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O dilema dos pais

Escutei de um professor, num passado distante, a ideia de que, para produzir um filósofo, era necessário retirá-lo ainda criança, do conforto do afeto mais poderoso: a presença de um pai amoroso. Se entendemos que a filosofia surge do reconhecimento da falta e da noção da precariedade da existência humana, só será possível produzir boa filosofia quando o sujeito é jogado no vazio, obrigando-o a procurar sentido sem o amparo de um pai. A história nos demonstra que a perda precoce dessa figura foi um marco na história pessoal de grandes nomes desse ramo do conhecimento.

Todavia, quando perguntam aos pais o que pretendem que seus filhos sejam no futuro, muitos (até eu) respondem “espero que sejam felizes”, oferecendo a eles o que podem para terem segurança em seus anos mais frágeis e alegria como consequência. Ou seja, sonegam aos filhos o elemento essencial para a boa filosofia: o vazio, o “pathos”, o poço escuro do desamparo.

Esse é o dilema: ao tempo em que damos proteção e amor aos filhos, tentando garantir a eles uma estrutura emocional centrada no afeto, precisamos jogá-los na noite do mundo, no desamparo, na solidão e na frustração, para que seus músculos emocionais sejam fortalecidos e seus olhos da alma se adaptem ao escuro da vida. Transitar pela paternidade é caminhar sobre a fina lâmina da dúvida e da angústia, sem a certeza de ter feito o melhor para os filhos

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Tempo

Esta é uma verdade cristalina. Nas cinco gerações que tive contato, desde os meus avós até os meus netos, o envolvimento dos pais (homens) na gestação, parto, educação, tarefas, aconselhamento etc. é muito maior agora do que já foi outrora. Meu pai jamais pensou em auxiliar no parto dos filhos, nunca conferia boletins da escola e tinha um contato conosco muito mais restrito. Sua função era de provedor e, na velhice, conselheiro. Eu já fui um pai um pouco mais presente, mas com um papel muito menor do que meu filho e meu genro desempenham na vida dos meus netos. Por certo que falo de um recorte de classe média mas, guardadas as proporções, não há porque essa novidade não se expressar também nas classes baixas e altas. Esse é um fenômeno muito novo na cultura, mas uma tendência sem volta.

Meu pai costumava achar engraçado quando eu falava que os casais iam juntos à consulta de pré-Natal. Para ele isso era uma novidade chocante. “O que um homem tem a ver com essas coisas?”. dizia. Para ele a presença do pai nas consultas e no parto só poderia atrapalhar. Ele me contou que só se preocupava que o seu carro (um DKW) tivesse gasolina suficiente para ir ao hospital quando chegassem as dores. O cuidado com os filhos não era uma tarefa dos homens; eles não poderiam deixar de lado a missão de construir e controlar a civilização para cuidar, alimentar e educar de gente miúda. Já os homens de hoje são muito mais presentes e participativos nas tarefas domésticas e no cuidado de crianças, mesmo as muito pequenas. Fui testemunha disso nas histórias contadas dos pacientes mas também com o que vivenciei na minha casa, comparando com o que testemunhei nas gerações passadas. Por certo que o envolvimento masculino de hoje não é o ideal – até porque jamais será o suficiente, como bem o sabemos – mas não se pode comparar o nível de atuação dos pais atuais ao lado dos filhos com o papel da paternagem que vi a partir dos anos 60.

A realidade contemporânea que hoje temos, quando pela primeira vez vemos os pais (homens) sendo uma fonte de afeto (e não apenas recursos e limites) para seus filhos, é uma novidade no mundo ocidental e, na minha modesta opinião, eles estão se saindo muito bem nesta nova tarefa, mesmo sabendo da dificuldade que a nova distribuição de funções imprime na dinâmica social. Isso se expressa inclusive no número cada vez maior de filhos que optam em morar com o pai depois de uma separação, algo que não existia na minha infância. De qualquer forma é um período de grande aprendizado para os novos pais, e de grandes transformações para o nosso conceito de paternidade.

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A Realidade da Educação: Entre a Severidade e a Permissividade

“Eu achava que meus pais eram muito rígidos, mas vendo essa geração de hoje eu acho que eles me salvaram”.

Uma afirmação no mínimo arriscada. Se a “rigidez” se refere a firmeza de princípios, então estamos juntos. Caso ela esteja lançando uma tese saudosista sobre os castigos e o uso dos “corretivos”, que eram comuns na minha época, então estamos bem distantes. Talvez os pais de ontem – que agora são bisavós – pensem desta forma, exaltando a educação dura que receberam, mas eu creio que esta postura serve como uma excelente desculpa para espancamentos, surras e demonstrações de violência que ocorriam em tempos passados. Tipo “Sim, bati nos meus filhos e dei a eles castigos degradantes e humilhantes, mas os salvei do destino terrível da permissividade”. Fácil, não?

Não há dúvida que existe um clima de “laisser faire” na educação, e uma crença de que os filhos são máquinas de desejo a quem não convém frustrar. Por certo que existe um enfraquecimento da figura paterna, tanto pela ausência física dos pais em função da fragilidade dos casamentos, quanto por uma cobrança crescente e intensa sobre a severidade e a brutalidade dos métodos de educação aplicados pelos pais do passado. Entretanto, o questionamento sobre os métodos “frouxos” de educação doméstica não pode permitir a crença de que o modelo de surras e castigos seja justo ou adequado. Se existem crianças “sem limites” e abusivas também é verdade que os traumas causados pelas práticas violentas de outrora não podem ser negligenciados. Temos uma legião de homens e mulheres velhos cuja infância foi marcada pela violência doméstica, socialmente validada, mas que causa neles sintomas tanto visíveis quanto silenciosos até hoje.

Não devemos cair na sedução fácil de um falso dilema. “Ahh, no meu tempo é que era bom!!”, normalmente é uma frase dita por alguém que não entendeu como foi terrível a criação das crianças no passado. “Apanhei, mas sobrevivi”, o que é verdade, mas a que preço? O que dizer dos medos, das angústias, da falta de confiança e das mágoas que até agora lhe atormentam? Portanto, é razoável imaginar que ambos os modelos são ruins, e que não é necessário escolher entre duas perspectivas – violência ou permissividade – como se fossem as únicas alternativas possíveis. Não; é possível educar os filhos com firmeza e autoridade sem cair na tentação fácil da violência física e moral que oferece respostas imediatas, mas que deixa marcas indeléveis na alma das crianças.

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Memórias do Homem de Vidro – 03

Barulhos

Casei muito cedo. Cedo demais. Abortei boa parte da minha adolescência. Entre os 20 e os 30 anos, tirei, ao todo, dois meses de férias. Enquanto meus colegas se divertiam em passeios e festas, eu fazia plantões e estágios. No mês de feve­reiro de 1980, trabalhei 25 das 28 noites como plantonista em um pronto-socorro. Queria absorver tudo o que a medicina poderia me mostrar. Fui pai precoce, ado­lescente, menino. Saí da casa paterna com 21 anos para viver uma vida de adulto. Tal atitude tem vantagens e desvantagens. Pude crescer junto com meus filhos, aprender a paternidade enquanto ainda me despia da adolescência. Por outro lado, as responsabilidades precocemente assumidas são fardos pesados, os quais carregamos com paciência, resiliência e, certamente, uma boa dose de humor.

Cuidar de meus filhos pequenos acabou sendo um dos maiores desafios que eu já tive que enfrentar. Não se nasce pai, nem se aprende em livros. A crueza dos tombos e as feridas no orgulho são que nos ensinam a lidar com essa fundamen­tal etapa da vida. Uma vez falei para uma paciente que um dos maiores e mais poderosos processos de transformação individual é a maternidade, mas que a paternidade é igualmente algo de uma força fabulosa. Devo muito do que sou ao fato de que, muito novo, fui obrigado a entender a minha vida de uma forma espe­cial. Ser pai é nunca mais pensar apenas em si mesmo. Ser pai é ter que lidar com desafios diários para levar aos seus filhos os valores que parecem ser os mais verdadeiros e corretos. Entretanto, dos aprendizados possíveis, o mais claro é o de que não existem regras, e que toda a educação é feita de erros.

Na época em que meus filhos eram pequenos, todos os meus amigos tinham mo­delos maravilhosos de como educar uma criança. Desde os aficionados pela dis­ciplina até os apaixonados pela liberdade infantil, sempre que o assunto é educa­ção todos estavam repletos de profundas certezas.

— Nunca se bate em criança — diz ela. — A agressão é entendida pelos peque­nos como um meio válido de se chegar a um resultado, e isso fatalmente se re­produzirá na sua conduta como adulto. As crianças que apanham hoje serão os agressores do futuro. Se quiser um mundo livre de violência, comece pela sua casa.

— Qual nada — responde a outra. — A criança precisa saber seus limites, e a única linguagem compreensível, em uma determinada etapa da vida, é a da pal­mada. Como explicar com palavras a inadequação de uma atitude a alguém que não entende ainda o seu significado? Prefiro eu mesma colocar os limites nos meus filhos do que ver alguém fazendo isso mais tarde. Lógico que não estamos falando em espancamento, entretanto blá, blá, blá…

Como se posiciona um pobre menino, estudante universitário, imberbe, inseguro, preocupado em passar de ano, diante das divergências profundas entre sistemas que chegam aos nossos ouvidos concernentes à educação dos pequenos? O má­ximo que conseguimos é nos munir do arsenal de valores que recebemos de nos­sos pais e repeti-lo. Mesmo quando equivocado e ultrapassado, muitas vezes é o único modelo que temos.

As palmadas, entretanto, não são o único dilema por que os jovens pais têm que passar. Mamadeiras, bicos, choros fora de hora, educação dos esfíncteres, etc. povoavam minhas angústias de pai de primeira viagem. Acrescente-se a isso a pouca idade, a imaturidade, a falta de dinheiro e o pouco tempo e teremos um caldo de cultura propício a situações que variam do drama à comicidade.

Lembro-me de uma ocasião em que, chegando em casa cedo pela manhã após três dias de plantão em diversos hospitais, encontrei minha mulher na soleira de nossa velha casa. Beijou-me um beijo de café e disse:

— Estou indo para a faculdade. Lucas está dormindo na nossa cama. Tem uma pilha de roupas para serem passadas. Beijo, te amo, tchau.

Assim mesmo. “Beijo, te amo, tchau.” Não tive tempo nem de responder, pois ela estava atrasada para pegar o ônibus. Vida dura de estudante/mãe.

Entro em casa e me deparo com a dura realidade. Lucas não estava mais dor­mindo. Talvez tenha escutado a breve conversa no portão da casa, ou apenas resolveu despertar porque o dia parecia estar destinado a grandes descobertas. A verdade é que seus dois grandes olhos castanhos me encaravam, emoldurados por um sorriso pleno de energia e vigor. O segundo fato apavorante é que a “pilha” de roupas para passar era, na verdade, uma montanha que se erguia da minha cama. Milhares de meias, cuecas, calças de brim, camisas, em uma maçaroca apavorante e incompreensível.

Eu havia passado a noite atendendo partos no hospital de periferia onde me iniciei na obstetrícia. Estava cansado e sonolento. As roupas precisavam ser passadas, e Lucas estava pronto para mais um dia de aventuras. O que poderia piorar esse cenário?

Lembrei… Eu tinha uma prova dentro de dois dias, e em função dos partos na noite anterior não me fora possível ler a matéria. Eu precisava estudar, cuidar do Lucas, passar roupa e dormir, tudo ao mesmo tempo! Aqui estava, tal qual a chuva no filme “Jovem Frankenstein”, algo que poderia piorar um cenário já de­sesperador.

Tive uma ideia, que à primeira vista poderia ser maravilhosamente conciliatória. Resolvi armar a tábua de passar ao lado da cama e abrir meu livro de medicina em uma das pontas, deixando o ferro quente na outra. Assim poderia passar a ferro as camisas e dar uma espiada na matéria — nefrologia. Lucas estava apren­dendo a caminhar, mas passava a maior parte do seu tempo nas tentativas de se erguer. Eu tentaria conversar com ele e distrair a sua atenção.

Foi o que fiz. Mesa armada, ferro de passar repousava à minha esquerda, livro de medicina aberto à minha direita e camisas e calças sendo passadas na minha frente. Parecia funcionar adequadamente. Finalmente eu provaria que, ao contrá­rio do que é maldosamente apregoado pelas feministas, nós, homens, também podemos ser multitarefa.

Tudo funcionou perfeitamente… por 15 minutos.

Eu havia esquecido um fator fundamental. Aquele que sempre põe abaixo os grandes e pequenos projetos da humanidade: o imponderável e circunstancial. A Lei de Murphy, maldosa e sorrateira, conspirando sempre que uma oportunidade lhe é oferecida. Ou, como Maximilian me falaria no futuro, eram “os desígnios se­cretos da Deusa Álea”.

Lucas conversava comigo dando gostosas risadas enquanto eu lia o livro de medi­cina em voz alta, fazendo de conta que lhe contava uma história de aventuras. Pobre criança, nem sabia que estava sendo enganado. Não havia nenhum prín­cipe “glomérulo”, nenhuma princesa “pelve renal” e os “ureteres” não eram escu­deiros com a incumbência de livrar a rainha das pressões dos seus inimigos. Ele ria e rolava. Eu repetia as palavras do livro com um jeito bufo, o que o deixava ainda mais alegre.

Infelizmente a alegria durou pouco. Juro que eu tentei evitar, mas talvez minha atenção com as camisas, minha leitura do livro de medicina e a sonolência sobre­posta tenham causado o estrago. Lucas sorrateiramente engatinhou em direção à mesa de passar. Eu o cuidava com o rabo do olho, enquanto lia uma página do livro. Ele continuava rindo e saracoteando, e resolveu ficar de pé, caindo logo em seguida, o que o deixava ainda mais lindo e desengonçado. Repousei o ferro elé­trico na mesa e fui pegar mais uma camisa para passar, enquanto aproveitava para folhear mais uma página.

Nesse milésimo de segundo é que as coisas acontecem. Bastam apenas frag­mentos de um instante para que tudo ocorra. Lucas ergueu-se sobre os joelhos e apontou seu minúsculo dedinho para o ferro que aguardava repousando na mesa. Já segurando a próxima camisa amassada nas mãos, ainda consegui antever o desastre, mas não a tempo de impedir que a ponta do seu pequenino indicador encontrasse o aparelho.

Foi muito rápido. Fiquei feliz por ter evitado um estrago maior, mas olhei a ponta de seu dedinho vermelho e me senti o pior pai do mundo. Incompetente, irrespon­sável. Lucas abriu seu inesgotável repertório de choros, que variava desde o berro incontido até o choramingar em voz baixa. E agora? Que fazer?

Resolvi desistir de tudo e cuidar do meu filho. Desliguei o agora “maldito” ferro elétrico e fiz da montanha de roupas o meu travesseiro. Olhei de novo para a pon­tinha do dedo e percebi uma pequenina bolha se formando por baixo da pele de seda. Agarrei Lucas nos braços e cochichei no seu ouvido:

— Desculpa, meu velho. Papai estava desatento. Mas agora precisamos os dois dormir, ok? Você para curar seu dedinho, e o papai para se recuperar do plantão, certo?

Lucas continuava choramingando, mas incrivelmente alguns minutos depois ele estava dormindo. Acordava de quando em vez, ao se lembrar do dedinho quei­mado, mas voltava a dormir, como papai mandou. Milagres acontecem.

Não lembro que nota eu tirei na prova, nem o que eu acabei fazendo com a pilha de roupas, mas aprendi algumas belas lições naquela manhã sonolenta. A mais importante é que filhos são sempre prioridade. Se pudesse voltar no tempo, não desperdiçaria nenhum instante de contato com os pequenos, porque tudo isso passa muito, muito rápido.

Lembrei-me de outra história, anterior a essa, ligada aos primeiros meses em que estive lidando com a tenebrosa tarefa de ser pai. Era uma questão relacionada com o sono das crianças. Esse assunto era tratado como um tabu na família da minha mulher: nunca se acordava alguém que estivesse dormindo. Suspeito que minha sogra achasse que uma criança — ou mesmo uma pessoa adulta — assim desperta de “supetão” poderia desfazer o fino laço que prende o corpo à alma flu­tuante, que estaria vagando livremente pelo éter, despregada da matéria. Fosse essa a justificativa ou não, a verdade é que acordar uma criança era visto como uma atitude de extremo desrespeito e grosseria.

Esse era o meu problema. Na época da faculdade, quando eu era jovem (século passado) e tinha muitos cabelos na cabeça, exageradamente sofri com o pro­blema do barulho com as crianças dormindo. Essa história de “silêncio, o nenê acabou de dormir” eu fui obrigado a escutar incontáveis vezes. Vezes demais. Achei que eu nunca poderia conversar com meu filho, ou mesmo escutar a sua voz se formando. Eu ficava terrivelmente bravo porque mal acabava de chegar em casa depois de 48 horas ininterruptas de plantão (às vezes 72) e meu filho Lucas estava dormindo profundamente. Pai ausente, pensava eu. Irresponsável. Se foi para deixar seu filho sem uma figura paterna, melhor seria nem tê-lo feito. Eu ia até sua cama só para olhar para ele e dizer alguma bobagem, tipo “chorou muito hoje?” ou “alguma novidade?” ou mesmo “e aí, meu… se borrando nas fraldas ainda?”. Ele tinha apenas seis meses, e pouco via o miserável progenitor, estu­dante de medicina e trabalhador de cinco diferentes patrões. Pois a história era sempre a mesma: eu chegava perto e sempre tinha uma sogra, uma cunhada ou outro tipo de “bruxa” pra me criticar. Não suportava mais a pressão e a culpa que tentavam me empurrar, apenas por querer participar um pouco da vida do meu pequeno e indefeso filho homem, cercado de mulheres por todos os lados.

“Fala baixo, seu trapalhão. Olha a pobre criança dormindo. Se ele acordar, quero ver você fazer ele dormir de novo.” E eu normalmente tinha que sair de perto, por­que as mulheres acham que só porque pariram são donas da cria e que os ho­mens de nada servem. Somos considerados inúteis. De nós aproveitam apenas o pobre espermatozoide, serelepe girino que, por enquanto, ainda nos confere al­guma importância neste planeta. Pura inveja. Só porque não conseguem fazer xixi de pé ficam nos espezinhando por toda a eternidade!

Pois um dia eu cheguei em casa, vindo de mais um mix de plantões com aulas na faculdade e recebi a mesma crítica injusta de sempre. “Para que caminhar desse jeito? Para que bater o pé assim no chão? Está tirando barro da sola? A criança pobrezinha (pobre, coitada, etc… sempre tem um adjetivo assim para as crianças) acabou de dormir. Dá para fechar essa boca, parar de caminhar e fazer silêncio?”

Dias sem ver meu filho e era assim que me recebiam? Queriam elas fazer de mim um capacho, um pano de chão? Haveria um fim para a arrogância feminina? Pois este era o meu limite. Fiquei uma fera. É hoje que eu faço uma loucura,pensei eu! Fui até o quarto onde o pequeno Lucas estava ressonando. Pobre criança (opsss). Teria que aguentar essa convenção de bruxas, megeras, tias chatas (ele tem nove tias!) e mesmo assim lutar com todas as suas forças para se tornar um homem de verdade. Ele precisava de uma imagem masculina forte, máscula, viril, altaneira. Olhei para os lados à procura de algo, ou alguém, e não vi nada que coubesse nesse conceito. É… vai ter que ser eu mesmo, pensei.

Munido de coragem, falei comigo mesmo, gritando com os meus botões da camisa amassada:

— Agora é que são elas! Elas vão ver como nós somos caras maus, bravos, des­temidos e corajosos!

Tirei os poucos lençóis que cobriam o frágil corpo de poucos meses do meu filho Lucas. Olhei para ele e disse baixinho no seu ouvido:

— Papai vai te levar para um passeio. Fique tranquilo. Aquelas megeras não vão te fazer mal.

Na sala, a mãe dele — bruxa-mor — jogava cartas com as irmãs e a mãe. A con­versa (conversa é modo de dizer; estavam fofocando e falando mal de mim, claro) ia solta, até que uma delas, a primeira que percebeu, soltou um grito.

— O que você pensa estar fazendo, seu louco? — gritou a cunhada, deixando as cartas caírem na mesa.

— Ficou maluco de vez? — vociferou minha mulher.

— Para com isso! Olha que eu chamo os vizinhos! — emendou minha sogra.

Enquanto isso eu sorria, exibindo meu troféu. Lucas continuava dormindo, sem se aperceber do que estava acontecendo.

Eu havia carregado meu filho pelo calcanhar direito e o levei assim suspenso atra­vés do quarto escuro até a sala, onde elas estavam a jogar cartas. Com os braços abertos e a perninha esticada, Lucas continuava dormindo, como um anjo, sem se perturbar, provavelmente sonhando com um mundo de ponta-cabeça, mais ou menos como está o nosso planeta hoje em dia.

— De hoje em diante, quero ver quem é que vai dizer que um simples barulhinho é capaz de acordar esse moleque! — disse eu, exibindo o meu troféu, para uma plateia de mulheres boquiabertas.

— Ok… ok, seu insano. Coloque a criança na cama e deixe-a dormir em paz. Chega de espetáculos — disse minha sogra.

Coloquei meu filho na cama e o cobri novamente. Ele nem se deu conta do pas­seio estranho que dera.

— Muito bem, meu filho. Você foi sensacional. Você é o garotão do papai! — disse eu, em uma conversa de homem para homem que eu nunca mais esqueceria.

Quando voltei para a sala, as mulheres continuavam seu jogo de cartas como se nada tivesse ocorrido. Minha cunhada Heloísa, para quebrar o gelo, me fitou com um sorriso e disse:

— Está cansado, cunhadinho? Estava movimentado o plantão? Quer que faça um cafezinho passado?

Nada como uma demonstração de macheza para deixar as mulheres derretidas.

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Memórias do Homem de Vidro – 02

Pai e Paternidade

A história do ser humano na face da terra é caracterizada por um aprendizado lento. Nossas conquistas nas áreas sociais sempre foram graduais e paulatinas, com gerações inteiras experimentando apenas detalhes como modificações no seu cotidiano quando comparadas com o estilo de viver de seus ancestrais remo­tos. Essas alterações sempre ocorreram em todos os aspectos da sociedade, desde a organização social e política até mesmo (e principalmente) no terreno da ciência e do conhecimento. Durante milênios, nossas tarefas e especificidades sociais foram determinadas rigorosamente pelas aptidões aparentemente mais “naturais” que apresentavam os homens e as mulheres. O legado que nossa ex­tensa experiência como caçadores/coletores nos deixou transmitiu-se por inúme­ras gerações, sendo que a rigidez de seus postulados apenas há alguns anos passou a ser questionada. Assim, nada mais justo que o mundo externo, o mundo das conquistas, das batalhas e do saber racional ficasse sob a responsabilidade do componente masculino, enquanto o mundo interior, da família, da natureza, dos mistérios do inconsciente, coubesse às mulheres. Esse esquema funcionou com razoável equilíbrio até algumas poucas décadas atrás, fazendo com que homens e mulheres convivessem em uma “harmonia forçada”, por ser essa a expectativa clara e única de suas funções sociais. Nesse mundo, a gravidez, o parto e a ma­ternagem existiam apenas como extensão do universo feminino, não sendo possí­vel entender a participação dos homens nele, a não ser como procriado­res/provedores e possuidores de uma descendência.

Lucas, a exemplo das tradições tibetanas, nasceu de um sonho. Um sonho pre­monitório, mas, ao contrário do que se esperaria, esse sonho não foi sonhado por quem o carregava no ventre; foi sonhado pelo seu pai. Em uma escura passagem, um caminhante solitário vê formar-se à sua esquerda uma fonte intensa de luz. Ofuscado pela luminosidade, leva a mão aos olhos, tentando enxergar o que se esconde por detrás. Inútil. Dessa luz brota uma voz, que avisa em tom solene a chegada de um visitante.

— Preparem-se, amigos — diz a voz poderosa. — Lucas está se aproximando para juntar-se a vocês.

Depois disso, do meio do breu da estrada surge a figura de um menino, de mais ou menos 10 anos de idade, que caminha em minha direção. Tem os cabelos loi­ros, lisos e longos e seu passo é firme. A distância entre nós se encurta, mas nosso contato não chega a acontecer porque, assustado, desperto do meu sono. Ligo para a minha namorada e digo que tenho algo muito importante para lhe di­zer. Ela se assusta. Mais tarde lhe conto pessoalmente o sonho, e o nome do me­nino que me foi revelado, e ela diz que seria quase impossível que ele fosse ver­dade. Não seria viável, ou provável, que ela estivesse grávida àquela época do ciclo menstrual. Eu apenas comentei que o sonho fora claro demais para ser des­merecido. Os acontecimentos das próximas semanas mostraram que tanto eu quanto o sonho estávamos certos.

Lucas estava realmente a caminho.

Exatamente 40 semanas após sua última menstruação, ela entrava em trabalho de parto. Rompida a bolsa na madrugada, rumou para o hospital da universidade, o mesmo onde anos mais tarde eu faria a minha formação em obstetrícia e gine­cologia. Suas contrações ainda eram frágeis e irregulares, mas foi mantida no hospital por decisão do contratado de plantão. Eu ainda não tinha a menor noção da iatrogenia relacionada à internação precoce de pacientes em fases iniciais de trabalho de parto. Levaria muitos anos para aprender essa conexão notável entre o psiquismo feminino, seu instinto de proteção à cria, e a sutileza dos mecanismos relacionados à ocitocina, endorfina e adrenalina. Deixo o hospital prometendo voltar mais tarde. Como de costume, eu estava gazeando aulas na faculdade de medicina para fazer um plantão no Pronto-Socorro. Sempre me atraiu a medicina viva, em carne e osso, olhando a face dos pacientes, catando diagnósticos nos sulcos que o sofrimento marcava em seus rostos; por isso, minha opção desde cedo em trabalhar junto aos doentes, priorizando a prática em detrimento da frieza vazia das teorias.

No meio da tarde, meu cunhado me liga dizendo que as dores estavam muito for­tes e que seria melhor eu voltar ao centro obstétrico. Percebi que Lucas estava chegando. Havia aguardado mais de 20 anos por esse reencontro.

As horas se acumulavam, umas sobre as outras. As dores se aproximavam, quase se fundindo. O suor, o rosto contraído, a palidez. O gosto salgado na sua boca. Olhava para ela como que a pedir perdão. Uma súplica. Como posso ajudar, se tenho as mãos atadas? Que posso fazer para minorar sua dor? Eu tenho apenas 22 anos. Como sou estudante de medicina, e apenas por isso, me permitem adentrar o espaço do centro obstétrico. É uma manhã fria de junho de 1982. Es­tamos no meio da Copa do Mundo. Ontem o Brasil aplicou 4 x 0 em um time qual­quer. Nem lembro bem qual é, mas o Zico marcou um gol. A ruptura da bolsa se deu junto com o romper da aurora, e sabia que esse fato era um complicador na forma como os médicos do centro obstétrico entendiam aquele caso específico. A mim só restava esperar, e pedir aos deuses que os médicos responsáveis tives­sem a sabedoria para fazer as melhores escolhas.

A participação paterna no processo de parto e nascimento é um evento raro entre os mamíferos, principalmente quando a paternidade não é uma obviedade. Entre os grupamentos em que a participação genética de determinado parceiro é asse­gurada, essa ligação pai-filho se dará de forma mais intensa, enquanto, nos gru­pamentos mais promíscuos (com paternidade menos confiável), um padrão muito heterogêneo poderá ocorrer, variando do infanticídio, em uma extremidade, até mesmo cuidados ativos e afetivos, na outra. Essa disparidade idiossincrática de atitudes nos demonstra que o estabelecimento da relação entre o pai e seu filho não seria um produto de nossa herança genética, mas ocorreria em razão de as­pectos ecológicos e comportamentais, principalmente relacionados com a distri­buição de comida, o que está de acordo com a atitude de todos os carnívoros so­ciais.

Ela a cada minuto parecia mais fraca. Dezoito horas já haviam se passado desde a ruptura das membranas e a perda do líquido amniótico. Seu humor estava aba­lado. Não mais suportava a conversa das auxiliares, e mesmo a minha presença era apenas tolerada. Eu caminhava ansiosamente de um lado para outro. Repeti­ria essa atitude ansiosa durante as centenas de partos que acompanharia nos anos que se seguiriam. Mas aquele dia era o meu “batismo de fogo”. A paterni­dade entrava na minha vida de forma precoce e inesperada, o que me deixava ainda mais assustado e tenso. Fazia promessas. Imaginava que amanhã estaria rindo com meu filho nos braços. Pensava na magia de ser pai. Ia até o corredor do hospital e pedia colo para minha mãe, que silenciosamente aguardava para parir seu primeiro neto. Tentava criar coragem. Olhava para as residentes e aguardava delas uma palavra, um gesto, uma confirmação. Esperava que meu sofrimento fosse abreviado. Eu estava entregue. Dependia daquela mulher e dependia da­queles médicos. A sensação de dependência, de falta de controle sobre a situa­ção, me fazia menino, pequeno, diminuto. Só o que podia fazer era ter paciência e confiar. Das residentes escutava apenas comentários que não me ajudavam. Zeza continuava completamente absorvida pela intensidade de suas dores, mas para mim, pobre menino, nada parecia acontecer. Até que, ao cair da noite, depois de um exame vaginal, eu escuto a guturalidade de um som: a expressão sonora de uma passagem. Algo ocorrera, e fixei meus olhos no residente. Este me olhou ra­pidamente e disse, enquanto se dirigia à porta da zona restrita:

— A dilatação se completou, podemos ir para a sala de partos.

Bowlby, que foi um dos pioneiros na investigação do apego entre mães e filhos, dizia que o pai não tem nenhuma importância para o recém-nascido, e sua partici­pação se resume em ser uma fonte de recursos econômicos e suporte emocional para a mãe. Apesar dessa posição pessimista quanto ao papel desempenhado pelo pai, vários outros autores demonstraram que o desempenho dos pais em sala de parto tende a ser muito semelhante ao que frequentemente é observado com as mães que acabaram de ter seus filhos. Dessa forma, os mesmos rituais de re­conhecimento e de contato seriam estabelecidos não fossem as expectativas e os papéis sociais fixos encontrados nas sociedades. Livres das constrições e imposi­ções sociais, os homens poderiam estabelecer as mesmas manifestações de apreço, carinho, apego e amor pelas suas crias que suas mulheres apresentam. Esse comportamento de formação de apego é o que se chamaria de “espécie es­pecífico”, e tem sua origem geneticamente determinada, segundo uma das hipóte­ses que existem contemporaneamente, de Wenda Trevathan, antropóloga ameri­cana que escreve sobre as origens do nascimento sob uma perspectiva evolucio­nista darwiniana. Hoje em dia muito se tem estudado a respeito da importância do pai na sala de parto, porque a pressão cultural pela participação ativa dos parcei­ros na hora do nascimento levou os profissionais, e mesmo os hospitais, a se pre­pararem para que a chegada do bebê ocorra preferencialmente com a presença do genitor. O próprio método Lamaze, dos anos 1960, estimulava a presença do pai como orientador, um condutor da paciente diante das agruras do trabalho de parto. O pai entrava no cenário do parto pelas mãos do médico, como seu aju­dante de ordens.

Na atualidade, questiona-se novamente se a presença do pai seria benéfica para o bom andamento do parto ou se ele seria um intruso no cenário essencialmente feminino do nascimento. A verdade é que os comportamentos em sala de parto tendem a ser muito variáveis, desde pais que entram em perfeita sintonia com o processo de nascimento e dessa forma auxiliam a gestante durante todo o desen­rolar do processo até pais que, pela sua intensa ansiedade diante do desconhe­cido, funcionam como “disseminadores de adrenalina”, como afirma o Dr. Michel Odent. Estes últimos funcionam como promotores do círculo vicioso de medo-ten­são-dor descrito por Grantly Dick-Read nos anos 1930, e não foram poucas as vezes em que a saída desses pais nervosos da sala foi a responsável pela mu­dança radical e positiva no resultado de um parto. Entretanto, a experiência de­monstra que, quando bem conduzidos e orientados, os pais são, via de regra, su­porte emocional e afetivo de qualidade para a grávida. Além disso, a experiência viva da paternidade tem a potencialidade de fortalecer os vínculos desse novo pai com o recém-nascido, assim como estreitar os laços amorosos com sua compa­nheira.

Pelo menos agora eu sabia que a espera estava por se findar. O bebê havia atin­gido a parte inferior do canal de parto. Minha insipiência médica me deixava à mercê do que era dito. O que sabia um aluno de terceiro ano da escola médica sobre partos? Quase nada. Sem perguntar se era permitido, invadi a área restrita do centro obstrético, depois de trocar de roupa no vestiário. A presença dos pais na sala de parto no início dos anos 1980 era vista com franca desconfiança. So­mente eram “liberados” aqueles que tivessem solicitado com antecedência para os responsáveis pelo centro. Estar ao lado de sua mulher, filha, amiga ou irmã era uma concessão, nunca um direito. Eu conhecia essa norma, mas, mesmo sem pedir solicitação, adentrei a área de partos e deixei claro que esse direito era meu, e que ninguém poderia me impedir de estar ali.

Eu agora estava todo de verde. Estava igual aos residentes e doutorandos. Tive a sensação (que eu repetiria alguns anos depois) de que havia vestido a roupa do Super-Homem, o todo-poderoso ícone de Seinfeld. Menos charmosa, com menos glamour, mas que produzia os mesmos efeitos. Senti-me participante de uma confraria de homens que decidem sobre a vida e a morte de outros. Há poder maior que esse?

Ela foi colocada deitada de costas sobre a mesa fria. Ainda era cedo para que eu entendesse o quanto essa posição das mulheres ao parir obedecia a uma ordena­ção simbólica oculta e inconsciente, e o quanto era prejudicial tanto para ela quanto para o seu bebê. Naquele dia, porém, eu era apenas mais um pai desem­poderado olhando atônito para uma mulher parindo inserida no modelo tradicional. Eu rezava e esperava o quanto podia; ela se esforçava além do que imaginava ser capaz. Fazia a força mais poderosa que seu corpo permitia. O alarido na sala vi­nha de todos os lados. As enfermeiras, os médicos, todos gritavam, como que querendo exorcizar a angústia que traziam dentro de si. Eu ficava parado, imóvel, assustado em um canto da pequena sala. Não ousava dizer uma palavra, porque temia que ela fosse interpretada como uma interferência, e me determinassem sair. Ela suava, pálida, jogando todas as gotas do seu sangue nos braços e no útero. Os minutos passam, e quanto mais tempo permanecíamos na sala de parto mais a ansiedade dos médicos aumentava. Eu já sabia, desde aquela época, que o relógio dos médicos é mais importante que a subjetividade de uma mulher pa­rindo. Gordas, magras, altas e baixas; ansiosas, tranquilas, aterrorizadas e alheias: todas eram iguais perante a visão homogenizante da obstetrícia. Sua de­mora em parir era sentida como ameaçadora pela equipe, e a angústia do resi­dente começava a aumentar. Sua testa destilava, e ele solicitava à enfermeira que a secasse. Eu observava as atitudes e anotava mentalmente. “Puxa, quando eu me formar, quero ter uma auxiliar só para secar a minha testa”. Brincava em soli­lóquio para afastar o pânico. Será mesmo que tudo está bem?

— Vou precisar de um fórceps — disse o obstetra.

Senti um medo vívido e dolorido pela primeira vez. Gritei em meus pensamentos:

— Lucas! Aguenta aí, meu velho! Eles querem puxar você!

A participação do pai no parto pode ser vista como um fato inato, geneticamente determinado, mas que não se expressaria na sua plenitude por fatores culturais e sociais. Mas também pode ser visto, alternativamente, como um processo de aprendizado absolutamente cultural. Ambas as formas de compreensão da “pater­nagem” coexistem na discussão contemporânea. De qualquer maneira, a expres­são última desse fenômeno é recentíssima na história da espécie humana. Nunca, em nenhum outro momento da história, o pai teve tanta presença e importância no nascimento de seus filhos como a época em que estamos vivendo. O que se per­cebe pelas últimas pesquisas é que o envolvimento paterno intenso, quando per­mitido, fortalecerá os vínculos futuros de assistência e afeto, tanto em relação ao bebê quanto com a sua mãe. Esse aspecto novo nas relações humanas, conju­gado com as modificações rápidas na sociedade nos aspectos sociais e econômi­cos, tem despertado o interesse de muitos pesquisadores a respeito das tendên­cias comportamentais relacionadas ao papel da paternidade no futuro da humani­dade. Nas palavras de Alice Rossi, “ou providenciamos uma compensação para o pai sob forma de treinamento nos cuidados com o recém-nascido, ou veremos um fortalecimento crescente da força e da importância da formação de apego entre a mãe e seu bebê, em função do fato de que a maternidade agora se estabelece por livre escolha e a figura paterna como fertilizador e provedor se encontra amea­çada”. Duas décadas se passariam antes que Maximillian, meu dileto colega e “mentor espiritual”, me contasse seu sonho pessimista sobre o masculino, mas que se encaixava perfeitamente no comentário acima.

Eu não sabia exatamente o que significava um fórceps, apesar de já ter visto al­guns. No terceiro ano de medicina, mal havíamos estudado bioquímica. Nada de pacientes, muito menos de grávidas. O pouco que eu sabia havia aprendido nos plantões intermináveis do Pronto-Socorro. Duas colheres frias de aço, entrelaça­das formando um “x”. Duas mãos de ferro, a tracionar o pólo cefálico. Eu não tinha noção de morbidade relacionada ao seu uso, mas sabia que ali estava uma deci­são que o obstetra estivera protelando pelos últimos minutos. Olhei mais uma vez para minha mulher. Cansada, frágil, fraca, intensamente bela. Mas também ela sentiu medo. O trovejar das colheres do instrumento de Chamberlain ecoou pela sala. Uma colher repousava na mão do residente, a outra aguardava na mesa.

— Fique em silêncio, não se mova… vou colocar a primeira colher. Vai sentir uma dor diferente, mas se você ficar quieta vai…

— Espera! — disse ela. O som saiu como um sopro por entre seus lábios sem cor. — Eu estou tendo uma nova contração. Deixe-me tentar de novo… por favor, uma última vez.

Em algum momento de nossa jornada na terra, tornou-se adaptativo para os ho­mens tomarem conta de suas fêmeas e filhos. Contrariamente ao que acontece com outras espécies, em que a participação paterna é inexistente ou pouco im­portante, entre os humanos tornou-se fundamental a presença do pai para a segu­rança daquilo que nossa espécie de forma muito específica criou: a família. A altri­cialidade, entendida como a extrema dependência do recém-nascido aos cuidados dos seus genitores, produziu essa aproximação do pai, na medida em que era mais interessante, do ponto de vista do sucesso reprodutivo, cuidar de uma fêmea e sua cria frágil do que tomar conta de diversas fêmeas e correr o risco de perder muitos recém-natos. A conduta adaptativa das espécies sociais, como os prima­tas, necessitava de uma intensa colaboração entre seus participantes. As ativida­des dos agrupamentos começavam a priorizar um comportamento baseado na divisão de alimentos e posteriormente na divisão das tarefas na família. Essa mo­dificação de tremenda importância na história da humanidade é a responsável por modificações na morfologia dos hominídeos, nos ecossistemas ocupados e na crescente dependência que se estabeleceu entre os recém-nascidos de nossa espécie, segundo as palavras do professor da Universidade de Kent, Owen Love­joy, autor da famosa publicação “A Origem do Homem”. Este mesmo autor escla­rece que a criação do núcleo familiar, pela disposição paterna de tomar conta de uma fêmea que lhe asseguraria a paternidade de sua descendência, produziu as condições necessárias para a supremacia da espécie humana, por fortalecer uma estratégia de cooperação e crescimento populacional. Assim, a paternidade, como fortalecedora do núcleo social, está relacionada à construção da humanidade como nós a conhecemos e concebemos. Hoje em dia cada vez mais a importância da interação afetiva (e não mais apenas econômica) é solicitada por parte do pai, e os valores da paternidade emergem em um mundo tão assombrado com as mu­danças vertiginosas nos conceitos até então inquestionáveis sobre o nascer, re­produzir-se e morrer.

A colher na mão do residente resolve voltar para junto de sua irmã sobre a mesa. Ambas em silêncio decidem assistir à última força, a derradeira tentativa. O resi­dente junta as mãos sobre o períneo de Zeza, como que a imaginar que delas surgiria a imantação a tracionar a cabeça de Lucas.

Então, o corte. Inevitável, cruel, cruento. Rasgava-se a carne, para manter intacta a estrutura social. Mantinha-se a ordem: “Só parirás se for através de mim. Pela minha mão sentirás em tua carne a lâmina grave que fere teu corpo. Ficarás mar­cada com a cicatriz eterna de minha presença. Terás teu filho pelas minhas mãos e por obra de minha vontade. Assim batizada, adentras o círculo da maternidade”. Também era muito cedo para me horrorizar com a barbárie das episiotomias in­justificadas.

O que me lembro a partir desse momento é uma coleção de fotos mentais, cola­das sem ordem no mural das lembranças mais cálidas. O choro, o medo, a emo­ção, a ansiedade, o alívio. A força suprema. O ápice da dor. O grito contido e a lágrima que escapa ao controle. As enfermeiras gritando, o médico com a respira­ção suspensa. Meu olhar fixo, e o coração parado.

Então ele aparece. Molhado, cabeçudo, “cabeça de ovo”. Tinha cara de “joelho”, como todo o recém-nascido, mas era incrivelmente lindo. Minha mulher dizendo que não conseguia ver direito, que queria tocar nele. A enfermeira secando sem cuidado; o corte rápido do cordão, privando-o das últimas gotas de seu próprio sangue, guardadas no claustro materno. A luz ofuscante da sala às claras, a pedi­atra chegando. Meu pobre filho sendo levado antes que minha mulher pudesse tocá-lo. Os comentários infelizes da neonatologista; o cansaço de Zeza. O abraço de minha mãe. Tudo se mistura, em uma amálgama de sentimentos, sensações, cheiros, cores e luzes. Mas ali estava ele. Sua primeira batalha havia terminado. E ali estava ela, radiante e gloriosa. Sua principal vitória como mulher tinha aconte­cido.

Olhei para suas feições procurando me enxergar. Na orelha, o mesmo furinho que o pai trouxe de nascença. O sorriso imaginado na contração do rosto mostra tam­bém as mesmas covinhas herdadas. Minha mulher não se importa que eu me jul­gue parecido; pelo contrário, sorri da minha necessidade de produzir uma vincula­ção. Sua ligação com a cria repousa sobre a evidência gritante e avassaladora da sua experiência corporal. Seus músculos doídos, sua sutura perineal, seu can­saço, tudo isso lhe prova. Toda a patrilinearidade da cultura se assenta sobre essa natural desconfiança sobre a linhagem paterna. Nós, homens, não experimenta­mos no corpo nossa descendência. Ela se instala na confiança e no desejo. Para criarmos essa certeza, lhes damos nossos nomes. Criamos neles a marca pa­terna, indelével e perene, para que nunca se apague nossa ligação, e nunca se duvide de nosso sangue.

Fixo-me em seus olhos. Olho atentamente para ele.

Você voltou, amigão.

Alguns anos se passam e a história se repete.

Acordo sobressaltado. Olho para o teto e descubro-me fora de casa. Estava na casa de praia e precisava acordá-la para contar o que havia acontecido.

— Zeza — digo eu. — O sonho… aconteceu de novo.

Ela primeiramente não entende. Olha para mim sem saber o que dizer. Aos pou­cos, sem mesmo precisar perguntar, vai se dando conta do que eu estava di­zendo.

Conto-lhe o sonho, esmiuçando os detalhes. O mesmo lugar, a mesma estrada, o mesmo breu. Novamente a luz se faz à minha esquerda, e de lá brota a voz grave anunciando a chegada de mais um integrante da família.

— Preparem-se. Mais alguém está para chegar. Sua mulher está grávida de novo, e terá um filho que se chamará… Josué.

— Impossível — diz ela. — Impossível mesmo. Desta vez você está errado. Existe uma impossibilidade absoluta.

Fico em silêncio e resolvo esperar. Horas mais tarde, pergunto de sua menstrua­ção e ela, um pouco irritada, me informa que “acabara de ter suas regras”.

Dou de ombros. Eu já sabia. Algumas semanas depois a realidade vem à tona, e a gravidez transformou-se, novamente, de sonho em fato.

O parto veio a acontecer três anos depois do parto de Lucas. Dessa vez, Zeza resolveu esperar em casa até o último instante. Foi a mais sábia decisão que po­deria tomar. Sabendo de antemão do estresse relacionado à hospitalização, pro­positadamente adiou sua entrada no centro obstétrico o mais que pôde. Muitos anos ainda se passariam para que eu percebesse racionalmente o que ela intuiu naquela noite quente de primavera. Ela “sabia”, mesmo que inconscientemente, que a internação hospitalar fora a principal fonte de desequilíbrio no seu parto an­terior. Entendeu que as horas que permaneceu no centro obstétrico foram extre­mamente estressantes e angustiantes, capazes de bloquear a progressão do seu trabalho de parto. Dessa vez, seria diferente.

O telefone tocou e do outro lado da linha a voz era suspirosa, entrecortada e tensa. No hospital-escola onde estava realizando meu último plantão como estu­dante, eu soube do que se tratava mesmo antes da primeira palavra. Zeza estava com contrações vigorosas, mas estivera em casa, fazendo o tempo passar, por várias horas. Esperou para me ligar apenas quando pressentiu que o momento era chegado. Eu a tudo escutei, e lhe disse que viesse ao hospital que eu me en­carregaria de chamar os colegas.

Chegou lá com mais de oito centímetros de dilatação cervical, e minha filha nas­ceu pouco tempo depois.

Minha filha? Mas não era esperado Josué, aquele que derrubara as altas torres de Jericó com suas trombetas, conquistando a terra prometida para o “povo esco­lhido”? O que foi feito do guerreiro hebreu? Afugentou-se com a dureza da em­preitada e ofereceu seu lugar a uma garotinha? Mistérios ainda não resolvidos. As múltiplas interpretações para esse fato ainda são motivo para acalorados debates em família.

Zeza, dessa vez, não teve tempo de ficar ranzinza. Do momento da internação até o parto, não se passaram mais do que duas horas. A sabedoria na parturição tam­bém ocorre com a experiência. Novamente eu estava junto dela, mas não precisei fazer pressão para ser admitido: eu era o doutorando do plantão obstétrico. Na­quela noite/madrugada de dezembro de 1985, o acaso colocou no mesmo plantão do hospital o futuro pai, o pediatra, a obstetra e o tio médico. Todos estavam lá, sem que nunca houvessem combinado. Isabel, que era esperada como Josué, nasceu linda e charmosa. Também nasceu de um sonho, como seu irmão. Igual­mente não foi planejada, mas a recebi como alguém que eu ansiava por reencon­trar. Percebi claramente que eu precisava estar no nascimento de ambos para po­der constatar a força transformadora que o nascimento produz. Para sentir a dor e a angústia de sentir-se sob o controle de algo muito maior. Sabia que este apren­dizado seria fundamental para moldar o médico que eu queria ser. Depois disso, tornei-me um defensor do direito dos pais de assistirem ao nascimento dos seus filhos. Fui obrigado a comprar algumas brigas e criar algumas inimizades, mas percebi que estava tratando de um dos mais elementares direitos do homem: o direito de presenciar o milagre da vida, de assistir a criação da sua imortalidade.

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Bate boca

Acho curioso como as brigas entre celebridades são tratadas por nós. A última treta é esta dos últimos dias envolvendo o jogador Neymar e uma atriz aposentada que mora em Portugal. Creio que a gente erra quando espera destes sujeitos muito mais do que são capazes de oferecer. Neymar é um craque do futebol, um dos maiores jogadores que este país já produziu. Poucos futebolistas do mundo poderiam estar na mesma prateleira que ele. Dito isso, ficar acompanhando as fofocas da sua vida pessoal é uma enorme perda de tempo, e um brutal click bait de franco atiradoras que desejam notoriedade com esta polêmica.

Enquanto cidadão, Neymar é um claro produto de seu meio: um sujeito pobre tornado rico que se identifica com os valores burgueses. Todavía, quando olhamos para seus colegas de profissão, quem escapa dessa sina? Quem reconhece de onde veio e tenta mudar essa realidade – sem ser através de doações pontuais e caridade midiática? Entretanto, este não é um comportamento exclusivo de jogadores de futebol. Conheço meninos muito pobres e ambiciosos que cursaram medicina e hoje são fiéis defensores de Bolsonaro e da extrema direita, fazendo pouco caso das pessoas sue se encontram no mesmo extrato social de onde vieram. As posições empresariais de Neymar são características de “boleiros” cheios de dinheiro e sem qualquer perspectiva ecológica e social. Sua parceria com Luciano Huck, um neoliberal aecista e bolsonarista, associado a tudo que se relaciona com a direita mais retrógrada deste país, é uma conexão absolutamente natural. Bizarro mesmo é encontrar jogadores de esquerda ou defensores da justiça social.

Ademais, as pessoas que agora o atacam são tão ou mais socialmente irresponsáveis do que ele. Moristas e lavajatistas de primeira hora, abraçaram o fascismo bolsonarista com todo o fervor. Expõem suas aventuras sexuais na Internet, confessam o uso de drogas diariamente ao mesmo tempo em que acusam o jogador de ser um “mau pai”. Ora, façam o favor; mesmo que seja verdade, tudo isso não passa do conhecido “roto que fala do rasgado”.

O erro, mesmo que seja difícil admitir, é esperar de simples jogadores de futebol e atrizes de TV que sejam algo além do que seu talento específico lhes permite. Pedir para Neymar que seja um bom cidadão, mesmo virado de costas para o Brasil, é inútil. Ele joga futebol; não exijam dele nada mais que isso. Pedir para uma artista em crise profissional (como ocorre com muitas atrizes lindas quando a idade chega) que tenha consciência de classe, empatia com o povo brasileiro (autoexilada na Europa) e bom senso político é pedir muito mais do que é capaz de oferecer. Esses bate bocas servem para garantir publicidade a estas personalidades, mas nesta equação somos essencialmente massa de manobra, conduzidos a tomar posição e levados a assumir um lado, mesmo quando se trata de pessoas cujas semelhanças em termos de alienação ultrapassam em muito qualquer diferença que possa existir.j

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Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

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John & Julian em Ithaka

O poema “Ithaka” de Constantine Cavafy, foi escrito no início do século passado, em 1911, e oferece a perspectiva de que deve haver, em nossas ações cotidianas, a supremacia da viagem sobre o destino. Ithaka simboliza o objetivo supremo que todo sujeito procura durante sua existência. Cavafy faz uma alusão à lendária viagem de retorno de Ulisses, rei da ilha de Ithaka, onde sua esposa Penélope e seu cão Argos o esperavam após a vitória dos gregos sobre os troianos – que Homero retratou em “A Odisseia”. O poema se refere ao percurso pessoal e subjetivo que cada um de nós empreende durante sua vida e sugere que procuremos encontrar durante a permanência na Terra nossa própria Ithaka, o objetivo supremo, que é uma forma de garantir sentido à nossa trajetória pelo planeta. O poema de Constantine, um grego radicado na Inglaterra, ficou tão conhecido que foi recitado no funeral da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy Onassis.

Ithaka (e mantenho aqui a grafia original) é também o nome do documentário recentemente lançado que trata da relação de John Shipton com seu filho famoso, Julian Assange, preso da penitenciária londrina de Belmarsh, onde aguarda sentença de deportação para os Estados Unidos. O filme teve sua apresentação pública ontem na minha cidade e contou com a presença de John Shipton, personagem central do filme, e aborda as peripécias deste australiano de 76 anos que lidera no mundo inteiro uma campanha para a libertação do seu filho, editor chefe do Wikileaks, que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque e na prisão de Guantánamo no Caribe. Mostra os detalhes da sua vida comum, seu temperamento taciturno e reservado, a relação com os filhos e as conversas com a nora Stella Morris, mãe dos dois filhos de Julian.

Evidentemente existem várias formas de ver este documentário, dependendo da ótica que você escolhe para captar as imagens na tela à sua frente. A mais evidente maneira é olhar para a luta empreendida pelos ativistas do mundo todo pela liberdade de imprensa, pelo direito de expor os crimes contra a humanidade cometidos pelos poderosos, em especial aqueles que controlam as leis, a mídia, a propaganda, as reservas de recursos naturais, os territórios e o comércio. O filme aborda isso de uma maneira bem clara, mostrando que nenhuma acusação contra Julian sobrevive a uma análise baseada nas leis de proteção das fontes e da liberdade de imprensa – em especial as leis americanas. Fica evidente que a prisão de Julian Assange cumpre um objetivo claro: humilhar publicamente alguém que denunciou a barbárie do imperialismo, castigando ao extremo aquele que ousou enfrentar os poderes imperiais e dando um recado a toda a imprensa mundial: não há espaço para criticar os poderes da polícia do planeta; quem assim o fizer será submetido à todas as sanções possíveis, perseguições, ataques, destruição da honra, mentiras e – se for possível – a própria morte. Em verdade, a tortura realizada contra Julian Assange pretende condená-lo à pior morte: a loucura e/ou a depressão pelo isolamento e pelo absurdo das acusações às quais é submetido. Como o personagem Josef K., de Kafka, os supostos crimes cometidos são o que menos importa; o que vale é punir por razões aleatórias e fabricadas qualquer sujeito que ameace os interesses americanos. O “lawfare” contra Lula mostrou em nível local o quanto os interesses geopolíticos de dominação conjugados com a corrupção do judiciário são capazes de servir aos mais espúrios interesses do imperialismo.

Outra forma de ver o documentário é pela exposição da fragilidade crescente dos governos europeus, absolutamente controlados pela política externa americana, não apenas nos aspectos políticos e bélicos (a guerra contra a Ucrânia é um claro exemplo) mas também o poder que a máquina publicitária americana exerce sobre a opinião pública e o próprio judiciário. Fica evidente o quanto os juízes britânicos são meros marionetes comandados pela mão pesada dos americanos, que são quem está de fato julgando este caso, a partir da sua visão persecutória e imperialista. Não há qualquer autonomia para julgar Assange – tanto quanto não havia para os juízes do Iraque ocupado para julgar Sadam Hussein – o que nos demonstra que a tão propalada “liberdade” dos países do “primeiro mundo” nada mais é que uma peça de propaganda, uma mentira mil vezes contada, que apenas serviu para criar a fantasia do ocidente como um espaço de liberdade de expressão e de abertura política. Estas farsas, esses simulacros de democracia, estão sendo aos pouco desvelados e Julian Assange está recebendo esta cruel punição exatamente por se postar na linha de frente nas denúncias, apontando seus dedos para os crimes hediondos cometidos pelos Estados Unidos nas guerras em que se envolveram.

Porém, há uma outra forma de ver o filme, provavelmente a mesma que inspirou John e seu filho Gabriel (meio irmão de Julian) para colocar no documentário o nome de “Ithaka”. O personagem central da película é John Shipton e bem no princípio do filme ele se irrita quando questionado sobre o que o levou a ficar separado do seu filho dos 3 aos 20 anos. Certamente tem a ver com a separação da mãe de Julian, mas isso não fica claro. Ficou incomodado quando foi perguntado sobre o diagnóstico de Asperger que seu filho Julian tem, dizendo “ele é o que ele é”. John Shipton demonstra durante todo o documentário que é um sujeito pacato, nascido na Austrália, sem vinculações políticas explícitas, com um caráter evidente de misantropia bem humorada, reservado, quieto, pouco afeito a conversas e arredio à publicidade e aos jornalistas. Ele é um dos mais perfeitos exemplos de um sujeito jogado involuntariamente – e totalmente despreparado – no olho de um furacão que está envolvendo os próprios princípios democráticos mais basilares da cultura ocidental: a liberdade de imprensa e o direito de denunciar os crimes cometidos pelo Estado – e pelo Império.

John é a verdadeira personificação do sujeito anônimo que subitamente ganhou notoriedade internacional. No seu caso isto ocorreu pela prisão criminosa de seu filho, o que fez um pacato “Zé Ninguém” de mais de 70 anos ser alçado ao posto de herói por multidões. No meio do filme ele diz a frase que mais me tocou, e tenho certeza que muitos que viram o filme também sentiram a mesma emoção que eu naquela simples resposta a um jornalista, a qual continha o cerne de sua jornada em direção à sua Ithaka pessoal. Quando instado a falar o que o movia nessa aventura ele respondeu “Porque sou pai, e isso é o que qualquer pai faria por seu filho”. Ou seja, John provavelmente continuaria indefinidamente em sua vida pacata na Austrália, construindo casas e se alegrando quando as pessoas se mudam para elas. Jamais pensaria na tarefa nobre de defender a causa da liberdade de imprensa ou de combater os poderes abusivos do imperialismo em tantas partes do mundo. Continuaria a ser o sujeito ranzinza e pacato que sempre foi, cultivando seu jardim e cuidando de sua filha pequena. Porém, tudo indica que foi convocado pela deusa “Álea” – a divindade dos fatos aleatórios – para ser o divulgador da causa do seu filho, o mais famoso preso político do mundo. Talvez ele fosse o mais despreparado de todos os humanos para empreender esta viagem tão árdua, difícil e cheia de armadilhas. É possível, entretanto, que esta seja a verdadeira razão oculta da odisseia que transformou sua vida, fazendo do trajeto inusitado que surgiu algo capaz de dar verdadeiro sentido à sua existência. Por muitas vezes eu me coloquei no lugar de John Shipton, pensando o que eu faria em seu lugar, convocado a combater os gigantes macabros que tentam destruir seu filho e – acima de tudo – exterminar o que resta de liberdade de expressão no mundo. Muitas vezes pensei se teria a mesma coragem para denunciar a barbárie que testemunhei. Uma pergunta de difícil resposta; ou talvez a resposta mais fácil.

John Shipton em P. Alegre

Ao final da apresentação do filme pensei em perguntar para John como um pai se sentia vendo seu filho preso, doente, torturado e injustiçado. Quais são as emoções diante da impotência de testemunhar a violência do Estado contra alguém cujo crime foi revelar a verdade. Preferi me calar porque sabia que essa pergunta pouco poderia revelar objetivamente, porque só calçando os seus sapatos e caminhando o percurso tortuoso que ele trilhou para saber a dor de esperar a volta de um filho injustamente acusado, inocente e preso por ser bravo e combativo. Coube ao meu filho Lucas, que me acompanhou ao evento, pedir que ele recitasse a poesia Ithaka, que deu nome ao documentário, e pedisse para que ele nos dissesse “quanto tempo temos e quanto de esperança podemos carregar ao peito”.

Sua resposta foi até óbvia: ele se mantém esperançoso e seu filho “sofre, mas resiste”, e que o imenso apoio internacional que está recebendo de tantos povos, nações e instituições é uma luz de fulgurante esperança de que Julian um dia poderá voltar para casa – ou para o Brasil, conforme o convite do próprio presidente Lula. A seguir recitou em inglês o poema Ithaka, cuja tradução transcrevo abaixo:

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Poseidon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Poseidon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Poema de Konstantinos Kaváfis (1863-1933)

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Vovô

Um debate curioso: mulheres de mais de 60 anos que se ofendem quando chamadas de (ou descritas como) “vovós”. Posso entender que isso pode ser ofensivo quando a mulher não tem filhos (portanto, em geral, sem netos), mas para mim é estranho que alguém se ofenda por ser chamado pelo nome que descreve o mais vitorioso de todos os sujeitos no critério “reprodução”, e na categoria “manutenção dos genes no pool planetário”.

Portanto, talvez antes de questionar a inadequação de chamar as pessoas mais velhas dessa forma seria interessante analisar porque nos dias de hoje isso é considerado ofensivo. Eu pergunto: por quê? Qual o demérito em ser vovô? Antes disso eu igualmente nunca tive problema algum em ser chamado de “tio”, e me orgulho dos meus 30 sobrinhos. Por que ser “vovô” parece ser visto por alguns como um defeito?

Assim, mantenho a pergunta: qual o problema em ser vovó ou vovô? Por que seria demeritório ser chamado dessa forma? No meu caso, a partir do dia que nasceu meu primeiro neto eu assumi a persona “Vovô Ric”, sem nenhum pudor (e eu tinha apenas 52 anos!), até porque o meu grande sonho na vida sempre foi ser avô. Igualmente quando eu me tornei pai não achava ofensivo ser chamado de “papai”.

Essa manifestação de desprezo aos vovôs não seria o real ageísmo?

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Sinais

Os sinais estão lá, para quem ousar decifrá-los.

Acredito que o sujeito que será um bom pai – ou um pai comprometido e amoroso – enviará sinais desde os primeiros momentos, ainda no processo de enamoramento, sob a forma de códigos, sinalizações, mensagens criptografadas, dicas e pistas esparsas, que aparecerão nos detalhes do comportamento e nos espaços de silêncio que separam as palavras. Podemos perceber na forma como fala das crianças, como as enxerga e como entende sua educação.

Se quiser saber que pai ele será, também pode ser de ajuda saber como foi a sua relação com os seus pais, as mágoas que ficaram, os traumas e temores. Dá para perceber a paternidade latente ao observar como lembra do seu próprio pai e como o trata na velhice; se perdoou suas falhas e erros e se tem ressentimentos e cicatrizes afetivas em relação à sua infância.

A paternidade já está inscrita nele através dos padrões que recebeu dos pais – em especial do pai, que será eternamente seu modelo. Por certo que não há como saber tudo, e acredito que existe a chance de haver surpresas – para o bem e para o mal – mas é possível ter uma boa noção de como ele se relaciona com a paternidade. Não é um tiro no escuro, ainda que a luz tênue que ilumina o traçado torne sua leitura um mapa de laboriosa decodificação.

Para uma mãe use a mesma regra….

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