Arquivo do mês: julho 2020

A doença sagrada

– Ajudem!! Ajudem!! Salvem o meu filho!!

O homem negro e magro entrou correndo na sala de atendimento com o filho desfalecido nos braços. No Pronto Socorro ele ultrapassou todas as portas aos gritos. “Salvem meu filho!!!”, gritava. Trazia nos olhos a marca rubra da embriaguez. O filho, também esquálido, não tinha mais do que 6 anos. Jogou a criança nos meus braços, jovem interno, estudante do 5o ano de medicina. Não houve tempo de chamar o médico responsável; corri com o menino nos braços e o coloquei sobre a maca de curvim azul.

– A gente estava num churrasco. Ele caiu e começou a tremer e chacoalhar. Tentei puxar a língua. Depois ele desmaiou.

O pobre homem trocava as palavras, enrolava a língua. Estava bastante embriagado, mas pude entender do que se tratava. Coloquei a mão sobre o peito do menino. O coração estava acelerado e a respiração normal. Em verdade, dormia. Estava em estado pós-convulsivo.

Eu também suspirei. Por um instante imaginei o pior. Atropelamento, bala perdida, acidente doméstico. Em verdade, o menino estava repousando seus sentidos após a descarga intensa de uma convulsão epilética.

O que eu ainda não sabia é que a sociedade não produz doenças em vasos estanques. Não havia apenas um paciente ali; ao meu redor havia pelo menos dois, além daqueles que ainda estavam por chegar. Um pai que passa pelo terror de carregar um filho supostamente morto nos braços também está enfermo, mesmo que nenhum órgão esteja (ainda) danificado.

– Ele está bem, disse eu afastando o estetoscópio do seu peito após escutar seus batimentos firmes e compassados. Pode aguardar ali fora, cuidaremos dele.

Nesse momento o homem se enfureceu. Fuzilou-me com seu olhar alcoólico e cuspiu as piores violências.

– Como pode estar bem? Estou vendo uma criança que não consegue acordar!! Ele vai morrer!! Vocês não estão fazendo nada!! Bandidos!! Façam alguma coisa!!

Ato contínuo, desferiu um soco no meu estômago. Senti o impacto duro do punho e meu corpo se projetou para trás. Ele, aparentemente assustado, recolheu os braços mas continuou os xingamentos. Meus colegas se colocaram entre nós, enquanto outros saíram da sala em busca dos seguranças.

Eu havia me tornado pai recentemente. Meu filho tinha poucos meses de vida. Podia ler nos olhos daquele homem a indignação, o medo, a dor e a impotência. Reconhecia estes signos e entendia essa fragilidade.

Quando os seguranças chegaram ele já estava mais calmo. Outros estudantes e o médico já lhe haviam confirmado o que eu tinha tentado explicar. Mais calmo ele começou a chorar. Sentou-se em uma cadeira no canto da sala e repetia “achei que ele tinha morrido”. Depois de uns poucos minutos levantou-se de lá, deu dois passos em minha direção e me abraçou. Entre soluços me disse:

– Desculpe doutor, eu estava com muito medo. Achei que tinha perdido meu filho.

Recordei essa história porque li de novo a reportagem que fala da agressão de um homem a um profissional que atendia o parto de sua esposa. Imediatamente houve a justa indignação da corporação, da imprensa e dos colegas.

Passei três décadas lidando com essa tensão e posso entendê-la. Pior ainda, atendia de forma não convencional, aguardando os tempos, respeitando a fisiologia e os desejos do casal. Todavia, nem sempre a “turma de fora” – a família e os amigos – pensavam da mesma forma. Não foram poucos os momentos de alto tensionamento.

Não há dúvida que há despreparo por parte dos familiares, por certo, mas também ocorre uma falsa expectativa produzida na cultura sobre os tempos do nascimento.

Além disso, nossa sociedade ainda acredita que a violência – física ou simbólica – é uma linguagem válida para solucionar conflitos.

Tanto na minha experiência como estudante quanto nos relatos de parto de que fui testemunha existem histórias colaterais que são igualmente interessantes. Por que explodiu dessa maneira? O que existe na sua história pessoal que foi despertado na tensão de um momento limite? Como atender estas pessoas que – assim como os doentes – também precisam de ajuda?

Claro que falta educação por parte de pais e familiares. Entretanto também é fato que os profissionais e os hospitais quase sempre estão despreparados para lidar com pessoas que enfrentam estas crises. É muito frequente que ao invés de acalmá-los, os ameaçam. Ao invés de conversar e tranquilizar oferecem cenários trágicos. Ao invés de valorizar sua presença e sua potencialidade positiva colocam valor apenas nos médicos, nos tratamentos e no hospital. O sujeito se sente encurralado; os profissionais sucumbem ao medo.

Todo mundo acha importante estudar o psiquismo das grávidas e (quase) ninguém se interessa pelos dramas emocionais dos pais, entretanto cobramos e/ou exaltamos a presença dos homens no evento. Da mesma forma, entendemos de forma bem precisa os mecanismos químicos que produzem uma convulsão, mas por vezes ignoramos como tratar a família que adoece junto com aqueles que sofrem este drama.

A atenção à saúde pressupõe uma percepção holística da doença, e uma abordagem inclusiva, que não despreza nenhum dos atores nela envolvidos.

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Anacronismos

Não há dúvida que Monteiro Lobato era racista. Mais ainda, era um eugenista, um entusiasta da KKK e um racista ATIVISTA, mais do que apenas um sujeito com preconceito racial. Foi membro da sociedade paulista de eugenia e divulgador dessas ideias, as quais – no início do século XX – tinham uma aura cientificista.

Todavia, esta não é a mais importante abordagem. O que me parece urgente debater em tempos de “cancelamentos” a respeito da “questão Monteiro Lobato” é o quanto é possível “separar autor de obra” e se é adequado que sejam feitos julgamentos sobre figuras da literatura fora do devido contexto histórico. Ou seja, separar a obra das questões subjetivas de quem a escreveu e não sucumbir ao anacronismo – o julgamento de um sujeito apartado de seu tempo.

Nem é necessário ir muito longe. Na minha própria experiência pessoal existem claras lembranças de uma época em que tais ideias não recebiam da cultura o adequado contraditório. Ao longo de toda a infância eram comuns as piadas racistas, as quais eram contadas impunemente para qualquer um – inclusive por mim – pois eram tratadas na cultura como “brincadeira”, “chiste”, “jocosidade”, etc. Não há dúvida, entretanto, do seu conteúdo racista e segregacionista quando expostas às luzes do século XXI. Usava-se da piada para encobrir um conteúdo separatista, um apartheid informal e subliminar, essencial e estrutural, que se expressava em uma forma extremamente potente de coesão cultural: o humor.

O mesmo ocorria com as piadas homofóbicas. Na minha época um dos humoristas mais celebrados era o “Costinha”, um dos artistas mais engraçados do seu tempo. Entre suas piadas, 90% eram sobre gays, “bichinhas”, como ele dizia, homossexuais com atitudes afetadas. Hoje em dia suas piadas seriam um escândalo, mas apenas 40 anos nos separam do seu auge como piadista. Julgar Costinha – e não suas piadas – seria um anacronismo, assim como julgar Monteiro Lobato sem levar em conta o entorno cultural em que estava envolvido.

Outro aspecto é pensar sobre Monteiro Lobato e esquecer a vida pessoal – e até a obra – de tantos outros escritores. Devemos, por exemplo, esquecer a obra de Heidegger ou Celine por suas vinculações com o nazismo? Seria justo apagar a música de Michael Jackson pelas acusações que recebeu – em vida e depois dela – de abusos sexuais contra menores? É adequado esquecer o racismo explícito de Humberto de Campos e Fernando Pessoa (sim!!!) ou devemos sorver suas obras e descontar os erros de seu tempo?

E a defesa da pedofilia de Simone Beauvoir? Deveríamos relevar estas manchas em sua biografia e continuar aprendendo com seus textos precursores do moderno feminismo? Ou devemos também apagar todos os seus escritos?

E o que fazer com os feitos de médicos brasileiros como Miguel Couto, Roquette Pinto (médico e pai da radiodifusão no Brasil), Renato Ferraz Kehl e tantos outros que participaram da Sociedade Paulista de Eugenia? E quanto a literatura infantojuvenil? Vamos “cancelar” Lewis Carroll pelas acusações de pedofilia que foram feitas contra ele? Deveriam as crianças todas do mundo ser privadas das aventuras de “Alice no país das Maravilhas” pela suspeita de uma falha ética do seu autor? Pior ainda: devemos destruir a obra de Woody Allen, falsamente acusado de abuso sexual, apenas para agradar a “patrulha”? E o que fazer com a pedofilia de Charles Chaplin?

Se um antropólogo achasse, mas areias da Galileia, um manuscrito essênio que revelasse uma mancha moral gritante de Jesus, seria justo acabar com o cristianismo em nome da purificação necessária para limpar esta mácula?

Há um adágio antigo que nos diz: “As virtudes são dos homens, as falhas são do seu tempo”. Eu li toda a obra de Monteiro Lobato na entrada da adolescência e não percebi nenhum racismo explícito nela. Não que não houvesse; ela estava evidente na topografia dos personagens, mas este racismo sutil ainda era invisível nos anos 70. Somente agora podemos percebê-lo para julgar sob esta nova perspectiva.

O mesmo digo dos outros autores. Não há mal algum em apontar a pedofilia, o nazismo e o racismo nos autores. Também é justo mostrar estes erros nas obras que escreveram, mas é fundamentar não se deixar levar pelo anacronismo, julgando um sujeito fora do seu tempo e da cultura que o envolvia.

Monteiro Lobato e muitos outros devem ser mantido nas escolas exatamente para que se possa debater com os alunos sobre os valores de meados do século XX. Apagar a história, mesmo em nome de valores nobres, empobrece a cultura.

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Pornografia

Eu acho que esse menino não é tão inocente. Existe uma mensagem subliminar nos seus vídeos que eu creio sem importante interpretar. Acho os vídeos bobos, mas sei que são feitos para meninas de 12 ou 13 anos. O jeito sedutor, as caras e bocas, etc…

Eu considero o sucedâneo das revistas Sabrina e Júlia: soft porn, ou pornografia feminina.

Aliás, para problematizar mais ainda. Vejo todos os dias críticas à pornografia dizendo que os meninos (mas claro, não as meninas) se viciam nos conteúdos da pornografia e acham que devem agir daquela forma, que é abusiva e irreal.

Acho o argumento meio forçado; existe pornografia até nas paredes das casas em Pompeia, o que me diz que ela é tão antiga quanto o próprio inconsciente. Sei que não acho que se deve manter uma coisa apenas porque ela é velha, porém é importante entender suas raízes na cultura. Mas aqui não é esse o ponto…

Eu pergunto então: Não estaria esse menino servindo como um exemplo tosco de sedução para os meninos, e uma expectativa irreal para as meninas?

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O Jardineiro Fiel

No corredor comprido e gelado do Hospital escola subitamente escuto uma voz ao meu lado, de alguém que acompanhava meus passos.

Ricardinho, disse ele. Quanto tempo!!

Olhei para o lado e encontrei um rosto conhecido. Sim, Gustavo – ou Guta – um amigo de infância, colega de escola. Jogamos muita bola juntos. Ele tinha um irmão mais moço, cujo nome não lembrava. Percebi que ele carregava uma enorme pasta, quase uma mala, e estava vestido de terno e gravata. O sorriso fácil estampado no rosto não deixava dúvidas: ele era um propagandista da indústria farmacêutica, profissionais que circulam dos hospitais fazendo publicidade dos seus remédios e oferecendo brindes, presentes, amostras grátis e outras facilidades para os médicos.

Foi muito cedo que eu conheci a Ciranda de benefícios, agrados e presentes que cercam os médicos nesta junção entre medicina e capitalismo. Ainda na faculdade assistíamos as apresentações dos propagandistas nos intervalos das aulas no hospital. Já naquela época recebíamos deles todo o tipo de agrado. Quando estava no último ano da Escola Médica, prestes a me formar, fomos em um grupo de doutorandos e residentes de ginecologia para um congresso sobre DST no Uruguai, onde um trabalho nosso seria apresentado. A viagem de ônibus – assim como os jantares, os lanches e até a bebida – foram pagos pelos laboratórios farmacêuticos. Era a semeadura, para que depois pudessem fazer a colheita.

– Conheces o Dr. F. aqui do hospital? perguntou meu amigo.

– Por certo que sim, Gustavo. Ele é o chefe do serviço. A equipe dele se reúne todas as segundas feiras. Precisas falar com ele?

– Ahh, se você pudesse me arranjar um encontro, mesmo informal aqui na cafeteria, isso seria o máximo. Eu represento o Laboratório N* e estamos lançando uma nova droga. Chama-se…

Ele me descreveu com pormenores o remédio que estava querendo apresentar ao meu chefe. Tratava-se de um medicamento anti-inflamatório não esteroidal, algo que nos próximos anos se tornaria um tremendo sucesso. Ele parecia excitado em me falar dessa droga, de tudo o que ela prometia, e como era importante que ela fosse padronizada na prescrição do hospital escola.

– Guta, disse eu, não passo de um mísero residente. Não tenho influência alguma sobre um médico famoso e importante como ele. Não creio que possa lhe oferecer ajuda.

Ele continuou com seu sorriso largo e explicou:

– Preciso chegar lá em cima, Ricardinho, nos chefes. É assim que funciona esse meu trabalho. Ele é um formador de opinião; se ele resolver padronizar “meu” remédio aqui e, mais ainda, se ele incorporar esta nova droga ao seu receituário pessoal não será sequer necessário falar com vocês. Ele é o “Papa”, e aquilo que o Papa escreve, os padres e as freiras copiam. Sacou? Por isso preciso “pegar” ele, o peixe grande.

Sorri para o meu velho amigo e o abracei. Desejei boa sorte e sucesso em sua empreitada. Hoje sei que foi plena de sucesso, já que o seu remédio se tornou um negócio multi milionário e um campeão de vendas. Mas, não foi a publicidade da droga o que ficou guardado em minha mente, nem a gravata extravagante ou o sorriso sedutor de meu amigo. O que eu nunca mais esqueci foi que aquela foi a primeira vez que me vi como “gado”, a ponta de lança de um negócio gigantesco, milionário e – muitas vezes – corrupto.

Depois de alguns anos desenvolvi um completo rechaço à mercantilização medicamentosa da saúde. Percebi o quão danosa esta relação entre dinheiro e saúde poderia ser e passei a ter uma visão crítica e – por vezes – ácida sobre estas questões. Com o tempo os propagandistas de medicamentos foram aos poucos deixando de me procurar, apesar de sempre tê-los tratado com educação e gentileza. Eu não era mais alguém em quem valia a pena investir tempo ou dinheiro.

Todavia, sempre fui fascinado por esse aspecto sombrio da medicina. Os propagandistas eram todos muito jovens (e os coroas, joviais), graduados na universidade, excelentes salários, bonitos, simpáticos, educados. Depois de alguns anos chegaram as mulheres. Uau, algumas eram de tirar o fôlego: sensuais, reservadas, simpáticas, lindas, conhecedoras do assunto. Todos eles nos envolviam magicamente apresentando os remédios com estudos de questionável qualidade, estatísticas igualmente frágeis, mas acompanhados de uma apresentação impecável.

Com os propagandistas aprendi muito. Não sobre drogas e seus usos, mas sobre o submundo da medicina. Depois de muitos anos eles acabavam criando confiança em mim e contavam o que ouviam nos consultórios.

– Um colega seu, aqui da Rua da Praia, ontem mesmo me disse: “Eu sempre prescrevi seu concorrente, mas posso mudar minhas receitas. O que você tem a me oferecer? Uma passagem de avião para o próximo congresso? A inscrição? Diga, o que eu ganho por esta troca?

– Sério? O pessoal trata vocês assim? Pedem agrados, presentinhos, passagens, inscrições….. propina? Em troca de uma mudança de receituário?

– Sim, claro. Nem sabe como é para montar os congressos. A jogada é assim: quando compram um “stand” de promoção de seus produtos isso lhes dá direito a uma palestra para promover um determinado medicamento. Podem convidar os seus próprios pesquisadores, sejam daqui ou do exterior. Acredite, sempre rola muita grana nesses eventos.

– Claro, mas esses agrados são só para os grandes, os “chefes de serviço”, os formadores de opinião. A chinelagem, o gado…. recebe uma caneta com o nome do remédio.

Dizia isso e mostrava para eles a canetinha que acabara de ganhar. Eles davam uma risada constrangida, tentavam explicar, mas era óbvio que eu era a ponta menos importante da equação das vendas. Peixe pequeno quando comparado àqueles que devotavam boa parte da sua energia para ocupar estes postos de poder. Agora eu entendia de onde vinha tanta energia para as disputas ferozes e violentas que meus colegas empreendiam para subir de importância dentro da corporação.

Com o tempo estes personagens foram escasseando da minha sala. Não vinham mais nem para tomar o sagrado cafezinho. Na volta do almoço eu os via aglomerados esperando os meus colegas de andar voltarem para as consultas da tarde. Eu ficava tentando imaginar como eles me enxergavam. Talvez como o tolo, o iludido, o ingênuo, o burro. Afinal, que mal poderia haver em receber estas amostras grátis, as suas belas palavras, suas agendas e seus porta-canetas?

Minha explicação para eles sempre foi: “Ninguém faz propaganda de pastel. Se estas empresas precisam contratar alguém como vocês para me fazer prescrever esta droga é porque, sem toda essa sedução, ela não se sustentaria”.

Já nesta época já me vinha à cabeça uma frase que me acompanhou até meu último dia de consultório: “Se a saúde baseada em evidências fosse realmente levada a sério a medicina praticada a partir de então seria um espetáculo completamente irreconhecível por nós”. Nenhuma propaganda seria necessária e os poucos medicamentos administrados seriam facilmente encontrados e muito baratos. As consultas seriam ricas de detalhes, plenas de envolvimento afetivo, orientação, exercícios, educação sobre caminhadas, comida de verdade, sexo, alegria, família, futebol, gargalhadas, etc.

Porém, nunca me deixei iludir. Eu bem sabia que a nossa medicina, capitalista e decadente, ainda reinaria por muitos anos, lucrando com nossas doenças e com nossa infelicidade.

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Eduardo e Mônica

Afinal, quem queria impressionar quem? O jovem garoto simpático ou a menina intelectual? A questão colocada por algumas pessoas é: por que ela, tão inteligente e profunda, se interessaria pelo Eduardinho – que ainda jogava botão com o avô e vivia no esquema escola-cinema-clube-televisão?

Ora, porque é assim que funciona a vida. Cultura e erudição não são as únicas moedas de troca no jogo da sedução. Ela podia gostar desses autores e artistas e ser uma menina insegura e carente. Quantas meninas cultas se apaixonam por caras cuja maior virtude é cuidar do seu próprio gato? Aliás, até eu me apaixonaria por um cara que joga botão com seu avô.
Ou será que ninguém aqui conheceu em sua vida um rapaz limitado em seus conhecimentos e estudos mas que transborda autoconfiança e charme? E quantas mulheres brilhantes acabam se envolvendo com canalhas, broncos ignorantes e superficiais tão somente porque lhes falta amor próprio?

De outra forma, quantos homens igualmente capazes, competentes e com profundidade se envolvem com mulheres egoístas e interesseiras que possuem como patrimônio apenas curvas, bunda e sexo exuberante?

A discussão sobre quem estava tentando impressionar é como o debate Capitu – traiu ou não? Creio que qualquer das opções é válida, só o que não se pode é esterilizar o desejo tornando-o objetivo e racional. Dizer que era Eduardo, ou Mônica, diz mais de quem fala do que da realidade desse romance.

Como diria Freud, se você explica o amor é porque não é. Se você sabe – conscientemente – porque ama alguém é porque há razões para esse afeto, então não pode ser amor, um afeto irracional. O desejo não pode ser tratado de forma racional, pois que ele habita em estratos muito profundos e primitivos de nossa estrutura psíquica.

Essa escolha não é racional. Em verdade, na escolha de um novo amor, nada mais justo que sejam repetidos nossos objetos de desejo, já que a forma que os constrói é a mesma. Sim, o amor da sua vida pode ser um profundo canalha, porque estas escolhas dormem nos porões obscuros e úmidos do nosso inconsciente.

Parem de tentar simplificar o desejo humano, que é algo complexo e misterioso.

Existem argumentos bem interessantes para todos os lados. A premissa inicial é de que os caminhos do desejo não podem ser racionalizados, como o fez a menina com círculo vermelho que está na imagem acima. Ora, uma moça intelectualizada, ou erudita, pode muito bem pendurar seu fantasma num adolescente que estava recém saindo aos trancos e barrancos da infância. Eu mesmo tenho uma amiga linda, maravilhosa, culta, inteligente que namorava um sujeito que trabalhava como agricultor, a quem ela chamava de “homem das cavernas”, um neanderthal. Mas, como poderia ser possível alguém criticar essa fantasia e esse desejo que era estranho apenas na superfície?

E é claro que podemos, sim, imaginar na letra do Renato múltiplas interpretações que, como eu já disse, falam muito mais de nós mesmos do que da letra, de Renato ou da vida. Uma letra, como qualquer obra artística, é fruto de seu tempo e dos valores de então, e cabe a nós função antropofágica de “comer Renato, digerir sua letra e expelir nossa interpretação”, junto com nossos próprios sucos gástricos.

Temos todos o direito de fazer uma interpretação “não problematizadora”, mas acho interessante que a gente queira problematizar ao limite esse encontro entre dois jovens em uma festa nos anos 80. Afinal, o que é “problematizar” senão retirar da superfície tudo aquilo que seduz o olhar mais falseia o conteúdo?

Acho muito interessante todas as perspectivas nesse caso assim como em Capitu. Parece que todos tem a resposta definitiva, a mais certeira percepção. E até nos convencemos, mas esta certeza dura até que alguém traga outra série de argumentos igualmente bons e convincentes. Por isso é que esses truques da literatura (no caso de Machado de Assis proposital, no de Renato creio que foi totalmente inconsciente) a engrandecem e produzem aquilo que existe de mais sagrado para um escritor: fazer seu leitor pensar junto, provocá-lo e colocá-lo contra a parede para, só então, revelar-se.

É incrível o quanto se coloca de paixão nestes argumentos… e também muito divertido ver o quanto uma estrofe pode gerar tanta profundidade.

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Dia da Morte

Sobre a mesa desarrumada, onde um trapo sujo guardava a memória das migalhas do dia anterior, ele jogou os cotovelos de forma cansada, enquanto olhava o pão cortado à sua frente que esperava sua justa porção de manteiga e uma pouco de mel.

– Eu sei como seria o meu jeito escolhido de morrer, disse Jacob enquanto finalmente colocava na boca uma fatia do pão dormido com a manteiga que Daliah havia deixado sobre a mesa.

– Mal posso esperar para saber, respondeu Hannibal sem desviar o olhar da lareira acesa à frente.

– Diga Jacob, diga-nos como pretende morrer. Quem sabe criamos coragem para lhe ajudar, continuou com seu habitual sarcasmo.

Jacob largou o pedaço de pão sobre a mesa e olhou para o teto do quarto, como se as imagens que descrevia estivessem projetadas sobre o madeirame corroído e sujo de fuligem.

– Eu escreveria um texto contundente e acusatório contra o Rei, cheio de ofensas hepáticas e indignações intestinas. Não pouparia nem sua família imunda das minhas lanças de fogo; sua mulher nojenta, sua mãe estúpida e nem mesmo Estelle, sua concubina. Sairia no breu da madrugada colando meu ódio com cuspe em centenas de postes próximos ao Palácio. Depois, voltaria para cá, tomaria uma taça de Bourbon, colocaria minha melhor roupa, guardaria um canivete no bolso, deitaria nesta cama suja e aguardaria a chegada da guarda real para lutar minha derradeira batalha.

– Que lindo Jacob, que heroico, sorriu Hannibal fazendo um muxoxo debochado..

– Caído no chão, com o corpo cheio de balas, ainda teria tempo para um sorriso. Olharia no rosto do soldado que chegasse primeiro, aquele que daria o tiro de piedade, e diria: “Toma aqui meu escarro de sangue. Sente o cheiro da minha pele queimada. Escuta o chiado do meu pulmão que se esvazia. Olha o sangue que pinta de rubro minha palidez. Aqui está um homem cujo ódio nenhuma bala pode matar. Ele seguirá depois que está carne apodrecer, e vai levar ao inferno aqueles que hoje riem de minha morte.”

Hannibal cortou o último pedaço de fumo e olhou seu amigo por cima do ombro. Ele sabia que a visão de Jacob poderia ser uma fantasia mórbida de glória, mas não estava longe de se tornar um dia verdadeira. Talvez mais próximo do que desejava.

Jules Marie-Vermont, “Le Palais du Haine” (O Palácio do Ódio), ed. Hachete, pág. 135

Jules Marie-Vermont nasceu em Calais, França, em 1947, apenas poucos anos após a vitória aliada na Europa na Segunda Guerra Mundial. Passou sua infância próximo ao mar e junto aos escombros da Batalha de Dunquerque. Suas memórias mais remotas são angústias derivadas do desastre guerra, mas também dos sonhos de reconstrução. Estudou literatura na Universidade Lille Nord, na cidade de Lille. Escreveu basicamente contos, ensaios, crônicas e roteiros para a televisão. É um amante da ópera, em especial da obra de Jules Massenet (de quem dizia ter herdado o prenome) tendo escrito uma biografia do grande mestre francês da ópera. É casado com Dominique e tem dois filhos: Manon e Thais (nomes de óperas famosas de Massenet).

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Ritos

Existe um tema que ainda não foi suficientemente debatido nestes tempos de isolamento social. Talvez seja mesmo natural que se deixe para mais tarde, diante do terror que nos impacta pelas mortes que nos cercam. Mas a precisaremos falar da supressão dos rituais.

Minha mãe faleceu em fevereiro, poucas semanas antes do surgimento da pandemia. Por causa disso ainda foi possível passar pelos rituais de despedida. O último adeus, o velório, o encontro com parentes e amigos, o discurso do meu pai, as lágrimas. Um ciclo que se fechou com os rituais que nos protegem e auxiliam na construção do luto.

Hoje em dia não há mais despedidas. Não há também a celebração daqueles que nascem. Não comemoramos em conjunto a passagem de um giro solar, não cantamos parabéns, não compramos lembranças e não celebramos nossos rituais de passagem da forma como sempre o fizemos em milênios.

Resta a pergunta: que tipo de sociedade sobrará quando nenhuma passagem puder ser marcada em ritos que exaltam seus valores mais profundos? Como ficam os sobreviventes que não conseguem passar pela dor transformativa de enterrar seus mortos? E as famílias que, apartadas do evento do parto, revivem – sem saber – o mito da cegonha?

Estas são questões que a vida pós pandemia deverá responder.

Entretanto, sou cético quanto a esta simplificação da vida. Abolir os rituais seria o mesmo que pular a corte, a espiral concêntrica dos encontros sexuais. Abolir, suprimir ou cortar os “pick up lines” o “você vem sempre aqui?” ou mesmo o simples “conheço você de algum lugar?” é absolutamente inimaginável para nossa espécie, mas mesmo para a imensa maioria das que conhecemos – de cães, insetos e passarinhos. Seria realmente possível partir diretamente para os atos sem passar pela torturante ritualística dos encontros?

Não. Os rituais são tão intrinsecamente imbricados na ação humana que seria impossível imaginar a vida humana sem estes artifícios.

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Idealizações

Toda a paixão por uma causa leva fatalmente à idealização. Mulheres, negros, índios, partos, gays, trans, socialismo, religião e todas as outras causas nobres sucumbem – mais cedo ou mais tarde – a este tipo de arapuca.

Não há como evitar. Se o motor é a paixão, e sendo ela irracional, como evitar que estas ideias fujam das rédeas frágeis da razão? Com o tempo o ativista percebe que seus pés se afastaram tanto do chão firme que não existe mais contato possível com a realidade. Tudo em volta é etéreo e moldável, como o desejo, e a realidade é vista através de um funil que tanto focaliza um fato quanto apaga o mundo ao redor

A maturidade de uma luta parte do arrefecimento desse afã juvenil, que tanto impulsiona quanto oblitera a visão. Amadurecer é aceitar o recuo das paixões para que se estabeleça um contato mais racional com nossas causas e propostas.

Como no amor.

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Guerra de autoridades

Ficar citando a opinião ou a perspectiva de médicos, químicos, virologistas, pesquisadores famosos a respeito da pandemia pode ter valor de alerta ou para estimular um debate saudável, mas não para determinar as condutas.

O que temos visto ultimamente na arena da Internet é uma guerra de autoridades. Meninos brigando por tamanho de pau. Disputa de egos. Infelizmente esta não é a arena adequada para descobrir a verdade e não se faz ciência com argumentos de autoridade, mas apenas com evidências atualizadas e bem avaliadas. Ficar citando o nome dos cientistas é pura perda de tempo e muito mais útil seria mostrar os estudos que eles publicaram, as análises feitas, as críticas de seus pares e os resultados encontrados.

H-Index não tem valor NENHUM diante de casos específicos. É uma medida de relevância no mundo acadêmico. São aqueles quadradinhos coloridos no peito dos generais. Valem para dar respeitabilidade a um pesquisador, mas não para mostrar as evidências em um determinado problema.

Certa feita 400 cientistas assinaram um documento contestando achados de Einstein. Este, quando ele viu o documento, respondeu: “Puxa, 400!! Não precisava tudo isso. Bastava apenas um com boas evidências.”

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Fetiche

Acordem desde torpor; romantismo é uma fantasia sexual tão válida quanto bundas, peitos ou pés.

Jeffrey Mallone, personagem de “A Mangled Desire”, de Emett Drurys, pág. 135

Emmet Drurys nasceu em Chattanooga, Tenesse em 1967. É basicamente um escritor autodidata, tendo iniciado sua carreira escrevendo roteiros de humor para a rádio local – 98.1 FM – THE LAKE. WLND-FM. Seus sketchs humorísticos fizeram muito sucesso local e por causa disso foi convidado a fazer parte da grade nacional de grandes emissoras de rádio. Escreveu seu primeiro livro – No Earth Connection – com recortes de suas histórias e piadas e foi um sucesso de vendas. Já em seu primeiro livro de ficção “A Mangled Desire” ele descreve as desventuras de Matt Rifkin, um “loser”, sujeito feio, pobre e sem sorte nenhuma com as mulheres e que tinha um inédito talento como cantor. Todavia, sua falta de atrativos físicos obrigou o produtor Edmond Baxter a criar uma farsa. Seu rosto não podia ser mostrado porque destoava de sua voz e por isso convidou Jeffrey Mallone, um bonitão charmoso, canastrão e sem talento algum para a música, para emprestar seu corpo e seu rosto para a voz espetacular e o talento musical de Matt. As desventuras da farsa criada e a amizade que se criou entre Jeff e Matt nos fazem questionar os valores e as valências que a vida oferece graciosamente, desafiando nossas concepções sobre beleza, riqueza, talento e sucesso.

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