Arquivo do mês: outubro 2015

Dívida

Médico - House

“Parabéns a todos os médicos que se esforçam para doar o que de mais precioso possuem: eles mesmos. O mais poderoso remédio que um médico pode oferecer não está em nenhum elixir ou comprimido, mas na palavra cálida para quem sofre e no olhar preciso diante da dor. Tudo o que a ciência nos oferece vem por acréscimo; retire-se a compaixão da prática médica e ela perde seu sentido e transcendência.”

Minha profissão está cheia de praticantes que não conseguem perceber qual sua verdadeira posição no cenário do nascimento. Colocam-se acima das críticas e não admitem que qualquer um questione as ideologias que permeiam e condicionam suas ações. É por existirem tantos profissionais assim, carentes de autocrítica, que as lutas pela humanização do nascimento são tão necessárias. Escrevi sobre esta postura outro dia, mas penso ser lamentável testemunhar a manutenção de um discurso calcado na ideia de que “já que salvamos tantas vidas ninguém pode nos criticar”.

Ora, que espécie de “imunidade” é essa? Por que esta “blindagem“? Que dívida temos com esta função a ponto de não podermos criticá-la quando seus rumos se provam equivocados?

Imagine um bombeiro espancar sua mulher em casa e, depois de ser detido, se explicar desta forma na delegacia da mulher “Fico muito triste de ver essas críticas à minha pessoa. Não é justo, diante de tudo que estudei e das coisas que realizo pelo bem da comunidade. Ontem mesmo apaguei um incêndio e salvei um gatinho que estava num poste. Como podem me chamar de violento?

Ora, apagar fogo e salvar gatinhos é sua obrigação profissional, mas ela não lhe dá o direito de espancar sua mulher!!!! Salvar uma vida por uma síndrome de Hellp, uma hemorragia ou mesmo através do recurso cirúrgico é maravilhoso – em verdade, é o que os médicos deveriam sempre fazer – mas não lhe dá o direito de operar sem necessidade, fazer episiotomia e Kristeller, desmerecer as mulheres, desconsiderar maridos e aplicar as infinitas formas de violência verbal e moral que existem na atenção ao parto.

Falta um olhar mais severo e crítico para a obstetrícia. Não haveria porque temer esta avaliação de nossas falhas, e acho que só evoluiremos no debate quando nossas práticas defasadas forem assumidas. Enquanto as escondemos elas crescem, como qualquer temor e qualquer medo….

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Responsabilidades

delegar

“Humanização do nascimento é uma via de duas mãos. Não existe como ser efetivamente humanizada a atenção ao parto em pacientes alienados e oportunistas, que jamais se responsabilizam por suas escolhas. Humanizar o nascimento é trabalhar em parceria, jamais se deixando seduzir pela expropriação do protagonismo da mulher, tão característica de uma medicina autoritária. Para mudar o nascimento no mundo é necessário mudar a forma de pensar a própria vida, encarando suas escolhas de forma responsável, inclusive sobre aqueles que vão acompanhá-la na trajetória em direção à maternidade”.

Um erro que vem do passado, ainda centrado numa espécie de arrogância profissional, é crer que a medicina pode ser transformada se os médicos se modificarem. Isso é ingenuidade, pois ela é um retrato dos valores e conceitos sociais, expressos ou subliminares. A arte médica (e a política, a polícia, as artes, a justiça, etc.) mudará quando quisermos que ela mude. O médico é arrogante “por demanda“, porque assim o determinamos. O professor ganha pouco e o Ronaldinho milhões porque nossa neurose coletiva e nosso desprezo pela educação assim o determinam. Culpar médicos ou políticos pelo quadro deficiente de nossa medicina ou política é tolice e perda de tempo. A culpa é toda nossa, enquanto sociedade.

Quantas vezes já escutamos alguém despudoradamente dizer: “O presidente X foi péssimo porque enquanto esteve na presidência nossa categoria não recebeu aumentos“. Isto é: um presidente é bom ou ruim se a pessoa teve benefícios PESSOAIS com seu governo, e não se o país como um todo evoluiu e/ou se desenvolveu. Nossa avaliação continua sendo ego centrada, umbiguista. Com a medicina a mesma coisa: criticamos os médicos mas não nos esforçamos para ver qual a parte que nos cabe nesse transformação. A mudança na atenção médica – em especial na assistência ao parto – ocorrerá quando as forças sociais que desejam mudança suplantarem a inércia e colocarem-se em luta por reais modificações.

Enquanto isso não ocorre continuaremos a escutar lamúrias esparsas, que mais refletem nossa incapacidade de mobilização do que um verdadeiro desejo de mudar.

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Porta

Porta

A porta só se abre pelo lado de dentro, e esse é o grande ensinamento que a gente precisa aprender: nossas ideias devem ser expostas, jamais impostas. O crescimento pessoal é uma tarefa solitária e custosa, e as pressões externas apenas podem produzir fingimentos, dissimulações e falsidades, que levam o sujeito a uma vivência neurótica e irreal. As religiões “espetaculosas” são pródigas em produzir estes fenômenos, que variam da “cura gay” até excessos de veneração. A reforma íntima, lenta e pedregosa, é o único caminho confiável de transformação. Da mesma forma a democracia, com seus problemas e sua natural morosidade, é a única maneira de produzir mudanças sociais sólidas e consistentes, e as ditaduras serão sempre um engodo sedutor.

O empoderamento no parto não é necessariamente a consequência de um parto humanizado, mas a capacidade de apreender os ensinamentos que qualquer nascimento pode oferecer. Muitas pessoas acordam para a necessidade de mudar o panorama da assistência ao parto depois de assistências violentas, cruéis e humilhantes. Isso também é empoderar-se. Sheila Kitzinger costumava dizer que um parto era válido (na perspectiva feminina) quando a mulher podia olhar para trás e ver um caminho de crescimento e consciência, e essa é uma verdade que pode sobressair de qualquer nascimento.

Infelizmente mesmo os partos mais bonitos e transcendentes não conseguem produzir estas modificações, pois não são os elementos externos que comandam esta evolução, e sim a capacidade do sujeito de captar e processar as mensagens a ele enviadas. Ali nossa tarefa termina: oferecer as condições para que as imagens, sons, conceitos e palavras possam produzir a sua ação dentro do sujeito. Mas nesta tarefa, só ele poderá agir. A nós cabe apenas a função de catalisadores…

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Adeus

suicidio-3

E o seu marido, onde está?

Bem vi, por certo dorme,

pensando em outras volúpias.

Impossível que não desconfie

do nosso envolvimento.

Eu acho que não devemos

continuar nos vendo…

Já sabia?

Meus clichês são assim

tão previsíveis?

Eu não queria me apaixonar…

Desde o princípio nossa química

parecia perfeita, mas este é apenas

mais um lugar comum estúpido.

E agora nem as reações mais banais

parecem oferecer segurança.

Você nunca deveria ter

me seduzido dessa forma…

Sim, não tire de si esta responsabilidade.

Não estou lhe jogando culpas,

mas perceba como tudo aconteceu

de uma forma que não me deixava

alternativas.

Fui uma mosca emboscada, hipnotizada

e acabei enredado, sem perceber,

no visgo de sua teia.

Você foi cruel

e sua sensualidade destrutiva.

E eu acabei caindo

pelas minhas próprias fraquezas.

Roubou-me a alma e agora vejo você

se comprazendo com a dissolução lenta

e agonizante do meu corpo.

Será que por algum momento

pensou em mim?

De verdade?

Sabe de uma coisa?

Melhor que ele saiba.

Melhor que me mate.

Talvez assim eu consiga

o descanso que desejo;

a sorte que procurei;

o destino que sempre ambicionei.

Quer saber se quero lhe ver?

Que pergunta é essa?

Perguntarias a um faminto se ele quer

um prato de comida envenenada?

O quanto te sorvo, tanto me consumo…

Tu és minha saciedade e meu veneno.

Vou ligar para ele e contar tudo;

de uma só vez.

Talvez a bala que ele me lançar

já me encontre morto.

Se eu quero lhe deixar louca?

Pudera eu enlouquecê-la.

Assim louca talvez nossa relação

tivesse mais sanidade.

A verdade é que meus tendões

estão a se romper

e minhas mãos procuram

meu pescoço,

num afã de terminar com o ar

que respiro.

Minha mente vagueia solta,

desesperada, perdida

e presa ao mesmo tempo.

Só penso em você,

prisioneiro de uma doença.

Ao mesmo tempo em que lhe quero,

lhe odeio e amaldiçoo.

Prefiro a liberdade final

ao aprisionamento que se impõe.

A arma carregada transpira

na minha mão seca.

A ponta do revólver coça meu palato…

Tento engolir em seco,

mas sinto o gosto do cano

a corroer minha garganta…

Minha vida não merece

o calor das manhãs.

Meu despertar tem o sabor ocre

das saudades infinitas.

Não há mais sentido nessa dor,

somente dor nos meus sentidos.

E a culpa é toda sua…

PÁ!… o ruído seco ecoa

na boca semiaberta.

Sinto o gosto da pólvora na língua.

Minha mente se embaralha

com o som áspero da bala

a romper a neuroglia.

Sinto os sonhos confusos

tornando-se imagens vítreas.

Mas na escuridão que se forma

percebo uma tênue luz que ganha corpo

no infinito próximo…

Lá, no brilho tubular encontro,

sem surpresa, tua imagem.

Percebo então, endoidecido,

que nem a morte me separaria de você.

Você me acompanharia aonde quer

que minhas ilusões me levassem.

Mesmo a extinção não seria

a linha definitiva.

Tiro a arma da boca e vejo

a realidade da parede à minha frente.

Ainda com o gosto da fumaça na boca

olho para os lados à procura de mim mesmo.

Por não me encontrar, decido esquecer

Sozinho.

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Anjos

Esta história sempre me ocorre quando me falam dos anjos, dos milagres e das circunstâncias em que eles ocorrem. Há muitos anos atrás fui convidado para uma festa de aniversário. Não sou muito chegado a estas comemorações, mas como se tratava do primeiro ano de vida de um bebê de uma querida amiga, aceitei de bom grado. Seria a oportunidade de encontrar pessoas diferentes e escutar o que elas têm para contar. Pois nesta festa de aniversário ao me servir de cerveja ofereci para completar a copo do rapaz que estava ao meu lado, o qual não conhecia. Só depois vim a saber que se tratava de um amigo de longa data da mãe do aniversariante. Quando mostrei a intenção de despejar a cerveja no seu copo ele fez um sinal de “não” com a mão espalmada à frente, e junto com a mulher ao seu lado sorriram e se olharam, como se por trás deste gesto houvesse uma piada interna, que só eles entendiam.

Fiquei um pouco desconcertado, e ri apenas para acompanhar o humor do casal. Vendo que eu estava intrigado, ele educadamente me explicou a razão do sorriso que ambos compartilharam, e nos minutos que se seguiram ele me contou uma história fabulosa, dessas que ficam na cabeça da gente e não esquecemos jamais.

– Eu não bebo, obrigado, disse ele. Parei há muitos anos, graças a um anjo que Deus colocou na minha vida.

Olhei imediatamente para a loira de traços formosos ao seu lado, mas ele me interrompeu.

– Não, por favor. Não se trata deste anjo. Foi bem antes de conhecê-la. Foi um anjo menos formoso.

Muito menos, emendou ela.

Minha curiosidade só aumentava, e se ele não continuasse com seu relato eu seria obrigado a lhe implorar. Ele se aprumou na cadeira e resolveu me contar a história de sua decisão de não mais beber. Uma história que me fez pensar nos caminhos tortuosos que empreendemos em direção ao crescimento. Ou ainda, as lições que a vida nos dá e da necessidade de estarmos preparados para recebê-las.

– Bem, eu parei de beber há 10 anos, disse ele. E eu bebia muito. Muito mesmo. Frequentava festas e bailes e só parava de beber quando o dia amanhecia. Era absolutamente inconsequente e irresponsável com a bebida, mas infelizmente não tinha forças para lutar contra isso.

– Minha vida era uma sequência de bebedeiras, continuou ele. Incontáveis incidentes constrangedores, inúmeros vexames. Mais de uma vez fui acordado por um policial quando me encontrava dormindo ao volante parado em um cruzamento. Sim… eu pegava no sono no pequeno espaço de tempo que separava o sinal vermelho do verde.

O rapaz ao meu lado continuou a me contar uma triste série de ocorrências que colorem com tintas lúgubres a vida de qualquer alcoolista.

– Mas eu sempre achava que poderia parar quando quisesse, compreende? Eu achava que algum dia Deus me mandaria um anjo que me abriria os olhos, para que eu pudesse enxergar o que eu estava fazendo com a minha vida, que se desfazia em minhas mãos como um sorvete ao sol.

– E Deus mandou, disse a mulher ao seu lado, com um sorriso…

– Sim, continuou. Num sábado à noite. No baile que eu sempre frequentava. Eu já havia bebido todas, já havia vomitado, já havia feitos os vexames habituais, já tinha me indisposto com os seguranças. O normal dos sábados de festa.

– Foi então que eu resolvi tirar uma linda mulher para dançar. Ela talvez não tenha visto o quão embriagado eu estava, ou talvez não quisesse parecer antipática. Por uma razão ou por outra aceitou o convite e fomos para a pista. Lá chegando eu devo ter dançado talvez uns poucos minutos, e aí a minha memória se embaralha. As coisas parecem enevoadas, os fatos se misturam às emoções. Palavras se confundem, ficam quebradas ou torcidas. É difícil reconstituir tudo o que aconteceu. Mas, foi neste instante que o meu anjo apareceu…

A face do meu amigo se fechou. As sobrancelhas se arquearam para baixo. Sua voz ficou mais pausada e densa.

– Gigantesco, é o que diz a minha réstia de lembrança. O anjo prateado que eu tanto pedi me fosse enviado puxou-me pelo ombro e desferiu um golpe certeiro no meu rosto, quebrando de forma instantânea uma fileira inteira de dentes, partindo a minha mandíbula em dois, transformando meu rosto em uma maçaroca de sangue, ossos partidos e álcool.

Meu anjo salvador era o noivo da moça com quem eu estava dançando. Acordei uma semana depois. Havia realizado várias cirurgias de reconstrução da face. Perdi todos os dentes inferiores do lado esquerdo. Por meses usei um aparelho para fixar a mandíbula. Perdi 20 quilos, por não poder comer, a não ser sopas e sorvetes. Perdi meu emprego, mas acho que eles apenas estavam esperando alguma razão para me demitir e quando retornei da licença médica fui logo informado do meu desligamento. Mas… aquele baile de sábado à noite foi a última vez na vida que eu bebi. Aquela tragédia, que poderia ter sido pior ainda, me fez descer ao poço da minha vida. Finalmente, através da dor e da vergonha, eu pude enxergar com clareza para onde a bebida estava me conduzindo. Mais do que as dores físicas, o fracasso e a vergonha me corroíam o espírito. Foi apenas depois de atingir o fundo é que meus pés puderam realizar o movimento de volta, de retorno à superfície. Eu agi como o “pescador de pérolas”, que só consegue o impulso para subir após tocar o leito do mar.

Nunca mais toquei em uma bebida. Sei que ainda sou um alcoolista, mas não sofro mais pelo meu vício. Aquela noite selou o meu futuro. Eu sabia que Deus um dia ia ouvir minhas preces. Encontrei meu anjo agressor por acaso em uma churrascaria, alguns anos depois. Nunca pensei em processá-lo, apesar de ele ser muito rico e dono de uma rede de casas noturnas. Ele se aproximou de mim e pediu desculpas. Disse que não se imaginava tão forte e que não pretendia me machucar tanto. Ficou sabendo por amigos do que havia acontecido comigo, mas não teve coragem de me visitar no hospital. Disse que eu não devia ter “passado a mão” na noiva dele, que inclusive era a sua atual esposa. Só naquele momento me dei conta que eu estava tão bêbado que nem notei como devia estar abusado.

Eu olhei para ele e disse:

– Pois você em imagina como aquele momento foi transformador para mim. Por mais maluco que isso possa parecer, eu queria lhe agradecer. Você salvou a minha vida. O grandalhão, obviamente, achou que eu estivesse debochando, mas meu sorriso era tão sincero que foi obrigado a acreditar. Levantei-me da cadeira e lhe dei um abraço. Ele sorriu sem jeito, despediu-se e nunca mais o vi.

Os anjos desaparecem depois dos milagres, pensei eu…

– Mas Deus, na sua bondade, concluiu ele, ainda tinha mais um anjo para colocar em minha vida.

Aí a linda loira sentada ao seu lado levantou-se e disse “Se dessa vez não for eu, vai levar porrada !!!

E caíram na gargalhada…

Lembro desta história e fico pensando: será possível – mesmo com um bocado de esforço – suplantar as questões mundanas e observar as dores, os sofrimentos e mesmo os martírios de um plano mais elevado? As vezes eu penso nas pedras com as quais nos deparamos no nosso caminho desta forma meio bizarra. Não fosse aquela pedra que me jogou ao chão talvez eu jamais soubesse o valor do equilíbrio. Não fosse aquela injustiça que sofri eu jamais entenderia o valor de ser justo. Não fosse a ofensa contra mim disparada eu nunca compreenderia o valor da serenidade. Não fossem os meus detratores e eu jamais aprenderia o que sei hoje. Não estou descriminalizando as atitudes de quem quer que seja: elas continuam equivocadas. Não se trata disso, até porque perdoar não é o mesmo que absolver. Perdoar é acima de tudo entender o outro, e colocar-se no seu lugar. Perdoar é olhar o outro como se estivesse olhando a si mesmo. Portanto, eu creio ser possível agradecer mesmo àqueles que nos fizeram mal pois, mesmo que por linhas tortas e através dos seus próprios erros, eles ajudam a consolidar a pessoa que somos. Eles podem ser os anjos que tanto pedimos, mas para que eles nos auxiliem precisamos estar preparados para aprender as lições. Mesmo as mais duras.

Martin Diaz Molina, “Cuentos de la Noche Fria”, Ed. Alzugaray, pág. 135

Martin Diaz Molina é um escritor espanhol nascido em Almería, em 1975. Escreve basicamente contos e histórias curtas, tendo sido premiado em vários concursos literários, como o “Premio Literário Jovem Andaluz”. Dedicou-se à literatura infantil e ao desenho até que lançou seu primeiro livro de contos adultos, com histórias na primeira pessoa que recolheu durante a sua vida na Espanha. Além de contista, Martin é professor de literatura e é representante distrital pelo partido “Podemos”. É casado com Amália Sotero e tem dois filhos, Javier e Edoardo.

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Baratinhas


Baratinhas

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Vai rolar uma nota de repúdio pelas expressões (descontextualizadas) que usei sobre as doulas, chamando-as de “biscateiras da Deusa” e “baratinhas” cuja presença denuncia as fissuras no assoalho da assistência ao parto. A metáfora das “baratinhas”  foi usada por duas características: por elas serem pequenas diante do gigantismo de uma corporação e por elas serem a demonstração tácita de que existe “algo de sujo no reino da obstetrícia“. E enquanto uma nota de repúdio sai – escrita por inimigas declaradas, as doulas do mal – eu continuo no hospital, atendendo orgulhosamente com uma doula, da mesma forma como faço há 16 anos, e muito feliz.

Mas pensem bem. Se eu as tivesse chamado de “anjos” seria criticado por não “humanizá-las”; se as chamasse de “maravilhosas” estaria essencializando e/ou bajulando. Se chamasse de “guerreiras” estaria reforçando o estereótipo de belicosas. Caso as chamasse de “doces” estaria tratando como submissas. Quando alguém é inimigo declarado, a ponto de vigiar cada frase escrita, nada que se diga será interpretado de forma positiva. Sem simpatia, ou mesmo respeito, que diferença faz a metáfora usada?

Quando suas mágoas pessoais sobrepujam os seus sonhos e ideais há que se questionar se sua ligação com estas propostas é o que realmente lhe mobiliza, ou apenas mais uma forma de tratar uma ferida que teima em arder.

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Trevas da Consciência Nacional

Brasil, Brasília, DF, 02/03/2015. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ)convoca reunião com a Mesa Diretora para rever a cota de passagens aéreas para cônjuges de parlamentares. "Reconheço que a repercussão foi muito negativa", afirmou o peemedebista. O benefício foi aprovado na reunião da Mesa Diretora no dia 25 de fevereiro. - Crédito:DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:180989

Uma coisa fica clara: quando o desejo é maior do que os fatos a nossa mente troca a realidade para que ela se adapte ao que desejamos. Isso vale para os simples mortais em seu ofício diário tanto quanto para as grandes personalidades.

De tanto querermos acreditar que o Zé Dirceu era culpado que ele foi para a cadeia sem provas, fato esse assumido pelos próprios ministro do supremo. As manobras jurídicas e filosóficas para isso são até cômicas, não fossem uma tragédia para a justiça do Brasil.

Da mesma forma Lula e Dilma foram bombardeados por muitos anos com todo tipo de golpismo e insinuações. Quando Lula não parecia alcançável o alvo era seu filho, transformado em dono de fazendas, jatinhos, empresas (Friboi) e tantas outras. Nada foi provado contra nenhum deles em anos de investigação. NADA. Nenhuma ligação telefônica, cheque, recado, conta em Cayman, conta na Suíça, Fiat Elba ou reforma nos jardins. Porque então tanta perseguição?

Mesmo assim são os “petralhas“, corruptos, Luladrão, Dilmanta e tantas outras acusações. Hoje somos “surpreendidos” pela evidência de contas na Suíça do presidente da câmara, mas o “ruidoso silêncio das panelas” se escutou por todo o país. Onde estão as capas das revistas, as manchetes garrafais, a indignação do povo nas ruas?

Não. .. não era contra contra o roubo ou contra a corrupção. Era contra quem representava o homem comum, o pobre, o favelado. Isso é que é insuportável. No futuro esse período da política com a emergência dos BBB – Bala, Boi e Bíblia – será tratado como as trevas da consciência nacional.

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Caminho das Doulas

Galeano

A inserção das doulas na atenção ao parto começou assim. Passos, lentos e graduais, em direção a um lugar que sequer sabíamos com precisão qual era. Aos poucos fomos criando, com sacrifício e cuidado, a ideia dos limites de atuação das doulas, assim como um espaço de reconhecimento da sua ocupação. No início ninguém sabia o que era exatamente isso, e sobre o doular havia duvidas e incertezas. Para muitos a gente tinha que explicar, mostrando os resultados das pesquisas e debatendo em termos de direitos reprodutivos e sexuais de gestantes. Trouxemos há 13 anos Debra Pascali para nos dizer o que o movimento nos Estados Unidos tinha a nos ensinar e a partir daí muitos grupos de formação de doulas surgiram. As doulas capacitadas se multiplicaram, mudando a face da assistência ao parto, em especial na classe média.

Para cada conquista (leis municipais de doulas, inserção em hospitais, doulas voluntárias, livros, entrevistas, matérias em jornal, etc) percebemos que mais um passo era dado para que as doulas fossem incorporadas na cultura, como personagens indissociáveis da atenção ao parto. Tínhamos fé na recriação do “Círculo de Apoio” que foi a marca ancestral da atenção ao nascimento nos milênios que nos antecederam.

Cada pequena conquista é importante e nos faz olhar para um utopia distante, mas que há poucos anos sequer imaginávamos. Hoje já podemos sonhar com a ideia de uma doula para toda a mulher que assim o desejar. Se o caminho é longo também é grande nossa persistência.

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Despertar

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Afinal, será que eu existo mesmo?

Ou será que eu sou apenas o produto de uma incubadora num campo de cultivo de gente que vive um mundo virtual pensando ser real? … ah, desculpe, já fizeram esse filme…

Mas e se eu for tão somente o sonho bizarro de um mago de outro planeta, que está prestes a acordar, e quando ele acordar eu mesmo desapareço, torno-me poeira, viro memória fugaz, algo que ele contará em fragmentos dispersos para o seu analista, que igualmente não entenderá e apenas dirá “muito bem continuamos na próxima terça-feira”.

E quando ele acordar estarei em suspenso, olhando minha falsa existência evaporar enquanto encaro os olhos esbugalhados de uma fictícia paciente que faz força na minha frente.

Escuto um som ao longe. Parece um trinado, um som de passarinho. É, na verdade… um alarme de celular!!! Não atenda mago da outra galáxia!!! Não me tire daqui, pois este bebê já vai chegar. Não acorde, não acorde…

Espere ao menos o beijo que guardei para os meus nos derradeiros instantes de minha rápida existência. Se você tiver um resquício de amor em seu coração não permita que…

Puff…

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Sem Noção

Filipe Juliana Lapis

“A intuição é um atalho que dribla as rotas da razão para chegar ao conhecimento. A intuição, todavia, é espontânea e clara, e não pode ser confundida com desejo ou medo.”

“Você não tem noção”, disse ela.

Sorri. Sua face transpirava ocitocina e endorfina. Duas horas de um período expulsivo que durou uma vida. Uma história que começou na dúvida, transitou pelas fronteiras do medo e terminou no êxtase de um nascimento em paz.

“É sério, você não tem noção. Eu senti ele saindo de mim. Foi a coisa mais incrível que eu já fiz na minha vida. É muito louco isso tudo.”

Seu sotaque fronteiriço deixava suas frases envoltas em uma sonoridade poética. Os véus haviam há pouco caído, um por um, depois de cada contração. Agora desnuda, exibia um olhar de mulher, cuja firmeza contrastava com a suavidade do sorriso maroto.

“Vocês não tem noção”, insistiu ela. “Eu posso sentir a transformação que ocorreu comigo, e mal consigo acreditar que consegui.”

“Você foi brava, muito brava. Perseverou onde muitas desistiram. Foi corajosa e seguiu seus instintos. Seu marido também foi um verdadeiro herói”, disse eu ainda com a voz embargada.

Ela olhou fixamente para mim com seus olhos negros e sobrancelhas grossas. Seu olhar se perdeu na parede atrás de mim enquanto apertava seu filho contra o peito. Olhou mais uma vez seu bebê envolto em vérnix e esperanças.

“Você não tem noção, você não tem noção.”

Não tenho mesmo.

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