Arquivo do mês: outubro 2020

Se não houver amor

O sertanejo bonitinho que curte vodca acordou em uma bela manhã e comunicou sua esposa: “acabou, não quero mais”. Assim, na lata, sem rodeios. Direto. Arrumou as malas e se foi. Na “lacrosfera” o clima é esse: “maldito mau caráter, abandonou uma mulher linda dessas (se fosse feia podia?), destruiu sua família e blá, blá bla…”

Não, não vou defender sertanejos bolsonaristas, mas peço que tenham cuidado ao fazer julgamentos morais sobre o término de relacionamentos de personagens midiáticos. Casamento nada tem a ver com caráter, mas com desejo. Muito pior seria continuar qualquer casamento sem essa matéria prima absolutamente essencial. E, por favor, não piorem o quadro exaltando as aspectos físicos da moça, repetindo a mesma tolice de comparar Camila Parker Bowles com Diana. Acreditem; o desejo tem suas artimanhas, e enxerga suas conexões de forma curiosa e pessoal.

Nesse tipo de caso apenas lamente que sua fantasia não tem mais como se alimentar da paixão alheia. Criar culpados – ou pior – o personagem bom e o mau, a vítima e o algoz, não faz nenhum sentido. Se ele não a deseja mais, o que se pode exigir? Pensem bem; se ela acordasse e dissesse para ele “acabou, não quero mais você”, estaria errada? Seria ela uma megera egoísta? Seria justo criticar sua desistência em nome do amor que ela percebeu que se foi? Pois eu creio que não.

E lembrem… “Se não houver amor, não te demores“.

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Duas vidas

“Ahhh, mas são duas vidas, e cabe proteger ambas. Para evitar basta se cuidar”.

Não é simples assim no mundo concreto. Vai depender do seu conceito de aborto e da época da gravidez em que ele foi realizado. No mais, é por haver vida – mesmo em potencialidade – que sou contra o aborto; prefiro preservá-la sempre. Porém, todas as vidas, e encarando sua manifestação concreta. Portanto, a realidade é outra, diferente das visões idealistas. No mundo real as mulheres vão acabar procurando métodos ilegais – portanto, perigosos – para interromper as gestações e vão correr sérios riscos; muitas delas vão terminar morrendo no auge da sua juventude.

Ser a favor da descriminalização do aborto e permitir que seja incorporado pelo sistema de saúde significa encarar o mundo como ele é, sem visões idealistas e aprendendo com as experiências REAIS de sua aplicação. As mortes evitáveis de mulheres em abortos clandestinos não nos permitem mais perder tempo debatendo aspectos metafísicos da vida e seu valor; é preciso agir com a ideia de “menor dano”, tirando milhares de mulheres do destino terrível da morte por abortos insalubres.

Em todos os países onde o aborto seguro foi instituído pelo sistema público houve diminuição da mortalidade materna e são essas vidas de mães e mulheres que nos cabe proteger, acima de qualquer outra consideração. Isso não invalida a ideia de manter e incentivar a educação de meninos e meninas sobre a anticoncepção e gestação conscientes, mas sim interromper o massacre sobre mulheres pobres que se submetem a métodos cruéis de interrupção da gravidez. Aceitar a realidade acima de nossas crenças e ideais é um passo importante para produzir uma sociedade de paz, onde as gestações sejam uma benção e não um peso ou uma sentença de morte.

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Abobado da enchente

Esquina Rua da Ladeira x Rua da Praia – Porto Alegre (1941)

Nesta foto aparece uma charmosa esquina de Porto Alegre durante a famosa enchente de 1941 – Ladeira com Rua da Praia. Esse fato dramático produziu a coisa mais feia da história dessa cidade: o muro da Mauá, que separou o centro de Porto Alegre do seu rio.

Conta-se que nessa enchente algumas grávidas ficaram ilhadas pela alta das águas do Guaíba e, assim incapacitadas de chegar aos hospitais durante o trabalho de parto, tiveram seus filhos sem assistência. Daí surgiu a expressão tipicamente porto-alegrense “abobadinho da enchente”, que homenageia as crianças nascidas durante o período em que o Guaíba invadiu a cidade. Sabemos hoje o preconceito que essa expressão carrega: mulheres sem assistência de médicos (homens) não conseguem parir bebês saudáveis. O tempo mostrou que é esta assistência que, quando abusiva e despregada das evidências, resulta em violência institucional e riscos aumentados para mães e bebês.

Hoje, os “abobados da enchente” são aqueles que negam as evidências e se mantém numa prática violenta e misógina, contrariando os preceitos de uma atenção centrada na mulher e no bebê. Curiosamente, depois da construção do muro nunca mais tivemos uma enchente das proporções daquela de 1941.

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Ilustre desconhecido

Desapareça, para sobreviver…

Ontem uma moça me chamou no Messenger porque estava interessada em promover um curso de homeopatia para profissionais do parto. Disse ser doula, ativista, apaixonada por partos e que mora em uma cidade no interior do Brasil. No meio da conversa, e das tratativas sobre o futuro curso, perguntou quem eu era e qual a minha formação, pois não me conhecia, apenas viu uma mensagem que me ligava a cursos de homeopatia na gestação e no parto.

A existência de uma doula neste país que nunca ouviu falar de mim é algo que me deixa extremamente… feliz!! Pensem que há alguns poucos anos isso era impossível; éramos tão poucos e centralizados que era impossível não conhecer os poucos profissionais da atenção ao parto que acolhiam, capacitavam e trabalhavam com doulas. Seu desconhecimento da minha existência prova, de forma inequívoca, que eu não sou tão importante como imaginava, e que a disseminação da mensagem das doulas pode prosseguir sem a minha contribuição ou mesmo existência.

O movimento se espalhou de uma forma e com tal velocidade que os dinossauros aos poucos vão caindo no esquecimento e isso, ao contrário do que parece, deve ser celebrado. Qualquer movimento que se assenta sobre personalidades – ao invés de se apoiar em propostas e ideias – está fadado ao fracasso e ao desaparecimento.

O movimento de doulas no Brasil se tornou extremamente descentralizado, abrindo novas fronteiras de debate e trabalho todos os dias. É notável a capacidade de multiplicação dessa ideia e uma das formas de medir este impacto está na resistência – por vezes agressiva e desleal – dos sistemas de poder instituídos contra a organização e ação das doulas nos hospitais. Também é uma medida de poder dessa proposta a resiliência corajosa das doulas de continuarem existindo apesar de todas as violências cometidas contra elas e seu trabalho.

De minha parte, esta sempre foi a minha maneira de enxergar um projeto de sucesso: trabalhar pela própria desaparição, crescente e insidiosa, para dar lugar a ideias novas, personagens mais capazes e por propostas mais radicais.

Apesar do enorme amor que temos por nosso próprio ego, reconhecer a importância de sair de cena é um dos principais elementos para dar sentido ao trabalho de uma vida inteira.

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Espiritismo e cristolatria

Jesus foi um ativista político, um revisionista da religião judaica. Basicamente um judeu falando de judaísmo para outros judeus. Toda a construção do Jesus mitológico, que o trata por “Espírito de luz”, “Deus encarnado”, “Salvador da humanidade”, “aquele que morreu por nossos pecados” etc, parte de construções humanas, históricas, geopolíticas e pouco têm a ver com o Jesus histórico da Palestina. Em verdade a própria existência desse personagem é contestada por inúmeros pesquisadores e estudiosos do tema. Vejo hoje a necessidade de parar de contar pequenas e grandes mentiras usando como desculpa a ideia de que os espíritas são “imaturos demais para entender a verdade”.

Creio que o espiritismo foi criado para adultos, sujeitos maduros, que não necessitam mais histórias de Jesus “espírito de luz”, “pátria do evangelho”, “arquitetos do planeta”, ou quaisquer outros misticismos que se estabelecem sobre fantasias. Jesus foi uma pessoa absolutamente comum, como eu ou você, que pretendia ser o libertador da Palestina do jugo romano. Provavelmente um “Messias” pouco importante diante dos mais de 400 auto proclamados libertadores do povo hebreu que surgiram naquela época. Já a figura de Cristo foi construída após sua morte e não tem nada a ver com o judeu que pregou sobre sua religião. Qualquer coisa além disso é pura imaginação; é criar uma figura mítica desconectada daquilo que a história nos oferece dele.

Eu entendo quando não se desfaz a ilusão do Papai Noel ou do “Jesus Filho de Deus” para crianças sem aguardar que estejam prontas para a mudança de entendimento sobre estas figuras, mas manter essas visões infantilizantes nas bordas da adolescência é inútil e desrespeitoso, pois não é justo tratamos adultos como seres incompetentes para encarar a verdade. A ideia de um velhinho que – por bondade e amor – traz os presentes a todas as crianças no Natal é por demais sedutora e satisfaz as necessidades de aceitação das crianças. Todavia, se você insistir com a visão fantasiosa do “bom velhinho” depois de uma certa idade ela vai desconfiar de suas intenções e se ofender com sua atitude.

É hora dos espíritas abandonarem o cristianismo. Ele é sectário, branco, eurocêntrico, ocidental e não contempla a diversidade e a abrangência que precisamos num mundo globalizado. Cada vez que eu escuto falar de Jesus como o “filho dileto do criador” eu lembro dos meus irmãos chineses e seus milhões de compatriotas que não tem necessidade alguma de suas palavras, sua mensagem e sua existência – mítica ou histórica. Por que insistimos nesse mito medieval???

A conexão do espiritismo com a figura de Jesus teve um efeito paradoxal. Se por um lado nos alia a uma parcela do planeta – europeia e ocidental – em sua visão teleológica e moral, por outro lado nos afasta de todo o resto do mundo que poderia se beneficiar de uma filosofia e ciência que se dedica a estudar a manutenção do princípio espiritual para além do momento da morte física. Entretanto, foi exatamente esta amálgama entre a ciência do espírito e a religião que lhe conferiu a popularidade que hoje desfruta em um país como o Brasil. Aquilo que hoje tanto me incomoda – a persistente cristolatria – é o que manteve as ideias de Kardec vivas em boa parte do mundo.

Por outro lado, é óbvio que o espiritismo não precisa de uma visão “moral”, “cristã” e “religiosa” da mesma forma como a lei da gravidade de Newton não precisa de um culto místico ou de um ser espiritual diretamente conectado com Deus para que as pessoas aceitem a gravitação como uma lei importante para o entendimento do universo. O espiritismo é a ciência do espírito, mas o que encontramos nas casas espíritas é uma exaltação dos valores morais ocidentais, da contenção da sexualidade e sua domesticação (as obras de Chico e Divaldo são gigantescos tratados sobre sexualidade reprimida) e de identidade cultural. No meu modesto ver, o espiritismo muito ganharia se desprendendo dessas amarras religiosas e dessa vinculação com os mitos cristão, assim como a própria figura do Cristo.

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No meu tempo é que era bom…

Frequento grupos onde pessoas da minha idade celebram fatos da nossa infância e adolescência, que coincidiu com a ditadura militar, o surgimento da TV e a transformação social que o mundo experimentou pela guerra fria.

Vez por outra aparece um texto saudosista, falando de um tempo sem “frescuras” e sem “mimimi“, dizendo que na época atual damos valor demais aos direitos e menos aos deveres, que somos uma geração “floco de neve” e que criamos discussões sem propósito sobre temas irrelevantes.

Não há dúvidas que há exageros. Afinal, “como impedir que o vento bata portas mal fechadas”, como dizia Pablo Milanez, fazendo estrondo com os gritos represados? Como evitar a volúpia que se segue à contenção?

Exaltar acriticamente um passado idílico com nossas lentes seletivas só pode resultar em uma salada de frutas de racismo, misoginia, lgbtfobia misturados com o culto do “tempo perdido”, do passado perfeito e da destruição da cultura atual pelo “excesso de direitos”.

Minha adolescência foi maravilhosa, e não há porque negar isso, mas exatamente porque eu era branco, heterossexual e de classe média. Seria absurdo – ou má fé – julgar a sociedade onde eu vivia apenas pela minha estreita perspectiva. Não é justo avaliar nenhuma cultura pelos relatos dos cronistas sociais que observam o mundo ao seu redor dentro de sua bolha de privilégios.

Sim, era permitido chamar de “viado” e de “negão”, e talvez seja verdade que muitos negros e homossexuais sequer se sentissem ofendidos. É possível que muitas meninas não se importassem em ser tratadas e consideradas apenas pela sua aparência. Todavia, é impossível saber quantos realmente levavam as brincadeiras com humor e quais eram os que apenas engoliam a humilhação para não serem excluídos do grupo. Escutar hoje como eles se sentiam naquela época talvez possa nos surpreender.

Minha geração era muito cruel com os diferentes, e não há nada a lamentar que esse tempo tenha passado. Também nossos hábitos eram terríveis, no aspecto da saúde. Sim, sobrevivemos ao “Fleet”, à bala Soft, carros sem cinto de segurança e às tintas com chumbo mas muitos dos amigos que hoje morrem de câncer começaram sua contaminação cumulativa naqueles tempos. Muitos dos que morreram cedo pelos acidentes de trânsito também não estão aqui para deixar seu depoimento. Não há o que celebrar.

Abandonar paulatinamente o machismo, a violência contra a mulher, o racismo estrutural, os agrotóxicos, a educação pela violência e a segregação racial é algo a ser comemorado, mesmo que seja necessário reconhecer que muito ainda precisamos trilhar. Acreditar que o seu tempo era “o melhor” apenas denuncia falta de perspectiva e incapacidade de se adaptar ao mundo de transformações.

Acredite… o mundo hoje é melhor do que já foi, apesar dos nossos erros

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MBE

Medicina Baseada em Provas é uma MERDA, mas superior à todas as suas competidoras. Não se trata de desmerecer as evidências colhidas para a formulação de protocolos, mas lembrar que “evidente” é aquilo que é visível, pode ser visto e comprovado. Mas quando a verdade é escondida, como poderá ser “evidente”?

A verdadeira postura científica cartesiana é o ceticismo contumaz e metódico. Já dizia um verdadeiro cientista que “A ciência é feita com a dúvida, e as certezas foram dadas pelo criador aos homens como prêmio de consolação às mentes frágeis”.

Veja mais aqui sobre a Corrupção da Medicina pretensamente baseada em evidências.

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Respostas padrão

Há mais de 30 anos o padrão é o mesmo. Quando alguém crítica o abuso de cesarianas e destaca a importância do parto normal a resposta nas redes sociais é fatal: alguém se ergue para dizer que “a cesariana salvou minha vida e do meu bebê, que estava se enforcando no cordão” ou ainda que “eu demorei 5 dias em trabalho de parto, pois os médicos não viram que eu não tinha passagem”, e etc. Finalizam dizendo que “no passado morriam milhares de crianças e mães porque não havia cesarianas e que parto normal – segundo seu médico – é algo antiquado e arriscado”.

Moça, acredite, não é sobre você. É a respeito de todas as mulheres. O seu caso isolado não é importante o suficiente para produzir uma regra que se ocupa de todas as mulheres grávidas. Ele é apenas o seu caso. É importante na sua história, mas não pode ser o padrão para todos os nascimentos.

Bom saber que havia cesarianas à disposição para o seu atendimento, mas isso não significa que o fato de você estar satisfeita com sua cesariana não significa que uma cirurgia como essa não seja frustrante para muitas outras mulheres. Também não há provas de que, mesmo que sua cesariana tenha sido realmente necessária, milhares de outras não tenham sido indicadas por razões sem embasamento científico algum.

Nós respeitamos sua ideia e sua escolha sobre a via de parto. Pedimos apenas que tenha a mesma consideração e empatia com a dor e a frustração de quem sofreu uma cesariana desnecessária.

Acredite, dói bastante.

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Castigos

Castigos

Uma oportunidade que a avozeridade (relativo a avô, assim como paternidade é para pai) me ofereceu foi a possibilidade de estabelecer um comparativo intergeracional. Vejo com surpresa e encantamento o desenvolvimento psíquico e emocional dos meus netos com muita atenção – que eu não tinha aos vinte e poucos anos quando fui pai.

Um aspecto muito chamativo nessa observação é o fato de que eles são a primeira das cinco gerações que acompanhei (dos meus avós até aqui) em que não existe a perspectiva de castigos físicos. Não importa qual a travessura ou a “maldade” produzida, a violência não é uma expectativa que eles têm. Eles agem sabendo que, na pior das hipóteses, serão retirados do local para uma “pausa de reflexão”, mas jamais receberão ataques físicos como punição.

Por certo que entre eles a violência é um assunto diário. Brigam entre si todos os dias e com todos os requintes de crueldade, tanto física quanto psíquica. É assim o amor entre irmãos e primos: “entre tapas e beijos”. Também com os animais domésticos existe algum grau de violência, mas é natural que eles percebam os limites da sua expressão através destes experimentos. Quando os cachorros da casa mordem os pequenos em defesa própria é o momento de ensinar que a violência sempre tem um preço.

Por outro lado, a dimensão do “outro poderoso”, sem as tintas da violência explícita, é uma grande novidade para mim. Cresci com a ideia de que, dependendo da travessura ou da blasfêmia proferida, umas boas palmadas poderiam ser a consequência natural. Agora esta instância “pedagógica” foi eliminada. Acredito que há razões de sobra para comemorar.

Percebi na experiência de convívio com meus netos o que muitos já haviam descrito: do ponto de vista educacional os castigos físicos não fazem a menor diferença positiva. São inúteis para produzir a necessária castração simbólica e servem tão somente como válvulas de escape para as frustrações parentais. Mantém o círculo de opressão e violência e comunicam às crianças o valor da agressão como potencial solucionador de impasses.

Criar sem violência física é uma lição que pude aprender com esta espetacular oportunidade que a vida oferece a quem ficou velho o suficiente para merecer ser avô.

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