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Cesarianas

“Mulheres que fazem cesarianas são muito corajosas. Afinal, são sete as camadas de tecido cortadas. Vocês devem se orgulhar de suas cirurgias”.

Sempre que vejo este tipo de publicação eu fico confuso. Será mais uma peça de exaltação da tecnologia como forma superior de lidar com os desafios do parto? Será o elogio à escolha por uma grande cirurgia, mesmo quando temos milhares de estudos comprovando ser a via natural a melhor e mais segura forma de trazer um bebê à luz?

Não, as cirurgias não são feitas porque as pacientes são corajosas; esta é uma leitura muito errada do que realmente ocorre. Pelo contrário: para alcançarmos taxas obscenas de cesarianas, as mulheres são assustadas, apavoradas e reduzidas aos seus temores mais primitivos até o ponto em que são obrigadas a ceder à pressão do cirurgião. A estrada do abuso de cesarianas é pavimentada com medo e pintada com as tintas do desmerecimento das qualidades inatas de gestar e parir.

Não há como considerar as mulheres levadas à cirurgia como “corajosas”, porque sequer são adequadamente informadas dos múltiplos riscos associados a esta operação. Se tivessem pleno conhecimento dos riscos e ainda assim escolhessem a cirurgia, talvez pudessem ser chamadas de “corajosas”, mas ainda seria necessário acrescentar outro adjetivo: “temerárias”. Mulheres devidamente informadas sobre o que significa privar o bebê de um nascimento natural conhecem os riscos que vão correr e entendem as múltiplas vantagens do parto fisiológico. Estas dificilmente são convencidas a abandonar a via natural de nascimento.

Em várias partes do mundo, e no Brasil em especial, mulheres se submetem a um número abusivo de cesarianas porque, inegavelmente, esta cirurgia traz inúmeros benefícios…. mas para médicos e hospitais, e não para mães e bebês. Nas cesarianas o hospital organiza com mais eficiência os horários dos procedimentos e as enfermeiras controlam melhor o trabalho a ser realizado. Os médicos não perdem seu descanso, nem suas férias, sequer as madrugadas ou fins de semana; muito menos as cesarianas irão atrapalhar seus horários de consultório. Além disso, a cesariana confere aos profissionais blindagem jurídica – não importa quantas cesarianas faça e nem o resultado trágico delas, o cirurgião sempre se protegerá atrás do escudo do “imperativo tecnológico”. A indústria de drogas e equipamentos lucra – e muito – com o excesso de cesarianas; os anestesista e auxiliares cirúrgicos também ganham seu quinhão na “roda da fortuna” das cirurgias sem indicação. A mãe, desempoderada e sem voz, ganha a ilusão de que fez o melhor possível. Afinal, que mais poderia ela fazer, além de alienar seu parto a “quem entende”?

Um dos resultados práticos da aventura intervencionista na assistência ao parto é a crescente incompetência dos obstetras na assistência ao parto. Habilidades de outrora, como as técnicas para atenção ao parto pélvico (bebê sentado), parto gemelar (de gêmeos), partos longos ou distócias de vários tipos estão sendo perdidas. Estas capacidades foram construídas durante milênios de aprimoramento por meio da observação, mas agora estão sendo aniquiladas pelo atalho cirúrgico – sem que existam claros benefícios para o binômio mãebebê. Na verdade, a assistência ao parto no contexto ocidental mais se assemelha a um teatro onde o espetáculo coloca em risco os figurantes (mães e bebês) para que os atores principais (equipe de assistência) fiquem seguros; só a saúde dos pacientes caminha na corda bamba.

A solução? Somente uma revolução do parto liderada pelas próprias mulheres e com a ajuda substancial de médicos, enfermeiras obstetras e obstetrizes, e o suporte luxuoso das doulas e da população em geral – homens e mulheres. Enquanto o parto for controlado por cirurgiões, o nascimento humano será um evento cirúrgico, que apenas ocasionalmente será fisiológico. O parto controlado por parteiras profissionais será fisiológico, humanizado, centrado na mulher e suas necessidades, e apenas ocasionalmente será cirúrgico. Esta é a escolha que as sociedades vão precisar fazer. O abuso de cesarianas não é um ato de coragem ou bravura; é tão somente desinformação de um lado e oportunismo do outro. E a solução para este dilema não está na conciliação de poderes, mas na tomada de consciência por parte das mulheres e na ação política de todos os atores sociais relacionados ao nascimento seguro.

(E, vamos lembrar apenas, mais uma vez, que este texto fala de cesarianas sem uma clara indicação, não a sua… que, todos sabemos, foi muito necessária.)

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Racismo e capitalismo

No universo literário, o que conta é o quanto o autor vai gerar de lucro para a empresa. Ponto. O resto é muito menos importante. Não acredito quer qualquer autor seja desmerecido apenas por ser “negro”, gay, asiático, trans, mulher, etc. Estes escritores são desmerecidos quando suas vendas não são do agrado de quem enxerga no livro a possibilidade de gerar dividendos; essa é a regra do sistema no qual estamos inseridos. Se isso não fosse verdade, jogadores de futebol, sambistas, porta-bandeiras, e demais posições sociais marcadamente ocupadas por negros seriam objeto de discriminação. O mesmo com estilistas de moda e cabeleireiros no mundo gay. Por que aqui o racismo e a homofobia não funcionam? Conseguem imaginar no Brasil a torcida de um clube de futebol se manifestando contra a contratação de um ídolo de pele escura?

Na verdade, estes personagens – jogadores, mulheres, cabeleireiros, sambistas – que pertencem às “minorias” até são discriminados nos campos em que atuam, mas com uma forma positiva de discriminação – até as mulheres. Em profissões historicamente femininas, como educadoras e enfermeiras, mulheres têm clara vantagem sobre os homens nas escolhas. Quando eu advoguei em nome do direito de homens serem “doulas” (auxiliares de mulheres durante o parto) fui duramente atacado por identitárias que acreditavam que o parto e seus cuidados eram um terreno restrito às mulheres. Sim, e fui cancelado duramente por falar em nome da …. diversidade. Desta forma, não acredito num racismo que se sobreponha os cânones do capitalismo; não faz sentido e não se observa na realidade à nossa volta. Por isso eu digo: o racismo – que realmente existe e machuca – é o filho dileto da sociedade de classes e da propriedade privada. Qualquer tentativa de atacar o racismo com mensagens moralistas ao estilo “somos todos iguais” se choca com o real da economia, onde as populações negras são condenadas a viver em uma sociedade que as excluiu em função da escravidão a que foram submetidas a algumas poucas décadas.

Vejo como justa a reclamação sobre as “panelas”, mas permitam que eu diga que não há absolutamente nada no universo da literatura que não exista em qualquer outro campo de ação humana. Durante mais de 40 anos transitei no ambiente da Medicina e posso lhe afirmar que pouca coisa é tão cheia de favorecimentos injustos e até ilícitos quanto as posições de poder conquistadas pelos médicos através dos hospitais, clínicas, Academia, corporações médicas e suas associações. Sempre que eu vejo uma pessoa do povo elogiando um profissional da Medicina dizendo ser ele “um grande médico” pode ter certeza que o doutor foi colocado nessa posição no imaginário popular por forças bastante distantes da qualidade do seu trabalho e dos resultados de sua ação. Como qualquer outra atividade humana, a rede de contatos, as facilidades de acesso, o sobrenome, os recursos financeiros, a sedução e as portas que são deixadas abertas são os mais valiosos elementos para garantir o sucesso; o talento pessoal, apesar de não ser desprezível, ocupa uma posição bastante tímida nesse contexto.

Por fim, acredito que a reclamação contra os preconceitos faz sentido; entretanto, a ideia de que existem preconceitos raciais, de gênero, de orientação sexual ou de origem que sejam tão ou mais importantes que o poder financeiro – a ponto de se tornarem superiores aos mandamentos primeiros do capitalismo – é um exagero. Nenhum editor recusaria as “Memórias do Neymar” ou se negaria a produzir um filme sobre “Liberace” baseado em suas posturas racistas ou homofóbicas. O que manda em nossa sociedade ainda é o dinheiro, e aqueles que o controlam. Inobstante carregarem seus preconceitos pessoais, se preocupam primeiramente em manter seus bolsos recheados, mesmo que às custas de explorar a arte e o talento de mulheres, negros, gays, etc.

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Substâncias Mágicas

Estou iniciando o terço final de um processo respiratório agudo. “Grips”, como se diz. Estou saindo da fase “astênica” e entrando na fase “estênica”. A primeira se refere ao quadro inflamatório inicial, com tosse seca, febre, suores, mal estar, inapetência, fraqueza, cansaço, sono etc. Já a segunda se caracteriza como a fase resolutiva: desaparecem a febre e surgem os fenômenos catarrais, com secreção brônquica, febre ausente, reaparecendo lentamente o vigor físico e a fome. Comentei o fato com algumas amigas da Internet que não são da área médica e todas me fizeram as mesmas perguntas, com algumas minúsculas variações:

– Você já foi ao médico? O que está tomando?

Minha resposta para elas foi:

–  Estas doenças de tipo viral tem seu ciclo bem característico. Duram de 5 a 7 dias. Ou seja, usando ou não drogas, tomando água benta, chá de erva doce ou antibiótico, elas irão embora em uma semana. Acho melhor não usar droga nenhuma que interfira no ajuste autonômico do corpo, obedecendo seus ditames. Sono? Durma. Cansaço? Descanse. Sem fome? Não coma. Sede? Beba água, etc. Acredito que as medicações para melhorar sintomas podem ser úteis, mas somente se eles forem insuportáveis. Penso mesmo que os efeitos adversos dessas drogas são importantes demais para serem negligenciados.

A relação entre medicina e drogas é recente e se incrementou muito no início do século passado com o “Flexner Report” de John Rockefeller e a criação da medicina orientada para a Indústria Farmacêutica nascente. Além disso, ir ao médico é sempre um risco; os médicos hoje em dia, em especial nos atendimentos de urgência, prescrevem sob pressão: de um lado a pressão de seus pares e da indústria de remédios, e do outro lado dos próprios pacientes, que exigem que algo seja prescrito, pois depositam nas drogas a solução mágica para os seus males, o que raramente é o caso. Via de regra não conseguem sair da consulta apenas com conselhos e orientações: é preciso que haja receitas e exames para sacramentar o ato médico. Pergunto: sendo evidente que estou com um quadro respiratório alto (IVAS) o que poderia um médico dizer que eu já não sei? Que poderia ele me prescrever que eu aceitaria tomar? Que conselho útil poderia me dar que eu já não esteja fazendo? Que diferença essa consulta faria no transcurso dessa doença aguda?

Sim, eu me conheço e sei como estas doenças se comportam em mim. Sei também que se o quadro fosse de piora crescente não evitaria uma visita à emergência; porém, não é o caso. Sendo absolutamente racional e usando sempre o bom senso, faço o mesmo há 45 anos: fico em casa, curto a minha gripe, escrevo e leio entre espirros e paroxismos de tosse, fico com a cara inchada, perco litros de catarro pelo nariz, acumulo dores pelo corpo, fico descadeirado e espero pacientemente a tempestade passar. Esse é um excelente exercício para o sistema imunológico, e muito positivo para a economia do corpo. Abster-se das drogas – quando possível – sempre me pareceu uma atitude lúcida.

A réplica de todas teve o mesmo teor, usando quase as mesmas frases:

–  Você não pode ser tão radical. Muitos remédios ajudam pessoas. Deixar de tomar remédio é um erro. Para que esse fanatismo? Tem vergonha de pedir ajuda? Isso não passa de arrogância.

Eu respondi a elas que essa conversa era às avessas. Como era possível que alguém que transitou 40 anos pela Medicina pudesse defender a abstenção das drogas sempre que possível enquanto uma paciente defendia seu uso indiscriminado? Expliquei que não havia nada de “fanatismo” em uma postura pessoal. Não sinto necessidade de usar, por que deveria tomar? Exatamente por conhecer as drogas e seus dilemas prefiro não usá-las, a não ser que seus benefícios ultrapassem – em muito – seus potenciais malefícios.

– Não vou discutir com você. Esta é uma conversa estéril; eu tenho minha opinião e você está encastelado na sua.

Foi o que disse uma delas, evidentemente contrariada e, ao que tudo indica, ofendida com minha postura de evitar o uso de remédios. Foi esta reação indignada que me pareceu digna de um comentário. Houve também o comentário de uma médica: “Sou médica há 36 anos mas minha postura é bem diferente em relação a sua; entretanto tenho a tranquilidade de opinar e não colocar de modo tão enfático posições no mínimo questionáveis. Espero que fiques bem e em paz!! Boa noite!!”

Os médicos também não suportam que se questione o uso irrestrito de drogas. Pergunto: por que questionar o “Império das Drogas” os deixa tão ofendidos, ressentidos e até magoados? É como se o seu conhecimento sobre “qual remédio usar para o quê” fosse o elemento primordial de sua arte, o elemento que sustenta seu significado e importância social; retire-se isso e o seu valor desaparece. Eu as vezes penso que na hecatombe nuclear que se avizinha os médicos – já sem as drogas e sem os hospitais – se tornarão inúteis, pois a perspectiva mais ampla da “ars cvrandi” deu lugar à iatroquimica, deixando pouco espaço para a empatia, o acolhimento e o acoselhamento. Os médicos deixaram de ser sábios para se tornarem técnicos e especialistas. Terá sido uma boa troca?

Outra questão me deixou intrigado: por que essa vinculação de “doença ——> drogas químicas” ficou tão naturalizada a ponto de não se conceber um transtorno clínico qualquer sem que ela seja preponderante? Como pudemos criar uma ligação tão violenta entre quadros sintomáticos agudos (dos quais 95% tem resolução espontânea em poucos dias!!) e a necessidade – ou até obrigação!!! – de usar produtos da indústria trilionária de medicamentos?

Por outro lado, sei bem como é o outro lado da moeda: experimente dizer para um paciente “não faça nada, não precisa usar nenhuma medicação” para ver a reação. Muito lançam um olhar de fúria, como a dizer: “paguei, quero receita!!”. Entretanto, em muitas oportunidades esta é a frase mais justa e ética a dizer. Como educar as pessoas a pensar racionalmente sobre estas alternativas se somos bombardeados diuturnamente com a ideia de que “a verdade está lá fora”? Ou seja, para o capitalismo, a cura dos sofrimentos (só) pode ser alcançada através de algo que você acrescenta ao seu corpo, algo que lhe falta, do qual está carente. Seria uma droga, que concentra o poder de lhe devolver a paz perdida, a resposta que aguardamos? Não creio, mas para mudar esse roteiro é necessário, por parte do profissional, muita firmeza, segurança e carisma; por parte do paciente, uma forte transferência. Uma junção bem mais rara de encontrar.

Creio que a razão para tamanha conexão entre doenças e drogas pode estar em uma hipótese que carrego há muitos anos, a qual aponta para a sutil e insidiosa doutrinação que as crianças e seus pais recebem nas primeiras consultas depois do parto e nos primeiros anos de vida. É ali que se planta a semente de que “há remédio para tudo”, fazendo-nos crer que a solução para as dores e as doenças está fora de nós, em pílulas, xaropes, pastilhas e injeções, uma ideia que carregamos pelo resto da vida. Não surpreende que os adolescentes, diante da angústia mordente sobre sua sexualidade, seu futuro, sua capacidade, seu brilho e seu valor, apelem para as soluções exógenas, seja cheirando ou fumando substâncias mágicas para seus sofrimentos físicos e emocionais.

Quando eu tinha apenas 6 anos de idade e era atacado por estas febres infantis minha mãe me dizia: “Você vai ficar com febre, vai tremer e depois vai suar por todo o corpo. Depois vai ficar frio de novo, vai tremer de novo; as sensações vão voltar e desaparecer mais umas vezes e assim por diante. É assim mesmo que o corpo se ajusta. Não se assuste e não tenha medo. Estarei aqui se precisar”. Passei a acreditar na sabedoria destes processos adaptativos desde muito cedo, e fui obrigado a esquecer os abusos da medicina quando me foram ensinados. Minhas conhecidas se despediram e não creio que voltem a falar comigo. Neste instante devem estar falando para as amigas: “não imagina o que tem de fanático anti-remédio por aí

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Império dos Diplomas

Li uma postagem de profissionais que se sentem cansados pela interferência de curiosos na sua área de atuação. A mensagem, escrita numa caneca de porcelana, dizia: “Por favor, não confunda sua pesquisa no Google com meu diploma”.

Na medicina percebi durante muitos anos o mesmo fenômeno: médicos indignados com as opiniões de “curiosos” ou com as pesquisas que leigos fazem na internet antes da consulta. Apesar de entender a preocupação, no meu modesto ver reclamar desse “fato social” de nada adiantará. As pessoas continuarão a ler, se informar e tentarão encontrar por si mesmas as respostas para seus dilemas e angústias, sejam elas jurídicas, médicas, nutricionais ou de qualquer área técnica. A abordagem dos médicos, dos advogados e de outras profissões deve ser através da absorção desse novo paradigma de conhecimentos disseminados, e não combatê-lo com autoritarismo.

Com todo respeito que eu possa ter pela preocupação dos profissionais, eu creio que esse tipo de manifestação é essencialmente deselegante. Quem faz tais afirmações está usando o conhecido “argumento de autoridade”. Dá a entender que as “pessoas comuns”, com informações de domínio público, curiosas e com interesse em um determinado assunto, não podem questionar a autoridade que é oferecida a alguns através de um diploma. Trata-se do famigerado “lugar de fala” aplicado às conquistas acadêmicas, e bem sabemos o quanto esse tipo de atitude produziu revolta nos últimos anos ao estabelecer “eleitos” que exigiam o monopólio do discurso. Calar a boca do outro, considerando-o indigno de emitir sua opinião, jamais será uma ação positiva.

As pessoas podem sim questionar o que dizem os advogados, médicos, mecânicos e técnicos das mais variadas formações sem terem um diploma exposto na parede. Estes profissionais podem cometer erros de percepção e até de conteúdo, e não é infrequente que sejam alertados pelos seus clientes ou por pessoas que olham através de uma perspectiva distinta. No caso da Medicina, o “Dr. Google” ameaça apenas os médicos inseguros e arrogantes; a informação absorvida pelo paciente não é ruim ou inadequada, e pode mesmo auxiliar o médico a encontrar alternativas de diagnóstico e prognóstico. Esta lógica pode ser usada com os advogados, engenheiros, professores e todas as outras profissões.

Aceitar como imutável e inquestionável a disparidade de saberes, sem permitir a maleabilidade dos poderes, acaba estimulando um autoritarismo do conhecimento formal em detrimento da democracia da informação. É verdade que muitos se alçam à condição de “experts” pela simples leitura de poucas páginas na Internet, mas esse é um efeito inexorável da disseminação do conhecimento. Deve ser refreada, mas não através do silenciamento. Tentar fazer valer o “Império do diploma”, silenciando as vozes populares que questionam o poder dos especialistas, não ajudará o progresso e só aumentará a autoridade dos maus profissionais. 

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Arrogância

Eu conheci médicos profundamente pedantes na minha trajetória de vida. Entre eles, eu mesmo. Alguns deles eram contidos, não tinham falas tão arrogantes; entretanto, mesmo estes conversavam com pacientes, enfermeiras, funcionários do hospital e familiares como se fossem desbravadores da selva africana do século XIX, tentando dialogar com aborígenes de terras invadidas, enquanto entendiam como superior sua cultura europeia e branca.

Em verdade, mesmo entre aqueles contidos, existem sinais característicos no tom de voz, na entonação, na escolha das palavras e no caráter paternalista das orientações oferecidas, as quais denunciam a percepção pervertida de superioridade dos médicos em relação ao resto do mundo, herança de milênios de medicina exercida sob o signo da magia, da dissimulação e da encenação.

Hoje eu enxergo os médicos ocidentais como colonizadores que tomam posse do corpo dos pacientes trazendo nas mãos sua “Bíblia” de significados, diagnósticos, prognósticos e curas, a despeito da verdade subjetiva que cada um dos sujeitos à quem tratam carregam eles mesmos como roteiro. Esta verdade, inobstante o lugar e o contexto, sempre vai se expressar através de seus sintomas e dramas, que são essencialmente fissuras na crosta do sujeito que nos oportunizam enxergar a profundidade que se agita sob a fina camada que os recobre.

Ainda carrego como verdade a ideia de que “aquilo que o paciente traz como sintomas é, em verdade, seu maior tesouro”. Deixar de escutar suas dores e negar-se a ver o brilho de suas queixas, impondo a eles um catecismo rígido de doenças e rótulos, é limitar a infinita capacidade humana de expressar, inclusive na tessitura mais firme do seu corpo, suas inexoráveis frustrações. A arrogância dos médicos, e a distância artificial que se cria entre terapeuta e paciente, será sempre um anteparo à livre circulação da energia curativa.

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Os Médicos e a Escuta

Esse é um um dos problemas clássicos da medicina: fale por não mais do que cinco minutos com um médico tradicional, formado em uma universidade padrão, e diga a ele que sua dor de cabeça ocorre quando está para chover, ou que sua pressão no peito melhora quando chora muito. Em poucos instantes verá o quanto a descrença nas palavras dos pacientes funciona como uma religião niilista, que sustenta sua arrogância e mantém a ilusão de superioridade que carrega sobre todos os outros mortais.

Para ele, os pacientes produzem ilusões sobre si mesmos, ficções criadas para dar sentido às suas dores, mas apenas o médico, dotado do saber iluminista e isento de preconceitos, consegue desvendar o que sequer o paciente é capaz de descobrir. Repito a pergunta do amigo Cláudio Sousa: “que satisfação resta a este c(l)ínico tão desencantado com as mentiras que seus pacientes contam?”

A coisa mais bela da arte médica é a capacidade – que raríssimos médicos possuem – de escutar seu paciente, sem confiná-lo a uma lista diagnóstica, uma caixa constrita de verdades pré-estabelecidas, valorizando o que o paciente tem a dizer sobre si mesmo, produzindo suas próprias verdades.

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Gênios e Médicos

Um portal de notícias do Brasil publicou há alguns dias que um garoto superdotado de 14 anos havia passado nos vestibulares para medicina e também para aeronáutica. O texto da matéria estava centrado nas capacidades especiais do menino, que tão cedo em sua vida já tinha sua capacidade fora do comum comprovada pelas aprovações em cursos de difícil acesso. Eu todavia, olhei para outra perspectiva do caso. Escrevi abaixo da notícia que esperava que sua escolha de curso fosse direcionada para a aeronáutica. Expliquei que sua “genialidade” se aplicava muito mais às ciências exatas, e muito menos às demandas múltiplas e complexas que produzem um bom médico.

O meu ponto de argumentação é que a medicina não precisa de gênios; ela precisa de sujeitos dedicados e compassivos. A medicina necessita pessoas capazes de produzir – ou estimular e manter – a saúde através de um talento muito especial, que dificilmente pode ser medido por provas ou testes de QI.

Um gênio atuando na Medicina tende a reproduzir um “Dr. House”, tão genial quanto péssimo médico; cruel, desrespeitoso, insensível e desumano…. porém, com diagnósticos brilhantes. Todavia, a medicina não é a arte de “descobrir mistérios”, “tatuar diagnósticos” na testa dos pacientes ou “estabelecer prognósticos” baseados em estatísticas frias. Não, a medicina é “L’art de guérir”, “Ars Curandi”, a arte de curar. A medicina é uma prática complexa que demanda inúmeros talentos e que faz uso das outras ciências – como a bioquímica, a biologia, a anatomia, a fisiologia, a patologia, etc – para se expressar.

Da mesma forma que um pintor se utiliza de técnicas e até de seus conhecimentos de química para a elaboração das tintas, a sua ação é artística por excelência por congregar uma série de talentos e habilidades e, acima de tudo, uma específica percepção da realidade que se expressa através de suas obras.

Também os médicos precisam congregar seus conhecimentos sobre o corpo e seu funcionamento com a capacidade de captar os sinais de desequilíbrio que são manifestos nos limites da sutileza. Talvez, usando o raciocínio de Lacan, a maior virtude de um médico seja a idade, visto que só com o tempo e a experiência é possível afinar essa sensibilidade e apreender os signos necessários para a compreensão holística do sujeito.

Quando todas as tecnologias forem usadas e todas as máquinas calcularem sua saúde e seus riscos, ainda assim desejaremos que a receita nos seja entregue por alguém tão humano quanto nós, capaz de entender o sofrimento alheio olhando no fundo dos olhos de quem lhe procura. Somente o conhecimento da nossa própria finitude pode nos oferecer a entendimento da morte que se acerca dos outros. Desta forma, a medicina não é para os gênios que gabaritam provas ou que se alfabetizam aos três anos de idade. Medicina é ofício artístico, é dedicação, é a capacidade de sentir em si a dor do outro que sofre; é oferecer a mão a quem precisa de uma esperança. A medicina pressupõe a empatia como elemento essencial. Ela não se adapta às exatidões, mas essa é exatamente a sua tarefa mais sublime: cuidar do sujeito como ser único e especial.

Para os gênios sobra a especial tarefa de trabalhar na pesquisa, na compreensão última do que nos adoece e nas formas de intervir nas doenças. Estes serão sempre um ótimo suporte para os médicos, aqueles que, na ponta da atenção, amparam os enfermos e aqueles que sentem as dores no corpo e na alma.

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Médicos

Eu acho que, inobstante o avanço da ciência e da tecnologia, não há como os médicos tornarem-se obsoletos e trocados por equipamentos, por mais sofisticados que eles se tornem. Por outro lado, estes médicos que consideramos “top de linha” – que em verdade são bons ou excelentes técnicos – poderão ser substituídos por robôs ou terão suas ações realizada por engenheiros, sejam eles mecânicos ou geneticistas.

Além disso, imaginem a transformação radical que vai ocorrer na prática médica quando políticos e sanitaristas resolverem os problemas produzidos na saúde pública pela pobreza, a fome, a competitividade doentia, as guerras, a exploração do trabalho, os acidentes evitáveis, o ódio de classe, o racismo e a xenofobia. O que será da medicina quando o capitalismo for superado e não houver mais ódio e desprezo de classe? Quantas vezes atendi pacientes cujo principal diagnóstico era “síndrome da estrutura social perversa”

Como eu costumo dizer, bastaria que a Medicina fosse praticada com plena observância das evidências científicas para que sua prática se tornasse totalmente irreconhecível daquela que se aplica hoje. Imagine isso combinado com um mundo de paz, com a superação da sociedade de classes. A medicina se tornaria um exercício de pura conexão pela palavra. Por esta razão, o médico que produz uma ponte afetiva e profunda com seu paciente jamais será substituído por máquinas, pois a ligação que ele propõe é de alma para alma.

Isso me lembra a forma como os Navajos classificam seu curadores. Longe de romantizar as populações nativas, eu acho apenas que a experiência da medicina num modelo pré-capitalista sempre tem algo a nos ensinar.

Para estes nativos existem 3 níveis de curadores, numa carreira que prolonga por uma vida inteira. O primeiro nível comanda rituais e utiliza algumas ervas curativas. O segundo nível se especializa no uso das múltiplas ervas e substâncias para as diversas doenças catalogadas por sua cultura. Já o último nível, aquele que se alcança depois de ter passado uma vida inteira na função de curador, se ocupa tão somente em oferecer… conselhos.

Assim, a função do curador segue na direção da sutileza, partindo das artes mais densas dos corpos – pessoal e social – e chegando na palavra, a quintessência da cura. Sim, é possível substituir as ações mecânicas dos médicos, mas sempre haverá a necessidade de conectar-se com o suposto saber de alguém que instrumentaliza sua fraternidade no sentido da compaixão e da cura.

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Tchutchuca

Para mim, conforme já disse em outras oportunidades, o grande erro – que a própria imprensa ratifica de forma sistemática – é considerar o CFM como um órgão preocupado com a saúde da população ou com a cura de doenças. Isto é um equívoco. O CFM se preocupa com os médicos – seu valor social e sua importância – a Medicina e seu significado na cultura. NÃO É função do CFM proteger pacientes. Para isso outras instâncias precisam ser criadas. Sugiro a “Ordem dos Pacientes”.

É evidente a impropriedade de misturar saúde e lucros, e o absurdo de ainda termos sistemas de saúde e profissionais que lucram com a doença e/ou com a piora dos pacientes. Por outro lado, muitos ainda continuam acreditando que o CFM tem alguma responsabilidade com a saúde das pessoas ou mesmo com a boa prática médica. Não!!! Estes órgãos existem para proteger os médicos e a Medicina – os quais realmente precisam ser protegidos. Uma sociedade que não protege médicos e profissionais da saúde que atuam na fronteira entre morte e vida produz caos e ações defensivas. Todavia, cobrar dessa instituição que zele pela saúde dos pacientes é um erro que precisamos corrigir com a criação de uma CFP – Conselho Federal de Pacientes, órgão responsável para defender os pacientes contra práticas anacrônicas e prejudiciais, como o abuso de cesarianas, kristeller, episiotomias, circuncisão ritualística e outras práticas sem evidências em todas as áreas da medicina.

Limpar a barra da categoria vai levar muitos anos, porque o problema não é de agora. O que testemunhamos nesse momento é o problema escancarado; porém os médicos assumiram uma postura reacionária e contrária aos interesses nacionais desde a eleição do segundo mandato de Dilma. Foram os médicos que tomaram a frente dos ataques misóginos a ela. Estavam lá debochando do AVC de dona Marisa ou na morte do neto de Lula. Foram os médicos que se recusaram a atender crianças (!!!) filhos de pais de esquerda. Colaboraram com a desestabilização. Atuaram como frente de ataque ao PT assumindo como fala principal os discursos de extrema direita.

O CFM está lotado de bolsonaristas da pior espécie. O episódio da pandemia é apenas o coroamento de uma postura anti-SUS, antipovo, aristocrática, arrogante e perniciosa para a saúde da população. A solução para a Medicina só vai ocorrer quando houver uma transformação radical no sistema de ingresso, impedindo que ocorra o sequestro de uma profissão pelos filhos da classe abastada, que pouco entende e quase nada conhece da realidade da saúde brasileira. Infelizmente a Medicina brasileira é arrogante, alienada e autocentrada. Os professores são aristocratas sem vinculação com as populações marginalizadas.

Sei que é uma generalização e que existem exceções importantes e atuantes, mas são minoritárias. A face da medicina brasileira não é boa, e isso ficou muito claro com a deplorável atuação do CFM no desenrolar da crise sanitária.

Esse mesmo CFM que ataca médicos humanistas e promove perseguições covardes a eles e à enfermagem, é a instituição que jamais mexeu um dedo para questionar os médicos que promovem abusos de cesarianas. Já parou para pensar a razão dessa dupla moral? Ora… o CFM só ataca quem ameaça a supremacia médica ao questionar suas ferramentas de intervenção. Jamais quem as usa de forma abusiva e perigosa, colocando em risco a integridade de pacientes.

Ou, como se diz no popular…“Feroz com humanistas, tchutchuca com cesaristas”.

Veja mais aqui na matéria do El País

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Escafandristas

Durante muitos anos eu me perguntei as razões pelas quais uma das carreiras mais instigantes e criativas, que se encontra na linha de frente da saúde e das crises mais importantes e decisivas da vida, é conduzida pela camada mais reacionária, conservadora e politicamente atrasada da sociedade, e porque esta categoria profissional jamais oferece qualquer visão revolucionária para a condução da saúde. Pelo contrário; sempre que uma perspectiva mais libertária aparece – como a humanização do nascimento – estes sempre se comportam como o principal obstáculo a ser vencido para que as propostas alcancem sucesso. São, basicamente, o muro a ser ultrapassado para que um avanço estrutural aconteça.

Apesar de entender a complexidade desta resposta ainda creio que ela deverá estar próxima do específico processo de seleção dos novos médicos, e também guarda relação com a camada da população que recorre a estas carreiras, as oligarquias médicas, o vestibular que seleciona aqueles que tem tempo e dinheiro para uma preparação adequada, etc…

Mais intrigante ainda é o fato de que os raros casos de jovens pobres e da classe proletária que conseguem ingressar na carreira médica imediatamente se comportam como se fossem garotos quatrocentões, escondendo seu passado de pobreza e assumindo naturalmente os valores, os gostos, a visão de mundo e o estilo de vida dos seus colegas burgueses. Assumem com plena naturalidade o discurso e a postura daqueles que, outrora, viam como opressores.

Não deveria causar espanto que os elementos da pequena burguesia que ascendem à carreira médica reproduzam em seu discurso e na sua ação pública uma postura de reforço de suas prerrogativas e privilégios, desprezando as iniciativas de democratização do acesso à saúde e uma visão mais holística da questão da atenção médica. Em verdade, a visão desses profissionais – em sua grande maioria – é completamente caolha, pois que em sua experiência de vida jamais tiveram contato íntimo e continuado com os dilemas, dramas, tragédias, escolhas e dificuldades cotidianas das populações pobres e que vivem em situação de risco. Muitos sequer entendem o significado real e físico da fome, o problema da violência endêmica, o risco de um temporal ou enchente e o consequente desespero do desteto. Olham para estes fatos com distanciamento e por vezes espanto, sem se dar conta de que são eles próprios a exceção na sociedade, e não a norma.

Todavia, muitos deles são obrigados, quando no serviço público, a atender estas camadas da população, mas o fazem como escafandristas que, isolados em sua bolha de classe média, vasculham as dores e feridas de seus pacientes sem jamais respirar o mesmo ar que os circunda.

Mundos diferentes, valores distintos, roupas e idiomas meramente semelhantes. Médicos são elementos de uma classe que pouco ou nenhum contato estabelece com a imensa maioria das pessoas a quem atendem. Essa distância de histórias e perspectivas está na gênese de muitos desencontros e dificuldades na atenção médica. Para que a Medicina cumpra sua função primordial de acolher e cuidar do sofrimento humano esse abismo precisa ser vencido e, para isso, uma visão completamente diversa do que seja cuidar da saúde deverá emergir das profundezas do nosso Apartheid social.

Escrevi outro texto sobre o tema, que pode ser visto aqui

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