Arquivo do mês: fevereiro 2024

Geni

Sim, é verdade que encontraram a minuta do golpe no gabinete de Bolsonaro, com as explicações para a tomada violenta do poder por parte da direita raivosa e ligada aos interesses imperialistas. Isso parece ser suficientemente grave para reconhecer que Bolsonaro tinha interesse em golpear a frágil democracia brasileira ao lado de seus comparsas da caserna. E não apenas isso: as provas materiais contra Bolsonaro se avolumam, não deixando qualquer dúvida de que ele planejava se manter no poder por meios obscuros e até violentos. Entretanto, não resta dúvida que as redes de comunicação do Brasil – Globo, Record, SBT e Band – também já tinham preparados, nas gavetas de seus executivos, os seus editoriais para divulgar em rede nacional no dia posterior ao golpe. Neles veríamos as explicações para a adesão ao ataque contra a democracia e, mais uma vez, a justificativa seria a “defesa da democracia” contra os interesses “comunistas”, para combater a “ditadura do judiciário” e o “mar de lama” da corrupção do PT. Seriam implacáveis com o Partido dos Trabalhadores e a esquerda, colocariam Lula e Alexandre de Morais na prisão e criariam do ar um apartamento, um barquinho de lata ou uma ligação com o PCC para jogar o povo contra seu líder.

Portanto, o combate ao bolsonarismo, como se ele fosse a origem do mal e o grande risco à democracia, é de uma ingenuidade inaceitável. Antes mesmo de Bolsonaro, o STF deu mostras de ser um órgão corrompido e politicamente orientado, legislando (sim, criando leis em estilo livre) sempre que os seus interesses foram ameaçados. Foi assim no golpe de 64, no mensalão, no golpe contra Dilma e na prisão criminosa de Lula, bastando lembrar o voto de Rosa Weber pela prisão do ex-presidente, uma das maiores vergonhas do judiciário brasileiro de todos os tempos, que rivaliza com a frase da mesma ministra no seu voto no julgamento do Mensalão: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”.

Já Bolsonaro não passa de um idiota útil para a direita. Não existe nenhum intelectual conservador ou liberal que tenha respeito pelas suas capacidades de liderança ou pelas suas inexistentes qualidades morais ou intelectuais. Bolsonaro é a Geni da direita: desprezado, mal visto, desconsiderado, mas ao mesmo tempo popular e sedutor para uma parcela considerável da população, aquela que cai facilmente no discurso de força e de autoridade que viceja nas democracias liberais decadentes – vide França, Itália, Inglaterra, Polônia, Hungria. Isso atrai as massas deserdadas pelo capitalismo que adoram um ditador “mão forte”, vingativo, que represente o poder fálico do qual se ressentem, basta lembrar de Adolf e Benito. Mas bem o sabemos que Geni, da obra de Chico Buarque, não tinha poderes, apesar de ter sido incensada pelos poderosos e tratada como rainha quando foi necessária ao sistema. Na verdade ela era apenas o marionete de decote avantajado, manipulada pelos poderosos que estavam por trás de suas ações, os burgueses da cidade.

A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni…

Portanto, à esquerda não cabe a tarefa de se postar como mero contraponto ao bolsonarismo. Quando este personagem for finalmente soterrado, outro pateta útil será colocado em seu lugar, e aqueles que outrora o aplaudiam, que o exaltavam e se acercavam dele, vão tratá-lo como um lixo, uma excrescência, algo a ser esquecido e até amaldiçoado.

Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni

Já tivemos Joaquim Barbosa, Dalanhol e Moro ocupando esta posição, os quais, sejamos francos, seriam muito mais danosos ao povo brasileiro do que o ex-militar bunda suja. Eles têm a mesma vinculação com o imperialismo e com a burguesia brasileira, mas não possuem o carisma dos ídolos da direita como Orbán, Netanyahu, Trump, Bukelele, e o próprio Bolsonaro. E ao lado destes ícones do neofascismo sempre esteve a imprensa corporativa, do Brasil e do mundo, sem exceção, apoiando ações golpistas em nome de seus interesses. Aqui na aldeia ela esteve ao lado de Bolsonaro, pelo menos enquanto a tragédia do seu governo ainda podia ser sustentada. Como esquecer a “escolha difícil” do Estadão?

A solução para o Brasil é resistir à tentação de atacar Bolsonaro como se fosse a “origem de todo o mal”, mas educar o povo, mostrando que a solução será pela luta de classes, inobstante o espantalho que seja colocado pela burguesia para manter intocados seus poderes.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Política

Caem as Máscaras

Os apologistas da “liberdade de expressão” agora se apressam a criar formas de proibir as manifestações artísticas que criticam os sistemas de poder, como as polícias militares, que massacram a população pobre e preta do Brasil. Ou seja: liberdade para atacar as instituições burguesas quando perdem eleições, mas censura quando são criticados os aparatos de repressão ao povo trabalhador, do campo e da cidade.

Todo aquele que apoia a liberdade apenas quando quer falar, mas a ataca quando tem que escutar, é um hipócrita; nada além de um autoritário vestindo uma fantasia liberal. Como é comum entre a direita conservadora, enxergam-se como os detentores da moral cristã, e por isso acreditam ter o poder de censurar e calar quem os critica.

Apesar do identitarismo da Vai-Vai, que insiste numa visão ultrapassada dos conflitos sociais, a mensagem contra a polícia militar foi importante e marcante. O mesmo com o Salgueiro no Rio, ao criticar o descaso dos militares com os Ianomâmis. Calar a voz do povo quando enfrenta com as armas da arte popular a violência policial é uma ação criminosa, mas expõe o quanto estas instituições têm medo da revolta do povo trabalhador.

Deixe um comentário

Arquivado em Violência

Influências

Qualquer um de nós foi a influência de alguém em algum momento da vida. Somos espelho sempre, mas o número de pessoas que olham para você como modelo pode variar. Alguns, como Neymar ou Taylor Swift influenciam milhões, outros apenas aqueles muito próximos. De qualquer forma, tocamos e somos tocados por outras almas todos os dias.

Como dizia minha mãe, “Cuida como vives, talvez sejas o único Evangelho que teu irmão lê”. Ou seja: todo mundo influencia e é influenciado; todo adulto já teve 18 anos e entende o peso de adolescer. Cobrar dos outros, em especial jovens atores, jogadores, artistas em geral para que sejam o “bom” exemplo para o mundo é uma carga demasiado alta, mesmo que compreensível. Todos que já passaram pela idade das descobertas bem sabem o quanto é confuso e desafiador. Além disso, a maioria de nós cruzou a adolescência com as óbvias restrições determinadas pela falta de dinheiro. Imagine o peso para quem não as teve.

Como gerenciar sua própria vida, seus conflitos, suas dúvidas, suas inseguranças sem o benefício das interdições? Acredite, não existe nada mais enlouquecedor do que a falta de limites. Os homens mais poderosos da Terra enlouqueceram: dos 12 césares que comandaram o Império romano 10 deles morreram insanos. O poder sem barreiras é brutal. Acredito que a família – o que ela traz de superegóico – é a mais valiosa proteção para os dramáticos desafios de uma vida de opulência. Isso não invalida a procura de ajuda psicológica, mas a coloca em seu devido lugar.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Reprise

Quando vejo tantas “pessoas de bem” na Internet justificando os massacres contra crianças palestinas usando a Bíblia e suas específicas interpretações como desculpa, fica claro que a vinculação com o cristianismo não garante nenhuma vantagem ou distinção moral para os seus adeptos. Os cristãos que agora aprovam o genocídio no Oriente Médio são apenas monstros travestidos de carolas, pessoas vis e sem alma. Que pensar de religiosos que aceitam a morte de milhares de mulheres e crianças em nome de suas convicções místicas?

Não vejo nenhuma diferença entre a barbárie inominável de agora e o que ocorreu há pouco menos de 1 século na Alemanha. O desejo de sangue, o desprezo pela vida das crianças e a desumanização de um povo – para deixar livre a escolha explícita pela “solução final” – não podem ser desmerecidos, e são na verdade elementos estruturais do desastre civilizatório, tanto lá atrás quanto agora.

Não pare de falar da Palestina. Não pare de denunciar o massacre. A Palestina somos todos nós…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Imortal

A mãe do meu avô se chamava Charlotte, mas todos a conheciam por dona Iaiá e eu nunca a conheci, pois que ela morou toda sua vida adulta no nordeste. Dona Iaiá perdeu o marido muito jovem, quando ele tinha menos de 40 anos, e meu avô foi criado pelo seu próprio avô – um avôhai, como tão bem descreveu Zé Ramalho. Esse avôhai se chamava Herbert John, e em homenagem à sua memória meu pai, eu, meus irmãos, meu filho e meus netos carregamos o nome “Herbert” como patronímico hereditário. As histórias de Herbert John, que viveu no século XIX e que presenciou muito de perto a escravidão nas fazendas de açúcar do nordeste, são deveras interessantes, mas serão contadas em outra oportunidade.

Minha bisavó morreu com mais de 90 anos. Era uma mulher miúda, magrinha, serelepe e ágil, que com o passar dos anos foi encolhendo ainda mais e se encurvando, como um galho que seca e verga sob o peso do tempo. Entretanto, era dona de grande vivacidade e senso de humor ímpar, segundo os relatos do meu avô. Uma de suas conversas com Daddy (meu avô) ficou marcada na minha memória, conforme contada por meu pai. Estava já meu avô com quase 70 anos e sua mãe chegando aos 90 (ela morreu com 92) quando, tomando um cafezinho, fez esta observação a ele:

– Meu filho, sabe essas moças que trabalham nas ruas, que viajam com os circos, que dançam nos cabarés? Essas que colecionam namorados, que tiveram muitos homens e que todos dizem ter “vida fácil”? Pois eu acho que fui uma destas mulheres em uma outra encarnação. Acho mesmo…

Meu avô tentou segurar o riso diante das palavras surpreendentes de sua mãe nonagenária, mas manteve a seriedade e observou:

– Mas mãinha, por que uma pessoa tão séria, educada, respeitosa, religiosa, devotada à família, de bons princípios e temente a Deus como a senhora teria no passado uma vida dedicada à luxúria, ao desvario e à vida mundana?

Ela sorriu encabulada e lhe entregou uma confissão:

– Ahh meu filho, não que eu concorde com essa vida, mas é que eu tenho uma tendência, isso não posso negar…

Para a minha bisavó, em seu mundo surgido no século XIX, a única forma de expressar a plena liberdade seria fugir do padrão patriarcal falocêntrico e aderir ao mundo da devassidão, das mulheres “sem dono”, da vida sem amarras e do sexo prazeroso e livre. Mas por certo que essa era, apesar de comum, tão somente uma fantasia que percorria o imaginário de uma parte considerável daquelas meninas de sua época. Aliás, foi esse sentimento – a repressão sexual das mulheres e suas manifestações físicas e psíquicas – que propiciou o surgimento da psicanálise, através dos Estudos sobre a Histeria, de Freud e Breuer.

Essa história pitoresca e curiosa da minha antepassada me fez lembrar de outros relatos contados para mim por meu pai, onde ele falava de algo que aprendeu muito cedo, mas que só foi possível confirmar quando seu tempo de envelhecer também chegou: o desejo é inexoravelmente imortal. Ele pode se transfigurar e se escamotear, escondido pelos sulcos na pele que chegam na velhice; entretanto, ele estará lá, vivo e pulsante enquanto houver vida. Podemos teimar em não aceitá-lo quando fechamos os olhos para o desejo dos velhos, mas nossa negativa em enxergá-lo jamais o anula. Talvez se manifeste apenas nos sonhos e nas fantasias, nas lembranças e nos devaneios, mas estará sempre presente. O desejo é o que nos faz agarrar a vida.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Jogos de Sedução

Não é necessário muita imaginação para perceber que não existe nada de “prático” nas roupas femininas; elas não foram concebidas para deixar as mulheres mais felizes ou relaxadas, nem mesmo mais bonitas. As roupas foram feitas para nos deixar mais desejáveis, ora escondendo (para ressaltar pela curiosidade), ora mostrando as virtudes (para atrair). O preço a ser pago sempre foi alto, basta lembrar das vestimentas torturantes que as mulheres usaram por séculos, como os espartilhos, os sapatos deformantes nas meninas chinesas, até os saltos altos e os jeans apertados que perduram até hoje e são vestimentas usuais desde a adolescência. “There’s more to clothes than to keep warm” já diziam os ingleses; tudo na moda é erotismo, e o preço de despertar o desejo é o desconforto. O sacrifício brutal em nome do narcisismo é milenar, transcultural e essencial – pensem nos rituais de escarificação das adolescentes indígenas e nas inúmeras cirurgias plásticas a que se submetem as mulheres do ocidente com o claro objetivo de oferecer uma chance maior ao seu destino reprodutivo. Todos esses sacrifícios imensos servem essencialmente para torná-las mais desejáveis através de signos sexuais que podem ser traduzidos pela aparência, e a história nos prova que a recompensa vale a pena.

Assim sendo, uma sociedade em que as mulheres se revoltassem contra estas imposições culturais e decidissem usar saltos normais, pele natural, lábios sem batom, calças confortáveis e calcinhas largas, de algodão e que não marcassem as curvas voluptuosas do seu corpo seria um lugar bem menos desconfortável para se viver, mas pareceria tão diferente do que temos hoje que sequer seria reconhecível como humana. Uma adolescente que privilegiasse o seu bem estar e conforto corporal em detrimento da sedução e do impacto que causa ao olhar do outro seria vista como “esquisita” ou pelo menos “estranha”. Enquanto a estrutura psíquica feminina for narcísica as mulheres farão qualquer sacrifício para garantir seu lugar ao sol.

Deveria ser igualmente evidente que as mulheres não precisam tolerar toda essa opressão da aparência; cabe a elas decidir qual jogo jogar. Não há nada de errado ou imoral em desmerecer todas estas convenções sociais e valorizar virtudes “internas”, como conhecimento, dedicação, estudo, etc e desprezar as formas externas, deixando de consumir cosméticos, cirurgias, adereços e roupas que ressaltam o corpo. O mesmo se pode dizer dos homens; eles podem decidir de forma diferente a respeito de suas estratégias e alternativas na corrida para garantir seu espaço no “pool genético” do planeta. Um homem, por exemplo, pode desconsiderar seu poder de sedução e não fazer o que os homens tipicamente fazem para conquistar as mulheres, mas talvez isso reduzisse muito suas chances para encontrar parceria. São escolhas legítimas; todavia, o que não parece correto é romper apenas com as regras que não nos agradam. Por exemplo: quero jogar o jogo da sedução, mas não quero o esforço de seduzir e não quero ser vista como “objeto sexual”. Quem pretende participar da disputa sexual deve entender as regras.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

ONGs

Há alguns anos, quando rompi minhas ligações com uma instituição pela sua intenção de se vincular economicamente com ONGs imperialistas, fui acusado de radical e de intransigente por querer “politizar” esta luta. Afinal, que mal poderia haver em receber recursos para uma causa tão nobre? Esse, aliás, é o mesmo dilema que todo médico consciente precisa enfrentar com a oferta cotidiana de brindes – de canetinhas a viagens aéreas para congressos – entregues pelas empresas farmacêuticas, que desta forma compram a simpatia e lealdade aos seus produtos. Que liberdade tem um profissional que aceita este tipo de “mimo”? Se há uma coisa que aprendi, a duras penas, é que não existe enfrentamento no âmbito social que não seja político em sua essência. No âmbito da prática médica, desde muito cedo ficou claro que a única linha eticamente defensável seria não aceitar qualquer presentinho “desinteressado” por parte das empresas que lucravam com as minhas prescrições; no que diz respeito às instituições, não permitir que organizações imperialistas tenham controle econômico sobre suas jnossas lutas e nossas pautas.

Isso se aplica às instituições ligadas à saúde também, em especial àquelas que oferecem suporte às populações em vulnerabilidade, como as mulheres, gays, trans, comunidades negras, etc. Nos anos 70 o foco era a esterilização de mulheres, levada a cabo por um grupo multinacional americano, pois o crescimento populacional nos países satélites sempre foi um temor para as forças imperialistas. Hoje em dia muito dinheiro é direcionado aos grupos identitários, e esse suporte merece ser questionado de forma muito séria e contundente. Afinal, por que tanto investimento na divisão da sociedade em identidades, produzindo a fragmentação da sociedade em pequenos grupos, cada um lutando isoladamente por seus interesses e privilégios, encarando a todos os outros como inimigos na disputa pelos mesmos direitos? Ora, a resposta é óbvia: o resultado dessa luta é o enfraquecimento da consciência de classe.

Aceitar dinheiro – ou suporte de qualquer natureza – de organizações visceralmente conectadas ao imperialismo é um erro clássico de quem apenas procura resultados cosméticos e parciais. O tempo acaba mostrando o equívoco de associar-se a estas organizações, que agem como pontas de lança das forças hegemônicas internacionais. Estas, com a fachada da benemerência, usam de seu poder econômico para controlar a narrativa nacional. O caso da Transparência Internacional – que defendia a transparência mas aceitava os crimes da LavaJato – é emblemático: a face nobre do “combate à corrupção” esconde interesses imperialistas que usam da chantagem e da manipulação da opinião pública para levar adiante uma agenda alinhada aos interesses das grandes potências.

A autonomia de um país se demonstra também através da atenção que se dá aos grupos que se infiltram no tecido social para implantar uma agenda ligada aos interesses estrangeiros. As ONGs que atuam junto aos indígenas brasileiros, seja oferecendo roupas, remédios ou tão somente a “palavra do senhor” são outro exemplo histórico da invasão alienígena sobre nosso histórico problema com as populações nativas. Monitorar, vigiar e até mesmo expulsar estas organizações é uma ação necessária para que nossa estrutura social não seja degenerada pela infiltração de grupos estrangeiros. A autonomia tem preço, e este é a vigilância constante sobre ações de grupos travestidos de boas intenções, mas que em seu bojo carregam interesses de dominação através do poder econômico.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Intactos

Ao participar de congressos nos Estados Unidos sobre humanização do nascimento nas primeiras duas décadas deste século eu conheci um lado da cultura americana que muito me impressionou. No intervalo das palestras era possível passear pelos estandes coloridos dos patrocinadores. Espremidos entre as cabines que vendiam produtos como sonares, bonecas de ensino, livros e seus autores, bijuterias e aromas de ambientação, notei a presença de ativistas que divulgavam temas variados, mas sempre relacionados com o público que participava do movimento de humanização. No meio do burburinho de participantes do evento, encontrei o movimento contra a prática disseminada da circuncisão, o “Intact America“, e sua presença logo captou minha atenção. Depois de ficar alguns instantes tentando entender do que se tratava, fui prontamente abordado por uma simpática senhora com panfletos nas mãos e um sorriso no rosto. Foi desta vez que, pela primeira vez´, tomei contato com pessoas que lutavam pela preservação da integridade anatômica dos meninos, e posso dizer que foi uma experiência marcante.

Da minha conversa com as ativistas anticircuncisão aprendi muito sobre a importância de manter intacta esta parte do corpo em função dos inúmeros benefícios (para mim até então desconhecidos) de manter pele do prepúcio e assim garantir a sensibilidade e o prazer sexual masculino. A história desta cirurgia ritualística e mutilatória vem de tempos imemoriais. Foi Maimonides, judeu sefardita da idade média, filósofo e estudioso da Torá que viveu entre os muçulmanos da costa ocidental da África e do Egito, o mais conhecido proponente da circuncisão. É dele a frase: “A lesão corporal causada a esse órgão é exatamente a desejada”, deixando claro que acreditava haver benefício nos traumas causados aos homens que se submetiam a este tipo de procedimento. Para ele, “Não há dúvida de que a circuncisão enfraquece o poder da excitação sexual e, às vezes, diminui o prazer natural.” Desta forma fica fácil entender que esta prática tem como finalidade última a obstrução da potencialidade prazerosa sexual dos homens. Segundo Maimonides, os homens assim “domesticados” teriam menos interesse no sexo e liberariam mais tempo para as coisas mais nobres, como o estudo da Torá. Em uma perspectiva histórica é notável o fato de que esta cirurgia sempre foi realizada exatamente para atingir a sexualidade, colocando sobre ela a marca indelével da cultura, como que a afirmar que tudo que se passa ali está sob o olhar cuidadoso do Grande Outro que, em última instância, determina nossa posição no mundo.

É interessante notar como a circuncisão é um não-assunto no Brasil. Se você pensar que ela está restrita aos judeus no Brasil, e a população de origem judaica no nosso país não tem mais do que 150 mil pessoas (0.06% da população brasileira), é possível perceber que não se trata de um tema de alto impacto. Já os Estados Unidos são o país que congrega a segunda maior população judaica do mundo, atrás apenas de Israel, e lá vivem mais de 5 milhões de judeus, algo próximo de 1.5% da população. Entretanto, nos Estados Unidos a prática da circuncisão se alastrou para os não judeus, tornando-se uma das cirurgias mais prevalentes no país. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde estima que cerca de 64% dos recém-nascidos do sexo masculino americanos são submetidos à circuncisão. No entanto, esse número varia entre grupos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Apesar da taxa de circuncisão estar em lenta queda, estima-se que 80,5% dos homens com idade entre 14 e 59 anos nos Estados Unidos sejam circuncidados. Apesar do número espantoso, existem números ainda mais impactantes: o Afeganistão tem uma taxa de 99.8%, e Gana 91.6% de crianças circuncidadas. Muitos argumentam a existência de benefícios na realização desta cirurgia, entre eles as questões higiênicas, a diminuição do risco de câncer, proteção potencial de infecções do trato urinário e até diminuição da transmissibilidade da AIDS. Estes dados são motivo de constante questionamento, porém mas mesmo que fossem válidos seria como dizer que câncer de mama desaparece depois de mastectomia, cáries igualmente são exterminadas ao se colocar próteses dentárias ou que fumar diminui a incidência de aftas na mucosa oral. Para além disso, existem questões éticas muito sérias, pois estas cirurgias podem ter consequências para toda a vida, É interessante notar como a circuncisão é um não-assunto no Brasil. Se você pensar que ela está restrita aos judeus no Brasil, e a população de origem judaica no nosso país não tem mais do que 150 mil pessoas (0.06% da população brasileira), é possível perceber que não se trata de um tema de alto impacto. Já os Estados Unidos são o país que congrega a segunda maior população judaica do mundo, atrás apenas de Israel, e lá vivem mais de 5 milhões de judeus, algo próximo de 1.5% da população. Entretanto, nos Estados Unidos a prática da circuncisão se alastrou para os não judeus, tornando-se uma das cirurgias mais prevalentes no país. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde estima que cerca de 64% dos recém-nascidos do sexo masculino americanos são submetidos à circuncisão. No entanto, esse número varia entre grupos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Apesar da taxa de circuncisão estar em lenta queda, estima-se que 80,5% dos homens com idade entre 14 e 59 anos nos Estados Unidos sejam circuncidados. Apesar do número espantoso, existem números ainda mais impactantes: o Afeganistão tem uma taxa de 99.8%, e Gana 91.6% de crianças circuncidadas. Muitos argumentam a existência de benefícios na realização desta cirurgia, entre eles as questões higiênicas, a diminuição do risco de câncer, proteção potencial de infecções do trato urinário e até diminuição da transmissibilidade da AIDS. Estes dados são motivo de constante questionamento, porém mas mesmo que fossem válidos seria como dizer que câncer de mama desaparece depois de mastectomia, cáries igualmente são exterminadas ao se colocar próteses dentárias ou que fumar diminui a incidência de aftas na mucosa oral. Para além disso, existem questões éticas muito sérias, pois estas cirurgias podem ter consequências para toda a vida, com potencialidade danosa ou mesmo devastadora, realizadas em menores de idade, que são obviamente incapazes de fazer escolhas informadas sobre riscos e benefícios.

Outra aspecto da minha conversa que me impressionou foi o fato de que as ativistas com quem conversei eram todas mulheres. Elas lutavam pela integridade física de seus filhos, netos e tentavam alertar a todos os homens sobre os riscos inerentes a uma amputação, sem que lhes fosse garantido a oportunidade de escolha. Estas senhoras falaram comigo do pênis e suas funções com detalhadas explicações anatômicas e fisiológicas, como se fosse parte do corpo delas, ou como fossem diretamente afetadas. Não pude evitar lembrar de uma aula do saudoso Contardo quando ele, jocosamente, dizia: “O pênis é um órgão feminino colocado no corpo dos homens”. Intrigado e curioso, perguntei a elas se, em algum momento, um homem defensor da circuncisão havia jogado em suas faces uma “ameaça de cancelamento” ao estilo “não é seu lugar de fala” ou “deixe esse assunto para nós, homens”. Elas sorriram por saber onde eu queria chegar; afinal, estávamos em um imenso congresso sobre parto e eu era um dos poucos homens a ter espaço para trazer minhas propostas e ideias. Uma delas respondeu: “Os homens são nossos parceiros. São nossos filhos, maridos, amigos e netos. É com os homens que fazemos amor, e garantir seu prazer é um assunto que também nos pertence. Não, nenhum homem jamais disse para eu me calar usando este argumento”.

A luta pela integridade física dos sujeitos uniu aqueles que lutam contra a violência obstétrica – cuja intervenção paradigmática e exemplo mais clássico é o das episiotomias injustificadas – e os ativistas pela integridade peniana, que lutam pelo direito dos homens de manter seu corpo e sua sexualidade livre de invasões e amputações. Desta forma, lutar contra a violência obstétrica através das múltiplas intervenções danosas sobre o corpo das gestantes e a luta contra cirurgias mutilatórias ritualísticas sobre o corpo dos homens é um assunto que tem a ver com cada um de nós, inobstante a identidade sexual de que somos investidos.

1 comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Medicina