Arquivo do mês: fevereiro 2021

Entre as Orelhas

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Ricardo Jones e eu sou um ativista do parto humanizado. Há mais de três décadas, quando comecei a atender partos, ele era assistido de maneira tradicional, como costumávamos ver no cinema e na televisão: mulheres abaixo, médicos acima. Os maridos ficavam do lado de fora aguardando informações. Gestantes faziam seus puxos com a orientação dos obstetras, deitadas em posição ginecológica. Episiotomias eram cortadas e depois costuradas, os puxos eram dirigidos, as manobras de Kristeller eram corriqueiras. Entretanto, por ter passado muito cedo pela experiência traumática como pai, eu percebia que a forma como atendíamos o parto era violenta e desrespeitosa, não apenas com a mulher e sua fisiologia, mas também com seus companheiros, a família e a própria natureza humana e seus milhões de anos de aperfeiçoamento. Antes mesmo do início da década de 90 do século passado eu tomei uma decisão dramática, que impactaria a forma como passaria a atender nascimentos.

Nos últimos 20 anos eu viajei pelo mundo inteiro falando das minhas experiências com a humanização do nascimento da forma como foi operacionalizada através de uma “equipe transdisciplinar” em minha cidade. Falei em praticamente todas as capitais do meus país, mas também em lugares tão diferentes como México, Estados Unidos, Uruguai e Argentina na América, mas também Portugal, Reino Unido e Bulgária na Europa, e a China continental na Ásia.

Depois de mais de 30 anos de perseguições pela corporação médica do meus país eu interrompi meus atendimentos e me dedico a escrever, fazer palestras e dar cursos sobre humanização do nascimento, educação perinatal, formação de doulas e homeopatia para profissionais do parto. Aqui vemos algumas fotos da comunidade onde vivo no sul do Brasil, junto à natureza e aos meus netos. Ela se chama “Terramã”, que significa “Mãe Terra”.

Para que se tenha uma noção das dimensões, o meu estado “Rio Grande do Sul” é do tamanho da Nova Zelândia, e tem uma população de 11 milhões de habitantes. Aqui podemos ver a minha cidade, o estádio do Grêmio – meu time de futebol – e o lago Guaíba.

O Brasil é um país multiétnico, um cadinho de raças, mas marcado pela escravidão, de forma muito semelhante como ocorreu com os Estados Unidos. Porém, diferentemente dos americanos do Norte, nossa miscigenação foi muito mais intensa e a entrada da cultura negra se espalhou de uma forma muito mais abrangente e marcante. Somos um país em que 51% da população é formada por não-brancos, ao contrário dos americanos onde a comunidade negra não passa de 12% da população. Ainda temos também a maior comunidade japonesa fora do Japão. Entretanto, convivemos com muito racismo estrutural no Brasil, em especial contra a população negra e indígena.

Minha história com a humanização do nascimento se iniciou há quase 35 anos, ainda durante a minha residência. Foi lá mesmo que eu percebi que as mulheres eram consideradas objetos de manipulação pelo sistema médico, sem voz e sem direitos, e que o nascimento de seus filhos era determinado por instâncias de poder alheias a elas. Foi nesta época que iniciei com duas ações que hoje são consideradas simples, mas que significavam uma agressão ao sistema de poderes instituídos: o parto na posição de cócoras e a autorização para a presença dos pais na sala de parto. Por esta razão, minhas ideias de humanização do nascimento sempre foram atacadas pelo poder instituído, assim como foi feito com tantos outros profissionais da humanização do nascimento no Brasil.

ATENÇÃO AO PARTO NO BRASIL

Uma coisa importante de esclarecer sobre a saúde do Brasil é o fato de que temos um sistema de saúde muito peculiar, formado por três partes. A primeira é o SUS – Sistema Único de Saúde – criado em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, que determina que é dever do Estado garantir saúde a toda a população brasileira. A abrangência do SUS é universal, como direito básico e inalienável da população brasileira. Ao lado disso, temos a saúde suplementar, formada por empresas de seguro saúde, como as que existem nos Estados Unidos – como Kaiser, Humana, etc.

Para além dos “sistemas pré-pagos” existe o sistema privado, onde médico e paciente contratam-se livremente para o atendimento, por negociação direta entre paciente, médico e instituição hospitalar. É exatamente nos últimos dois sistemas – seguro saúde e livre negociação – que o abuso de cesarianas impera, mostrando que a disparidade entre os poderes do médico e da paciente em negociação direta faz com que as mulheres “optem” ilusoriamente por uma intervenção que traz inequívocos benefícios para os médicos, mas quase nenhum para as gestantes e seus filhos.

No sistema público de saúde a taxa de cesarianas chegou a um patamar de 43% dos nascimentos, o que já seria um valor acima de qualquer consideração médica e de saúde pública. Entretanto, no setor de Medicina Suplementar (seguros saúde) e nos pacientes privados o descontrole é total, tornando a cesariana a via de parto de quase 9 entre 10, mormente da classe média, já que a prevalência dessa cirurgia neste segmento populacional é de 88%.

Este fenômeno de abuso da cesariana certamente que não ocorre em um vácuo social. Em verdade ele se expressa dentro de um modelo sistêmico, global, atingindo todas as populações e de todas as latitudes. É muito intenso em países em desenvolvimento, mas também atinge países plenamente desenvolvidos, como na Europa e os Estados Unidos. Países como México, Brasil e Argentina na América do Sul e Coreia do Sul na Ásia são exemplos de países que têm ao redor de 50% de cesarianas – e isso é um grave problema de saúde pública.

Entretanto, este fato não se refere simplesmente a países com carência na atenção básica de saúde, mas uma questão bem mais profunda, sociológica e estrutural, que diz respeito ao entendimento do papel da mulher na cultura e a exaltação da tecnologia como entidade sobrehumana de superação das fragilidades da espécie.

No Brasil, por exemplo, temos 98.5% das pacientes recebendo cobertura pré-natal, o que é um valor bem razoável se levarmos em consideração o tamanho da floresta amazônica e todos os desafios de oferecer cobertura médica em uma região selvagem. Também é fato que 56.5% das mulheres iniciam seu atendimento pré-natal antes das 12 semanas e 75% delas são vistas pelo setor público. Inobstante essa abrangência, a violência obstétrica – que é uma variante da violência de gênero – ainda é uma realidade no Brasil. Em 2011, quando tínhamos uma taxa de cesarianas da ordem de 52%, saltava aos olhos o fato de que, mesmo entre os partos vaginais, a imensa maioria destes ocorria sob intervenções médicas, e apenas 5% de todos os partos no país ocorriam sem qualquer tipo de intervenção – os únicos que poderiam receber o nome de “partos fisiológicos”. A hipermedicalização dos nascimentos, para além dos benefícios para mães e bebês, é também uma forma de violência.

A DOMESTICAÇÃO DO PARTO PELA CULTURA

Assim, a partir do início do século XX, o nascimento humano foi se transformando em um evento cada vez mais artificial, controlado pela corporação médica, tratado como doença e apartado do local de segurança onde as mulheres tiveram seus filhos durante milhares de anos. A imagem do parto no imaginário social transformou-se gradativamente do aconchego e da presença da família para os hospitais, as roupas cirúrgicas e os aparatos tecnológicos, afastando-se da sua origem e da própria fisiologia humana.

Em 1992, durante uma visita à capital argentina Buenos Aires, fiquei impactado ao ver, pela primeira vez, a imagem da página 138 do livro “Nacimiento Renacido“, de Michel Odent. Diante do golpe estético que experimentei ao ver esta imagem, me senti obrigado a desvendar seus significados: por fim me dei conta de que era exatamente essa conexão física, emocional, intensa e profundamente feminina que oportunizava às mulheres percorrer os labirintos obscuros do ser feminino com mais confiança. Na imagem que tanto me chocou uma parteira abraçava o corpo nu de uma gestante no chão da sala de parto e percebi, entre triste e esperançoso, que era essa a parte que me faltava, a qual eu carecia e que as doulas poderiam ajudar, acrescentando a feminilidade e o contato amoroso ao trabalho técnico de médicos e obstetrizes. A partir de então eu dedicaria a minha vida a criticar o modelo obstétrico contemporâneo, tentando desvelar o universo afetivo, sexual e feminino do nascimento, escondido sob as capas pesadas da tecnocracia.

Sabemos que o objetivo mais desejado por um profissional de atenção ao parto é o trajeto tranquilo desde o diagnóstico da gestação até amamentação alargada, mas para isso acontecer é preciso que esteja atento a todos os elementos que dificultam essa transição. Os protocolos rígidos e despersonalizantes, a insensibilidade dos profissionais a respeito dos múltiplos aspectos da gestação, os inúmeros mitos que cercam esse evento especial e as relações de poder – onde a gestante é a parte mais frágil – levam a que este caminho seja cheio de obstáculos difíceis de transpor. É a tarefa dos cuidadores orientar e desviar destes transtornos, oferecendo confiança e orientação de qualidade para que a grávida e sua família sintam-se acolhidos e possam fazer suas próprias escolhas através da garantia de um sistema de escolhas e recusas informadas. Só assim poderemos fazer com que a travessia desde o início da gestação até o desmame seja o mais tranquilo possível, consertando a ponte que liga todas as partes dessa grande aventura humana.

Diante da suprema artificialização do nascimento pelo modelo tecnocrático ainda cabe perguntar o que significa “normal” quando se fala de parto. Afinal, o que ainda podemos chamar de “normal” quando se trata de parto e nascimento na vigência da tecnocracia?

PARTO HOSPITALAR CONTEMPORÂNEO

Num atendimento clássico hospitalar no meu país existe uma sequência previsível de ações para a atenção ao parto, mas que não necessariamente obedece a qualquer evidência científica.

  1. A paciente chega ao hospital em uma cadeira de rodas, junto com o marido;
  2. Depois de ser separada do marido, vai para uma sala onde fará avaliação do batimento cardíaco fetal, da pressão arterial e da temperatura;
  3. Em seguida fará enema intestinal, tomará um banho e realizará a tricotomia perineal; se é verdade que no nosso país não é mais rotineiro, também é verdade que em muitas localidades essas práticas ainda são comuns.
  4. Depois disso trocará sua roupa e colocará uma bata hospitalar;
  5. Será escolhido um leito que será o seu até a dilatação completa; hoje a maioria das maternidades públicas e privadas possuem salas de parto, onde as gestantes entram com 5/6 cm de dilatação. Solicita-se que internem com 3 contrações médias/fortes em 10 minutos por uma hora sustentada, para só então serem admitidas e garantir que não fiquem por muito tempo. Ainda assim, por muitos anos, o leito do centro obstétrico como o localizador da paciente foi a norma.
  6. Colocação de uma via parenteral (soro) com ou sem ocitocina;
  7. Monitorização eletrônica fetal;
  8. Avaliação da dilatação do colo uterino para colocação no partograma;
  9. Tempo para a dilatação, mantida no leito, o que leva a um descontrole sobre a dor, pela posição, a restrição no leito, o isolamento e muitas vezes a ocitocina;
  10. Analgesia peridural, o que dificulta os movimentos e traz muitas outras alterações; aqui no Brasil existe – na imensa maioria das maternidades – a gratuidade das anestesias, mas em outros países elas muitas vezes só ocorrem mediante pagamento direto aos anestesistas.
  11. Transferência para a sala de parto;
  12. Episiotomia médio lateral;
  13. Parto na posição de litotomia;
  14. Corte prematuro do cordão, imediatamente após o nascimento, que apesar de estar mudando, ainda é extremamente frequente em maternidades brasileiras;
  15. Separação da mãe e do bebê para avaliações do recém-nascido e atendimento à reparação da episiotomia;
  16. Envio para a sala de recuperação, maternidade e alta hospitalar

É forçoso reconhecer, entretanto, que apenas a avaliação do bem-estar materno e fetal (pressão arterial, avaliação da temperatura e batimentos cardíacos fetais) possuem evidências científicas seguras e confiáveis. Todas as outras ações são culturalmente determinadas e não possuem embasamento em estudos e publicações atualizadas que os sustentem.

O antropólogo Peter Reynolds, que escreveu “Stealing Fire”, descreve neste livro a sequência de ações sobre o parto contemporâneo através do que ele chamou de “Punch Theory”. Para ele, o mito da transcendência tecnológica nos faz acreditar que a resposta para os dilemas da humanidade será através de mais intervenção tecnológica, na famosa equação onde o primeiro impulso é nossa ação destruidora sobre o mundo natural e os impulsos subsequentes – hospitais, drogas, leitos de UTI, cirurgias, antissepsia, antissépticos, antibióticos e profissionais altamente treinados em patologia – atuam no sentido de consertar os estragos iniciais, porém sem questionar sua origem com a profundidade necessária.

Porém, a experiência nos prova que é o próprio afastamento da vivência natural do parto e o afastamento sistemático e insidioso da sua natureza (punch 1) o que produziu a maior parte dos distúrbios que hoje testemunhamos. Desta forma, nos transformamos em técnicos especializados em múltiplas intervenções (punch 2) que servem para consertar os problemas criados pela nossa própria atuação intempestiva.

MITOS NA ATENÇÃO AO PARTO

Sabemos, através dos ensinamentos de Robbie Davis-Floyd no seu livro “Birth as an American Rite of Passage” que os protocolos e rotinas realizados no hospital podem ser considerados rituais, pois são repetitivos, padronizados e simbólicos. Rituais são ações que servem para manter e reforçar os valores mais profundos de uma determinada sociedade. Também é claro que podem tanto ser conscientes quanto inconscientemente executados. Minha experiência pessoal é de que, no que concerne às ações realizadas nos hospitais com as gestantes, a gigantesca maioria dos profissionais não tem nenhuma noção de que perpetuam, em seu trabalho, uma encenação cuja principal função é amenizar as tensões inerentes às incertezas do trabalho de parto e cujo resultado é sempre uma questão em aberto – por mais que sejamos cuidadosos. Assim, todas as atitudes da equipe profissional no ambiente do parto são marcadas por uma porção visível e aparente – com ou sem embasamento científico – mas possuem uma face oculta, formada por sua conexão com valores inconscientes que formam a estrutura da nossa sociedade.

Os rituais mais evidentes na atenção ao parto são:

  • Uniformização

É evidente que toda a parturiente vai apresentar características pessoais no seu trabalho de parto. A velocidade, a intensidade das contrações e da dilatação, a percepção da dor, seu comportamento calmo ou agitado e seu estado de espírito serão diferentes em cada mulher atendida, e mesmo na mesma mulher em gestações subsequentes. Isso estabelece um desafio para quem precisa tomar conta de inúmeros processos subjetivos potencialmente muito diferentes entre si. Como a atenção ao parto se estabelece com uma assimetria de poderes, com as mulheres obedecendo e os profissionais controlando, é fácil entender porque existe uma tentativa de “uniformizar” as pacientes, para que assim elas sejam mais facilmente controladas. O mesmo ocorre em outras situações sociais onde a hierarquia de poderes é rígida como na prisão, na escola, na igreja ou na polícia. A uniformização serve para reduzir as mulheres à sua função materna, retirando delas o máximo possível de sua subjetividade.

  • Tricotomia

Na mesma linha de raciocínio da uniformização, a tricotomia serve para tornar as mulheres idênticas. Para além disso, a tricotomia serve como um potente sinalizador do desconforto que causa a expressão da sexualidade no corpo das grávidas. Os pelos pubianos são a manifestação física da maturidade sexual e sua ausência nos remete à infância e à inocência. O parto é pureza casta; o sexo é impuro. Assim, retirar das mulheres os pelos pubianos tem uma tripla função: uniformização, dessexualização e infantilização. Estes elementos garantem à gestante uma posição inferior na hierarquia de poderes no nascimento, apta a ser complacente e obedecer às determinações da equipe de atenção.

  • Via de acesso parenteral

Gestantes são frequentemente colocadas em acesso venoso tão logo chegam ao centro obstétrico. A razão para isso não se sustenta em evidências, mas na cultura do medo e no “imperativo tecnológico”. Usa-se, como justificativa, o “mas, e se…”, para usar o acesso venoso no caso de algo grave acontecer, mas este tipo de procedimento nunca se comprovou útil e eficiente. Para além disso manda uma mensagem subliminar de que a paciente está conectada e presa ao sistema, como alguém que perde sua liberdade para se adaptar as regras do lugar onde se encontra.

  • Restrição ao leito

Manter mulheres restritas ao leito também as deixa confinadas a um determinado espaço, limitando seu movimento, o qual quase sempre é essencial para o transcurso do trabalho de parto. Isso permite um controle maior da equipe de atenção, mas a torna um número de leito, não uma pessoa com uma perspectiva absolutamente subjetiva sobre o transcurso do seu parto.

  • Enema

Os enemas são realizados desde a antiguidade como terapias ou como preparação para os tratamentos e conselhos dos oráculos. Por trás dessa prática que ainda sobrevive em muitos hospitais está a ideia de purificação que, junto com a troca de roupa da gestante e o banho, procurar criar sobre ela uma aura de pureza e limpeza para adentrar o centro obstétrico.

  • Posição de litotomia

A posição de litotomia é uma das mais claras mudanças na estética do parto que se incrementaram com a entrada dos médicos e da medicina no cenário do nascimento. Sua manutenção na prática médica, apesar de todas as evidências que nos provam sua inadequação e mesmo o inegável prejuízo para mães e bebês, se dá porque o parto deitado é um reforço psíquico subliminar que auxilia o poder médico a manter sua dominação sobre o corpo das mulheres. O parto deitado, posição clássica de litotomia, reforça a assimetria de poderes que ajuda o profissional a se sentir no comando e envia uma mensagem de passividade para a mulher que está parindo. Por esta razão, e não pela falta de informações ou provas científicas, é que esta posição ainda é disseminada nos hospitais de ensino e utilizada na assistência em 9 de cada 10 mulheres parindo neste país. Muito mais do que representa objetivamente, ela é plena de um simbolismo patriarcal de dominação, e por essa razão resiste aos ventos do tempo e da verdade.

  • Episiotomia

É o procedimento mais emblemático da luta das mulheres pela autonomia corporal. Sua execução, entretanto, resiste às evidências porque simboliza a supremacia da tecnologia – representada pelo bisturi – sobre a natureza implicada no nascimento fisiológico. Episiotomia é a grande cirurgia ritualística e mutilatória da Medicina ocidental.

  • Separação mãe-bebê

Esse afastamento manifesta uma atitude autoritária dos poderes delegados do Estado contra a autonomia da mulher sobre seu filho. O objetivo inconsciente destas condutas e rotinas é despojar a mulher do controle sobre o recém-nascido, estabelecendo uma tirania da técnica e do conhecimento sobre a conexão mãe-bebê tão logo ela se estabelece. Nesse momento especial é lançada a pedra fundamental para a construção de um sujeito subserviente ao Poder.

HISTÓRIA DA HUMANIZAÇÃO

  1. Irmãos Chamberlen e o uso do fórceps. Criado pelos irmãos Chamberlen, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de ser alvo da cobiça de concorrentes. A entrada desta ferramenta na história dos nascimentos determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes. A partir de então mais tecnológica e invasiva a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja no papel de meras auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturientes, relegadas a uma posição secundária no cenário do nascimento.
  • Grantly Dick-Read e as influências do ambiente no psiquismo com suas consequentes influências no parto e no recém-nascido. Publicou seu primeiro livro “Parto Natural” em 1933, cunhando o termo “parto natural”. Ele definiu o termo como a “ausência de qualquer intervenção que pudesse perturbar a sequência do parto”. Seu segundo livro, Revelation of Childbirth (que mais tarde foi renomeado como “Childbirth without Fear”), foi publicado em 1942 e dirigido ao público em geral. Tornou-se um best-seller internacional e ainda hoje muito utilizado como referência. A partir desta publicação Dick-Read foi convidado para dar palestras em todo o mundo.
  • Fernand Lamaze e o controle consciente e ativo do parto. Lamaze visitou a União Soviética em 1951 onde pela primeira vez tomou conhecimento de um nascimento onde se usava a “psicoprofilaxia”, um método de atenção ao parto que havia sido desenvolvido por psicoterapeutas soviéticos, como Velvovskii de Cracóvia, Ucrânia, baseada na teoria de reflexos condicionados de Ivan Pavlov. A psicoprofilaxia propunha-se a eliminar a dor do parto por meio da ativação neocortical (awaken and alert!!), pela educação sobre o processo fisiológico do parto, através da resposta de relaxamento condicionada às contrações uterinas e por meio de respiração padronizada destinada a aumentar a oxigenação e interferir na transmissão de impulsos dolorosos do útero para o córtex cerebral. Lamaze ficou tão impressionado com o que testemunhou que, depois de retornar à França, dedicou o resto de sua vida à promoção do Método Psicoprofilático de Atenção ao Parto, que ficou popularmente conhecido como “Parto sem Dor”. É importante mencionar que, assim como Dick-Read algumas afirmações de Lamaze seriam hoje consideradas profundamente machistas e retrógradas, tanto em sua concepção das mulheres quanto em relação ao papel delas no mundo. Como sempre é importante entender os pensadores dentro de seu tempo e contexto.
  • Frederick Leboyer e o parto na perspectiva do recém-nascido. Ele é mais conhecido por seu livro de 1974, “Birth Without Violence” no Brasil chamado de “Nascer Sorrindo”, no qual popularizou técnicas de parto suave, em especial a prática de banhar bebês recém-nascidos em uma pequena banheira com água tépida para facilitar a transição do mundo intrauterino para o exterior. Leboyer também defendeu “práticas de proteção sensorial ao bebê”, como usar uma iluminação baixa, silêncio e uma sala aquecida para evitar o choque do nascimento. Também estimulava o contato pele-a-pele, onde o recém-nascido era colocado sobre o abdome de sua mãe, permitido assim um contato prolongado entre eles.
  • Michel Odent e o parto na natureza dos mamíferos. Odent desenvolveu um interesse especial nos fatores ambientais que influenciam o processo de nascimento, seguindo os passos de Dick-Read. A partir de suas experiências com a maternidade de Pithiviers na França introduziu os conceitos de “salas de parto selvagens”, piscinas de parto e um estilo de pré-natal muito particular, onde sessões de canto para mulheres grávidas eram oferecidas, assim como a participação de toda a família. Depois se envolveu com o parto domiciliar, com as relações entre humanos e mamíferos no que se refere ao nascimento, fundou em Londres o “Primal Health Research Centre” e projetou um banco de dados para compilar estudos epidemiológicos, explorando as correlações entre o que acontece durante o “Período Primal” e a saúde posterior do sujeito.
  • Robbie Davis-Floyd e o nascimento como processo simbólico e ritualizado. As principais contribuições teóricas primárias de Robbie incluem sua análise dos procedimentos obstétricos padronizados para o parto como rituais, cuja principal função é externar os valores fundamentais sobre os quais se assenta a cultura. Além disso ela estabelece a comparação entre três modelos de nascimento e atenção à saúde quanto ao uso de tecnologia, mostrando que eles  existem em todas as sociedades e variam de acordo com as condições do contexto. São eles os modelos “tecnocrático”, “humanístico” e “holístico”.
  • A Cama de Procustes, e a visão do parto como fenômeno subjetivo. No mito grego, Procrustes era filho de Poseidon e morava no Monte Korydallos, no caminho sagrado entre Atenas e Elêusis. Em sua casa ele tinha uma cama na qual convidava todos os transeuntes a dormir, quando batessem à sua porta por terem se perdido pelo caminho. Caso o infeliz convidado fosse muito baixo ele usava suas ferramentas para esticá-lo, rompendo suas articulações, fazendo-o aumentar de tamanho até se ajustar perfeitamente ao tamanho de sua cama. Por outro lado, se o convidado se mostrasse alto demais, Procrustes amputaria o excedente. Por certo que ninguém jamais se ajustou à sua cama de forma exata. Procrustes continuou seu reinado de terror até ser capturado por Teseu, quando este viajava para Atenas pelo caminho sagrado. Sua história nos serve como metáfora para a crueldade e a insensibilidade das uniformizações, que obrigam sujeitos únicos a se adaptarem a modelos universais.

A partir do entendimento do parto como evento único e irreproduzível, que se baseia nas características mais íntimas de cada mulher, fica cada vez mais difícil aceitar a uniformização e a padronização a que são submetidas as mulheres quando se deparam com os serviços de assistência ao parto disseminados por todo o mundo. Como pode um evento tão pessoal ser tratado como se toda a mulher fosse igual a todas as outras em especial numa parte tão reservada e ligada à sua sexualidade?

Um parto entre culturas tão diferentes é tratado de forma idêntica apenas porque nutrimos a crença ingênua de que os aspectos psicológicos, afetivos, emocionais, culturais, sociais e espirituais não influenciam o transcorrer do processo tanto quanto hormônios, objeto, trajeto e anatomia da pelve. “Entretanto, o parto é algo que acontece entre as orelhas, repetindo o velho adágio das parteiras. Não o procure nas dobras dos tecidos uterinos, nas protuberân­cias ósseas, nas contrações ou nas variações dos hormônios. Ele se encerra nos pequenos grãos de areia de nossos sonhos, na bruma de palavras disper­sas de um passado distante. Ele se refugia nos sussurros de uma menina, na curiosidade infindável que ela carrega e no seu olhar insaciável. O parto e seus mistérios se escondem ao olhar superficial, à análise tímida e ao investigador amedrontado. Para entender o que o comanda, é preciso penetrar nos abis­mos obscuros da alma de uma mulher, lá onde se abrigam seus sonhos e suas tristezas. Quanto mais profundamente mergulharmos, mas nebulosa será nossa jornada. Entretanto, apenas assim poderemos encontrar essa semente. Talvez, apenas uma suposição, a chave para essa questão esteja mesmo ligada a essa fissura aberrante na ordem natural, a qual chamamos “amor”. E talvez, outra mera suposição, para entender o que acontece entre as orelhas de uma mulher, somente através desta chave”. (Entre as Orelhas, Histórias de Parto – do autor)

Para terminar, creio ser importante falar sobre as perspectivas para o futuro. Como podemos imaginar a assistência ao nascimento no século XXI? Teremos um aprofundamento da intervenção tecnológica no parto? Haverá o incremento nas cesarianas, relegando o parto fisiológico e vaginal para os raros casos onde não haja tempo para o preparo de uma cirurgia?  Testemunharemos o reforço no modelo tecnocrático biomédico, centrado na figura dos médicos e nas intervenções, ou veremos o crescimento de alternativas como a atenção oferecida por parteiras, obstetrizes e em locais diferentes do hospital?

Será o futuro da humanidade um caminho linear em direção à total artificialização da vida? Será a humanidade do futuro um híbrido entre homem e máquina, produzindo a   ciborguificação completa do nosso organismo? Ou teremos uma mudança conceitual a partir deste novo milênio, fazendo um novo traçado que nos leve à ecologia, ao respeito à natureza, à cooperação e à fraternidade? E o respeito à ecologia será definido apenas pela natureza fora de nós ou também à natureza de nossos ciclos vitais como nascer e morrer?

Sempre que me deparo com essas questões, lembro-me de uma antiga palestra, de um jornalista americano chamado Malcolm Gladwell cujo estranho nome é “Escolhas, felicidade e molho de espaguete”. Muitos anos atrás, meu filho viu o vídeo desta apresentação no YouTube e me ligou tarde da noite dizendo: “Pai, ouça a palestra sobre molho de espaguete. Acredite em mim, tem a ver com suas ideias sobre a humanização do parto ”. Nesta apresentação, o jornalista demonstra a importância da diversidade não apenas para melhorar o atendimento ao cliente, mas também para a percepção subjetiva de qualidade. Sua palestra foi baseada na história de um pesquisador de alimentos americano chamado Howard Moskowitz e sua importante descoberta em meados da década de 1980.

Howard foi convidado pela Pepsi para descobrir a concentração adequada de adoçante artificial – aspartame – que deveria ser colocado na Pepsi para produzir o sabor perfeito. Sabia-se que a concentração deveria ser entre 8 e 12%, mas contrataram Howard para descobrir o valor exato. Depois de uma exaustiva pesquisa não foi encontrado um número satisfatório e decidiu-se que 10% – por ser o valor equidistante – seria o escolhido. Entretanto, Howard sentiu-se profundamente frustrado por sua pesquisa não ter demonstrado o valor mais justo para a adição de adoçante ao refrigerante.

Algum tempo depois ocorreu seu grande momento quando uma empresa de alimentos poderosa, a “Campbell’s Soup” (lembram da obra de Andy Warhol?) produtora de um Molho de Espaguete chamado Prego, o convidou a fazer estudos sobre seu produto. Foi quando recebeu a proposta de criar uma fórmula ideal para o Molho de Espaguete Prego que ele percebeu que a pergunta sobre a Pepsi estava errada. Sua resposta para a empresa Campbell’s foi “Não existe a Pepsi perfeita; existem as Pepsis perfeitas. Portanto, não existe também o molho de espaguete perfeito, mas muitas diferentes maneiras de saboreá-lo”.

Depois de produzir 45 combinações diferentes de molhos de tomate – combinando as suas principais características pelo nível de açúcar, pelo nível de alho, pelo azedume, pela acidez, pela quantidade de tomate e por sólidos visíveis – visitou grandes cidades americanas levando suas múltiplas variedades para fazer experimentos com voluntários.

Quando observou os resultados ele não procurou encontrar o sabor favorito entre as notas que os voluntários deram para cada variedade. Não, ele já não acreditava mais em um modelo que satisfizesse todos os gostos. O que ele fez foi agrupar os resultados em grupos de preferência. A partir disso, ele descobriu que a maioria das pessoas se enquadrava em um dos três grupos: há pessoas que gostam do molho de espaguete padrão, aquelas que gostam do molho picante e ainda há aquelas que gostam do “extra-chunky”.

Destes resultados o último, o extra-chunky, (que poderia ser traduzido por “pedaçudo”) foi o mais significativo, exatamente porque em meados dos anos 80 não existia um molho de espaguete que tivesse essa característica. Então a Campbell’s indagou a Howard: “Você está nos dizendo que um terço dos americanos anseia por um molho de espaguete pedaçudo (extra-chunky) e ninguém está atendendo a essa demanda?”

A resposta era “sim”, e imediatamente a Campbell’s criou uma nova linha de molhos “extra-chunky” e dominou o mercado totalmente, e nos dez anos que se seguiram arrecadou 600 milhões de dólares com esta sua nova linha de molhos. Hoje em dia existem pelo menos 36 diferentes tipos de molhos de espaguete da marca Prego, e o mesmo número para sua concorrente “Ragu”. Mas o mais importante desta mudança foi a possibilidade de olharmos para ela como um divisor de águas para a forma como a cultura se organiza para satisfazer os desejos humanos.

Até meados dos anos 80 estávamos obcecados com as universalidades, ansiosos por encontrar o modelo perfeito para todas as criações humanas. A Pepsi perfeita, o café perfeito, o homem perfeito, a mulher perfeita, o jogador perfeito, a bebida perfeita e até o molho de espaguete. O que estes experimentos nos ensinam é que não existe um modelo “perfeito” para as coisas simplesmente porque somos seres humanos diferentes, com gostos, visões, histórias pessoais, contextos e perspectivas de vida diferentes. Por que pessoas tão diversas deveriam ter gostos iguais?

É aqui que eu me permito fazer um link com a história do parto em nossa cultura ocidental. “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, como dizia Odent. Portanto, o parto é um aspecto da sexualidade, mas se podemos entender que as mulheres não gemem, choram, amam, brigam, lutam e fazem sexo de maneira uniforme, porque ainda aceitamos que elas deveriam parir todas do mesmo jeito? Por que insistimos no erro do “parto perfeito”, quando em verdade o que é adequado para uma pode ser um desastre para a outra?

Podemos analisar qualquer elemento típico da assistência ao parto a partir dessa. A presença do companheiro ou de um familiar parece ser adequado para a maioria das mulheres, mas existem muitas que preferem que esta tarefa seja feita com o mais absoluto isolamento de pessoas da família. O local de parto é bem óbvio: muitas ainda preferem o hospital por sua promessa – e a gigantesca propaganda – de segurança que estes lugares oferecem. Entretanto, um número crescente e consistente de mulheres prefere parir em Casas de Parto ou em suas próprias casas, por se sentirem mais seguras rodeadas da família e em um terreno conhecido, longe da iatrogenia típica do ambiente hospitalar.

Estarão erradas aquelas que fazem escolhas diferentes da maioria? De acordo com as pesquisas e estudos… não. Elas apenas adaptam suas características de personalidade às suas escolhas de vida. O grande salto da ciência contemporânea é o conceito de variabilidade, e isso se aplica inclusive à pauta da sexualidade. Quem acompanhou as grandes transformações oriundas da revolução sexual nos anos 60-70 do século passado pode facilmente perceber a diferença de tratamento nas questões relativas à orientação sexual e à própria identidade sexual. Estarão erradas as pessoas que escolhem orientações diferentes da maioria? Será um erro ter uma identidade sexual diferente da sua biologia ao nascer?

A resposta é NÃO. Estamos hoje aprendendo a valorizar a diversidade e a variabilidade. Estamos percebendo que os seres humanos são diferentes e podem fazer escolhas livres de constrangimentos. Esse tipo de visão fatalmente acabará impregnando a medicina e as escolhas sobre os temas reprodutivos e sexuais. A forma de parir faz parte das nossas escolhas mais íntimas, e não existe mais espaço para imposições homogeneizantes.

Existe um experimento muito simples para entender a importância da liberdade de escolhas, e que se faz com o café. Foi usado como exemplo na palestra de Malcolm Gladwell.

Se for dado a um grupo de pessoas a tarefa de avaliar um café servido, qual a nota média que um café receberia? Bem, estudos apontam que essa nota seria de 60% de aprovação. Entretanto, o que aconteceria se, ao invés de apresentarmos um único tipo de café para ser experimentado, pudéssemos apresentar três tipos distintos: forte, médio e fraco? Caso a possibilidade de escolher estivesse presente em apenas 3 modalidades – não incluindo inúmeras outras possíveis como temperatura, origem do café, etc – o resultado seria de 78%. Essa é a diferença entre não ter escolha e poder escolher minimamente.

Para o nascimento humano podemos admitir que a existência de escolhas – quantas forem possíveis – fará aumentar significativamente a sensação de acolhimento diante desse evento tão importante como é o nascimento. Não apenas com relação aos participantes – médicos, enfermeiras, parteiras, família, filhos – mas também com o local de nascimento, o ambiente, o uso ou não de medicamentos (quando for possível escolher), a posição de parir, a iluminação, o silêncio etc.

Certamente que eu penso que o nascimento no século XXI vai nos oferecer uma explosão de diversidade porque as pessoas vão perceber que sua particular perspectiva de mundo precisa ser respeitada, e ela necessariamente vai se expressar no parto. O parto “padrão” vai aos poucos desaparecer como uma velha roupa que não nos serve mais.

Os valores fundamentais que podem ser extrapolados para a atenção ao parto a partir das descobertas de Howard Moskowitz podem ser agrupados em 4 pontos:

  1. Não sabemos o que queremos até termos a chance de confrontar nossas experiências e escolher sabiamente. Se não tivermos conhecimento das alternativas, não temos escolhas. Assim como os americanos não conheciam o “spaghetti extra-chunky” muitas mulheres não sabem que podem ter o companheiro do lado, parir de cócoras ou mesmo planejar seu parto fora do hospital com profissionais qualificados.
  2. Segmentação é horizontal e não vertical. Isto é: não existe hierarquia entre modelos de assistência ao parto. Ter um parto em casa não é superior a ter um parto no hospital. Uma cesariana pode ser mais arriscada que um parto normal, mas ela não é inferior a este de uma perspectiva subjetiva e pessoal. São escolhas feitas na intimidade de cada mulher, e não podem ser julgadas como inferiores.
  3. Confrontar a noção do “parto platônico”. É preciso combater a ideia de um parto “platônico”, qual seja: a busca por um parto perfeito que será adequado para todas as mulheres. Esta é uma concepção antiquada e anacrônica, que não pode persistir em um mundo que reconhece a diversidade e a variabilidade. Não existe um parto perfeito; existem os partos perfeitos adaptados a cada mulher e para cada nascimento.
  4. Buscar o “nascimento perfeito” e modelos universais de parto não são apenas erros; são um péssimo serviço para mulheres e bebês. Manter a ideia de “um parto que sirva para todas” não é apenas um erro, mas um brutal desserviço para todas as mulheres e seus bebês. Acreditar que existe uma forma única de atender os nascimentos é uma agressão as diferenças humanas, e um desrespeito com a própria sexualidade das mulheres. Manter esse poder unicamente nas mãos dos médicos e dos hospitais é algo que não podemos mais aceitar.

O parto na perspectiva do sujeito é o último elemento da lista de grandes saltos qualitativos na atenção ao parto. Acredito que este milênio que se inicia será tomado por essa nova vertente de pensamento, até porque ele está ligado à nossa milenar busca por autonomia e liberdade de escolhas. As mulheres, que durante séculos de patriarcado foram constrangidas a se submeter às determinações alheias, agora assumirão uma nova postura de protagonismo e de plena responsabilidade.

Estamos na aurora de uma nova era para o nascimento humano. Que seja bem-vinda.

Obrigado

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Passagens

Eu passei a melhor parte da minha vida observando a transição das mulheres – em menor intensidade também a dos homens – em direção à maturidade, como mães e pais. O parto, como corte brutal na percepção egoística do mundo, nos joga de forma mais ou menos intensa nas agruras da insegurança e da tarefa de cuidar dos que chegam. Todavia, ainda me surpreendo com a velocidade com a qual essa transformação ocorre. Muitas vezes fiquei espantado ao falar com pacientes apenas algumas semanas após o parto quando já era possível perceber – na forma como se posicionavam diante dos temas – as mudanças de perspectivas, de ênfases e de posturas. É como se a partir do parto fosse aberto um portal pelo qual a realidade ampliada pelo fórceps da experiência lhes permitisse enxergar o mundo de forma mais alargada.

O malho da dor aguda, da espera e da angústia produz a transformação, que será tanto mais intensa e profunda quando maior forem os significados depositados sobre ela. Por isso continuo a achar que a experiência da maternidade e da paternidade são dores e angústias que valem a pena ultrapassar. Por certo que saímos um pouco menos piores, menos arrogantes e mais humildes depois de termos a carne triturada na passagem por este purgatório de êxtase e lágrimas.

Além disso, tais experiências pelo vale da paternidade e da maternidade nos permitem olhar os próprios pais com mais condescendência. Fico feliz de estar vivo para ver meus filhos passando por esta transição.

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Deuses

Ela entrou no consultório vividamente alterada. Sentou-se rapidamente na cadeira à frente da escrivaninha de granito e sentou-se com o corpo projetado à frente, como a se jogar contra mim. Colocou as mãos sobre a pedra fria e me olhou fundo nos olhos.

– Não vim consultar, doutor; estou aqui para conversar porque sei que o senhor se posiciona firmemente contra a violência obstétrica e acredita que os pacientes precisam ter voz. Venho pedir para que o senhor me ajude a condenar um colega seu que cometeu um crime. Ele matou meu sobrinho.

Dava para sentir na pele o clima pesado. Ela estava no último estágio da indignação. Sua dor era perceptível; seu ódio queimava a pele e se irradiava à distância. Respirei fundo. Pensei no quanto de angústia ela já havia vivido até sentar-se à minha frente. De certa forma eu era sua esperança de paz, uma forma de auxílio para carregar o pesado fardo do sofrimento.

– Quer me contar o que houve? disse eu, temendo abrir uma comporta que seria posteriormente incapaz de fechar.

Ela fez uma pausa e contou sua história.

– Meu sobrinho, morreu. Ele nasceu com uma malformação cardíaca. Foi diagnosticada apenas depois que nasceu porque não conseguia respirar direito, ainda na sala de parto do hospital. Ele nasceu roxo e assim continuou, doutor. Foi direto para a UTI onde ficou no oxigênio. No dia seguinte foi dado a nós o diagnóstico da malformação no seu coração. Ficamos totalmente arrasados. Morreu dois dias depois de nascer.

– Posso imaginar a dor de vocês, disse eu ingenuamente.

Ela me censurou com o olhar e disparou frases duras, como se essas palavras estivessem presas há tempo em seu peito.

– Vocês não sabem o que é isso, disse ela. Vocês não conseguem sentir o que nós sentimos. Essa dor passa longe da experiência de vocês. Sempre frios, assépticos, insensíveis e distantes. Não, doutor, vocês não conhecem a dimensão dessa dor, o vazio que fica, o amargo na boca e a escuridão que se interpõe entre o agora e o amanhã. Só estando desse lado da mesa é que é possível entender o quanto dói esta ferida.

Preferi ficar em silêncio pois a porta da empatia havia sido fechada. Mentalmente disse “entendo”, mas percebi que entender, compreender e colocar-se no lugar era para mim vedado. Ela exigia a exclusividade do lugar de sofrimento, impedindo que eu pudesse ao menos me aproximar dele. Só para ela havia o direito de sofrer. Resolvi me acercar, com todo o cuidado, da motivação expressa do contato.

– E como quer que eu lhe ajude? Ainda não me disse onde houve o erro que conduziu seu sobrinho ao óbito.

Outra fuzilada no olhar.

– O médico do pré-natal, o Dr. Fulano – e faço questão de dizer seu nome com todas as letras, F-U-L-A-N-O – não pediu ao meu sobrinho uma ultrassonografia cardíaca durante o pré-natal. Se nós soubéssemos de antemão tudo poderia ter sido diferente. Foi negligente, impediu um diagnóstico a tempo. Por isso quero vê-lo pagar pelo crime que cometeu.

Ela tocou em um tema muito delicado, pelo menos para mim. O abuso de exames para a gestação sempre foi um assunto que me interessou desde os tempos da escola médica. Esse parecia ser um daqueles casos que, lidos ao contrário, poderiam nos dar a ilusão de que “algo poderia ser feito” para evitar a tragédia, bastando para isso que os médicos pudessem ler o futuro. Retrospectivamente tudo faz sentido e todos os pontos se ligam. Seria como internar todas as crianças com febre porque uma em um milhão poderia estar iniciando uma meningite. Não faz sentido fazer isso na vida real, mas quando se olha para trás sempre é possível perguntar: “mas por que não internaram na UTI quando a temperatura começou a subir?”

– O que você acha que seria diferente se ele tivesse solicitado este exame? Em que ele poderia mudar o cenário? Veja, este bebê nasceu em um hospital plenamente equipado. Foi direto para a UTI neonatal. Esteve ao cuidado dos profissionais de lá e sucumbiu ao drama terrível de uma malformação no coração. O que poderia ter sido feito para evitar este desfecho, pela sua perspectiva?

Hoje, lembrando da cena, acredito que aqui esteve sempre o meu grave erro. Já era óbvio que sua indignação era sem objeto. Não havia dolo; não havia sequer culpa de nenhum profissional que atendeu aquela mãe e seu bebê. Entretanto, o caótico da vida é insuportável para quem sofre seus reveses. A pior dor é aquela que não pode ser colocada em uma linha clara de causalidades. Se uma criança – que carregava esperanças e idealizações de uma família – não sobrevive, então alguém deve ter falhado. Exercer o ódio arrefece a dor da nossa alma; apontar o culpado nos oferece alívio.“Ufa, afinal sabemos o que houve. Foi um erro médico”. A pior escuridão é quando nos falta a luz de uma resposta; como a procura por um filho que desapareceu aguardando por uma resposta – qualquer uma – que possa acalmar um coração imerso na dúvida mordaz e corrosiva. Por outro lado, ser compreensivo, acalentar essa dor, acolher esse sofrimento e ficar em silêncio diante do seu relato, apenas atrasaria a necessária tomada de consciência sobre a verdade que ela se negava a encarar. Minha dúvida nunca será desfeita: qual o enfoque caberia utilizar, o “materno” ou o “paterno”?

Certa vez um colega foi duramente punido no hospital onde eu trabalhava. Muitas vezes escutei a sua história e quanto mais a ouvia mais era fácil perceber que não havia culpa alguma em seus atos. O diretor o puniu porque se sentia obrigado a dar algum tipo de satisfação à família enlutada. Para a família produziu um efeito calmante, mas para o meu colega – injustamente acusado – o resultado foi devastador. Ele me dizia que a pior punição era mental: “Sou prisioneiro dos meus pensamentos. Revivo a cena centenas, milhares de vezes por dia. Eu preciso me livrar dessa prisão e dessa tortura que parece não ter fim”.

Todavia, as minhas próprias dores diante das injustiças me impediram de guardar o devido silêncio, assim como a escuta respeitosa e calma. Respondi. Devolvi para ela a irracionalidade de suas palavras. Tentei responder com a razão uma demanda puramente irracional, fruto da dor, da mágoa e dos afetos destroçados. Um erro que carregarei para sempre comigo. Depois de fazer a pergunta ela perdeu os limites da civilidade.

– Como você ousa perguntar isso? Não percebe a tolice de suas palavras? Todos os dias somos bombardeados por informações das maravilhas da medicina e da tecnologia, e negar isso aos pacientes é um crime inaceitável. Se houvesse esse diagnóstico antes do nascimento ela poderia ter sido operada até mesmo antes de nascer!! Ou você não sabe da existências dessas cirurgias?

Lembrei da foto do braço do feto pendurado para fora do útero aberto segurando o polegar do cirurgião, uma foto que correu o mundo mostrando a possibilidade de uma cirurgia fetal intrauterina. Provavelmente era esse tipo de intervenção que ela se referia, mas por certo que ela não tinha a menor ideia do que se tratava. Apenas juntou em sua mente a doença congênita e a possibilidade – mesmo que apenas teórica – de mudar o quadro através de uma operação heroica. Também ela era vítima de uma propaganda médica tecnológica fantasiosa e sem limites, como se um novo mundo se descortinasse à nossa frente pela via dos equipamentos maravilhosos que a criatividade humana produz. Diante de tantos avanços a morte de uma criança inocente só poderia ser o resultado da brutal negligência daqueles que controlam essas maquinas fantásticas e seus feitos extraordinários. Na minha frente apareceu Marsden Wagner me sussurrando: “Quem brinca de Deus acaba pagando pelos desastres naturais”.

– Não tenho como lhe ajudar. Entendo seu sofrimento, mas não acredito – pelo seu relato dos fatos – que tenha ocorrido qualquer falha dos profissionais que acompanharam seu sobrinho na sua breve passagem por aqui. Perdoe minha sinceridade, mas acredito que esse tipo de ação provocará ainda mais dor e, na pior das hipóteses, produzirá injustiças contra pessoas que fizeram o possível para ajudar essa criança.

Ela, finalmente, explodiu em ódio e indignação.

– Eu sabia!! Você é como todos os outros. Achei que poderia encontrar em você alguém diferente, que pudesse me ajudar nessa busca por justiça, mas não passa de mais um covarde. Vocês sempre se protegem e encobrem os erros uns dos outros. Não passam de carniceiros e mercenários, incapazes de entender e respeitar a vida dos pacientes. Acham-se deuses, infensos aos sentimentos de empatia e amor ao próximo. São cães, arrogantes e prepotentes!!

Desta vez fiquei em silêncio. Quando ela se levantou, também me ergui da cadeira.

– Vocês podem escapar de tudo, menos da justiça divina. No dia do julgamento seu silêncio será colocado na balança. Passar bem, doutor.

Eu a acompanhei até a porta. Na passagem pela secretária fiz um gesto com a mão para que ela ficasse tranquila, já que escutou os gritos que vieram da sala. A paciente saiu porta afora e nunca mais a vi. Na volta para a minha sala pedi um café para a secretária e me sentei, ainda sentindo os músculos do corpo retesados. Por sorte haveria meia hora para me acalmar, já que a consulta fora abruptamente interrompida. Em minha mente eu apenas pensava. “Sim, muitos se acreditam deuses; entretanto, se acham mesmo que essa postura é arrogante e sem sentido, por que insistem tanto em nos colocar nessa posição?”

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Sonho

Sonhei que uma amiga havia me deixado um aviso no WhatsApp dizendo que precisava de mim em São Paulo para…. (durante o sonho eu sabia do que se tratava, mas bastou acordar para que o conteúdo do pedido fosse apagado).

Próxima cena eu estava numa sala de espera aguardando essa amiga terminar um atendimento, em um lugar que me pareceu uma clínica bem movimentada. Nisso entra uma moça muito magrinha, com uma espécie de camisola hospitalar como se estivesse internada, amparada por sua família e com uma barriguinha muito pequena. Ela e a família falavam apenas inglês e eu presumi que ela tinha chegado do exterior para uma consulta.

Resolvi aguardar mais um tempo o momento de conversar com a amiga, já que aquela consulta parecia ser de emergência. Enquanto isso, fiquei conversando com a secretária da clínica até perceber que era uma antiga paciente minha que – por acaso – havia escrito para mim uma carta emocionada há alguns dias. Ela me contava detalhes da sua vida, inclusive que teve que se separar por conflitos com o seu enteado, filho do seu ex marido. Durante um tempo ficou me contando as agruras da vida de separada até que resolvi dar uma caminhada para conhecer o local, não sem antes me despedir dela, pedindo que me chamasse pelo celular tão logo a consulta tivesse terminado.

Saí caminhando pelo redondezas até cansar. Resolvi entrar numa sala que parecia um quarto de hotel onde havia uma geladeira, um banheiro, uma mesa e um sofá. Deitei no sofá para descansar um pouco, mas antes de me recostar peguei um picolé que achei na geladeira. Tive a impressão de ter cochilado um pouco (um cochilo dentro de um sonho…) e acordei sobressaltado quando alguém entrou pela porta. Só então percebi que estava em uma mistura de quarto de hotel e sala de consultas. A mesa do “quarto” na verdade era uma escrivaninha e o sofá uma mesa de exames. Quem entrou na sala foi uma conhecida médica da humanização. Ficou surpresa ao me ver, e foi logo dizendo que a partir de então passaria a atender ali exclusivamente. Explicou que em seu antigo emprego era obrigada a atender 200 consultas durante a tarde (não ficou claro se era um número correto ou uma hipérbole) e que o administrador era rude, grosseiro é só pensava em dinheiro. “Bastava eu sair da sala para tomar um café e ele gritava ‘Trabalhe, doutora, levante-se daí!!!’, sem qualquer consideração ou respeito”, disse-me ela referindo-se ao seu ex-chefe crápula. No sonho cheguei a lembrar que no auge do meu consultório eu atendia 12 a 14 consultas por dia, mas nada falei para ela. Apenas a cumprimentei pela mudança e pela nova ocupação.

“E você, o que faz aqui em São Paulo?”. Comecei a explicar a ela que tinha sido convidado por uma colega para lhe auxiliar em algo, mas não cheguei a lhe dizer do que se tratava. Foi só nesse momento percebi que minha viagem até São Paulo não tinha nenhum registro na memória. “Putz, será que eu vim dirigindo? Não me lembro de ter pego um avião”. Abracei minha colega e me despedi dela, pensando em voltar para a clínica para ver se minha colega já havia terminado a consulta com a menina americana. Quando me encaminhava para lá fui parado por uma senhora simples que carregava uma sacola cheia de radiografias, que me perguntou se ali era o “hospital de fraturas”, ao que eu respondi:

“Não, aqui é a Casa de Parto”.

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Novos termos

A gente vê muito disso todos os dias. Mas tenho outros acréscimos que considero de valor:

* Gaysplaining: explicar para gays como é simples sair do armário;
* Birthsplaining: explicar para mulheres como é fácil parir sem nunca ter parido;
* Breastfeedsplaining: criticar a “pega errada” sem nunca ter amamentado;
* C-sectionsplaining: criticar a cesariana de alguém dizendo que faltou força de vontade;
* Colorsplaining: dizer que a vida de alguém é fácil só porque ele não é preto;
* Gendersplaining: debochar da dificuldade de alguém apenas porque não é mulher ou trans;
* Traumasplaining: diminuir a gravidade do trauma alheio sem ter noção do seu peso subjetivo;
* Shitsplaining: explicar suas merdas de forma a isentar-se de culpa;
* Sciencesplaining: explicar a racionalidade da ciência usando atitudes e argumentos irracionais.

That’s all for now folks….

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Joga Pedra!!

Sabe o que eu acho curioso? O Brasil inteiro está com ódio daquela moça que atacou o rapazinho que, de tanto apanhar, pediu para sair. Só vejo mensagens de ódio contra ela. Ela é a Geni nacional e, como toda a Geni, cumpre uma importante função social. “Ela serve prá apanhar, ela é boa de cuspir, maldita!!”

Enquanto existir uma pessoa que encarna a maldade e o mal do mundo nosso ego se sente aliviado. Tipo “Eu sou mau – às vezes – mas nunca fiz isso que ela fez. Ela sim é ruim de verdade”. Ufa, que alívio. Ela é também nosso Judas, e podemos malhá-lo à vontade para dar vazão ao nosso ódio e às nossas frustrações.

Por outro lado, eu não acho que ela – escondida entre os muros daquela casa – sabe do ódio que atraiu nas últimas semanas. Ela, como todos nós, não tem a capacidade de saber o quanto suas ações afetam os outros. Temos uma enorme condescendência com nossas ações e para elas sempre encontramos explicações, razões e claras justificativas, que quase sempre não fazem sentido para os outros, pois que não conseguem enxergar de forma “correta”, da maneira como nós vemos.

Tenho certeza que ao saber do que aconteceu com ela aqui fora a sua reação será o espanto e a incredulidade. “Como assim? Eu? Não pode!!!”. Talvez – apenas uma suposição – em seu íntimo ela já tenha uma pequena suspeita, mas que fica soterrada por um sistema muito eficiente de proteção emocional.

Porém, isso não se aplica à essa artista, mas vale para todos nós. Somos uma construção do olhar do outro, e sem isso é impossível saber quem realmente somos. Essa moça é um pouco de cada um de nós, mas por sorte não temos câmeras a acompanhar nossas patifarias cotidianas. Somos muito mais incorruptíveis por mediocridade do que por virtude.

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Rollerball

Quando eu era menino lembro de ir assistir uma superprodução de ficção científica do ano de 1975 estrelada por James Caan chamada “Rollerball”. No ano de 2018 (!!!) era famoso um esporte assustadoramente violento onde boa parte da diversão era a ocorrência graves ferimentos e até mortes durante os confrontos. Apesar – ou em função – da desmedida violência e os casos não raros de morte durante o jogo, o Rollerball tinha popularidade gigantesca e mundial.

A sociedade retratada era uma distopia opressora e totalitária capitalista, onde grandes corporações controlavam a vida e a morte dos cidadãos. O filme sempre me remeteu ao espetáculo mórbido dos concursos de dança de “They shoot horses, don’t they?”, filme de Sidney Pollack de 1969, onde uma sociedade arrasada pela depressão pós 1929 saciava sua necessidade de circo através do sacrifício dos dançarinos.

Curiosamente esta semana houve um feminicídio causado por uma disputa de um casal sobre futebol e hoje vi conhecidos perdendo completamente a compostura e a educação ao tratarem da derrota do seu time no mundial de clubes. Essas coisas não são coincidências.

Na sociedade distópica onde se praticava o Rollerball as pessoas arrefeciam suas angustias e sua infelicidade em um mundo caótico e violento, divertindo-se com as disputas de gladiadores sobre patins que se enfrentavam até a morte. Hoje se matam amores e desfazem amizades pelo futebol, enquanto o Big Brother serve como um catalisador de frustrações e rancores recalcados.

Por certo que se não há pão, que não falte circo. A brutalidade desses espetáculos é a medida exata do buraco gigantesco aberto pelo capitalismo no mundo atual, o qual nos sufoca e oprime.

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Mirtes

Eu tinha alguns poucos meses de formado e fazia plantões em um Pronto Socorro da cidade, o que ajudava a complementar o parco salário da residência. Durante uma madrugada de trabalho recebo um sujeito com sangramento gástrico preocupante, mas a emergência onde eu estava não tinha um clínico com experiência nesses quadros. Foi então que eu lembrei de uma querida colega, clínica geral e gastroenterologista, que estudou comigo e com quem eu tinha uma sólida relação de amizade. Seu nome era Mirtes, e lembrei que estaria de plantão em um Pronto Socorro apenas algumas quadras distante de onde eu estava. Resolvi então ligar na tentativa de transferir o caso para ela.

Quando a secretária a chamou Mirtes atendeu o telefone nitidamente assustada.

– Quem é? O que houve? O que você deseja?

Sua voz era de quem estava em pânico.

– Calma, sou eu, Ric. Desculpe o adiantado da hora, mas aconteceu algo aqui no Pronto Socorro e precisava discutir este caso com você. Desculpe se lhe acordei. Eu queria lhe enviar um paciente com quadro de hemorragia digestiva alta. Ele já foi estabilizado, mas preciso que alguém da área tome conta do caso. Pode ser?

Ela suspirou profundamente e disse:

– Ah, é você Ric, que susto. Estava cochilando e quanto me acordaram achei que algo grave tinha acontecido com a minha mãe. Ando preocupada com ela ultimamente e achei que estavam me avisando. Desculpe. Claro, pode mandar o paciente para cá, estarei aguardando.

Expliquei aos familiares outros detalhes do caso e pedi para os acompanhantes seguirem com a ambulância para o outro Pronto Socorro, apenas poucas quadras de distância de onde estávamos. Falei uma ou duas frases protocolares a mais com Mirtes e desejei a ela uma boa noite.

No dia seguinte saí do plantão e recebi o aviso de que a mãe de Mirtes havia falecido de forma abrupta e fulminante durante a madrugada, apenas uma hora depois de termos conversado.

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Epílogo

Em 1996 minha mãe visitou Paris pela última vez. Meu pai não parecia tão entusiasmado com esta viagem, mas ela sabia que seria sua última oportunidade de visitar a cidade dos seus devaneios de menina. Alguns anos depois meu pai perceberia os primeiros sinais da doença degenerativa que, por fim, a levaria. Tão logo voltaram para casa e meu pai me disse que esta havia sido a derradeira viagem, mas só muito tempo depois entendi a razão.

Desta vez meu pai resolveu alugar um pequeno apartamento onde ficaram por 3 meses. Neste período minha mãe escrevia cartas e as mandava para os filhos, netos e amigos. Era uma época anterior à internet quando a única forma de saber como estavam era aguardar as mensagens trazidas pelo carteiro.

Agora com tempo e energia, minha mãe percorreu a cidade inteira a pé. Desenhou em um mapa os trechos percorridos com meu pai e quando retornou ao Brasil me mostrou os rabiscos orgulhosa. Talvez em uma outra vida eu possa estar ao seu lado na “sua” cidade e poderei sentir a real emoção transmitida por ela.

Aqui está um dos cartões postais que ela enviou para sua amiga Marli, com quem estabeleceu uma relação de mãe para filha por muitos anos. Pode-se ver, brotando da caligrafia linda e com letras desenhadas, a emoção de estar na Paris dos seus sonhos. E quando dizia “minha cidade” ela estava realmente falando sério…

Sei que essa lembrança chegará a ela no mundo espiritual, mas não agora. Por certo que a esta hora estará olhando as vitrines da Avenue des Champs-Élysées.

A bientôt, maman…

Aqui e aqui estão dois outros posts que escrevi sobre a ligação de minha mãe com a França.

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Paris

Em 1964, alguns meses antes do golpe militar, meu pai fez uma viagem para Paris para estudar em uma Instituição Francesa de distribuição de energia, onde passaria seis meses. Na época eu tinha quatro anos de idade e os poucos flashes que me lembro são referentes às insistentes perguntas que fazia à minha vó ao estilo “falta muito para o meu pai voltar?”; seis meses para uma criança são décadas para um adulto. Esse período morando na casa da minha vó teve, por seu turno, um impacto muito profundo no resto da minha vida.

Nos anos 60 uma viagem internacional para a Europa era algo reservado aos muito ricos, ou àqueles aquinhoados com viagens a trabalho e intercâmbio, como meu pai. Quando meu pai retornou foi bombardeado por nossa curiosidade e contou a todos nós suas histórias de Paris, seu povo, sua língua, as alamedas, Turrefél, o Sena, o Louvre, e as imagens que criei desta cidade na minha mente remetiam a algo paradisíaco, um lugar que pensava jamais fosse possível conhecer.

Meu pai dava risadas diante da minha angústia. “Haverá um tempo em que visitar Paris será tão simples como ir a Florianópolis”, dizia ele. Não estava muito longe da verdade.

Minha mãe, por seu turno, desenvolveu uma espécie de “francofilia“. Passou a estudar francês, andava pela casa com um “Petit Robert” embaixo do braço estudando a cidade, as falas, as expressões. Seu sonho dourado passou ser visitar a cidade que só conhecia pelas imagens nos livros e pelos relatos do meu pai.

Depois de 10 anos meu pai foi convidado para um novo curso de atualização. Desta vez seria possível, apesar do seu salário de funcionário da Central Elétrica do Estado, levar a minha mãe para a segunda etapa da viagem, quando ele já teria terminado os estudos e contatos.

Essa foi a grande e memorável viagem romântica da minha mãe. Em 1975 ela embarcou no avião da falecida Varig para passar um mês em Paris com o meu pai, provavelmente o sonho de uma geração inteira de mulheres que dariam tudo para conhecer a “cidade luz” ao lado do amor de sua vida.

Fui ao aeroporto me despedir da minha mãe, e pedi a ela que, quando sentasse em sua poltrona, pegasse um lenço branco e nos abanasse através do vidro da janela. Foi o que ela fez, e por um estranho imbricamento de significados, significantes, emoções e percepções tudo o que eu me lembro é ver o lenço no vidro e mentalmente prometer a ela que estudaria medicina. Foi naquele instante que a decisão foi tomada.

Agora Zeza assiste “Emily vai à Paris” e me diz os lugares que quer visitar. Não creio que será possível, mas é bom saber que, como minha mãe, ela também se encanta com essa cidade.

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