O Sorriso da Pecadora
E aí encaminharam a mulher em direção a um grande muro de pedra. Seu corpo seminu e o cabelo raspado contrastavam com a dureza da rocha por detrás. Era jovem e, apesar dos castigos, mantinha ainda uma formosura de traços. Seus olhos eram fundos, como fundas era sua dor e sua angústia. As mãos trêmulas seguravam o resto que sobrara de suas vestes, destapando os pés magros e sujos. Seu pranto era seco; seu olhar perdia-se por detrás da multidão que ora gritava. Parecia procurar na distância infinita algo ou alguém que de antemão sabia que não viria. Seu olhar vítreo vagava por sobre as cabeças, desatento aos detalhes. Finalmente, voltou seu rosto para baixo e seus joelhos dobraram-se pela exaustão.
— Vadia! — disse alguém, imerso na confusão de vozes.
— Vagabunda! — gritaram outros, e essas palavras ricochetearam na pedra bruta, golpeando-lhe nas costas. A dor das sílabas ferozes era maior do que as dores que seu corpo esquálido já suportara.
A adúltera esperava o seu final. A espuma de ódio no canto dos lábios dos que ali se perfilavam com pedras nas mãos mostrava-lhe que nada poderia impedi-los. Seu fim estava próximo. A leitura da sentença fora breve, assim como breves foram seus pecados. A mão dura da lei repousaria sobre seu corpo e seu espírito. Assim estava escrito, assim se cumpriria. As mãos carregadas de pedras se ergueram para o alto, à espera do aviso. Um silêncio. A pedra dura, o corpo vergado. A cabeça baixa. O pranto surdo. Ninguém falou, ninguém respirou. O mundo, entre um segundo e outro, parou para assistir. À espera do sinal esperado por todas as raivas; o aviso para que as pedras se lançassem ao ar, cruzassem o espaço e esmagassem o corpo frágil da pobre mulher. Ela mantinha seu olhar parado, sabendo que nenhuma palavra seria suficiente, nenhum gesto ajudaria. Seu destino estava determinado pela incompreensão e pelo ódio despertado. Ninguém poderia salvá-la. Aguardava com resignação silente o seu momento derradeiro.
Sua cabeça baixa ergueu-se pela última vez. Seu olhar perdido fixou-se em um horizonte que jazia próximo de onde as coisas começam e terminam. O corpo aprumou-se e os lábios moveram-se sutilmente. Naquele momento de espera, naquele fragmento de instante antes da tempestade de rochas, ela fechou os olhos e…
Sorriu…
Sorriu a dor de perder a vida. Sorriu a dor de morrer por ter amado. Sorriu a dor do prazer. Sorriu a dor da liberdade. Sorriu o adeus aos seus. Sorriu porque lembrou daquele breve momento em que amou de verdade, transgrediu e gozou. Sorriu o riso dos loucos e dos libertários, o riso da graça e da desgraça. Seu sorriso era o sinal. Um sinal da culpa; uma confissão. Sorriu também pelos filhos que não tivera e pelos que sempre quis acalentar. Sorriu pelo leite que não verteu de seus belos seios, e das noites que não dormiria aconchegando seus filhos. Sorriu pelos homens, bons e maus, a quem seu corpo ofereceu repouso e sossego. Sorriu por tantos que auxiliara entregando seu carinho e seu calor. Naquele exato instante, ela se libertou. Olhou para a multidão com as pedras alçadas ao ar e pôde entender com clareza o significado de sua dor. Não mais padeceria por desconhecer o significado e o sentido no seu sofrer. Era seu momento de ascensão. Liberta, já podia desembaraçar-se do fardo de seu corpo cansado.
Mas seu sorriso foi também o sinal que liberou a torrente de ódio. As pedras rasgaram o ar, assobiando uma música feroz. Uma chuva de cascalho e rancor. No ar, o cheiro do sangue misturava-se lentamente com a poeira. A multidão aos poucos se aproximava da mulher, para não desperdiçarem nenhuma rocha lançada. A carne dilacerada. O corpo aos poucos se desfazendo. Terra, lágrimas, sangue. Mas o alvo já nem era mais seu corpo. Aqueles que estavam presentes procuravam aniquilar aquele sorriso, que se mantinha vivo e instigante. Por mais que as pedras procurassem atingi-lo, ele continuava ali, incólume. Saiu do rosto da pobre mulher, volitando por entre a multidão, e fixou-se nas retinas de cada um. As pedras já não mais o alcançavam.
Os executores ainda gritavam excitados, vociferavam, levantavam as mãos para o alto. Da pobre pecadora já não se ouvia a respiração. Nenhum movimento se percebia em seu corpo. A torrente de pedras e gritos parou depois de alguns minutos. Aproximaram-se do corpo imóvel. Um silêncio machucou os ouvidos, para observar se a vida ainda habitava naquele ser. Nada. O rosto disforme, as carnes abertas. O brilho da espada do soldado reluziu no peito. Seus seios à mostra ainda tinham o viço e a cor de outrora. Seu busto nada sofreu, como que poupado por sua beleza. Consumada a execução, seu corpo morto agora era carregado para longe. Os presentes aos poucos iam se afastando. As pessoas, de cabeça baixa, tentavam tirar de sua lembrança aquele sorriso, aquele enigma. O que a fez sorrir? Por que alguém arriscaria tudo, até a própria vida por um momento.
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Max deixou o pedaço manuscrito de papel sobre a mesa enquanto nos olhava, aguardando os comentários. Nadine havia avisado que seriam nossos últimos momentos juntos naquele dia, porque a noite já havia colocado seu negro cobertor sobre nossas cabeças. Max insistira em que déssemos nossa opinião sobre o texto que guardara para nos apresentar. Disse-nos que este seria um capítulo do livro que estava a escrever. Precisava da opinião dos amigos.
Nadine olhou-o, ainda repousando a mão sobre o queixo, e lhe disse:
— Querido colega… Entendo a dramaticidade do que você descreveu. Cheguei a sentir na pele a dor de morrer assim. Penso que todos levamos conosco um pouco da memória planetária, que faz com que tenhamos impressas em nossos corpos e mentes as sensações que nossos antepassados vivenciaram. Acho que a história carrega uma metáfora poderosa. Ela trata da possibilidade heroica de transgredirmos os nossos limites em nome de algo superior e nobre. No caso da adúltera pecadora, o amor era esse limite. Ela sabia que “amar/pecar” seria entendido como uma agressão ao modelo patriarcal estabelecido, e que mesmo diante da possibilidade de morrer ela preferiu arriscar, em nome de algo que ela entendia como sublime e valioso.
Resolvi também comentar o texto de Max. Sabia que era hora de ir, pois o escuro já dificultava nossa visão dos letreiros da rua em frente. O dia foi de intensas emoções de reencontro, e penso que Max deixara a leitura de seu texto para o fim porque queria nossa opinião sobre seu projeto de escrever um livro.
— Acho que podemos inserir sua metáfora em muitas circunstâncias banais e corriqueiras de nossa vida. A pecadora pode ser qualquer um de nós defrontando-se com as nossas paixões. O próprio nascimento humano pode ser visto nesse contexto, se pudermos entendê-lo como um processo de profunda capacidade transformativa para uma mulher. E o nascimento humano carrega essa potencialidade, desde que se entenda a possibilidade libertária e empoderadora que ele traz consigo. Para uma mulher ser protagonista de seu próprio parto, ela precisa desafiar os limites impostos por uma sociedade que se assenta sobre valores outros, e que não admite que esses sejam subvertidos. A pecadora, em uma visão humanista, é aquela mulher que se decidiu por aceitar e incorporar por inteiro a tarefa de ser mãe, com tudo o que isso possa significar. É apoderar-se de um evento que sempre foi seu, mas que a sociedade tecnocrática acabou afastando dela. Esse resgate é inegavelmente um gerador de conflito, e por isso muitas são vistas como “radicais”, “egoístas” ou outros adjetivos negativos que a sociedade utiliza para quem tenta desobedecer a seus ditames.
Nadine sorriu para mim, e Max terminou sua cerveja.
— “Pecadores”, entretanto, são também os médicos — continuei — que oferecem suporte e atenção a essas mulheres na sua busca por partos mais seguros e empoderadores. Oferecer seu trabalho, sua profissão e sua face aos ataques de todos aqueles que se sentem prejudicados com essa transferência de poder os coloca igualmente na condição de hereges transgressores. Entregar às mulheres essa força e essa possibilidade de protagonismo é considerado por muitos uma afronta. Muitos não hesitariam e apedrejariam sem nenhuma piedade. Outra metáfora que me parece criativa é o momento de ascensão. Esse momento está presente em inúmeras tradições religiosas, como a cristã, a budista e outras, e nos fala da possibilidade de alçar um patamar superior de compreensão da vida através da dor, da provação e do martírio. A pobre pecadora, diante do sofrimento que lhe foi imposto, teve a oportunidade de entender a vida e suas infinitas conexões no momento em que estava se despedindo dela. Essa possibilidade transformadora e renovadora está presente em muitos desafios que enfrentamos pela vida, principalmente no nosso contato com a morte. O parto pode ser também entendido como um momento de profunda provação, em que os valores humanos são colocados à prova. Nesse complexo rito de passagem, muitas mulheres se “descobrem” e ascendem a um estágio superior em suas vidas. Esse talvez seja um dos aspectos mais fascinantes do nascimento humano: seu potencial criativo e transformador.
Max mantivera-se em silêncio. Queria nos mostrar seu ponto, sua preocupação e talvez uma dor. Sabia que uma sociedade tecnocrática como a que vivemos não perdoa as pessoas que oferecem uma visão alternativa ao modelo dominante. “É duro passar a vida remando contra a maré, meu caro”, dizia-me ele. Bem sei disso. A postura contra-hegemônica na área da saúde é vista como algo intimidante, e tanto Max quanto eu já havíamos sentido a dureza das pedras lançadas por aqueles que não aceitam desvio dos dogmas fundamentais que sustentam nosso sistema de crenças. Nadine mesmo falava que, apesar de acreditar em muito do que dizíamos, não tinha coragem de assumir uma postura franca em direção ao humanismo, exatamente porque não existe um sistema de suporte aos médicos que agem orientados pela medicina baseada em evidências. Ela dizia: “Se você assistir partos normais, corre o risco de ser processado e cair em desgraça. O mesmo não ocorre se você fizer cesarianas, mesmo que tenha resultados muito piores”. Ela temia ser apedrejada, mesmo seguindo normas seguras, superiores e atualizadas.
Impossível não compreender suas razões. Não conseguimos ainda criar um modelo que proteja aqueles que buscam o melhor para seus pacientes através de uma abordagem sistemática e científica. Quando problemas inevitáveis ocorrem durante o transcorrer de um parto, somos julgados por nossos pares, que na maioria das vezes estão a defender o seu modelo, o seu paradigma, que em geral se assenta exclusivamente na manutenção do poder sobre o nascimento. Sem uma integração entre mídia, entidades médicas, ministério público e judiciário, nunca conseguiremos nos proteger do oportunismo que cerca boa parte dos processos contra obstetras.
Max tinha enorme preocupação com isso, e dizia que apenas um esforço muito grande de toda a sociedade seria capaz de nos livrar do horizonte negro que se aproximava. Nossa taxa de cesarianas ainda era uma das maiores do mundo, assim como as taxas de morbi-mortalidade neonatal. A associação entre esses dois medidores de excelência em assistência nunca foi encarada por Max como uma coincidência. O sistema de seguro médico ameaçava entrar no Brasil com sua potencialidade destruidora, a exemplo do que ocorreu com os Estados Unidos, onde a “indústria do erro médico” solapou toda e qualquer possibilidade de modificação das péssimas cifras de atenção materna e neonatal a curto prazo. Apesar de os Estados Unidos terem o maior orçamento de saúde do mundo, não estão entre os 40 países com os menores índices de mortalidade materna. Lá principalmente, mas também gradualmente no nosso país, médicos trabalham com medo, apavorados e distantes de um envolvimento com seus pacientes. Nada mais afastado do ideal de cumplicidade e auxílio apregoado pela profissão médica.
Max sentia na pele a dor das injustiças. Sabia que trilhar o seu caminho de desafios lhe custara um preço demasiado alto. As pedras eram os olhares, as críticas injustas e infundadas, os comentários maldosos na sua ausência, a desconsideração de alguns colegas. Entretanto, percebera também que não havia escolha, porque a estrada pela qual se decidira era de mão única. Diante das pedradas que a estrada da vida lhe ofereceu, seu único recurso era oferecer seu sorriso e sua compreensão.
Olhei meu amigo abraçar-se a Nadine. Era hora de ir. Lá fora a noite nos convidava para o repouso. Nadine estava com os olhos úmidos. Abraçava-se a Max como a tentar agarrar um pedaço de seu passado, onde tudo eram esperanças e sonhos. Max sorria e dizia que voltaríamos a visitá-la em breve. Olhei Nadine mais uma vez e tentei descobrir qual dor se escondia por detrás do azul dos seus olhos. Deixei minha curiosidade de lado e abracei minha querida amiga, sentindo seu coração perto do meu.
— Ric — disse ela. — Voltem mais vezes. Temos tanto a conversar, tanto a lembrar…
Eu também trazia meus olhos mareados, e prometi que voltaríamos a nos ver em breve. Max me aguardava na porta e juntos saímos do hospital. Olhei Nadine mais uma vez e lhe acenei. Ela devolveu o aceno com um sorriso. Max despediu-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro e combinamos mais uma vez reencontrar Nadine e reviver os velhos e bons tempos. Antes de se afastar, ele ainda me falou:
— Você não falou de sua dor para Nadine. Por quê?
Olhei para meu velho amigo e lancei-lhe um sorriso triste, que brotava das feridas profundas que cada um de nós carrega.
— Não gostaria que a tristeza pela injustiça que passei contaminasse nosso reencontro. Fiquei tão feliz de ver de novo meus velhos companheiros que não queria que nossa conversa fosse dominada pela indignação ou pela mágoa. Nadine é uma doce amiga, não queria que se entristecesse por minha causa.
Max bateu nas minhas costas e segurou fortemente meu ombro.
— Prometa que vai escrever aquele livro. Você não pode sofrer em silêncio. Muitos colegas poderão entender o que aconteceu com você. Sua indignação não pode ser silente, pois dessa forma não conseguiremos modificar o modelo anacrônico e machista que controla a nossa obstetrícia. Escreva, meu amigo; escreva tudo. Prometa.
Balanço a cabeça afirmativamente, prometendo diminuir o peso da injustiça que carregava, descarregando-o nas páginas escritas. Max despede-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro mais uma vez. A rua à minha frente está mais escura do que de costume. Os faróis e as buzinas me atrapalham quando revivo mentalmente as cenas do dia. Relembro as piadas e as histórias de Max e não consigo evitar uma risada. Senti um pouco de cansaço e certa sonolência, para logo depois lembrar que ainda havia centenas de e-mails para responder em casa. Meu celular toca uma única vez e recebo o aviso de uma mensagem de texto. Aperto as teclas do aparelho e leio no visor de cristal líquido:
“Patu Saleh, Max.”
Claro, companheiro… Patu Saleh!