoas que já conviveram dentro de uma faculdade de medicina não se espantam com o relato de doutores recém formados (ou não) desprezando enfermeiras, doulas e funcionárias(os) ou tendo atitudes absolutamente machistas e abusivas com os pacientes, os mesmos a quem juraram proteger e curar. Esse ainda é o padrão de uma corporação que insiste em se manter na Casa Grande.

Minha sugestão – e desde já deixo claro que ainda utópica e sonhadora – é a criação de uma instituição que existe em outros países, salvo engano, a França: a “Ordem dos Pacientes” ou o “Conselho Federal dos Pacientes” que se ocuparia de receber as queixas de pacientes e estaria a serviço da sua proteção contra erros e equívocos de hospitais e profissionais de saúde. Pedir que os médicos façam o controle de seu próprio trabalho é ingenuidade. Os conselhos servem para proteger a medicina e os médicos, e isso não é uma acusação aos conselhos diante dessa importante e essencial função, mas o reconhecimento de que ela não é eficiente para auxiliar os pacientes. O “caso Adelir” é um bom exemplo. Para mim seria importante criar uma instância extrajudicial que pudesse fazer essa mediação antes de que os casos fossem enviados aos tribunais, diminuindo as demandas e fortalecendo as negociações, sem ser movida por um caráter primordialmente punitivo.

Não parece interessante? Eu, por conhecer os tribunais e seus conselheiros, percebo o quanto é ingênuo imaginar que os conselhos  de medicina possam deliberar contra si mesmos, cortar na própria carne e agir contra os poderes estabelecidos, os quais sempre beneficiam a categoria. Não faz sentido. Quando sou confrontado com esta minha desconfiança eu sempre pergunto aos amigos: “Na última eleição para o Conselho de Medicina, em quem você votou?“. Claro que as pessoas sempre respondem que só médicos votam nessa eleição. Então eu respondo: “E por que você acha que os conselheiros médicos favoreceriam os pacientes ao invés dos seus próprios eleitores?

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Sintoma Médico

O que causa o verdadeiro desconforto com a atitude dos estudantes recentemente chegados à escola médica é que sua atitude não se desenvolve em um vácuo. Não se trata de uma anomalia ou um fato isolado, mas o sintoma de uma doença sistêmica que só agora parece ser mais facilmente diagnosticada. Não é uma unha encravada ou o ferimento superficial em um corpo previamente saudável; não se trata da aparição súbita de uma infecção exógena que ataca um corpo indefeso.

Não. O que traz preocupação é que tais manifestações são apenas os sintomas e sinais visíveis de uma doença profunda, que agride os sentidos de forma insidiosa, que contamina os tecidos e órgãos de forma silente, mas que pode ser percebida quando deixamos de olhar para o evidente e levantamos o véu para ver o que se encerra por detrás do meramente manifesto.

Não é porque são estudantes de Medicina apenas, mas por serem parte dessa classe média arrogante e retrógrada que infesta o Brasil. Esses estudantes vão apenas reforçar esse preconceito durante a formação médica, e vão reproduzi-lo durante toda a vida profissional. Muito triste saber que eles terão a saúde de pessoas em suas mãos.

Todo movimento na medicina, por mais sutil e delicado que seja, é traçado pelas linhas do poder. Ali, nas entrelinhas do discurso, no espaço que se estende entre as palavras, no gesto fino, no branco difuso, na luz ofuscante, na frase cheia de abreviaturas, na desconexão entre o sentir e o real do corpo, entre o sujeito e o objeto é que se constrói a força dessa relação.

Esse encontro mágico tem a potencialidade ser o mais criativo caminho de cura, mas exatamente pela magia que o constitui e sustenta acaba sendo permeado por gritos de soberba e arrogância. Estes apenas sinalizam que o caminho que escolhemos se perdeu há muito e que reconstruir a arte de curar é outra grande tarefa para o milênio que se inicia.

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