Hoje meus pais completariam 67 anos de casados. Como houve mudança recente das leis de divórcio no plano espiritual, não tenho certeza se continuam juntos, mas pelas palavras do meu pai acredito que sim. Dizia ele que pretendia casar de novo com minha mãe nas próximas 20 encarnações – só depois daria “um tempo”. Foi uma relação que durou quase 70 anos, desde o namoro até a morte de ambos. Como sempre, eu acho que essas relações duradouras seguem um padrão bem característico, quando voluntárias, por certo. É necessário que ambos tenham um específico fetiche, talvez mesmo um tipo de fragilidade, algo que os faz procurar no outro sua completude, mesmo quando o mais fácil seria seguirem sozinhos. Essa característica podia ser encontrada em ambos, e por isso ficaram tanto tempo juntos. Aliás, além dessa relação com o amor romântico, minha mãe sempre teve outra característica muito curiosa: ela era apaixonadamente francofílica; desde jovem cultivava um amor desmedido pela França, sua língua, sua história e sua cultura, tudo isso misturado com uma xenofilia ingênua.
A francofilia veio da infância, vivida nos anos 30 em uma cidade provinciana como Porto Alegre. Na época assistíamos à decadência elegante da cultura francesa, que hoje não passa de um arremedo da importância que outrora teve no cenário das artes e das letras do mundo ocidental. Minha mãe era vidrada na França, em Paris, no encanto e na sofisticação da “cidade luz”. Além disso, ela adorava o idioma, que aprendeu a falar estudando sozinha em casa. Tenho guardados até hoje seus livros rabiscados em francês, o “Petit Robert” e seus cartõezinhos de cartolina rabiscados com frases escritas na língua de Victor Hugo e Émile Zola.
A sua xenofilia (amor pelo que é estrangeiro) era um traço curioso. Ela ficava espantada com o desenvolvimento tecnológico dos países da centralidade do capitalismo, e resumia esse aparente sucesso em uma palavra que usava constantemente: “pujança”. Dizia ela: “Os europeus fazem essas maravilhas devido à pujança do seu povo”, mas não adiantava muito que um comunista como eu explicasse a ela a origem criminosa da riqueza dos colonizadores europeus. Para os americanos a mesma admiração. Quando passava pela praia do Lami, às margens do Guaíba, em Porto Alegre, exclamava: “Imagine isso aqui nas mãos dos americanos. Tudo limpinho, tudo cheiroso, resorts, praias limpas, restaurantes”. Mal sabia ela que os americanos gerenciam, mas quem paga a conta de toda essa modernidade somos nós.
Apesar dessa paixão pelo estrangeiro, ela não era uma pessoa que desprezava o Brasil e os brasileiros. Tinha paixão pela natureza do nosso país e nossa miscigenação, e concordava ser nosso destino criar uma grande nação abaixo do Equador. Na grande expansão japonesa dos anos 80, quando o país viveu um furor desenvolvimentista e tecnológico, ela me dizia: “Calma, calma. O Japão é um país maravilhoso, mas o futuro não está lá. O país que vai liderar o mundo no século XXI é a China. Tem muita gente – e também muita pujança”. A China, na época, tinha um PIB menor que o do Brasil, e 80% da sua população ainda vivia no campo, mas minha mãe sacou com precisão que um país gigante e com uma economia centralizada com o tempo se tornaria uma nação de inclusão e progresso.
Tenho certeza que eles estão festejando hoje os 67 anos de união, e felizes por terem aproveitado a estadia terrena para oferecer bons exemplos a todos que com eles conviveram.
O enfrentamento e guerra são as únicas as alternativas que Israel deixou aos seus opositores, em especial os palestinos. Qualquer coisa diferente disso é ingenuidade, ou o desejo de que apenas uma das partes continue morrendo. Foram 77 anos de tentativas de consenso e de conversas pela paz que só pioraram a situação para os palestinos. Testa encarar a dura realidade: sem que Israel seja colocada de joelhos jamais teremos a paz. Qualquer conversa diferente disso é mentira, ilusão, fraude ou uma forma de normalizar o sionismo é o extermínio dos povos originários da Palestina.
Claro que seria possível asfixiar Israel sem tiros, sem bombas e sem mortes, mas até hoje isso nunca foi possível. Sobra a realidade de que não haverá paz enquanto Israel e seu racismo, seu apartheid e seu supremacismo continuarem a vigorar. Alguém acredita mesmo que, se os judeus e os nazistas sentassem para conversar em Berlim antes da Segunda Guerra Mundial, seria possível evitar o holocausto? Isso é muita ingenuidade. O holocausto ocorreu porque para os nazistas era possível fazer; qualquer debate seria incapaz de barrar o poder da força.
O caso da Palestina não se encontra em um vácuo conceitual. Antes desta luta anti colonialista e anti-imperialista, muitas outras ocorreram no planeta, em especial na segunda metade do século XX. Por acaso a Coreia Popular não enfrentou os Estados Unidos? Como foi a guerra pela independência da Argélia? O que ocorreu no Vietnã? Que dizer do Afeganistão? Por acaso estes países não se libertaram do imperialismo? Nestes casos todos houve acordos e mesas redondas para a libertação? E Cuba, que se sustenta dignamente há 65 anos, foi conquistada mandando e-mails e petições? Trazer ao debate a capitulação dos povos, em nome da “pax americana” é mais do que absurdo; é triste. Mas é preciso ter em mente que Israel, inobstante todo seu dinheiro e poder, foi derrotada pelo eixo da resistência e por isso tiveram que ceder. O melhor termômetro para isso é a reação da extrema-direita de Ben-Gvirn e Smotrich… eles estão furiosos, desesperados. A derrota de Israel está mais próxima do que nunca, basta olhar a consciência internacional sobre os palestinos.
Aqueles que acreditam que as mortes e o sofrimento dos palestinos significam a sua derrota não conhecem a Palestina – muito menos os palestinos – e não entenderam sua luta. Se a proposta é a capitulação do povo palestino em nome de “salvar vidas”, então é necessário estudarem mais o valor que os palestinos dão à sua terra e sua cultura. Ora, a desistência nunca esteve no horizonte dos palestinos, da mesma forma como jamais foi uma alternativa para vietnamitas, afegãos, coreanos, cubanos e todos os povos oprimidos. A ofensiva do Tet, na guerra do Vietnã, é a grande lição quando estamos observando e tentando entender perdas de vidas em uma guerra. Depois dessa ofensiva vietcongue, o Vietnã perdeu 2 milhões de cidadãos, entre civis e militares, na guerra de libertação contra os Estados Unidos. E quem venceu a guerra? A União Soviética perdeu 20 milhões de habitantes na Segunda Guerra Mundial, mas qual exército venceu os nazistas? Dizer que os palestinos estão perdendo porque foram massacrados é uma ingenuidade que não cabe nas análises geopolíticas e nos cenários de guerra. A vitória das forças da resistência é inegável, mas alguém realmente acredita que a derrota do sionismo ocorreria sem luta, sem vítimas e sem mártires? Quando houve isso na história da humanidade? Quando um povo se livrou da opressão e do martírio sem o sacrifício de milhares – e mesmo milhões – de combatentes? A resposta para evitar os massacres é a rendição? Ora… nenhum povo aceita esta solução.
Israel está em pedaços, derrotada e humilhada. Não atingiu nenhum dos seus objetivos: não liberou reféns, não invadiu o Líbano, não conquistou a opinião pública, não destruiu o Hamas, não neutralizou o Iêmen e não desmantelou o eixo da resistência. Ao lado disso, está sofrendo pressão e ameaças da Turquia e agora do Egito e não está descartada uma guerra entre esses países e Israel, em especial pelos espólios da Síria. Israel continua sendo bombardeada pelo Houthis diariamente e mais de 800.000 israelenses já fugiram do país. Num país de 7 milhões de habitantes judeus, seria como se 20 milhões de brasileiros deixassem o país. 70 mil negócios já foram fechados. O porto está parado há meses. O Irã demonstrou superioridade militar e logística contra Israel e deixou claro que, se precisar, reduz aquele antro racista a pó.
A Palestina é a grande vitoriosa da guerra até agora, uma vitória que fica demonstrada pela crise insolúvel no Knesset. O cessar-fogo é a confissão de fracasso demonstrada pelos líderes da extrema-direita fascista, Ben-Gvir e Smotrich, que ameaçam sair do governo. Isso implodirá o governo Netanyahu. Mas o pior para Israel é a guinada de 180 graus na opinião pública. O mundo inteiro viu pela Internet a carnificina dos sionistas, superando em covardia e crueldade seus mestres nazistas. Israel já está na posição de pária internacional, sendo tratado como um país falso, sem conexões diplomáticas com o resto do mundo.
É espantoso ainda testemunharmos analistas defendendo os sionistas e o doisladisno diante da catástrofe de relações-públicas que foi esta guerra para Israel. Ontem mesmo, Trump declarou que Netanyahu é um “carniceiro filho da puta”. Como sabemos que Israel só existe devido aos Estados Unidos, esta declaração parece ser a preparação de terreno para que os Estados Unidos deixem lentamente de dar apoio ao terror de estado patrocinado pelos sionistas. Não existirá paz no Oriente Médio enquanto houver Israel, seu colonialismo, seu racismo, seu apartheid, sua limpeza étnica e sua crueldade. Sua perspectiva de “paz” através de “negociações” em que os “dois lados” façam concessões é de uma ingenuidade inaceitável, que joga a favor do imperialismo, dos massacres, da submissão e que esta na contramão da história e da luta dos povos. Essa sua proposta nos enganou por 7 décadas, mas ninguém mais vai cair nessa arapuca.
Durante anos eu li artigos e vi documentários que abordavam a hipotese ficcional de um mundo no qual o nazismo havia vencido a segunda guerra mundial. Por certo que junto com a vitória militar das forças nazistas haveria o controle da produção e da comunicação. Os países europeus estariam em frangalhos, com governos fantoches comandados por Berlim, e seus governos estariam enfraquecidos pelo gigantismo da Alemanha. Comunistas seriam inimigos mortais, caçados em toda a Europa e os Estados Unidos teriam o status de país do novo mundo, um bom fabricante de geladeiras. Todavia, não tenho dúvida alguma que o controle da imprensa, e o fato de que a história é sempre contada pelos vitoriosos, contaria a vitória da Alemanha como a coquista do “bem contra o mal” e a destruição de judeus, ciganos e comunistas seria tão somente a limpeza necessária de terroristas e bandidos comuns que ameaçavam a democracia nazista.
Quando vejo mundo de hoje e percebo o que os Estados Unidos fazem do mundo, me vem à cabeça a pergunta: estamos muito diferentes do que seria o mundo se Adolf tivesse vencido? Não seriam os ataques aos países do Oriente Médio, patrocinados pelo imperialismo, o mesmo sentido da dominação sangrenta e racista do III Reich? Não seriam os palestinos de hoje os judeus de outrora? Não seriam a Síria, o Iraque, o Afeganistão os países tomados pelas “blitzkrieg” de Hitler? Não seria a propaganda de hoje, pelos veículos sionistas que controlam a informação, uma forma de pintar de ruim o que é nobre e de bom o que é perverso? Da mesma forma como descrevíamos o “judeu maligno” de outrora fazemos hoje, pelo massacre da mídia, a imagem falsa do povo palestino como terrorista. Estamos muito distantes da ficção sombria da vitória dos nazistas?
O imperialismo, com sua dominação de espectro total, não difere muito de um totalitarismo planetário. Um mundo de equilíbrio não pode conviver com essa barbárie. A tarefa primeira do revolucionário é combater o imperialismo e seus tentáculos.
Hoje assisti um vídeo exaltando os Estados Unidos mediante uma estratégia conhecida: o preço mais baixo de produtos como carros, televisores, aparelhos eletrônicos, etc. comparando o poder de compra do trabalhador de lá com os salários pagos aqui no Brasil. O articulista analisava esses valores como se não houvesse um sistema internacional que privilegia a transferência de riqueza para o centro do Império, tornando os produtos lá mais baratos e o salário dos técnicos mais altos. Reduzia a sua análise ao conhecido “o liberalismo produz bem-estar”. Esquecia que a dolarização é o imposto que o mundo inteiro paga para que o cidadão comum americano tenha um poder de compra maior.
É impressionante a incapacidade da nossa classe média de desenvolver consciência de classe. Continuam achando que estão próximos da burguesia e longe dos assalariados e proletários, quando a realidade é o oposto. Enquanto isso, acreditam que os problemas brasileiros, e de resto de todo o sul global, são os impostos excessivos ou os “maus políticos”, como se nos Estados Unidos não estivessem reunidos os políticos mais corruptos do mundo – basta ver o perdão ao filho do presidente Biden, corrupto condenado e que recebeu um indulto imoral e injusto, mostrando que as pessoas não são julgadas de forma equilibrada. As pessoas aqui ao sul do equador não conseguem ver que o valor pago para um trabalhador da construção civil ou para um atendente do Mac Donald’s tem a ver com o dinheiro que circula no país e a transferência de renda para a centralidade do capitalismo, e não com o sistema político ou o valor baixo dos impostos embutidos nos produtos, como carros, televisores, computadores e lanchas. Isso não é sinal de equilíbrio, mas de opulência.
Em Nova York, a média salarial de um engenheiro civil é de 97 mil dólares por ano, enquanto na China comunista é de 108 mil anuais; lembrem que no comunismo chinês os cidadãos também pagam impostos, e não esqueçam que a China se tornou uma nação rica e poderosa apenas nos últimos 30 anos. Além disso, as pessoas que apontam a inexistência de um sistema de saúde universal como o SUS nos Estados Unidos estão corretas. Neste ano de 2024, 500 mil famílias pediram insolvência jurídica pela incapacidade de pagar as contas médicas. Meio milhão de famílias faliram devido ao valor absurdo de suas contas de hospital!! Pessoas morrem por falta de remédios e muitas preferem se arrastar acidentadas até um táxi do que chamar uma ambulância quando ocorre um acidente, pois a viagem com uma ambulância particular pode custar a totalidade do seu salário. Não é por acaso que Brian Thompson, CEO de uma das maiores empresas de saúde do mundo, foi assassinado por um jovem que teve benefícios negados por sua empresa. A companhia UnitedHealthcare, a unidade de seguros do provedor de serviços de saúde UnitedHealth Group, é a maior seguradora dos EUA, mas o cidadão médio americano odeia as empresas que lucram com a saúde, e por isso o suspeito do crime está sendo tratado como herói pelas redes sociais.
De acordo com registros do ano passado, mais de 650 mil pessoas não tinham moradia nos Estados Unidos, morando em barracas, em especial nas ruas das grandes cidades americanas, como Los Angeles. Com o estresse constante pelas guerras infinitas e pela estrutura competitiva da sociedade, a epidemia de opiáceos mata mais de 80 mil pessoas por ano. Enquanto um engenheiro civil nos Estados Unidos pode ganhar 9 mil dólares mensais, milhares de trabalhadores regulares não conseguem ganhar o suficiente para pagar um aluguel e moram em seus carros. No país mais rico do mundo, 400 mil pessoas vivem em seus veículos, muitos deles com contrato de trabalho regular. Essa exaltação do “American way of life” é anacrônica, datada, velha e equivocada. A disparidade de riqueza atingiu seus limites mais altos da história. Com o fim da dolarização que se acelera e deverá ocorrer nos próximos anos, a crise será incontornável e o cenário mais óbvio será a guerra civil – que só não ocorreu ainda porque Trump venceu as eleições.
É triste ver tanta gente tola achando que a solução é cortar impostos e ter menos políticos. Sabem onde não há impostos? Coreia Popular. Sabem onde político trabalha totalmente de graça, sem receber nenhum salário? Em Cuba. Enquanto perdemos tempo debatendo preço de carro, como se isso fosse um indicador de felicidade, esquecemos que 20 mil pessoas morreram assassinadas nos Estados Unidos em 2023. No “Brasil capitalista” houve 45 mil homicídios em 2021, enquanto na China, menos de 7 mil, para uma população de 1 bilhão de habitantes. No Japão menos de 300 pessoas pereceram dessa forma. Que sociedade de opulência, felicidade e valorização de trabalhadores é essa em que tanta gente mata?
E a drogadição? O que dizer da dependência de remédios – em especial os estupefacientes – da sociedade americana? O que dizer de uma sociedade cujos programas na TV tem propaganda de drogas e advogados o dia inteiro? Metanfetamina, crack, cocaína, Fentanil, etc. são problemas de saúde pública gravíssimos. Os Estados Unidos são uma sociedade que tem 4 milhões de usuários de cocaína, e as mortes pelo uso de drogas batem recordes todos os anos. É essa sociedade que desejam mostrar como exemplo? Só porque os carros – que matam 40 mil todos os anos nas estradas americanas – são mais baratos? Isso significa uma sociedade mais equilibrada, mais progressista e onde existe a valorização do trabalho?
O capitalismo e o imperialismo são sistemas moribundos, cadáveres insepultos, mas ainda é possível ver aplausos para um modelo que não consegue resolver suas contradições, como a concentração acelerada de riquezas e a criação de uma legião de miseráveis distribuídos pelo mundo. Há, sem dúvida, valores e virtudes naquele país – como a defesa da liberdade de expressão – mas é um modelo de sociedade que não conseguiu resolver os problemas centrais da economia capitalista, conforme previu Marx ainda no século XIX, e precisa ser substituído por um sistema mais justo e que ofereça qualidade de vida para a maioria da população, e não para uma minoria de capitalistas cada vez mais concentrada.
“Quando criança eu adorava ver os filmes de médicos, como Dr. Kildare e Marcus Welby Md e depois os seriados como Plantão Médico e Gray’s Anatomy. Eu queria ser o Dr. Doug Ross, o George Clooney de estetoscópio no pescoço. Meu sonho sempre foi ser um médico americano rico, como nas fantasias das séries e dos filmes que assisti”
Quando alguém me disse contou essa fantasia eu imediatamente lembrei do meu colega Erick, com quem conversei em Cleveland, um jovem médico de família que trabalhava no hospital de clínicas da Case Western Reserve University. Perguntei a ele como eram as atribulações jurídicas dos profissionais do hospital, pois a ideia geral no Brasil é de que os médicos americanos passam boa parte do seu tempo preocupados com isso. Ele respondeu que os processos são o cotidiano de qualquer profissional. Todos passam por isso, sem exceção. Contou de um recente caso em que esteve envolvido no qual o hospital acabara de pagar 8 mil dólares num acerto pré-judicial entre as partes como indenização por uma cirurgia de circuncisão que havia feita em um recém-nascido.
Eu ja escrevi vários textos sobre “cirurgias ritualísticas e mutilatórias da medicina ocidental” exatamente para falar sobre a obsessão americana por esta operação, que não apresenta nenhuma vantagem para os pacientes e pode produzir sérios danos para os meninos, em especial na queda da sensibilidade e no desempenho sexual. É a “episiotomia” dos meninos. Perguntei a ele a razão do processo, e pensei em uma tragédia como infecção, necrose, amputação, etc
– Não, nada disso. Foi algo bem tranquilo, mas a família reclamou porque julgou que eu havia cortado muito pouco.
Perguntei se ele acreditava que um juiz daria ganho de caso para um pedido tão absurdo dos familiares como este, ao que ele respondeu: “Não, nós certamente ganharíamos, mas as custas judiciais chegariam a 9 mil dólares, então preferimos pagar 8 mil para a família. Assim ficou melhor, não acha?”
Não, não ficou melhor, pensei eu. Esse tipo de atitude aparentemente conciliatória estimula a famigerada indústria dos processos médicos que têm na medicina americana o seu local de maior florescimento. Esses dólares gastos com processos fúteis na verdade alimentam bancas de advogados que enriquecem às custas da exploração destes casos. É por histórias como essa, que colhi de muitos médicos que conheci nos Estados Unidos, é que tenho certeza que jamais me adaptaria a trabalhar um contexto médico como o americano. Lembro de conversar com estudantes de medicina de lá que me contavam que a lógica para montar um consultório era a mesma que era utilizada para abrir uma sapataria. O mesmo tipo de publicidade, o oferecimento de “modelos da moda”, a mesma busca por doenças atuais, a febre por equipamentos sofisticados, a publicidade abusiva, a busca por soluções químicas ou tecnológicas, etc. Dinheiro, essa era a palavra mágica.
Não apenas isso. Os médicos contratados por clínicas ou hospitais se tornam escravos de luxo do sistema, mas precisam dar lucro para as instituições e para a indústria – farmacêutica, hospitalar, de insumos, etc. O médico não recebe nenhum respeito destas instituições contratantes; ele é estimulado para que seu trabalho gere dividendos para a empresa. A comparação com o futebol faz todo sentido: “você vai jogar no nosso time, mas tem que fazer gol. E o gol não é a saúde do paciente, mas o lucro de quem lhe paga. Não pense que poderá tratar seus clientes como deseja; você é uma engrenagem da nossa máquina”.
A qualidade de vida do médico americano não é nada boa. De acordo com pesquisas, 1 entre 15 médicos tem ideias suicidas. O stress jurídico, a carga horária, o distanciamento afetivo dos pacientes, os custos de um consultório, etc tornam essa profissão algo que os próprios americanos não desejam mais. Pense bem: por que 27% dos médicos americanos não estudaram medicina nos Estados Unidos? Estima-se que os estados Unidos deverão enfrentar uma enorme escassez de médicos para os próximos anos, chegando a uma falta de 124.000 médicos no ano de 2033. A propósito, um fenômeno importado da Inglaterra, onde 37% dos médicos ingleses não são formados no Reino Unido. Também a Austrália, com 22% de estrangeiros e o Canadá com 17% seguem esse caminho – todos países dersenvolvidos e com o mesmo problema de uma medicina altamente judicializada. Mais ainda: por que estão convidando médicos de outros países para trabalharem lá? As propagandas nas redes sociais chamando profissionais da medicina para vagas nos Estados Unidos são uma clara demonstração desse problema. Estão oferecendo vantagens para que médicos aceitem trabalhar num modelo de saúde que, apesar se ser altamente tecnológico, tem os piores resultados entre todas as nações industrializadas do planeta. Os Estados Unidos estão além do 50º lugar em mortalidade neonatal, e um dos poucos lugares onde a mortalidade materna aumenta. Os custos para os pacientes são impactantes, e milhares de americanos vão à falência por transtornos médicos que, no Brasil, seriam financiados pelo Estado. Nos Estados Unidos 500 mil famílias por ano perdem tudo por dívidas com os hospitais. Meio milhão de famílias! Este é o lugar onde as pessoas se recusam a chamar uma ambulância por medo dos custos, e onde a saúde não é um direito universal de todo cidadão, mas um produto que é comprado apenas por quem tem dinheiro.
Sim, os americanos que vivem no país (ainda) mais rico do planeta têm um sistema de saúde caótico, totalmente privatizado, de resultados tremendamente ruins, onde os médicos são maltratados e se tornam reféns de uma estratégia de atenção à saúde baseada no lucro. Nesse modelo a saúde dos pacientes não é a prioridade. Não esqueçam que lá, em especial, o bem-estar das pessoas é contraproducente: não gera lucro, não movimenta a economia e não produz riqueza. Por outro lado, uma população doente lota os consultórios, consome consultas de emergência, realiza internações e compra remédios. Esta é a mesma lógica capitalista usada em qualquer sociedade baseada no consumo: a infelicidade é estimulada pela propaganda porque se descobriu que gente feliz não precisa comprar coisas.
É preciso muita coragem para se aventurar na medicina americana, o pior sistema de saúde jamais gerado pela humanidade.
Quando escuto as tradicionais acusações dos direitistas e liberais aos “ditadores” comunistas (ou não) e suas listas de mortes – cujos números são sempre criados em “freestyle” ou usando dados do instituto TireyDoku – eu exijo que qualquer avaliação da história destes personagens não ceda às pressões do anacronismo e avaliem o contexto em que estas revoluções foram estabelecidas.
Olhem, como exemplo claro, a história da China e o “século de humilhações” pelo qual passou. Anos de exploração estrangeira, repletos de abusos e o confisco de suas riquezas. Pensem nas derrotas humilhantes nas Guerras do Ópio, a pobreza do seu povo, a espoliação produzida pelos colonizadores ingleses e ficará mais fácil compreender a necessária reação para a liberdade do povo chinês. Sem entender a realidade das múltiplas invasões estrangeiras e as lutas internas fica mais complicado colocar em contexto a libertação da China em 1949 através da guerra civil e a “grande marcha” de Mao Zedong. Entretanto, a ninguém seria lícito imaginar que a entrega da China aos chineses seria feita sem os tradicionais massacres que as nações imperialistas impõem como punição aos povos dominados. É necessário também lembrar o que era a China em meados do século XX e o quanto sofreu durante a invasão japonesa, a perda da Manchúria na segunda guerra mundial e os 14 milhões de mortos que sucumbiram nessa guerra brutal contra o domínio nipônico.
Como não lembrar a história da Coreia, a ocupação japonesa, a tentativa de extermínio de sua língua, de sua história e até dos seus patronímicos? A invasão americana na “Guerra da Coreia” (ou Guerra da Libertação, como é referida na Coreia Popular) exterminou 1/3 da população civil, mandando o país para a idade da pedra com a destruição de todas a sua infraestrutura (a exemplo do que se faz hoje em Gaza) e só quando estudamos a crueldade assassina das forças imperialistas é possível entender a história de Kim Jong-Un, seu pai, seu avô, sua gente e a luta por liberdade e autonomia do povo coreano. Não é justo esquecer o que a França fez com o Haiti e com a Argélia, uma história de dominação repleta de atos da mais absoluta selvageria e covardia. Como apagar a história brutal do Congo, e os 10 milhões de mortos sob o domínio da Bélgica do Rei Leopoldo. Portanto, seria de esperar que a resistência pela liberdade em resposta à esta brutalidade só poderia ser igualmente feroz.
É preciso ter em mente que 14 nações invadiram a União Soviética durante a “guerra civil” (na verdade, guerra de independência) e isso facilita para entender a necessidade que havia de lutar de todas as formas possíveis, pois isso representava a única possibilidade de manter a unidade nacional. Que dizer dos 20 milhões de mortos da União Soviética na luta vitoriosa contra o nazismo de Adolf Hitler e o preço pago pelos soviéticos para que o mundo se livrasse do fascismo da Alemanha? Em Cuba a revolução se estabeleceu na luta contra um governo corrupto e burguês, que mantinha a ilha como um bordel americano e uma gigantesca fazenda de cana de açúcar, mantendo a população miserável, oprimida e subjugada pelos latifundiários e seu sistema semi-escravista. Por acaso estes poderosos, apoiados pelo governo americano, entregariam a soberania de Cuba para os cubanos sem luta e sem violência? Seria condenável a reação violenta de um povo que por séculos sofreu de forma desumana?
E o que falar sobre o Hamas, este partido politico e seu braço armado (a brigada Qassam) e os demais grupos de resistência palestina que lideram uma luta de 76 anos contra os canalhas sionistas, racistas e abusadores, terroristas da pior espécie, violadores e assassinos de crianças? Há como analisar suas ações, em especial o 7 de outubro de 2023, sem levar em consideração as humilhações impostas pelos invasores sionistas nas últimas sete décadas? Há como apagar uma parte da história e manter apenas aquela que nos interessa? Por acaso eram “terroristas” aqueles que atacaram a realeza na França na queda da Bastilha, criando as fundações do mundo burguês no qual hoje vivemos? Ou seriam eles tão somente os bravos lutadores que resistiram ao poder despótico e injusto da cleptocracia monárquica? E a resistência francesa que lutou contra os nazistas em Paris? Seriam terroristas aqueles que lideraram o levante do gueto de Varsóvia? Ou a história provou que eles eram lutadores pela liberdade de seus povos? Será mesmo que a independência dos Estados Unidos, libertando-se da Inglaterra, foi feita com abaixo-assinados, ou foi como todas as lutas libertárias – a ferro e fogo? Ora, não sejamos tolos e ingênuos.
Isso não significa que as guerras de libertação não contenham ações bárbaras violentas, abusivas e até criminosas. Porém, quando vejo críticas a estes eventos do passado é impossível não lembrar de Bertold Brecht: “Dos rios dizemos violentos, mas não dizemos violentas as margens que os oprimem”. Do Hamas reclamamos a fúria, mas fechamos os olhos diante dos 76 anos de massacres, torturas, assassinatos, sequestros, o extermínio de famílias inteiras, o apartheid e a dominação opressiva por parte do Estado terrorista de Israel. O mesmo se pode dizer de todos os grupos de resistência que se levantaram contra a opressão. É preciso aprender a história dos povos para entender suas lutas e seus dilemas. E por fim é fundamental conhecer os personagens que são criticados pelos reacionários para saber em qual contexto eles atuaram.
O poema “Ithaka” de Constantine Cavafy, foi escrito no início do século passado, em 1911, e oferece a perspectiva de que deve haver, em nossas ações cotidianas, a supremacia da viagem sobre o destino. Ithaka simboliza o objetivo supremo que todo sujeito procura durante sua existência. Cavafy faz uma alusão à lendária viagem de retorno de Ulisses, rei da ilha de Ithaka, onde sua esposa Penélope e seu cão Argos o esperavam após a vitória dos gregos sobre os troianos – que Homero retratou em “A Odisseia”. O poema se refere ao percurso pessoal e subjetivo que cada um de nós empreende durante sua vida e sugere que procuremos encontrar durante a permanência na Terra nossa própria Ithaka, o objetivo supremo, que é uma forma de garantir sentido à nossa trajetória pelo planeta. O poema de Constantine, um grego radicado na Inglaterra, ficou tão conhecido que foi recitado no funeral da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy Onassis.
Ithaka (e mantenho aqui a grafia original) é também o nome do documentário recentemente lançado que trata da relação de John Shipton com seu filho famoso, Julian Assange, preso da penitenciária londrina de Belmarsh, onde aguarda sentença de deportação para os Estados Unidos. O filme teve sua apresentação pública ontem na minha cidade e contou com a presença de John Shipton, personagem central do filme, e aborda as peripécias deste australiano de 76 anos que lidera no mundo inteiro uma campanha para a libertação do seu filho, editor chefe do Wikileaks, que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque e na prisão de Guantánamo no Caribe. Mostra os detalhes da sua vida comum, seu temperamento taciturno e reservado, a relação com os filhos e as conversas com a nora Stella Morris, mãe dos dois filhos de Julian.
Evidentemente existem várias formas de ver este documentário, dependendo da ótica que você escolhe para captar as imagens na tela à sua frente. A mais evidente maneira é olhar para a luta empreendida pelos ativistas do mundo todo pela liberdade de imprensa, pelo direito de expor os crimes contra a humanidade cometidos pelos poderosos, em especial aqueles que controlam as leis, a mídia, a propaganda, as reservas de recursos naturais, os territórios e o comércio. O filme aborda isso de uma maneira bem clara, mostrando que nenhuma acusação contra Julian sobrevive a uma análise baseada nas leis de proteção das fontes e da liberdade de imprensa – em especial as leis americanas. Fica evidente que a prisão de Julian Assange cumpre um objetivo claro: humilhar publicamente alguém que denunciou a barbárie do imperialismo, castigando ao extremo aquele que ousou enfrentar os poderes imperiais e dando um recado a toda a imprensa mundial: não há espaço para criticar os poderes da polícia do planeta; quem assim o fizer será submetido à todas as sanções possíveis, perseguições, ataques, destruição da honra, mentiras e – se for possível – a própria morte. Em verdade, a tortura realizada contra Julian Assange pretende condená-lo à pior morte: a loucura e/ou a depressão pelo isolamento e pelo absurdo das acusações às quais é submetido. Como o personagem Josef K., de Kafka, os supostos crimes cometidos são o que menos importa; o que vale é punir por razões aleatórias e fabricadas qualquer sujeito que ameace os interesses americanos. O “lawfare” contra Lula mostrou em nível local o quanto os interesses geopolíticos de dominação conjugados com a corrupção do judiciário são capazes de servir aos mais espúrios interesses do imperialismo.
Outra forma de ver o documentário é pela exposição da fragilidade crescente dos governos europeus, absolutamente controlados pela política externa americana, não apenas nos aspectos políticos e bélicos (a guerra contra a Ucrânia é um claro exemplo) mas também o poder que a máquina publicitária americana exerce sobre a opinião pública e o próprio judiciário. Fica evidente o quanto os juízes britânicos são meros marionetes comandados pela mão pesada dos americanos, que são quem está de fato julgando este caso, a partir da sua visão persecutória e imperialista. Não há qualquer autonomia para julgar Assange – tanto quanto não havia para os juízes do Iraque ocupado para julgar Sadam Hussein – o que nos demonstra que a tão propalada “liberdade” dos países do “primeiro mundo” nada mais é que uma peça de propaganda, uma mentira mil vezes contada, que apenas serviu para criar a fantasia do ocidente como um espaço de liberdade de expressão e de abertura política. Estas farsas, esses simulacros de democracia, estão sendo aos pouco desvelados e Julian Assange está recebendo esta cruel punição exatamente por se postar na linha de frente nas denúncias, apontando seus dedos para os crimes hediondos cometidos pelos Estados Unidos nas guerras em que se envolveram.
Porém, há uma outra forma de ver o filme, provavelmente a mesma que inspirou John e seu filho Gabriel (meio irmão de Julian) para colocar no documentário o nome de “Ithaka”. O personagem central da película é John Shipton e bem no princípio do filme ele se irrita quando questionado sobre o que o levou a ficar separado do seu filho dos 3 aos 20 anos. Certamente tem a ver com a separação da mãe de Julian, mas isso não fica claro. Ficou incomodado quando foi perguntado sobre o diagnóstico de Asperger que seu filho Julian tem, dizendo “ele é o que ele é”. John Shipton demonstra durante todo o documentário que é um sujeito pacato, nascido na Austrália, sem vinculações políticas explícitas, com um caráter evidente de misantropia bem humorada, reservado, quieto, pouco afeito a conversas e arredio à publicidade e aos jornalistas. Ele é um dos mais perfeitos exemplos de um sujeito jogado involuntariamente – e totalmente despreparado – no olho de um furacão que está envolvendo os próprios princípios democráticos mais basilares da cultura ocidental: a liberdade de imprensa e o direito de denunciar os crimes cometidos pelo Estado – e pelo Império.
John é a verdadeira personificação do sujeito anônimo que subitamente ganhou notoriedade internacional. No seu caso isto ocorreu pela prisão criminosa de seu filho, o que fez um pacato “Zé Ninguém” de mais de 70 anos ser alçado ao posto de herói por multidões. No meio do filme ele diz a frase que mais me tocou, e tenho certeza que muitos que viram o filme também sentiram a mesma emoção que eu naquela simples resposta a um jornalista, a qual continha o cerne de sua jornada em direção à sua Ithaka pessoal. Quando instado a falar o que o movia nessa aventura ele respondeu “Porque sou pai, e isso é o que qualquer pai faria por seu filho”. Ou seja, John provavelmente continuaria indefinidamente em sua vida pacata na Austrália, construindo casas e se alegrando quando as pessoas se mudam para elas. Jamais pensaria na tarefa nobre de defender a causa da liberdade de imprensa ou de combater os poderes abusivos do imperialismo em tantas partes do mundo. Continuaria a ser o sujeito ranzinza e pacato que sempre foi, cultivando seu jardim e cuidando de sua filha pequena. Porém, tudo indica que foi convocado pela deusa “Álea” – a divindade dos fatos aleatórios – para ser o divulgador da causa do seu filho, o mais famoso preso político do mundo. Talvez ele fosse o mais despreparado de todos os humanos para empreender esta viagem tão árdua, difícil e cheia de armadilhas. É possível, entretanto, que esta seja a verdadeira razão oculta da odisseia que transformou sua vida, fazendo do trajeto inusitado que surgiu algo capaz de dar verdadeiro sentido à sua existência. Por muitas vezes eu me coloquei no lugar de John Shipton, pensando o que eu faria em seu lugar, convocado a combater os gigantes macabros que tentam destruir seu filho e – acima de tudo – exterminar o que resta de liberdade de expressão no mundo. Muitas vezes pensei se teria a mesma coragem para denunciar a barbárie que testemunhei. Uma pergunta de difícil resposta; ou talvez a resposta mais fácil.
John Shipton em P. Alegre
Ao final da apresentação do filme pensei em perguntar para John como um pai se sentia vendo seu filho preso, doente, torturado e injustiçado. Quais são as emoções diante da impotência de testemunhar a violência do Estado contra alguém cujo crime foi revelar a verdade. Preferi me calar porque sabia que essa pergunta pouco poderia revelar objetivamente, porque só calçando os seus sapatos e caminhando o percurso tortuoso que ele trilhou para saber a dor de esperar a volta de um filho injustamente acusado, inocente e preso por ser bravo e combativo. Coube ao meu filho Lucas, que me acompanhou ao evento, pedir que ele recitasse a poesia Ithaka, que deu nome ao documentário, e pedisse para que ele nos dissesse “quanto tempo temos e quanto de esperança podemos carregar ao peito”.
Sua resposta foi até óbvia: ele se mantém esperançoso e seu filho “sofre, mas resiste”, e que o imenso apoio internacional que está recebendo de tantos povos, nações e instituições é uma luz de fulgurante esperança de que Julian um dia poderá voltar para casa – ou para o Brasil, conforme o convite do próprio presidente Lula. A seguir recitou em inglês o poema Ithaka, cuja tradução transcrevo abaixo:
Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Poseidon te intimidem; eles no teu caminho jamais encontrará se altivo for teu pensamento, se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o bravio Poseidon hás de ver, se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria, tu hás de entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda a espécie, quanto houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrina para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar. Mas não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas.
O “welfare state” na Europa, assim como o keinesianismo nos Estados Unidos, foram as boias de salvação do capitalismo que naufragava. O modelo de bem-estar social europeu (saúde pública, aposentadoria, férias, proteção à infância, salário desemprego, licenças maternidade/paternidade, etc.) resguardou os capitalistas da insurgência popular após a II Guerra Mundial, enquanto o modelo de Keynes (investimento massivo do Estado na infraestrutura) salvou a economia capitalista americana depois da grande crise de 1929, oferecendo a ela um século de sobrevida.
Todavia, era evidente que o projeto viria a fracassar, mais cedo ou mais tarde; não haverá jamais reforma suficiente para salvar um sistema que nos divide em classes. Lula parece e ser um novo Roosevelt, cujo maior feito foi salvar o capitalismo de 90 anos atrás, mas eu duvido que o capitalismo “humanizado” de Lula – com 3 refeições ao dia para todos – seja capaz de salvar o projeto moribundo da sociedade de classes.
É tempo de abandonar o Reformismo e investir na consciência de classe do proletariado…
Diante da minha necessidade em treinar a escrita no idioma inglês eu costumo participar de debates no Facebook sobre assuntos variados, e minha diversão é expressar teses polêmicas em notícias de empresas de “news”, como Insider Presents, Daily Mail, Washington Post, etc.
Vendo os comentários de americanos sobre a guerra na Ucrânia eu fortaleço a minha crença de que o cidadão médio dos Estados Unidos é o grupo humano mais manipulado que existe. A visão que eles têm sobre o conflito é um retrato fiel da avalanche de fake news e visões distorcidas despejadas pelas suas empresas de comunicação. Para estes espectadores, a Ucrânia está vencendo a guerra, a Rússia sofrendo derrotas humilhantes diariamente, a guerra é uma ação honrada da Ucrânia e essa história de nazistas, batalhão Azov, Pravyy Sektor e golpe de estado “não é bem assim”, e o verdadeiro nazista é Putin, o açougueiro.
Sobre as motivações da guerra, falam quase em uníssono sobre o absurdo da Rússia invadir uma “nação soberana” mas, quando confrontados com o fato do seu país fazer isso em todo o planeta, sendo responsável pela morte de 11 milhões de pessoas nos últimos 30 anos em suas buscas por petróleo e controle geopolítico, eles afirmam que isso ocorre para derrubar genocidas sanguinários e liberar os povos oprimidos, e as mortes seriam “efeitos colaterais”, um preço pequeno a pagar para levar a democracia liberal ao mundo.
O sujeito médio americano é um marionete da mídia corporativa, condicionado a repetir tolices da TV conservadora e condenado a aceitar as ações imperialistas determinadas pelos oligarcas americanos e o estado profundo.
Acho curiosa essa manifestação de condenação à retomada do Afeganistão pelas tropas talibãs, especialmente quando a gente sabe que morreram MUITO mais mulheres e crianças pela invasão americana do que pela ação dos talibãs durante toda a sua história…
Tortura pelas tropas americanas na prisão iraquiana de Abu Ghrabi
“Pobres afegãs”, dizem agora aqueles que analisam o fenômeno no conforto de suas casas há milhares de quilômetros de distância das atrocidades da guerra, como se as tropas americanas não tivessem alta tecnologia em subjugar através de estupro e tortura, inclusive de mulheres e crianças. Acaso esquecemos tão facilmente assim Mi Lay e mais recentemente Abu Ghraib? Acaso será necessário aguardar mais um documentário horroroso da ocupação do Afeganistão para – DE NOVO – comprovar as atrocidades americanas cometidas contra os “povos inferiores”, cucarachas e moreninhos?
Proponho então um exercício simples… (baseado em antigas conversas com minha mãe, uma gringófila confessa)
Imaginem que os Estados Unidos invadiram o Brasil. Mataram nossos soldados, destruíram o exército, expulsaram o presidente, desembarcam milhares de soldados, controlaram as TVs e a Internet (ops, isso já fazem) e tomaram as ruas com seus marines, canhões e tanques.
No dia seguinte à vitória o “Comandante em Chefe” do Governo de Ocupação entra em cadeia de rádio, TV e Internet e explica para o país que a invasão se deu em função da destruição da Amazônia, as fraudes nas eleições e um genocídio em curso. Claro, prometendo proteger as mulheres, a fauna, a flora e as minorias. A tomada do poder se deu como recuso heroico para restabelecer valores democráticos e salvar a floresta. Era, afinal, uma intervenção humanitária para auxiliar os brasileiros e, porque não, ajudar o mundo.
Uma combatente americana posa ao lado de um iraquiano carbonizado pelas armas de guerra imperialistas
Depois disso, como aconteceu na Líbia, no Iraque, na Síria – e aconteceria na Venezuela – empresas americanas iniciam prospecção e retirada de petróleo do pré-sal, ferro, ouro, bauxita, madeira, soja e até o famoso nióbio. Agem como se aqui fosse o seu quintal, brincando de desenterrar tesouros escondidos. Todavia cumprem a promessa de cuidar da Amazônia; ou pelo menos assim o dizem, pois como controlam a imprensa não informam nada que nos faria vê-los de forma negativa. De tudo fazem para mostrar que só praticam o bem para todo o mundo e que os antigos donos do país eram cruéis e covardes, os verdadeiros assassinos e genocidas. Possuem em suas mãos a mais potente de todas as armas da guerra híbrida: o controle da informação e da propaganda, a ponto de transformar verdades em mentiras, fracassos retumbantes em vitórias gloriosas – e vice-versa, se assim for conveniente.
Um soldado americano se diverte com o horror de um prisioneiro no Iraque.
Pergunto: qual o preço que se suporta pagar pela liberdade e pela autonomia? E se o povo brasileiro decidisse que a eliminação da extrema direita era tarefa nossa, de acordo com nossas propostas e nossos valores, e não pelas escolhas de invasores estrangeiros? E se o projeto de expulsão dos bandoleiros americanos – assassinos cruéis como em toda parte do mundo onde estiveram – fosse liderada pelas milícias bolsonaristas, deveríamos saudar ou lamentar nossa libertação? Seríamos a favor da manutenção da ocupação genocida e exploradora dos nossos recursos ou marcharíamos ao lado dos milicianos?
Então imagine-se agora no Afeganistão….
Mulheres e crianças sendo abusadas pelas tropas americanas no Vietnã
Nesta foto ao lado pode-se perceber a angústia das mulheres sob o controle das tropas americanas em Mi Lay, e o exército americano atuando em “favor das mulheres”, da sua liberdade, de sua autonomia, etc. Melhor nem contar o que existe por trás dessa imagem. Sério…. eu fico enlouquecido de ver as pessoas diminuindo – ou relativizando – a importância da luta contra o imperialismo. E se o Talibã não tinha no horizonte a luta anti-imperialista (o que é uma afirmação cheia de preconceito com as lutas alheias, pois pressupõe que só as nossas lutas tem valor, as dos outros são interesseiras) o resultado objetivo é a DERROTA do império, e isso é, por si só, uma vitória para a autonomia dos povos.
Não é por outra razão que Venezuela e Cuba, que se ergueram contra o Império americano, são alvo de boicotes, ameaças, agressões e tantas outras violências. Se houvesse tanta ardor feminista estariam todos agora lamentando o salafismo da Arábia Saudita, APOIADO pelos gringos, ao invés de atacar uma luta de liberdade que já dura 20 anos e MATOU milhares de mulheres em sua esteira de exploração e destruição.
E posso acrescentar: eu DETESTO a perspectiva de mundo talibã. Odeio profundamente o machismo e a colocação das mulheres em um patamar social inferior, mas não posso aceitar que a solução para isso seja reviver o colonialismo. Quem sabe, então, voltamos de novo para a África para catequizar aqueles “machistas e ignorantes”?
Não tenho nenhuma resistência ao feminismo, que apoio, e reconheço o risco de retrocessos, em especial no que diz respeito aos direitos das mulheres. Porém, sou contrário aos identitarismos, o que é bem diferente. A crítica ao Talibã – que eu mesmo faço de forma incansável – não me impede de ver que a derrocada do imperialismo é um processo MUITO MAIS IMPORTANTE do que a simples proteção do estudo das meninas afegãs, ou do uso de burcas, até porque uma menina ter a oportunidade (ou a garantia) de frequentar a escola depois de ver seus pais mortos pelas bombas americanas não vai aumentar sua qualidade de aprendizado.
Defender a revolução talibã não significa aceitar seus pressupostos, mas também digo o mesmo em relação às revoluções anticoloniais da Argélia, do Congo, de Angola, de Moçambique e do Vietnã. Nem mesmo da Índia colonial ou da China sob o tacão britânico. Entretanto, a luta contra o IMPERIALISMO está acima dos valores de grupos específicos, por mais que estes valores me sejam caros.
Não esqueçam do “pinkwashing” que Isr*el usa para criticar a pretensa homofobia dos palestinos, como se isso pudesse justificar a ocupação da Palestina. A comparação com a Arábia Saudita é perfeita. Lamentamos a ascensão dos Talibãs mas sacudimos os ombros para a dominação dos salafitas sobre as mulheres sauditas. Por que nunca ouço lamentos sobre isso????
Não acho justo que ocorra uma comemoração para a volta do Talibã, mas pela queda do Império, e de onde veio sua derrocada é algo menos importante – apesar de ser essencial manter a crítica à forma como os Talibãs encaram o feminino, assim como fiscalizar os acordos assinados que garantem uma postura respeitosa com as mulheres.