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Consensos

“Todos na sala discordaram dele, e mesmo assim ele se negou a reconhecer que estava errado. Fez isso porque escolheu se manter ignorante”.

Vamos ponderar que, dizer que alguém está errado apenas porque 4 ou 5 pessoas (ou mesmo 500) afirmaram o contrário e refutaram as provas apresentadas, não é um bom argumento. Não se pode aceitar que a verdade seja decidida por votação. “A Terra é plana ou esférica? Não sei, vamos votar?” ou então “Existe (ou não) aquecimento antropogênico porque a maioria dos cientistas concorda”. Isso, para a ciência séria, tem pouco valor. Quando Copérnico anunciou sua teoria sobre o heliocentrismo, muito mais do que 5 ou 6 de seus pares afirmaram que ele estava errado. Com Galileu ocorreu o mesmo, e por isso mesmo foi até julgado e condenado. Copérnico e Galileu seriam, para suas épocas, “negacionistas do geocentrismo”?

Não apenas eles, este é um mal que acomete a quase todos os gênios da humanidade: o isolamento e a incompreensão. Poderia citar milhares de outros exemplos de pensadores como Freud, Espinoza, Nietzsche, Marx, entre tantos que sofreram rechaço por parte da imensa maioria de seus colegas em seu tempo, mas que apesar da solidão produzida por suas ideias, carregavam a verdade em suas ideias. Isso prova a todos nós o quanto a verdade não é democrática; em verdade é poderíamos dizer que ela é “aristocrática” e “meritocrática”. Nietzsche, inclusive, afirmava que o verdadeiro gênio só teria sua obra reconhecida um século após a sua morte. Em vida, seria fatalmente maltratado, desprezado e incompreendido. Ele foi a prova de suas próprias ideias.

Certa vez Albert Einstein recebeu um manifesto assinado por inúmeros cientistas reunidos em um congresso, o qual, de maneira enfática, refutava uma de suas teses. Quando viu o número de assinaturas, ele comentou: “Meu Deus, mas para que tantos? Bastaria apenas um, munido de bons argumentos”. Ou seja: o número de pessoas que discorda de você é irrelevante; os argumentos que ela traz ao debate é que são os elementos essenciais.

Além disso, as pessoas não “escolhem se manter ignorantes”; elas apenas não conseguem enxergar o mundo por uma perspectiva diversa daquela que lhes oferece uma explicação segura e confortável do mundo. O medo delas é trocar aquilo que lhes garante uma compreensão mais coerente do universo e que lhes oferece mais segurança (que pode ser qualquer coisa, como a crença em Deus ou a descrença num princípio criador), por um salto no escuro, que lhes deixa com o medo e as incertezas de um novo paradigma.

Não tenha medo de carregar uma verdade solitariamente, mesmo quando muitos a contestam. Esteja sempre aberto a mudar sua posição e transformar o modo como enxerga o mundo, mas não se deixe atemorizar pelas falsas unanimidades. A verdade não é amiga da popularidade; muitas verdades que hoje nos abrem portas para o conhecimento foram, no seu tempo de despertar, tratadas como anátemas perigosos ou tolices inaceitáveis. 
 

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Antigamente

Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?

Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.

Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.

A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?

Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.

PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.

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Inferno

É perfeitamete justo chamar de “inferno” qualquer época da vida. Infância, adolescência, casamento, separação, viuvez, etc. Existem processos pelos quais não passei – e nem pretendo – mas é possível exercitar a empatia para captar sua beleza e seus desafios. Um deles é o puerpério. Por certo que os pais também passam por um processo transformativo, mas em nada se compara ao turbilhão psíquico, social, hormonal e espiritual que acontece com as recém-mães. Meu pai sempre dizia que “onde há dificuldade há grandeza”, e isso se aplica a essa etapa da vida.

Eu fiz o Caminho de Santiago há 6 anos e poderia, dependendo do interesse e do contexto, chamá-lo de “inferno” ou “paraíso”. A forma como nos referimos a esses processos diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre os eventos em si. Podemos olhar para as bolhas nos pés, as dores no joelho, as costas doloridas, as noites mal dormidas, os músculos esmigalhados e o cansaço e descrever como o reino de Hades. Por outro lado podemos olhar para as paisagens, os amigos, os companheiros de jornada, os novos parceiros, a vitória sobre os próprios limites e depois lembrar desta travessia como um dos momentos mais preciosos da vida. Somos nós quem determinamos…

Da mesma forma você pode olhar para o puerpério e dizer que se trata de um período infernal pelas inseguranças, pelas noites mal dormidas, pela angústia de não ser uma boa mãe, pelo medo de não cumprir as expectativas, pelo corpo desengonçado, pelo bebê sem limites e pelo seu choro sem hora e sem resposta. Por outro lado é possível olhar para as semanas que se seguem ao parto como o momento mais grandioso da vida de uma mulher, pela comunhão de corpos e almas, pela tarefa milenarmente construída da maternagem, pelas vitórias sobre seus limites e pela compreensão da grandeza da missão. É uma escolha.

Isso não significa negar as dificuldades e a complexidade dessa fase, mas apenas enxergá-las dentro de um contexto. Todas as funções maternas são encenadas em microcosmo no puerpério: paciência, confiança, resiliência, dedicação, e tantas outras, por isso ele é tão valioso na tarefa que ali se inicia e só termina com a morte física. Sim, pode ser inferno, mas pode ser paraíso se assim o desejarmos. Se a maior tarefa de uma mulher é ensinar seu filho a amar, e se essa pedagogia se inicia nos primeiros instantes em que ele desce à terra, seria injusto que a função mais nobre do feminino fosse descrita de forma tão restritiva, comparando-a à passagem pelo reino da solidão e do medo. Ela é muito mais do que isso; para além do que se pode expressar em palavras.

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Crenças

A crença em uma vida futura não é mesmo uma questão de escolha. Imaginar ser possível educar alguém para aderir ao ateísmo ou às crenças de sobrevivência de um princípio espiritual é ilusório. Acreditar em uma vida que não se esgota na matéria densa é um sentimento, não uma construção racional; sua negação também. Assim, as pesquisas em um sentido ou outro apenas reforçam ou refutam estas crenças para os sujeitos já conectados a estas perspectivas. Atacar os polos deste matiz – os crentes e os niilistas – tratando-os como estúpidos ou ingênuos é injusto e inadequado e, para mim, tem o mesmo sentido de criticar a orientação sexual de alguém usando argumentos racionais. Resta o fato de que a postura agnóstica é a mais honesta de todas: não sei os mistérios do mundo e da vida, do infinito e da morte. Portanto, não é justo ser definitivo sobre o que desconhecemos e muito menos ser peremptório sobre a imensidão do que ignoramos.

Rev. Augustus Margolyes, “Das Incertezas Inóspitas”, Ed. Paulines, pág. 135

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Escolhi você…

“Então parça, se eu lhe escolhi é porque eu quero você, não por que eu precise de você”…

Eu entendo a mensagem, mas se uma mulher me dissesse isso eu virava as costas e saía caminhando. Fica claro que essa pessoa me trata como uma coisa útil, o que pode mudar a qualquer momento. Quando ela diz “eu te escolhi” deixa claro que a minha opinião ou o meu desejo não contam muito – ou nada. Eu fui o “escolhido”, e não alguém que fez – também – uma escolha.

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Homossexualidade

Muito se tem debatido nas últimas décadas a respeito dos condicionantes para orientações ou mesmo para a identidade sexual nas sociedades humanas. As explicações variam daquelas vinculadas à biologia e a exposição a substâncias intrauterinas, passando pelas teorias comportamentais da psicanálise ou mesmo a ausência total de qualquer explicação, diante da ausência de condicionantes claros e evidenciáveis. Ainda resta muito a ser descoberto especial no que se refere à sexualidade humana e tantas outras questões imateriais que nos cercam.

Em relação às definições de homossexualidade (ou heterossexualidade) minha posição continua inalterada: só consigo entender a “origem” dessas orientações inseridas na constituição do sujeito, na sua subjetividade, na sua unicidade e na sua delicada estrutura psíquica, indissociável de sua história. O que a impressão simplista nos informa é frequentemente errôneo, e essas simplificações nos fazem perder a dimensão complexa do fenômeno. Para a questão complexa do desejo sexual, só posso admitir uma resposta igualmente complexa e que tem a ver com a intrincada construção de nossa personalidade.

Lembro bem de uma paciente que atendi há muitos anos e que me procurou por questões ginecológicas simples. Separada, tinha uma filha adolescente. Perguntei sobre anticoncepção e ela me contou não usar nenhum método porque tinha uma parceira; estava namorando outra mulher. Ok, nada de mais simples do que atender uma pessoa homossexual, mas o que ela me disse depois foi interessante.

Relatou que jamais se interessou por mulheres durante toda sua vida, mas tão somente por aquela mulher específica. E se viesse a se separar dela (o que achava que ia ocorrer em breve) não se imaginava procurando outra mulher para namorar. Portanto, a construção da sua “homossexualidade” – ou bissexualidade – era absolutamente única, pessoal e específica, e qualquer rótulo que se colocasse sobre ela seria limitante e não contemplaria a verdadeira dimensão do seu desejo.

Uma resposta, que me foi oferecida por uma amiga psicanalista, seria que “sua resposta poderia ser tão somente uma justificativa pra se permitir viver um amor lésbico que ela, de outra forma, não se permitiria viver. Isso porque ela acha que sabe de si mesma, acredita se conhecer, tem uma imagem e uma história de si mas, de repente, se encontra amando alguém que não se encaixa nessa narrativa. Aí cria-se um problema. Dizer “só ela” abre uma possibilidade sem, necessariamente, arranhar essa imagem de si, essa narrativa construída de si mesmo, o que ela pensa e aceita ser. Quase um passe, uma carta que a gente mostra, uma autorização: olha, é isso, é só isso, não precisa se preocupar.”

Claro que pode ser esta a resposta, mas um olhar exterior teria dificuldade para interpretá-la ou classificá-la sem embarcar numa viagem ao seu inconsciente e seus significantes para descobrir este espaço único e subjetivo que ela construiu para o seu desejo. Qualquer interpretação que não percorra esse caminho único será pura selvageria.

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Paris

Em 1964, alguns meses antes do golpe militar, meu pai fez uma viagem para Paris para estudar em uma Instituição Francesa de distribuição de energia, onde passaria seis meses. Na época eu tinha quatro anos de idade e os poucos flashes que me lembro são referentes às insistentes perguntas que fazia à minha vó ao estilo “falta muito para o meu pai voltar?”; seis meses para uma criança são décadas para um adulto. Esse período morando na casa da minha vó teve, por seu turno, um impacto muito profundo no resto da minha vida.

Nos anos 60 uma viagem internacional para a Europa era algo reservado aos muito ricos, ou àqueles aquinhoados com viagens a trabalho e intercâmbio, como meu pai. Quando meu pai retornou foi bombardeado por nossa curiosidade e contou a todos nós suas histórias de Paris, seu povo, sua língua, as alamedas, Turrefél, o Sena, o Louvre, e as imagens que criei desta cidade na minha mente remetiam a algo paradisíaco, um lugar que pensava jamais fosse possível conhecer.

Meu pai dava risadas diante da minha angústia. “Haverá um tempo em que visitar Paris será tão simples como ir a Florianópolis”, dizia ele. Não estava muito longe da verdade.

Minha mãe, por seu turno, desenvolveu uma espécie de “francofilia“. Passou a estudar francês, andava pela casa com um “Petit Robert” embaixo do braço estudando a cidade, as falas, as expressões. Seu sonho dourado passou ser visitar a cidade que só conhecia pelas imagens nos livros e pelos relatos do meu pai.

Depois de 10 anos meu pai foi convidado para um novo curso de atualização. Desta vez seria possível, apesar do seu salário de funcionário da Central Elétrica do Estado, levar a minha mãe para a segunda etapa da viagem, quando ele já teria terminado os estudos e contatos.

Essa foi a grande e memorável viagem romântica da minha mãe. Em 1975 ela embarcou no avião da falecida Varig para passar um mês em Paris com o meu pai, provavelmente o sonho de uma geração inteira de mulheres que dariam tudo para conhecer a “cidade luz” ao lado do amor de sua vida.

Fui ao aeroporto me despedir da minha mãe, e pedi a ela que, quando sentasse em sua poltrona, pegasse um lenço branco e nos abanasse através do vidro da janela. Foi o que ela fez, e por um estranho imbricamento de significados, significantes, emoções e percepções tudo o que eu me lembro é ver o lenço no vidro e mentalmente prometer a ela que estudaria medicina. Foi naquele instante que a decisão foi tomada.

Agora Zeza assiste “Emily vai à Paris” e me diz os lugares que quer visitar. Não creio que será possível, mas é bom saber que, como minha mãe, ela também se encanta com essa cidade.

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Pedagogias

  • Ele chega cabisbaixo, choramingando e visivelmente irritado.
  • O Pedro está me chamando de burro!!
  • Saia de perto do seu irmão, António.
  • Mas ele me chamou de burro e feio…
  • Você não deve brincar com ele agora. Qual sua dúvida?
  • Mas eu não quero que ele me chame assim!!!

Nesta cena banal e corriqueira se encerra uma escolha essencial entre duas abordagens pedagógicas, e quem já teve filhos pequenos poderá entender bem qual é. Pedro, nessa história é o protagonista, mesmo fora da cena. Ele inseriu o fato novo, a acusação, a provocação. Antonio reage e se coloca na defensiva. Procura um juiz para interceder. Existem duas possibilidades. Uma exógena e outra endógena.

A opção “exógena” faz você sair do que está fazendo e tratar a acusação em si. Chama Pedro, lhe dá um “pito”, diz para não chamar seu irmão assim, coloca-o de castigo. Todavia, esta estratégia exalta o fato, valoriza-o, empodera a acusação e aceita o protagonismo de Pedro. A tentação de “inticar” com o irmão, fazer tudo de novo e voltar a ser o centro das atenções é, via de regra, irresistível. Pedro, depois de tanta exaltação, voltará a ser protagonista

A opção “endógena” é muito mais difícil, complexa e custosa, e só pode ser feita quando as crianças já têm algum tipo de maturidade. Ela se baseia em refutar a acusação, desmerecer a ofensa e retirar Pedro de sua posição de protagonismo. Ao invés de uma atitude protetiva para António – que o coloca na confortável posição de vítima – a abordagem será desmerecer as acusações, tratando-as como sendo carentes de sentido. Com isso, Pedro deixa de ser o centro das atenções, sua fala perde valor e sentido e o processo de resolução vai ocorrer endogenamente, no reforço da auto estima de António.

  • O Pedro está me chamando de burro
  • Você não é burro, António.
  • Mas ele me chamou de burro e feio.
  • Você não é nenhum dos dois. É lindo e esperto. Qual sua dúvida sobre isso?
  • Mas eu não quero que ele me chame assim!!
  • E você vai dar atenção ao que os outros dizem ou vai acreditar no que você mesmo sabe?

A questão é que esta matriz de reação se mantém durante toda a vida, em especial durante a vida adulta, quando continuamos nos posicionando diante dessas escolhas. Por certo que o modelo exógeno é o único que temos quando somos muito pequenos e precisamos da proteção alheia. Já o modelo endógeno se inicia quando somos capazes de reforçar nossas próprias capacidades ao invés de depender do suporte dos outros.

Quando vejo reações defensivas aos ataques do “outro lado”, seja ele qual for, meu primeiro pensamento é “humm, sentiu o golpe“. A defesa de si mesmo, ou de suas ideias, diante de qualquer ataque demonstra essencialmente fragilidade e falta de confiança. É o menino que corre para a mãe ou o pai quando chamado de “feio”. O que ele pede é um abraço e alguém que lhe afirme suas qualidades, quando ele mesmo se sente impotente para isso isso.

Assim, o modelo “exógeno” funcionará em curto prazo e para quem está – ou é – muito frágil, mas o modelo “endógeno” será sempre mais efetivo para estabelecer o crescimento e a autoestima, seja de sujeitos, ideias, projetos ou revoluções.

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Icebergs

Esse assunto se situa no ponto de choque entre dois gigantescos icebergs: tutela e autonomia. A mulher durante a gestação percebe estas duas massas gigantescas se aproximando de forma ameaçante e precisa decidir onde se situar. Ela pode se agarrar a um dos icebergs, mas será inexoravelmente cobrada por ter feito esta opção.

Cada um de nós estabelece um limite na batalha entre a alienação do seu corpo ao profissional e a plena autonomia, de acordo com suas histórias, vivências, estudos e sua topografia na hierarquia de poderes. Entretanto, para esta que sofre no corpo o drama da escolha esta é uma decisão muito mais complexa.

Não sei se acho justo, adequado, válido ou correto quando vejo uma mulher sem pré Natal chegar ao terceiro trimestre, mas as poucas que vi na minha vida traziam no olhar uma pergunta que eu não sabia responder.

Sabe… como olhar para um ato de extrema coragem, mas que, apesar de não concordamos, nos faz questionar nossos valores e nossas certezas.

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Eduardo e Mônica

Afinal, quem queria impressionar quem? O jovem garoto simpático ou a menina intelectual? A questão colocada por algumas pessoas é: por que ela, tão inteligente e profunda, se interessaria pelo Eduardinho – que ainda jogava botão com o avô e vivia no esquema escola-cinema-clube-televisão?

Ora, porque é assim que funciona a vida. Cultura e erudição não são as únicas moedas de troca no jogo da sedução. Ela podia gostar desses autores e artistas e ser uma menina insegura e carente. Quantas meninas cultas se apaixonam por caras cuja maior virtude é cuidar do seu próprio gato? Aliás, até eu me apaixonaria por um cara que joga botão com seu avô.
Ou será que ninguém aqui conheceu em sua vida um rapaz limitado em seus conhecimentos e estudos mas que transborda autoconfiança e charme? E quantas mulheres brilhantes acabam se envolvendo com canalhas, broncos ignorantes e superficiais tão somente porque lhes falta amor próprio?

De outra forma, quantos homens igualmente capazes, competentes e com profundidade se envolvem com mulheres egoístas e interesseiras que possuem como patrimônio apenas curvas, bunda e sexo exuberante?

A discussão sobre quem estava tentando impressionar é como o debate Capitu – traiu ou não? Creio que qualquer das opções é válida, só o que não se pode é esterilizar o desejo tornando-o objetivo e racional. Dizer que era Eduardo, ou Mônica, diz mais de quem fala do que da realidade desse romance.

Como diria Freud, se você explica o amor é porque não é. Se você sabe – conscientemente – porque ama alguém é porque há razões para esse afeto, então não pode ser amor, um afeto irracional. O desejo não pode ser tratado de forma racional, pois que ele habita em estratos muito profundos e primitivos de nossa estrutura psíquica.

Essa escolha não é racional. Em verdade, na escolha de um novo amor, nada mais justo que sejam repetidos nossos objetos de desejo, já que a forma que os constrói é a mesma. Sim, o amor da sua vida pode ser um profundo canalha, porque estas escolhas dormem nos porões obscuros e úmidos do nosso inconsciente.

Parem de tentar simplificar o desejo humano, que é algo complexo e misterioso.

Existem argumentos bem interessantes para todos os lados. A premissa inicial é de que os caminhos do desejo não podem ser racionalizados, como o fez a menina com círculo vermelho que está na imagem acima. Ora, uma moça intelectualizada, ou erudita, pode muito bem pendurar seu fantasma num adolescente que estava recém saindo aos trancos e barrancos da infância. Eu mesmo tenho uma amiga linda, maravilhosa, culta, inteligente que namorava um sujeito que trabalhava como agricultor, a quem ela chamava de “homem das cavernas”, um neanderthal. Mas, como poderia ser possível alguém criticar essa fantasia e esse desejo que era estranho apenas na superfície?

E é claro que podemos, sim, imaginar na letra do Renato múltiplas interpretações que, como eu já disse, falam muito mais de nós mesmos do que da letra, de Renato ou da vida. Uma letra, como qualquer obra artística, é fruto de seu tempo e dos valores de então, e cabe a nós função antropofágica de “comer Renato, digerir sua letra e expelir nossa interpretação”, junto com nossos próprios sucos gástricos.

Temos todos o direito de fazer uma interpretação “não problematizadora”, mas acho interessante que a gente queira problematizar ao limite esse encontro entre dois jovens em uma festa nos anos 80. Afinal, o que é “problematizar” senão retirar da superfície tudo aquilo que seduz o olhar mais falseia o conteúdo?

Acho muito interessante todas as perspectivas nesse caso assim como em Capitu. Parece que todos tem a resposta definitiva, a mais certeira percepção. E até nos convencemos, mas esta certeza dura até que alguém traga outra série de argumentos igualmente bons e convincentes. Por isso é que esses truques da literatura (no caso de Machado de Assis proposital, no de Renato creio que foi totalmente inconsciente) a engrandecem e produzem aquilo que existe de mais sagrado para um escritor: fazer seu leitor pensar junto, provocá-lo e colocá-lo contra a parede para, só então, revelar-se.

É incrível o quanto se coloca de paixão nestes argumentos… e também muito divertido ver o quanto uma estrofe pode gerar tanta profundidade.

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