Já eu penso que atitude é ter 60, se ver com 60, dançar como 60, sentir como 60, pensar como 60 e se divertir como 60. Nada é mais triste do que um sujeito que nega o sentido e a direção que a idade lhe oferece. Todas as fases da vida têm seu valor e seus fardos, e quem mente a idade só engana a si mesmo. É possível fazer tudo de acordo com sua própria história e seu próprio tempo, respeitando os limites do corpo e desfrutando a maturidade da alma.
Claudete D’Allembert, “Joye de Vivre”, Ed Printemps, pág. 135
Claudete Marie D’Allembert é uma escritora belga nascida em Bruges em 1954. Escreveu seu primeiro livro aos 12 anos de idade, um compêndio de poesias que venceu um concurso escolar. Cursou psicologia na Universidade em Bruxelas e casou-se com o renomado politico Philippe Dupont em 1977. Passou a escrever prosa e lançou seu primeiro romance em 1982, chamado “O Lento Retorno”, que tratava da volta dos refugiados da segunda guerra mundial às suas casas e vilarejos após a expulsão dos nazistas, ganhando com ele o prêmio literário da Associação Belga de Escritores. Passou a escrever colunas em diversos jornais francofônicos da Belgica, e suas principais crônicas foram resumidas neste compêndio, “Joye de Vivre”, lançado em 2014. É casada com Philippe Dupont e com ele tem três filhos, Marie, Ambroise e Michel. Mora em Bruxelas.
Endrick foi o melhor jogador brasileiro do ano passado. Antes dos 20 anos já foi vendido para o clube mais rico do planeta. E, muito provavelmente, para ser reserva de luxo numa equipe já repleta de galácticos. Isso demonstra o fosso econômico entre os clubes do sul global e os europeus. Entretanto, para mais além do que esta distância significa, está o perigo do poder econômico destruir as bases do esporte mais popular do mundo. Se não for colocada uma cláusula de fair play financeiro para a compra e para o orçamento de futebol dos clubes o poder econômico vai destruir o que ainda resta do futebol. A existência de superpotências futebolísticas, como o Real Madri, depõem contra a lisura do jogo, a paridade de armas e a disputa livre; além disso tem a possibilidade de estragar o futebol como disputa esportiva, sendo relegado apenas a um embate por quem tem mais dinheiro. Medidas semelhantes precisam ser adotadas no Brasil para evitar que os clubes milionários do eixo não fiquem ganhando campeonatos eternamente, deixando os clubes mais pobres da periferia como meros coadjuvantes. A primeira ação essencial será mudar os contratos com a TV e não permitir que a audiência seja elemento determinante, pois ela produz um efeito deletério de retroalimentação: mais torcedores -> mais visualização na TV -> mais dinheiro -> mais torcedores. Essa modelo leva rapidamente à espanholização do futebol e, no futuro, à sua morte.
Saramago está bastante errado nesta questão; uma humanidade cheia de ateus não faria diferença alguma na origem dos conflitos. Nenhuma guerra até hoje na história da humanidade ocorreu por diferenças religiosas, mesmo que muitos enxerguem disputas entre crenças naqueles que estão em conflito. Na verdade trata-se apenas uma tática diversionista para que não vejamos os interesses econômicos por trás das guerras e para convencer uma enorme massa de manobra para morrer pelos interesses financeiros de alguns. As Cruzadas foram assim. A guerra nacionalista na Irlanda, pela independência do país, foi por muito tempo chamada de guerra entre “Católicos x Protestantes”, apenas porque os irlandeses são majoritariamente católicos, e os colonizadores/invasores ingleses são protestantes. Todavia, esta foi uma guerra de independência de um país contra os colonizadores britânicos, e a religião um detalhe desimportante na origem do enfrentamento.
O mesmo ocorre agora entre “judeus x muçulmanos” na Palestina, onde uma questão de colonialismo é confundida – de forma oportunista – como sendo uma disputa religiosa. Jamais houve discordância entre estas religiões abrahâmicas a ponto de haver conflito. Fôssemos todos ateus, o que é até um pouco absurdo de pensar, se levarmos em consideração a inquietude da alma humana, e não haveria nenhuma diferença nas disputas por terra, por dominação, por influência, por recursos naturais e pelas rotas comerciais, que foram o que sempre colocou humanos em luta em toda a história da humanidade. Sou fã do Saramago – grande comuna!! – mas sua percepção da influência das religiões está equivocada.
Hoje tive que me afastar de uma ex-amiga, defensora da “nova era”, daquelas ligadas às “deusas”, ao “sagrado feminino”, à “liberdade” e contra a “opressão dos homens”. Tenho para mim que muitas destas mulheres são o contraponto feminino dos ativistas chauvinistas da extrema direita. Não todas, por certo, mas muitas delas têm o mesmo discurso excludente dos mais arraigados defensores do machismo. A briga surgiu por um texto que mostrava uma mãe e uma filha usando burcas e dizendo que estas mulheres deveriam ser resgatadas da opressão que sofrem em suas culturas. No texto a autora tratava de forma profundamente ofensiva as mulheres muçulmanas, mas com uma pegada “patronizing“, tratando-as como coitadinhas, indefesas, frágeis e submissas, mostrando um profundo desconhecimento do mundo islâmico. Como eu disse anteriormente, o interesse era mostrar que as mulheres no ocidente, apesar da opressão que sofrem, estavam protegidas por uma cultura superior e democrática. Puro suco de orientalismo.
O texto era uma colcha de retalhos de clichês islamofóbicos e etnocêntricos. Entre tantas pérolas de misandria, sobressai a frase que mais me irritou: “Todos sabem que as mulheres maduras são as legítimas condutoras da civilização”. Ou seja, a condução da civilização não será feita pelos humanos, pelos cidadãos, pelos membros de uma sociedade (de preferência os mais aptos e capazes), os políticos ou os sujeitos mais votados em eleições livres. Não… será feito por mulheres maduras. Para a autora existe um gênero que é mais competente e mais capaz de comandar uma sociedade, e com mais sabedoria. Sim, poderia ser uma cor ou uma religião, mas neste caso foi um gênero (e uma faixa etária). Acham exagero? Então façam o exercício de trocar o gênero e me digam como classificariam esta frase: “Todos sabem que os homens maduros são os legítimos condutores da civilização”. Machismo que chama não? Como devemos considerar as pessoas que acreditam que as mulheres são mais capazes do que os homens para controlar a cultura, a política e a sociedade como um todo? Se condenamos manifestação de supremacismo do gênero masculino (machismo), da cor da pele branca (racismo) e da orientação sexual heterossexual (homofobia) porque deveríamos aceitar um texto que exalta a pretensa superioridade moral de um gênero sobre outro?
“Ahhh, mas e os 80 séculos de machismo”… “isso é mimimi de macho”…. “male tears”, etc. Pois eu apenas digo que se as mulheres realmente esperam que os homens lutem contra os desníveis criados pelo modelo patriarcal devem abandonar um discurso supremacista e preconceituoso. Porém, isso não foi o pior. O que me deixou profundamente preocupado com o debate com esta senhora, foi o fato de que o texto era evidentemente uma isca para capturar um tipo de personagem clássico das redes sociais: pessoas que desejam lutar contra o patriarcado mas acreditam que o alvo são os homens – e não o sistema. Uma coisa chamou à atenção logo de início: o texto foi escrito por uma tal de “Anna Park”, um nome tão genérico quanto Maria Souza. Tudo leva a crer que seja um texto apócrifo, escrito por AI, cujo único objetivo é estimular a ideia de uma distância civilizacional entre nós e o Oriente. A disseminação desse tipo de lixo, que visa capturar mentalidades identitárias que seriam simpáticas à pauta das mulheres islâmicas, nada mais é que uma armadilha imperialista cujo objetivo é desviar a atenção do público – em especial as mulheres – do massacre e da carnificina que está sendo realizada na Palestina. Não só isso, mas também para preparar o terreno para uma futura guerra contra os “bárbaros e infiéis”.
O texto, em última análise, quer estimular a desumanização dos árabes e muçulmanos, para que futuras bombas atômicas no Oriente Médio sejam vistas como uma forma de salvar mulheres, gays, trans e vegetarianos da cultura depravada que os oprime. Não sejam ingênuos: este tipo de discurso correu livre na primavera árabe, no golpe frustro na Praça da Paz Celestial e no Irã. É por esta fresta cultural que o imperialismo vai atacar, mas não deveria causar espanto que as mulheres, gays, negros, indígenas serão – mais uma vez – massa de manobra do imperialismo, produzindo uma cortina de fumaça das verdadeiras razões das guerras que estão destruindo o planeta. “É pelo petróleo, seus tolos”, não pelo tamanho da saia, casamento gay, visibilidade negra e pronomes!!! É preciso combater frontalmente este tipo de armadilha das redes, que usam mentes frágeis e compassíveis para dourar a pílula amarga da submissão à ordem imperialista
E vejam, não me cabe tratar de questões particulares; cada um sabe a flor e a cruz que carrega, mas posso entender o que significa um choque cultural. Imagino como seria há 100 anos, antes da Terra se tornar uma aldeia global, se eu fosse me relacionar com uma mulher de uma cultura onde os relacionamentos são, como regra, abertos. Como eu me sentiria? Seria injustificável meu desconforto? Estaria ela errada? E se eu fosse visitá-la em casa e todos de sua família estivessem nus, como indígenas? Seriam eles todos depravados? Estaria errado na minha surpresa? Compreendo o quanto os atritos entre diferentes culturas podem ser complexos, mas prefiro sempre adotar uma posição de relativismo cultural. O etnocentrismo, e o olhar de censura das populações europeias aos povos colonizados, levou a muitos genocídios. Respeitar – mesmo sem concordar!!! – com as posições divergentes é sinal de maturidade, tanto de sujeitos quanto de culturas. Desta forma, é necessário respeitar todas as culturas em qualquer circunstância, o que não significa que não seja necessário debater, questionar, criticar e mesmo condenar as culturas onde a plenitude dos direitos humanos não são obedecidos.
Façamos um exercício: pode o seu corpo ser comandado por alguém além de você? É lícito que alguém esteja no controle dele, acima de sua vontade? Então, partindo desse princípio, deveríamos invadir países onde o aborto é condenado e as mulheres presas? Deveríamos atacar países onde a monogamia é a norma? Ou deveríamos esclarecer os homens e as mulheres das vantagens de um sistema mais libertário? O drama dessa questão do comportamento, em especial a sexualidade, é que ela é usada como bandeira para o imperialismo. Esse é o grande risco!!! Não é por outra razão que os movimentos identitários são mal vistos em muitos países, como na Rússia, por exemplo. Ora, os russos não tem nada contra a orientação sexual de alguém, tanto quanto nós, mas sabem que estes movimentos são utilizados como ferramentas pelo Império para desestabilizar a cultura e o poder político.
Faz pouco escrevi um texto sobre o “pinkwashing” e a nova modalidade de “vegan washing” – usados pela máquina de propaganda de Israel – para alertar sobre a tendência de criar visões identitárias sobre a guerra brutal contra os palestinos. Uma das formas de desumanização dos árabes e/ou muçulmanos é exaltar a “diversidade” do ocidente – os gays, a comida vegetariana, os transexuais, a moda – e comparar com a cultura árabe, muito mais comedida e discreta no que diz respeito às práticas e orientações sexuais de cunho pessoal. Por trás de uma pretensa defesa da liberdade de escolha das mulheres, oferecem uma visão preconceituosa e maligna do islamismo, fazendo-nos crer que as mulheres muçulmanas são oprimidas pelos seus maridos e obrigadas a usar roupas que não querem e não aceitam. Ao mesmo tempo dizem que as mulheres do ocidente, apesar de também serem oprimidas, se encontram em um estágio superior de liberdade, o que faz com que seja importante a luta de todos do ocidente para “libertar” as mulheres do oriente, impondo à região nossos valores ocidentais – superiores e democráticos.
Por certo que existe muito a ser criticado nos costumes do oriente, em especial no que diz respeito às questões relacionadas à mulher e às formas de expressão da sexualidade. Entretanto, deveria causar espanto que esta questão é sempre colocada como um gigantesco fosso entre a barbárie e a civilização, e não como visões distintas sobre o significado da exposição do corpo. De um lado o ocidente, onde até a nudez das mulheres deve ser respeitada e admirada, mas sempre com moderação. Tipo…. pode olhar, mas não muito que passa a ser assédio. Do outro lado, a “brutal opressão” contra as mulheres árabes, impedidas de mostrar o corpo para qualquer um que não seja o próprio marido. E tudo isso criando uma amálgama de povos tão distintos e distantes como a Arábia Saudita e a Indonésia, povos tão diferentes quanto um argentino e um filipino, mas analisados de forma única apenas porque professam a mesma religião. E sem falar que a burca – objeto da crítica – sequer é difundido entre as mulheres do Irã, país para onde se direciona todo o ódio colonialista no momento, mesmo não sendo árabe.
O que eu acredito ser digno de nota é o fato de que estas publicações aparecem agora, no exato momento em que o ocidente se prepara para um ataque aos países árabes e o Irã, e fazem parte de um projeto para capturar a consciência das mulheres e da opinião pública em geral para que vejam os inimigos com a necessária desumanização, elemento fundamental para todas as guerras. Não se trata de estabelecer posições geopolíticas, roubar recursos naturais, fortalecer o imperialismo, estabelecer dominância; não, é a luta do bem contra o mal, da civilização contra a barbárie, dos democratas contra os autoritários e de nós contra eles.
E vejam: não há nada de errado em criticar as questões culturais de um determinado país. Acho inclusive razoável criticar a exposição abusiva das mulheres nas ruas, praias e na publicidade do ocidente, tornando o corpo feminino um objeto de exploração pelo capitalismo. Da mesma forma que é possível criticar a obrigatoriedade dos véus islâmicos em vários países, talvez seja justo que exista uma crítica à extrema exposição das mulheres na nossa cultura. A questão, ao meu ver, se encontra nas razões que se escondem por detrás dos véus. Existe um interesse em desumanizar estes povos, tratando-os como bárbaros e inferiores, e não apenas diferentes ou com costumes patriarcais ainda arraigados. Não, o objetivo é torná-los inimigos a serem destruídos, como se as diferenças que existem entre nós fossem insuperáveis e revelassem uma essência diferente da nossa. Existe todo um planejamento – a exemplo do que o Cinema americano fez na segunda metade do século passado – para que a imagem do árabe e do muçulmano seja a de um sujeito maldoso, violento e fanático em essência, que se diverte com bombas terroristas pela manhã e com a opressão feminina à tarde. Nada disso é a expressão da verdade, e as pessoas da fé islâmica tem as mesmas dificuldades, virtudes, defeitos e dramas que qualquer outro ser humano, pois compartilham seu quinhão de humanidade com todos os humanos deste planeta.
É importante estar atento para as estratégias de desumanização do mundo árabe e islâmico que a partir de agora vão se tornar mais frequentes nas redes sociais. Por trás delas existe a mão do sionismo e do imperialismo, tentando usar este material como propaganda imperialista para esmagar quem não concorda com os valores do ocidente. Recomendo, mais uma vez, “Reel Bad Arabs“, um documentário brilhante sobre a vilificação dos povos árabes por Hollywood.
A propaganda de “lavagem cerebral” promovida pela máquina de propaganda sionista faz parte de uma antiga estratégia, concebida para manipular as emoções dos observadores pouco atentos. Esta proposta procura descrever Israel como um modelo de causas sociais – como os gays, as mulheres e a alimentação vegetariana – que tendem a ter mais apoio entre a população jovem no mundo desenvolvido. O objetivo evidente desta publicidade é fazer com que as pessoas se concentrem em como Israel é “bom” para sua população, para que estas imagens produzam uma cortina de fumaça sobre os massacres, o racismo, o genocídio, a limpeza étnica, as prisões, etc. Procuram fazer com que esqueçam (ou não percebam) que é este país foi construído sobre a desapropriação brutal e a opressão contínua dos palestinos.
Outra perspectiva é mostrar Israel como ocidental (como nós!!) e “civilizado” quando é comparado a “eles”, os malvados e atrasados árabes, o que justificaria toda essa a violência sobre eles cometida. Uma frase comum dos apoiadores de Israel ainda é “Uma Cidade na selva”, fazendo crer que Israel e sua população branca e europeia veio “trazer luz às trevas da barbárie”. Esta é uma adaptação da secular teoria da “missão civilizadora” pró-colonialista, que durante séculos justificou a invasão dos povos do sul global pelas nações imperialistas.
Lembro da cena de Pizarro chegando com seu pequeno exército e confrontando o chefe Inca Ataualpa. Nesse episódio, o frei Vicente de Valverde, que acompanhava o brutal conquistador espanhol, entregou nas mãos do chefe Inca um exemplar da Bíblia. Ataualpa, por jamais ter visto um livro em sua vida, jogou o exemplar longe, como se fosse um presente insignificante para ele, além de inútil. Ato contínuo, o padre voltou-se para Pizarro e afirmou: “Saiam, saiam Cristãos!! Invistam contra esses cães inimigos que rejeitam as coisas de Deus. O tirano jogou ao solo meu livro com as sagradas leis. Vocês não viram o que aconteceu? Por que continuar polidos e servis diante desse cachorro orgulhoso enquanto as planícies estão cheias de índios? Marchem contra ele, porque eu os absolvo!!” A partir de então começou uma batalha feroz entre os europeus – com cavalos, aço e cavalos – contra os índios que usavam leves armaduras de cobre e sem animais para compor uma cavalaria. Na carnificina que se seguiu mais de 7 mil indígenas morreram em poucas horas, e teriam sido mais não fosse o cair da noite. Todavia, como negar o direito “divino” daqueles que empunhavam o símbolo da cruz sobre a vida dos pobres selvagens?
Qual a diferença entre esta demonstração de arrogância (travestida de civilização) dos espanhóis em direção aos Incas e a forma como exaltamos a “diversidade” europeia que os israelenses apregoam? Em ambos os casos, estes valores foram usados para considerar os invadidos como populações “inferiores”, apenas por não usarem a mesma tábua de valores ocidentais que adotamos. Posteriormente essa diferença foi utilizada como justificativa para toda e qualquer barbárie, assassinato, confisco, roubo e genocídio. Afinal, matamos, torturamos, abusamos e exterminamos para salvar nossa cultura superior da ameaça dos “bárbaros”. “Marchem contra estes carnívoros e homofóbicos, porque eu os absolvo”.
A imagem mais propícia para esta propaganda, a qual resume essa mensagem tanto bizarra quanto falsa, é um casal gay fazendo uma refeição vegetariana. Os desavisados aceitam sem questionar, mas a cada dia que passa maior é o número daqueles que não aceitam mais a mentira sionista
Meu pai certa vez me contou que estava numa fila de banco e pode observar uma cena curiosa. Claro, isso ocorreu na época em que as pessoas frequentavam agências bancárias para sacar dinheiro vivo, pagar suas contas, falar com o gerente, etc. Enquanto esperava sua vez de ser atendido, ficou por alguns minutos observando as expressões faciais da moça que atendia no balcão. Claro, isso aconteceu algumas décadas antes da criação do celular. As expressões da jovem bancária variavam da quase absoluta inexpressividade até o sorriso aberto e incontido. Ele, então, se deu conta que a reação da moça era modulada pela pessoa a quem atendia: quando era um homem feio ela se mantinha sisuda, mas diante de um homem muito bonito e jovem, ela se tornava a “moça dos sorrisos”, e se tornava solícita e afável.
Por certo que sua reação era instintiva e automática. Não haveria como – e nem porquê – ser mais atenciosa ao entregar um envelope de dinheiro para um cliente esperando algo em troca. Não, sua ação não tinha interesses objetivos, era tão somente sua resposta natural a um estímulo. O estímulo, para ela, era a beleza das pessoas com quem interagia, em especial os rapazes. Meu pai repetiu a observação pelo tempo em que ficou na fila e viu o quanto era evidente essa conexão.
Diante disso discorreu sobre o quanto era vantajoso para um sujeito ser bonito. Por certo que tal valor ainda era mais importante para as mulheres, pela estrutura patriarcal que sustenta nossas sociedades. Fosse um jovem bancário e talvez a reação à beleza das clientes seria ainda mais evidente. De qualquer forma, muitas portas se abrem à beleza, e não há como duvidar disso. Num mundo visual e guiado pelo desejo, a atração sexual cumpre uma função primordial na relação que estabelecemos com os outros, mesmo que estes sentimentos corram por trás da cortina do meramente manifesto ao olhar.
Por outro lado, a beleza e muitos outros talentos – e mesmo a riqueza – também fecham portas. Lembro de uma vez que fui ao casamento de uma paciente e houve um recital, onde um tenor, com raro brilhantismo, cantou uma ária de ópera. Fiquei encantado com a apresentação e sussurrei para Zeza “Queria poder cantar assim”, ao que ela respondeu: “Se você cantasse assim, teria que deixar de lado muitas outras coisas na sua vida. Estaria preparado?”. Ela insinuava que um talento assim teria a possibilidade de eclipsar outras virtudes que porventura pudessem existir. O mesmo ocorrem com aqueles cuja fortuna, beleza e charme hipnotizam e magnetizam todos à sua volta: para que investir na cultura, no conhecimento e na sua formação pessoal se o mundo já está aos seus pés pelo seu dinheiro, sua formosura, seu charme e sensualidade?
Essas conversas do passado me tornaram um apologista da mediocridade. Hoje eu valorizo sobremaneira o sujeito mediano, porque ele não se ocupa em investir em um talento isolado. Sua condição média o faz se esforçar tanto em ajeitar seu pouco cabelo e fazer uma dieta quanto ter algum conhecimento, leitura e formação para não dizer tolices. O sujeito mediano é totipotencial; o superdotado ou milionário é manco, pois seu talento especial, via de regra, atrofia suas outras possibilidades de expressão. Por isso vemos tantos milionários arrogantes, tantas modelos incultas e esnobes e tantos homens bonitos e vazios.
O sujeito que mais aproveita a vida é o que se equilibra entre suas faltas e suas habilidades. Talvez não seja o mais útil, pois crescemos através da beleza das formas e da genialidade de alguns, mas certamente é o mais equilibrado. Se me fosse permitido escolher um perfil para uma próxima vida seria bem claro: me livrem da exuberância das formas, da beleza estonteante, da abundância obscena de riqueza, do conhecimento de uma única especialidade na infinidade dos saberes ou do carisma arrebatador. Por mais que sejam chamativos e sedutores, eles são verdadeiros fardos a carregar pela vida.
Vou contar uma história sobre cães: quando era pequeno meu vizinho tinha um cachorro peludo e brabo chamado “Fully”, que me dava muito medo. Brabo, irritante, neurótico, barulhento e traiçoeiro. Era um cachorro pequinês, e por isso nunca consegui resolver meu trauma com esta raça de cães. Um dia avançou no meu irmão menor, que era bem pequeno ainda, e tive que segurá-lo no colo para que o maldito não o mordesse. Pois quis o destino que, na primeira vez que fui à China – mais especificamente em Beijing – eu encontrasse ao lado de uma barraca na feira de rua um cachorro muito bonitinho. Era tipo o nosso caramelo, marrom, magricela, alegre e simpático, que ficava balançando a cauda sem parar, com aspecto dócil e amável. Fiquei magnetizado pelo cachorrinho, mas quando me aproximei senti um arrepio no couro cabeludo e fui tomado por um sentimento de de puro pavor. Por instantes fiquei paralisado, por certo pelo retorno do recalcado dos temores infantis.
Não, ele não me mordeu, nem ameaçou. Ficou balançando o rabo e me olhando. Porém, quando me aproximei dele me dei conta que naquela cidade, inobstante a raça… todo o cachorro é pequinês.
Em uma das esquinas mais nobres – e caras – da cidade de Porto Alegre será inaugurado um dos símbolos mais emblemáticos da sociedade do capitalismo tardio: uma farmácia.
O que se pode pensar de uma sociedade onde, em cada esquina, das mais simples às mais nobres, se ergue impávido um ponto de venda de drogas? Que sinalização isso dará aos escafandristas de um futuro distante, quando mergulharem no oceano quente dos nossos valores mesquinhos? Que dirão os paleontologistas intergaláticos ao constatar que nossa sociedade precisava se drogar para suportar a carga que a vida cotidiana propiciava? Que acharão os sábios de um futuro não tão distante sobre a nossa vinculação às soluções exógenas para os dramas da alma?
Essa epidemia mereceria uma análise mais profunda, mas parece evidente que, se acreditarmos que uma sociedade é um organismo vivo, formado de células – que somos nós – esse fato social é um sintoma local de uma enfermidade sistêmica, uma nódoa, uma mancha, um cancro. Todo tumor é a tentativa desesperada que o organismo encontra para circunscrever o mal que ameaça a totalidade da economia orgânica. As farmácias e as “academias” – outra proliferação acelerada na tessitura das cidades – são a tentativa frustra que o “organismo social” encontra para remediar o desacerto crônico que ataca a sociedade. Por um lado oferecem uma gama enorme de bengalas e lenitivos para aliviar as dores causadas por uma construção social injusta e malévola; de outro lado, as academias nos cedem o sonho de mudar as formas, imaginando que, assim modificadas, elas transformarão o conteúdo.
Por que tantos sedativos, estupefacientes, calmantes, analgésicos e remédios anti-vida? Quem saberá encontrar o amor que outrora existiu, se nas ruínas dessa civilização apenas encontrarem nossa vã tentativa de afastar a dor? Quem vai decifrar os hieróglifos sinistros da tristeza estampada nos rótulos dos remédios? Os analistas do futuro terão um rico e vasto material para entender o que nos movia, se é que sobrará algo para ser decifrado.
“Os historiadores em vão Tentarão decifrar O eco de antigos sintomas Fragmentos de receitas, queixas Mentiras, relatos e dores Vestígios de estranha civilização. Não se afobe, não Que nada é pra já Doutores serão sempre amáveis Futuros doentes, quiçá Adoecerão sem saber Com a dor que eu um dia Deixei pra você”
É curioso como a postura do esquerdismo em relação à morte do Silvio Santos cumpre o mesmo roteiro dos ataques à todas as celebridades: usam a as pequenas falhas humanas do personagem e negam a importância de sua obra. É como se dissessem: “Você errou por não ser o sujeito perfeito que existe dentro da minha cabeça, e por isso jamais será perdoado”.
As queixas são sempre ligadas às questões pessoais, aquilo que no sujeito ataca suas feridas subjetivas. O rei do futebol não foi perdoado por mulheres cujo pai igualmente não cumpriu seu papel com elas. Silvio Santos, o rei da comunicação, fazia piadas de “tiozão do pavê”, e não era aceito, mas esquecem que essa era a cultura da época. Sim, teve falhas terríveis, e tinha também os erros comuns da sua época, mas era o estereótipo do comunicador, e do vendedor impecável. Entretanto, durante décadas trouxe alegria para as camadas mais pobres da população com seu programa de variedades. Sim era oportunista, reacionário e sem escrúpulos, mas era genial na comunicação.
Menos elitismo ajudaria a entender essas personalidades e nos faria compreender porque fizeram tanto sucesso.