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Memórias do Homem de Vidro – 11

Fátima e o Protagonismo Devolvido

Fátima veio à consulta carregando uma sacola de exames e trazia estampado no rosto um olhar de resignação. Grávida de 37 semanas, procurou-me porque sua obstetra estava de férias, e a substituta que esta havia indicado não lhe agradou. Vinha, portanto, à procura de um terceiro médico naquela gestação, o que tornava a consulta um pouco diferente das demais. Quando entrou no consultório, eu me impressionei com o seu ventre. Era real­mente muito grande, mesmo para uma mulher alta e corpulenta. Veio com a fa­mosa pilha de ecografias, é óbvio, sendo que a última prenunciava um feto com 4,5 quilos. Diante disso, tanto sua médica quanto a substituta foram taxativas: “É cesariana, porque não vai passar”. Para complicar a situação, essa paciente tinha uma cesariana prévia, com um bebê 8 meses por pré-eclampsia e que, mesmo sendo prematuro, pesou 4,3 quilos. Tinha uma leve alteração da glicemia no último exame realizado há uma semana. Macrossomia, cesárea prévia, diabete gestacional leve. Precisa mais? Ela me disse que queria deixar marcada a cirurgia, “já que precisava ser cesariana”.

Foi então que eu perguntei a ela:

— O que você gostaria que fosse?

*   *   *

“A lógica dos encontros médicos necessita de uma reversão”, dizia Maximilian. Durante anos da minha prática diária de consultório, sofri com a postura de algu­mas de minhas clientes diante do desafio do encontro médico-paciente. Por muito tempo, o padrão era este: elas se aproximavam, me avaliavam com os olhos e perguntavam: “Como é sua conduta quando atende um parto?”. A partir dessa pergunta, eu explicava os pontos importantes da humanização do nascimento, como a posição verticalizada, a presença de um acompanhante de livre escolha, a utilização restrita e judiciosa de intervenções, a valorização do parto vaginal, etc. Entretanto, a pergunta, e minha subsequente resposta, a partir de uma determi­nada época, passaram a me deixar insatisfeito e inquieto. Alguma coisa parecia fora de lugar, produzindo uma espécie de irritação, um incômodo, uma inconformi­dade.

Acho que foi durante uma entrevista para a televisão que eu tive a clareza, pela primeira vez, sobre a questão do protagonismo na assistência ao parto. A produ­tora de uma emissora local me telefonou, convidando para uma entrevista sobre “parto de cócoras”. No dia combinado, lá fui eu engravatado para a TV. A entre­vistadora, uma conhecida e simpática jornalista, me cumprimentou e disse que as perguntas seriam sobre esse tipo especial de partos, e que a matéria tinha sido escolhida por ser 19 de abril, Dia do Índio. Sorri da ideia, aparentemente precon­ceituosa, de que “parto de cócoras é coisa de índio”, quando na verdade a imensa maioria das sociedades primitivas adotou instintivamente essa postura para parir, inclusive os índios brasileiros. Longe de ser uma particularidade indígena, é uma característica de quase todos os grupamentos humanos. Abriu o programa me apresentando e fazendo a chamada de uma “nova velha técnica de trazer os be­bês ao mundo”. Pediu os comerciais e, quando o programa retornou, voltou-se para mim e perguntou:

— Então, doutor, como é essa história de fazer partos de cócoras? Desde quando o senhor faz partos assim?

Quando eu estava me preparando para responder, acendeu uma luz. Acho que talvez tenha tido mais luminosidade que os spots do estúdio, mas apenas eu per­cebi. Hoje em dia eu creio que isso poderia ser definido como insight. É provável que sim.Uma confluência de emoções, sentimentos, pensamentos, antigas análises, lem­branças, tudo entrando em sincronia e produzindo uma espécie de erupção. Fiquei por alguns instantes olhando para a bela apresentadora, até que respondi:

— Eu não faço partos de cócoras — respondi eu. — Minhas pacientes é que ficam nessa posição, quando lhes convém. Na verdade, eu não deveria fazer nada, eu só…

A entrevistadora me olhou com indisfarçável contrariedade. Achou que eu estava criticando a sua pergunta ou querendo ser engraçadinho. Não era isso. Eu não estava achando graça nenhuma; estava, na verdade, em meio a um redemoinho de pensamentos e dúvidas sobre o que realmente eu fazia, ou o que deveria fazer.

— O senhor utiliza uma técnica que é o parto de cócoras, certo? Pois essa téc­nica, usada pelos índios, agora está sendo redescoberta, é isso? — A expressão da jornalista era de franca impaciência.

A ideia prevalente era a de que, ao contrário de uma técnica de partos horizontais, eu estava utilizando outra técnica sobre as minhas pacientes. Uma técnica alter­nativa. Um método de fazer partos. Novo e velho. As palavras de Maximilian apareceram à minha frente e atingiram em cheio o plexo solar. Senti o soco potente de uma verdade há tempos escondida, e que agora podia se manifestar. Por alguns instantes, fiquei olhando a jornalista sem saber o que dizer. “Humanização do nascimento, meu caro Ric, é a devolução do protagonismo à mulher. O resto é apenas sofisticação de tutela.” As palavras fa­ziam eco na minha cabeça, e eu não conseguia falar. Não queria parecer evasivo, mas naquele instante eu não poderia responder o que ela estava a me perguntar, porque a pergunta já não fazia mais sentido. Percebi naquele fragmento de ins­tante a razão da extrema irritação de Leboyer quando lhe questionavam sobre o “método Leboyer”. Ele odiava essa forma de encarar seu trabalho, e sempre res­pondia com clara impaciência a essa pergunta, dizendo que nunca quis criar mé­todo algum. Naquele momento, eu estava me dando conta de que, se você criar uma “técnica de partos de cócoras” estará em verdade mantendo o cerne da questão intocado, mas nutrindo-se da ilusão de que algo diferente está sendo feito.

Ou você entrega o poder de parir às mulheres, ou apenas estará sofisticando seu controle sobre elas, sua dignidade, sua autonomia e sua feminilidade. Fazer “par­tos de cócoras”, como a jornalista me perguntava, me aliava à grande massa da obstetrícia contemporânea que julga as mulheres incompetentes e incapazes de escolher a postura que mais lhes agrada. Determinar para elas uma posição de parir mais fisiológica e racional, como o são as posições verticalizadas, pode pa­recer interessante do ponto de vista dos resultados observados, mas continua sendo uma imposição ditatorial sobre um fenômeno natural e feminino. Estava tornando meu jugo sobre as pacientes menos agressivo e mais suave, mas conti­nuava sem lhes oferecer o protagonismo. Eu estava, enfim, “sofisticando a tutela”.

Naquele instante, percebi que a maior batalha ainda estava por ser travada. Era preciso entregar de volta às mulheres o controle dos nascimentos, e ao mesmo tempo encontrar uma função digna para um obstetra, que não passasse pela ex­propriação do nascer em nome de uma tutela anacrônica. Por outro lado, eu intuía que não seria fácil essa mudança no cenário do nascimento, dominado pela visão tecnocrática há três séculos e meio. Peça a um homem que recuse qualquer acréscimo na sua vida e terá sucesso, mesmo que com dor e privação, mas retire alguns de seus antigos privilégios e você terá luta. Olhei para a bela entrevistadora mais uma vez, e depois de um suspiro respondi:

— Uma mulher pode encontrar por si mesma a posição que mais lhe parece ade­quada para ter seu filho. Minha função é apenas ajudá-la a encontrar essa pos­tura, criando as condições psicológicas e ambientais para isso. A posição de cóco­ras é uma das mais escolhidas pelas gestantes, porque permite uma ampla aber­tura das conjugatas, que são as distâncias entre os ossos da pelve. Além disso, a posição vertical, ao contrário da posição horizontal, não comprime os vasos ma­ternos do abdômen, nem interrompe o retorno venoso criado por essa compres­são. A força da gravidade e a facilidade de fazer prensa abdominal são excelentes fatores coadjuvantes. Mas nada disso pode ser imposto a essa grávida. Ela deve estar no comando, escolhendo por si o melhor caminho.

Respirei fundo mais uma vez, e, depois de um sorriso de alívio, terminei:

Sem garqantia de protagonismo, não existe humanização do nascimento. Sem que as pacientes possam livremente escolher a posição para parir, seu acompa­nhante, o local, suas roupas, suas tradições e suas inúmeras vontades, apenas estaremos reproduzindo uma história de abusos e interferências desnecessárias, que não tem mais cabimento em um mundo que se propõe democrático e igualitá­rio.

Não recordo de mais nada do que disse na entrevista, mas a bela jornalista parece não ter gostado de minhas respostas. A partir daquele dia, eu não mais falei sobre “partos de cócoras”, porque a questão da autonomia feminina passou a ser o foco de minha atenção. Em algum lugar, Max sorria e brindava, levando ao alto um espumante copo de cerveja.

*   *   *

Voltei a olhar para Fátima, que parecia um pouco aturdida com a minha pergunta. Ela certamente não esperava pela minha reação. Joguei a “batata-quente” de volta, e ela sentiu o calor nas mãos. Depois de alguns instantes me olhando atur­dida, respondeu:

— Ora, doutor, eu preferiria parto normal, que a gente pode ir para casa mais rá­pido. Tenho uma filha de nove anos que precisa da minha ajuda. Sei que uma ce­sariana é uma cirurgia, e que a recuperação é muito mais lenta.

As pesquisas realizadas no Brasil pelo Dr. Joe Potter e pela professora de antro­pologia da Universidade do Texas, Kristine Hopkins, assim como uma recente­mente publicada pela FIOCRUZ, apontam para uma realidade muitas vezes dissi­mulada: mulheres preferem majoritariamente realizar partos normais. Elas sabem das vantagens de um nascimento natural, tanto para elas quanto para os bebês. A perversidade das cesarianas desmedidas não pode mais ser contabilizada como uma culpa dessas mulheres, porque a inversão do desejo de um parto vaginal ocorre quando elas adentram os centros obstétricos. Fátima tinha conhecimento da qualidade superior do parto normal, mas só agora estava podendo expressar.

— Fátima, o destino do seu parto depende mais de você do que de qualquer outro fator externo — disse eu. — Se você deseja ter seu filho de parto normal, esse é um direito seu, que ninguém pode lhe retirar. O que mais conta nessas situações é o desejo, a vontade e a confiança que você deposita em si mesma. Acho que seu caso inspira cuidado e atenção redobrados, mas penso também que temos uma esperança, e é agarrado nela que eu acho que devemos nos manter. Ela sorriu e respondeu:

— Mas doutor, eu quero ter meu filho de parto normal. Mas meus médicos disse­ram que era impossível por causa da cesariana anterior, da diabete, do tamanho do bebê, e…

— Posso entender a preocupação dos seus médicos Fátima, pois, como eu mesmo disse, seu caso tem muitas complicações. Porém, nenhuma delas é cla­ramente impeditiva para um nascimento normal e com menos riscos. Nada, nem ninguém, é mais forte que a sua força de vontade e seu desejo. Se você deseja ter seu filho de parto normal, temos a obrigação de tentar, mesmo sabendo que será um desafio difícil.

Ela sorriu e combinou de voltar com o marido. Consultou novamente alguns dias depois, logo que começou a apresentar algu­mas contrações. Ao exame de toque, ela tinha um bebê muito alto na pelve e a dilatação de uma polpa digital. As contrações uterinas eram ainda esporádicas e fracas. Pedi que me ligasse se viessem a ocorrer com maior intensidade.

No mesmo dia, ela me ligou dizendo que estava com contrações mais fortes e pedi-lhe que retornasse ao meu consultório para uma nova avaliação. O cenário havia se modificado. Agora já se havia instalado a fase ativa do trabalho de parto, e ela tinha de três a quatro dedos de dilatação. Apesar disso, o bebê continuava alto. Pensei comigo: Será que desce? Será que não está apenas dilatando pra depois trancar no estreito médio? Esses meus pensamentos se exteriorizaram com um sorriso benevolente. Pura encenação, confesso. Mas era para uma causa nobre: insuflar confiança nas suas capacidades; apostar na sua força e competên­cia para ter seu filho. Eu estava apostando minhas fichas nela, “pagando para ver”.

Pedi que retornasse para casa e aguardasse mais algumas horas antes de ir para o centro obstétrico. Os hospitais sempre produzem um efeito complicador sobre o desenrolar do trabalho de parto e, portanto, quanto mais longe as pacientes de baixo risco puderem ficar dele durante o período inicial de pródromos, melhor. Um centro obstétrico, por melhor que seja, sempre produz nas mulheres um estado ansiogênico de percepção do meio circundante. Na nossa história adaptativa como espécie, o local de nascimento sempre teve como signo fundamental a se­gurança. Para todos os mamíferos superiores, e mesmo para os primatas, preva­lece a atitude de procurar abrigo seguro quando as contrações se iniciam. A multi­plicidade de ameaças e a natural fragilidade com que uma grávida se encontra fazem com que esse local seja escolhido para oferecer o máximo de proteção, tanto à mãe quanto à cria. Além disso, a presença de um suporte técnico e afetivo foi uma marca de nossa ancestralidade, talvez se iniciando com os primeiros exemplares do gênero homo há dois milhões de anos. Aí se inseria a função da parteira, tão antiga que se perde nas brumas do tempo.

A ida de Fátima para casa, longe do estresse propiciado pela hospitalização, tinha esta função: aguardar a dilatação no seu domínio. O hospital, por ser “um local estranho, onde estranhas pessoas operam estranhas máquinas”, no dizer de Marsden Wagner, cria um cenário de temor e apreensão, que facilmente coloca a gestante no temido, mas pouco compreendido, círculo vicioso de medo-tensão-dor. Manter a paciente em casa tem essa grande vantagem: conservá-la em um lugar da sua confiança e, portanto, de segurança. Algumas horas mais tarde, ela me ligou (na verdade o marido, dizendo que Fátima estava “quase desmaiando”) e eu solicitei que se dirigissem ao hospital. Por morar em uma cidade vizinha, além do tamanho fetal presumido e da cesariana prévia, nem se cogitou em realizar um parto domiciliar. Fátima não se conformaria a ne­nhum protocolo estabelecido e, portanto, essa possibilidade jamais foi aventada nas conversas prévias. Chegando ao hospital, às 14 horas, fiz uma avaliação da situação e percebi que ela já se encontrava com seis centímetros de dilatação, mas com uma apresentação ainda muito alta.

— Vamos caminhar, mulher — disse eu com uma risada. — Precisamos fazer este bebê descer. E, para isso, nada como um bom passeio.

Nos velhos tempos da residência, eu aprendi, com Maximilian, a importância da deambulação das parturientes. Ele tinha a mania de tirá-las para dançar, e não sei se pelo riso que isso provocava, ou pela dança mesmo, o resultado era um incre­mento da contratilidade uterina. Muitos anos depois, escutando as palavras da parteira americana Ina May Gaskin, pude confirmar a ideia de que o riso tem uma poderosa capacidade terapêutica durante o parto. “Faça a paciente rir, dar garga­lhadas, e você terá resultados incríveis”, dizia-me ela. As posições verticalizadas auxiliam na descida da apresentação fetal pela ação da gravidade sobre o feto, porém mais importante talvez seja a mobilidade incrementada do quadril, que fa­vorece a adequação da apresentação ao estreito canal que o bebê terá que atra­vessar. A bipedalidade, e depois o aumento craniano, determinaram que esse feto tivesse que realizar um caminho tortuoso dentro da pelve, para poder ultrapassar as barreiras ósseas do percurso. A entrada do canal é mais larga no sentido lá­tero-lateral, enquanto a saída é mais larga no sentido ântero-posterior. Com isso, nosso pequeno herói precisa cumprir um sinuoso trajeto dentro da pelve e postar-se com a nuca encostada no osso púbico da mãe, ao contrário dos grandes ma­cacos pongídeos, nos quais esse movimento não ocorre e seus partos são em geral mais rápidos e fáceis.

A deambulação e a mobilização constantes são de extremo auxílio para essa situ­ação. Mais uma razão para que as mulheres de baixo risco não sejam monitoriza­das eletronicamente durante o trabalho de parto, porque assim, atadas ao monitor, têm sua mobilidade extremamente prejudicada. Zeza me acompanhava no hospital, e lá se foram as duas caminhando pelos cor­redores do centro obstétrico. Às quatro horas da tarde, Fátima já estava com oito centímetros de dilatação, au­mentando para nove centímetros duas horas mais tarde. A dilatação já estava concluída às oito e meia da noite, mas o bebê continuava alto. O que fazer? Seria um bebê grande demais? Seria uma impossibilidade clara e incontornável? Ou uma tentativa inútil e frustrante? Como ter certeza? Valeria a pena tentar, correndo o risco de não conseguir e ter que apelar para uma cesari­ana?

O físico Niels Bohr já dizia que “certezas são fruto de nossa presunção, e nada tem a ver com ciência”. Aristóteles, por sua vez, falava aos seus discípulos que, “quanto maior a capacidade e o saber de um homem, maiores as suas dúvidas. As certezas foram dadas pelo criador aos medíocres, como um prêmio de consola­ção”. Minha angústia por não ter certezas sobre o melhor a fazer era, pelo menos, premiada com excelente companhia. Entretanto, as falsas certezas são caracte­rísticas do modelo médico contemporâneo, em que a encenação e o discurso au­toritário são mais constantes do que a conversa franca e o embasamento das condutas na solidez das evidências científicas. Depois de um tempo saí da sala para tomar um café. Minha saída fora mais pelo desafogo das tensões do que pela cafeína. Pouco depois, Zeza me chamou ao quarto novamente e disse que Fátima precisava conversar comigo, pois tinha algo muito importante para dizer. Adentrei a sala e a encontrei acomodada de costas para a porta. Ela parecia can­sada e abatida. Sentada na beira da cama, apoiava as mãos sobre os joelhos, como se fosse uma asmática. Levantou a cabeça e me falou, com um ar contrari­ado:

— Doutor, não estou gostando nada disso. Eu devia ter escolhido aquela outra médica. Ela já teria me livrado desse suplício. Por que esperar tanto? O senhor não me diz a que horas vai nascer, e eu continuo aqui com minhas dores. Por que isso tudo? Por que não inventaram uma forma mais humana para se ter filhos?

Uma forma mais “humana” de ter filhos? O que pode haver de mais visceralmente humano do que ter filhos de forma natural?,pensei, enquanto encarava Fátima e tentava entender suas dúvidas.

Desde muito cedo, ainda na faculdade de medicina, eu me preocupei com a questão do “sentido oculto das palavras”. Muitas vezes, conversei com Nadine e Max a respeito de algo que eu chamava de “patologia da palavra” e que Max cos­tumava chamar de verbose, que é a potencialidade mórbida do que é dito, fre­quentemente usada pelos profissionais de saúde. Antes das atitudes inadequadas, das condutas equivocadas ou dos procedimentos errôneos, muitas das falhas no sistema médico iniciam-se com o uso errôneo de palavras, expressões e gestos. Durante um congresso no México, tive a oportunidade de falar sobre a palavra dita e seus significados com Debra Pascali-Bonaro, que é uma das mais importantes doulas americanas. Nessa ocasião, ela me falou algo muito interessante a respeito de safeword, ou seja, os códigos de comunicação entre a equipe de assistência e a grávida em trabalho de parto. Essa animada conversa me remeteu a uma outra, que tive com Max alguns anos antes.

*   *   *

Uma vez Maximilian me trouxe um artigo escrito pela psicóloga Eliana Calligaris a respeito de um congresso de sadomasoquismo que ela tomou conhecimento nos Estados Unidos. Claro que Max achava a maior graça o pessoal da “Leather Community” se organizar em congressos. Ficava fazendo piadinha o tempo todo, imaginando os cartazes pregados nas portas: “Antes de entrar no auditório, pen­dure seu chicote aqui”. Ou então o cara que ia fazer uma palestra sobre maso­quismo e não conseguia segurar o microfone por causa das algemas. O que ele achou interessante no artigo escrito pela Eliana, foi o conceito de “palavra-chave”. Sua intenção era me chamar à aten­ção para um detalhe no artigo que falava sobre a forma específica de lidar com as demandas durante um processo de alteração consciencial. Entregou-me o artigo com um misto de surpresa e entusiasmo, e me disse que aquilo um dia poderia ser utilizado em trabalho de parto.

— Max, só você mesmo para discutir similaridades entre sadomasoquismo e parto. O que tem a ver uma coisa com a outra? — dizia eu.

Max dava uma risadinha e dizia:

— As coisas estão entrelaçadas no universo. Só existe verdade em um aspecto da vida se pudermos formar analogias em escalas superiores. Leia o artigo e depois comentamos.

Comecei a imaginar o que Max queria dizer, tentando estabelecer as analogias possíveis entre esses mundos aparentemente tão díspares. A leitura do artigo foi uma estimulante surpresa. Facilmente pude perceber o que Max estava me propondo. O ponto de contato entre as práticas sexuais e o traba­lho de parto estava no “princípio do prazer”, que havia muitos anos eu lera no livro A Good Birth, a Safe Birth, de Roberta Scaer e Diana Korte, e que depois foi dis­secado no livro de Michel Odent, A Cientificação do Amor. A chave está em que, nas duas situações, na excitação do jogo sadomasoquista e no “tesão” do trabalho de parto, os envolvidos estão em estados alterados de consciência. Era essa a ligação que Max me apontava. As práticas na “comunidade do couro” são simbolicamente sexuais e reportam o indivíduo à dubiedade de um mundo sexual primitivo, em que a submissão e o comportamento autoritário fazem os papéis principais em um envolvimento de de­sejo. A questão toda, para a articulista, era onde terminava o ilimitado mundo fan­tasioso dos participantes e onde se iniciava o mundo da realidade carnal. Nesse fino liame se estabeleciam os riscos. Max continuava a me descrever cenas engraçadas do encontro, e eu tentava ter­minar o artigo para compreender as possíveis interfaces que ele apontara.

— Se era para me incomodar, para que me emprestou o artigo? Dá licença de eu me concentrar?

Finalmente chego na parte do artigo em que Eliana fala da palestra de um “mes­tre” sádico em que ele explica as vantagens do safeword, que poderia ser tradu­zida por “senha”. Pois ele se dizia extremamente preocupado com casos aconte­cidos havia alguns anos em que, durante práticas sadomasoquistas, ocorreram violências, traumatismos com certa gravidade e, com uma frequência inaceitável, alguns casos de morte. A história, segundo o mestre, era sempre contada da mesma forma. A prática se­xual entre a dupla (às vezes eram mais pessoas) fazia com que estas entrassem em um tipo de transe sexual (acrescido ou não de drogas e álcool), em que o que menos importa é o intercurso sexual. Seria levar as “preliminares” às suas últimas consequências. No meio desse transe, você faz uma prática qualquer, por exem­plo, dar tapas, bater no rosto, dar com chicotes ou sufocar com as mãos. Faz parte do ritual que o masoquista reclame, que chore, que grite, que diga “não”. Entretanto, o perigo residia em que a mesma palavra usada no jogo seria a pala­vra a ser utilizada no retorno ao mundo real, criando-se uma confusão na intersec­ção dos planos (fantasia – realidade). Esta palavra de três letras — NÃO — (com as suas óbvias variações “não quero”, “pare”, “chega”, etc.) perdeu a validade nos jogos sadomasoquistas, por ser demasiadamente abusada como peça do discurso de quem “sofre” a brincadeira.

Diante dos perigos de se avaliar as reais necessidades de alguém envolvido em uma alteração de consciência, faz-se necessário estabelecer regras para o per­feito entendimento do que se quer. O que o palestrante pretendia era a criação e a adoção de palavras que substituíssem de forma inquestionável as manifestações que pudessem significar algo além do pronunciado. Aqui, então, se encaixa a analogia de Max. Que valor possui, no contexto do tra­balho de parto, a frase Eu quero uma cesariana agora!?

Em muitas vezes em que ela é dita, existe uma alteração do estado de consciên­cia e, portanto, as palavras não possuem o seu verdadeiro valor. Essa compreen­são do valor relativo das expressões é fundamental para não cairmos na armadi­lha de fazer uma cesariana no primeiro pedido, que nada mais é do que uma soli­citação de atenção com suas dores, uma necessidade de carinho, esperança e reasseguramento. Assim sendo, essa expressão, e esse pedido, precisam ser entendidos de forma abrangente. Os participantes da “Comunidade do Couro” encontram na negativa, o “não” repe­tido e chorado, um estímulo para as suas brincadeiras, porque a graça está em oprimir e obrigar o parceiro a um estado de escravidão.

Mas como saber se a coisa é séria? Aí se encaixa o conceito de senha. O “Mes­tre” falava da importância das senhas previamente estabelecidas nas brincadeiras. Dizia que, sem ela, o sadomasoquismo se tornaria uma prática perigosa e que atentaria contra a vida das pessoas. Mortes poderiam ter sido impedidas se os participantes entendessem a importância de respeitar os limites de cada um dos envolvidos, e fazer com que a comunicação fosse plenamente entendida. Com isso, muitas dores e tristezas poderiam ser evitadas. Debra me falava que o pedido de cesariana deveria ser muito conversado durante o pré-natal. E ela acenava com a possibilidade de se criar uma “senha” para a ce­sariana, que seria a palavra ou gesto que cumpriria a função de explicar que todos os esforços foram feitos, que todas as tentativas foram realizadas, mas que o li­mite das suas capacidades foi extrapolado, e que não haveria mais espaço para tentativas. É um momento extremamente tenso, mas que deve ser respeitado e previamente estabelecido em suas regras. Concordei com minha amiga, porque percebi nessa postura a compreensão do momento especial que é o trabalho de parto, resguardando para a paciente a ga­rantia do protagonismo. Eu digo que sempre obedecerei às determinações da minha paciente, mas não de uma forma cega e automática, desreconhecendo a mudança do significado das palavras nos estados alterados de consciência. Entretanto, temos que estar aber­tos para o fato de que uma mulher, lá pelas tantas, venha a dizer:

— Abacaxi! Quero uma cesariana!

“Abacaxi” era, hipoteticamente, a senha previamente combinada. Ela só seria dita no caso de uma mulher não suportar mesmo e, depois de muito pensar, decidiu-se por uma cesariana. Mesmo sabendo da possibilidade de uma analgesia, ou aguardar mais um pouco, ou mesmo relaxar e ir para o chuveiro, ela preferiu de­sistir da proposta do parto natural e ir para a cirurgia. Eu escutei isso de uma paciente, fazia uns dez anos. Ela olhou nos olhos, com uma face brava, quase colérica, e disse:

— Chega. Não quero mais saber dessa história de parto natural. Nem de parto de cócoras, nem parto normal. Nada. Quero uma cesariana agora, !

Eu percebi que ela havia desistido mesmo. Estava apenas com seis centímetros, e o bebê era grande. Não me deixou nenhum espaço para tentar demovê-la da ideia. Fiz a cesariana na mesma hora. Mesmo assim, ela ficou brava comigo, di­zendo que eu não deveria tê-la deixado entrar em trabalho de parto, porque as dores eram horríveis, e que é algo insuportável e todas as outras coisas que paci­entes magoadas dizem. Ela teve uma chance de ter um filho de parto normal, e empoderadamente decidiu-se pelo que achava melhor. Foi protagonista de sua escolha, escolhendo a via que achava melhor diante de seus valores. É necessário ter a sabedoria para entender os sentidos últimos escondidos nas palavras. É fundamental valorizar a participação e o protagonismo pleno do nas­cimento humano. As palavras de “senha” podem cumprir o papel de avisar ao mé­dico (ou à equipe) que a cliente cruzou o limite do jogo; está desistindo de uma proposta e uma possibilidade. E isso deve ser sempre respeitado.

*   *   *

Olhei mais uma vez para Fátima e pude perceber que ela tinha medo. Mesmo tendo chegado tão longe, ela ainda sentia temor diante do seu parto. Depois de respirar fundo e ficar em silêncio, resolvi fazer um novo toque. Dilatação completa, bolsa íntegra, a cabeça do bebê estava mais baixa na pelve do que no exame anterior. Ainda estava alto, mas já havia descido. Foi então que eu dei mi­nha cartada final.

— Ok, minha flor. Você é quem sabe. Se você diz que não pode aguentar mais, eu acreditarei no que você diz. Se você quer terminar esse “suplício”, como você mesmo chama, então vamos lá.

Ela não tinha muita dor. Conheço “cara de mulher com dores”. Ela tinha medo, angústia, apreensão. E cansaço.

— Se realmente você chegou ao fim de suas forças, sou obrigado a acreditar em você, e não me restará outra opção a não ser acabar com tudo isso e operá-la. Para isso, basta chamar o anestesista e o auxiliar cirúrgico. Entretanto, eu impo­nho apenas uma pequena condição: só farei essa cirurgia se você olhar no fundo dos meus olhos e me disser que não suporta mais, que está no seu limite, que não pode mais esperar, e que vai querer uma cesariana, mesmo estando com a dilata­ção completa. Essa decisão vai ser sua, e seja qual for eu vou obedecer. Se eu fizer essa cesariana, será com tristeza, mas eu acreditarei em você e obedecerei à sua decisão. Eu estava solicitando a senha, a palavra que me confirmaria a sua desistência. Estava preparado para escutá-la, porque me mantinha fiel à ideia do protagonismo devolvido às mulheres. Peguei pesado, fui firme. Será? Disse a exata verdade dos fatos, mesmo com uma ênfase propositalmente dramática, mas estava realmente preparado para aceitar sua decisão. Minha postura era clara: “Você vai decidir. Você é responsável pelo seu parto. Você tem o poder nas mãos. Use-o”. Ela me encarou com olhos de súplica. Tentou balbuciar algo tipo “mas quanto tempo ain..”, mas eu lhe cortei:

— O tempo vai depender de você. Podem ser alguns minutos ou algumas horas ainda. Nada posso prometer, a não ser ficar ao seu lado aguardando e avaliando você e seu bebê. Nesse exato instante, ambos estão ótimos.

Ela estava com dilatação completa, e, mesmo que ainda não tivesse apresentado puxos, poderíamos considerá-la como estando dentro do segundo estágio do tra­balho de parto, que é quando o período de dilatação já se completou. Mas quanto tempo poderíamos aguardar até o nascimento do seu filho? Essa questão torna-se crucial nos casos em que a descida da apresentação fetal é mais lenta do que o normal, mesmo após ter se completado a dilatação do colo uterino. Em verdade sobre essa questão, a biblioteca Cochrane de medicina ba­seada em evidências é taxativa: “Se houver progressão do trabalho de parto, e ambos (mãe e bebê) estiverem bem, não há justificativa para se estabelecer um limite máximo para o segundo estágio do trabalho de parto”. Além disso, a relação entre períodos expulsivos mais lentos e morbidade fetal não existe. Os trabalhos bem acompanhados no mundo inteiro deixam bem claro aos profissionais que tra­balham com o nascimento humano que não existe vantagem alguma em interrom­per o desencadear de um processo de nascimento mais vagaroso pelo medo de uma alteração perigosa. Entre as técnicas e habilidades a serem utilizadas nessa situação, a mais efetiva e, no entanto, a mais difícil de ser encontrada, é a… paci­ência. Fátima ficou alguns segundos pensativa e cerrou fortemente os olhos quando a nova contração se deu. Passada mais essa “onda”, olhou novamente para mim e disse, depois de liberar mais um suspiro:

— O que eu preciso fazer, doutor?

Ufa… Por uns instantes, temi por ela, mas ela foi mais forte do que eu pensava.

Aí é que entrou a magia das mulheres. Eu lhe disse:

— Você está com a dilatação completa. Está sem nada “na frente” do seu bebê. Pode até fazer força se quiser ou sentir uma forte vontade. Pegue na mão da Zeza e saia caminhando com ela até o chuveiro. Fiquem lá vocês duas. Deixe que a água quente da ducha a acalme e relaxe.

Ela concordou e lá se foram as duas. Saí da sala e anotei em um papel o nome e o telefone do anestesista e da minha auxiliar. Pensei comigo: não vou usar esses números, ela vai conseguir. Seria um otimismo exagerado, ou apenas uma tenta­tiva de convencer a mim mesmo da possibilidade? Passaram-se uns 20 minutos, quando vi a entrada de Zeza na sala dos médicos esfregando as mãos. Olhei pra ela sem entender.

— Coroou — disse ela. — Já está ali! Eu vi, eu vi!

Não acreditei. Estava muito alto quando a examinei há alguns minutos. Poderia ela ter progredido tão rápido assim? Fui até o chuveiro e entrei quase debaixo da ducha. Incrível. Lá estava ele! Estava saindo mesmo! Pedi a Fátima que saísse do pequeno box e subisse na cama para parto de cóco­ras. É uma mesa da JICA que o hospital recentemente havia adquirido. Mais alguns minutos e lá vinha vindo ele. Devagar e lentamente. Assustei-me com o tamanho da cabeça. Era muito grande. Mas o desprendimento era suave, tran­quilo. O períneo suportou muito bem. Vinha vindo, vinha vindo. Ela olhou para mim, como que a perguntar o que fazer, e eu lhe disse:

— Sei que você está com uma contração. Deixe-o nascer. Não tenha medo. Você vai conseguir. Relaxe; tenha confiança.

Uma última força e a cabeça nasceu. Grande, redonda, sem nenhuma bossa. Tive que fazer uma manobra suave, porém firme, para o desprendimento dos ombros. O “resto” do bebê veio logo depois. Quando ele nasceu, eu não acreditei… Era enorme! Um gigante. Muito maior do que a previsão. Chorou logo depois. Era vermelho e redondo. Eu brinquei com ela: “Parece um chinês!” A pediatra não estava na sala porque havia sido chamada, minutos antes, para uma emergência, mas sua auxiliar ficou por perto para qualquer imprevisto. Nada aconteceu, apenas risos e alegria.

O mais surpreendente verificamos depois. O bebê pesou nada menos do que 5,355 quilos. Um trabalho de parto rápido e sem nenhuma laceração perineal. Eu falei para as enfermeiras presentes que, contando, ninguém acreditaria. Essa pa­ciente deveria estar em uma sala de recuperação pós-anestésica, cheia de soros e medicamentos, dopada e sonolenta e, no entanto, estava amamentando seu bebê gorducho, sem nenhum ponto, sem nenhuma droga e sem nenhum pro­blema. Apenas felicidade. A equipe de enfermagem foi maravilhosa, o que reforça a minha convicção de que bons hospitais não são feitos de máquinas sofisticadas ou instalações suntuosas; são feitos de gente, a matéria-prima mais complicada, rara e valiosa. As enfermei­ras e auxiliares permaneceram o tempo inteiro nos prestando auxílio sem interferir, e quando vinham ter conosco sempre traziam uma palavra de encorajamento e confiança.

A presença da Zeza foi fundamental; um capítulo à parte nessa história. Sua can­dura e paciência foram o toque mágico que despertou as capacidades que Fátima trazia consigo. Sem ela, não teríamos tido sucesso. A feminilidade com que esse nascimento ficou impregnado é que possibilitou que sua capacidade de parir vi­esse à tona. E ficou para mim uma grande lição: acreditar sempre, porque as mu­lheres merecem esse crédito. Ao ver Fátima agarrada ao seu filho, lembrei que todas as mulheres do mundo estavam de parabéns. Uma vitória como essa é uma conquista de cada uma das mulheres do mundo. Uma vitória contra o descrédito e a desconfiança.

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A Bailarina e o Segurança

Eu ainda acredito que o grande erro, no que diz respeito ao parto e nascimento, foi torná-lo uma especialidade médica submetida à lógica da intervenção que domina a escola de medicina. Durante mais de 20 anos eu falei publicamente da minha desilusão com a prática médica obstétrica, e isso se deu principalmente por ter saído do Brasil e visto como funciona este tipo de atenção à saúde em outros países, em especial no norte da Europa. No livro da antropóloga Robbie Davis-Floyd “Birth Models that Work” existe um capítulo dedicado ao atendimento em equipe realizado por nós aqui no Brasil, mas também inúmeras outras experiências centradas no sucesso do modelo de parteria aplicado tanto em países desenvolvidos quanto em nações em desenvolvimento. Muito do que eu percebo ainda hoje como atraso na atenção se refere ao desconhecimento pelas comunidades do parto – enfermeiras, médicos, anestesistas, administradores, etc – sobre uma forma alternativa ao modelo biomédico de atenção ao parto. Nós não conhecemos outras possibilidades e, como dizia minha amiga Debra Pascali-Bonaro, doula de New Jersey, “se você não conhece suas alternativas você não tem escolha“.

Sobre o tema de conhecer um universo distinto, eu lembro o impacto que me causou a história que Marsden Wagner – neonatologista da Califórnia e Diretor do Setor de Saúde da Mulher e da Criança da Organização Mundial da Saúde – me contou durante um congresso nos Estados Unidos. No intervalo das conferências, e tomando com ele uma xícara de chá, Marsden me explicou seu grande “turning point”, ou seu “ponto sem retorno”, que ocorreu com a confrontação de realidades absolutamente opostas sobre a questão do modelo de parteria. Vou tentar retratar aqui nossa conversa, sendo o mais fiel possível às suas palavras.

“Eu estava na Suécia almoçando na casa de uma grande amiga quando, depois de terminado o almoço, sentamos na ampla varanda para tomando um chá e trocar ideias sobre as questões da assistência global ao parto e nascimento. Naquela época eu já era contratado pela OMS para tratar da saúde materna e neonatal, vivendo em Copenhague boa parte do ano. No meio da conversa, o “bip” (os mais velhos vão lembrar) de uma das mulheres presentes tocou de forma estridente. Essa senhora era uma parteira sueca que estava sendo avisada que uma de suas pacientes estava em trabalho de parto, com fortes contrações. Imediatamente sorriu e recebeu de todos os presentes os votos de que tudo ocorresse bem para o bebê que estava por chegar. Nesse momento, a anfitriã voltou-se para mim e perguntou se não gostaria de acompanhá-la à casa da paciente, onde o parto estava programado para ocorrer.

Eu disse a minha amiga que, no meu trabalho no Hospital na Califórnia, havia atendido centenas de partos, e que mais um nascimento pouco poderia acrescentar à minha experiência sobre o tema. Curiosamente, todos os presentes sorriram, como se eu tivesse contado uma história engraçada, ou uma piada. Minha amiga então insistiu: ‘É um parto domiciliar, aposto como essa experiência você não tem‘.

Ela estava certa. Apesar de muitos anos trabalhando com neonatologia eu nunca havia assistido um parto domiciliar, até porque no meu país – os Estados Unidos – esse tipo de atendimento era considerado ultrapassado, perigoso e algo que deveria ser banido da prática profissional. Para mim, naquele momento, um parto domiciliar não era mais do que um parto como qualquer outro, apenas sem os aparatos tecnológicos que possuímos no hospital. Só mais tarde eu me referiria a estes equipamentos como “máquinas estranhas, manejadas por estranhos, fazendo estranhos ruídos”. Depois da sinalização de todos os presentes, estimulando-me a ir, e após o sorriso convidativo e simpático da parteira sueca, resolvi me levantar e acompanhá-la ao atendimento.

O que posso dizer deste parto é que ele foi um divisor de águas na minha vida profissional. A ideia de que se tratava de “um parto como qualquer outro” se mostrou a mais ridícula das concepções. Em verdade eu poderia dizer que tudo foi diferente, com exceção do produto final, o bebê. Entretanto, se analisarmos com mais profundidade, até mesmo este produto acaba se tornando diferente, porque a forma como o nascimento se desenrola vai produzir imprints no bebê, tão invisíveis quanto poderosos, que determinarão inclusive a sua saúde e condição psíquica no transcorrer da vida. Pela primeira vez eu tive a oportunidade de assistir um parto em silêncio respeitoso, penumbra, suavidade e delicadeza. Nada de luzes brilhantes, nada de pessoas estranhas – recebi o convite para ficar distante da ação e só me aproximar para receber o bebê da mãe – nada de comandos, gritos, ameaças, cortes, empurrões. O pai esteve presente o tempo todo e ajudou no nascimento; a família comemorou em plena comunhão. A parteira é um capítulo à parte neste episódio. Que talento!!! Quanta delicadeza, quando conhecimento da fisiologia do parto, quanto respeito aos desejos da mulher, quanto reconhecimento das fases do parto, não apenas no que concerne às questões mecânicas, mas igualmente aquelas relacionadas aos aspectos mais sutis, espirituais e emocionais. Tudo o que ocorreu foi tratado com naturalidade, desde as explicações sucintas, o toque, os abraços, as massagens, o carinho e a vigilância atenta e silenciosa.

O episódio todo mudou radicalmente minha percepção do fenômeno. A partir dessa experiência comecei a entender o parto pelo reverso; não aquilo que podemos fazer pelas gestantes, mas tão somente o que devemos esperar que elas façam. “Parto é algo que as mulheres fazem, Ric”. Não haveria mais como entender o parto da forma antiga, aquela que recebi da escola médica, pois ela se assenta sobre uma concepção equivocada, depreciativa e diminutiva das capacidades femininas de gestar e parir com segurança. A nós cabe, tão somente, resguardar o ambiente com segurança para que ela possa liberar seu bebê da forma mais suave e segura.

Robbie Davis-Floyd fez entrevistas no início deste século com profissionais do nascimento, médicos e parteiras humanizados, que estavam atendendo partos à época. Todos eles contavam que sua adesão ao modelo humanístico de atenção ao parto havia sido despertada através de uma epifania, um evento marcante em suas vidas, o qual abriu as portas da consciência para a entrada de novas perspectivas. Marsden Wagner, da mesma forma, foi confrontado com uma experiência de caráter sensorial, afetiva e emocional, e por isso conseguiu entender o parto por um viés diferente do que havia aprendido e praticado até aquele momento. Por esta razão, ele se tornou durante todo o resto de sua vida um defensor árduo das parteiras profissionais e do modelo de parteria, centrado no trabalho dessas profissionais.

Infelizmente nos países satélites, girando na órbita da medicina americana, o médico é ainda o principal atendente de partos, num desperdício gigantesco de habilidades e talentos. A medicina, como bem o sabemos, funciona na lógica da intervenção, e colocar um médico, cuja formação é centrada na intervenção direta sobre o corpo, para atender partos, é um erro inaceitável. A prática de receber bebês milenarmente construída é focada na fisiologia, na normalidade e na suavidade dos fluxos e ritmos do parto e, ao contrário da visão médica, sua lógica é centrada no cuidado. “Médicos deveriam ser os heróis da maternidade”, já dizia o velho adágio das parteiras, agindo tão somente quando as condições se aproximassem perigosamente da rota da patologia, deixando que as ações da fisiologia do nascimento humano ficassem a cargo das parteiras, legítimas especialistas no cuidado das mulheres e seus bebês.

Manter os médicos a cargo da normalidade dos nascimentos é como colocar o segurança do Teatro de Revista para dançar, realizando de forma desajeitada as delicadas piruetas que as bailarinas desenvolvem em sua dança sensual e voluptuosa. As condições para o atendimento ao parto ultrapassam em muito as meras habilidades técnicas, cirúrgicas e farmacológicas; os conhecimentos para a atenção segura ao parto aliam-se às habilidades de ordem afetiva, emocional, psicológica e espiritual que as parteiras acumulam há milênios, desde que a primeira mulher a parir pediu a mão de sua amiga para segurar o bebê que dela se separava. Reconhecer o lugar exato de cada profissional é o que deveremos fazer neste novo milênio, para que as mulheres voltem a ter escolhas reais para o nascimento de seus filhos.

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Doutores

Sabe qual o pior tipo de arrogância? É aquela que vem travestida de humildade, no que um amigo meu chamava de “orgulho rastejante”. É quando a pessoa diz que não precisa que o chamem de doutor porque, “apesar de eu ter doutorado, prefiro ser chamado pelo meu nome”. Um pedantismo dissimulado, escondido sob as vestes humildes da simplicidade. Ou quando as ações reforçam a distância conquistada no universo acadêmico enquanto suas palavras pregam o contrário: humildade e uma vida frugal. Só que a gente não consegue esconder isso por muito tempo; quem usa a ferramenta da soberba para se exaltar nos gestos não consegue mascarar nas palavras por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde o sujeito acaba se traindo.

Entretanto, existe um aspecto que é importante ressaltar: ser chamado de doutor sendo médico é muito natural; as pessoas nos chamam assim automaticamente. O meu professor de Educação Física na Academia, ao saber da minha formação, sempre me chama assim, e eu não sou chato o suficiente para avisá-lo de sua incorreção, já que (como diz uma ex-amiga minha) apenas quem faz doutorado merece esse epíteto (o que é uma grande tolice). E quando me chamam assim eu nada digo, até porque porque sei que as pessoas se sentem mais confortáveis com essa distância. Marsden Wagner dizia que odiava ser chamado de doutor, e por isso mesmo nunca colocava isso em seu nome. Entretanto, reconhecia que quando alguém o tratava assim, muitas portas se abriam. Se por um lado produz uma barreira artificial, por outro garante privilégios que são garantidos àqueles que conquistam esta distinção.

Aliás, doutor não vem de “doutorado”, mas de “douto”, forma de designar os sujeitos em uma comunidade que são dotados, aqueles que têm um dote – do conhecimento. Doutores eram os formados nas três formações clássicas: medicina, advocacia e engenharia (lembram do Dr. Brizola, que era engenheiro?). Por esta razão as pessoas chamam estes profissionais de doutores muito antes de existirem cursos de doutorado, assim como chamavam de “mestre” (quem possui maestria em seu ofício) os professores, muito antes de existirem cursos de mestrado nas universidades.

Em 1953, a Capes iniciou o “Programa Universitário”, direcionado às universidades e institutos de ensino superior. Este programa se propunha a trazer professores visitantes estrangeiros, atividades de intercâmbio, concessão de bolsas de estudos e eventos científicos em diversas áreas. Entre as atividades, havia cursos de especialização ou aperfeiçoamento para docentes universitários, principalmente em início de carreira. De acordo com a Capes, naquele mesmo ano foram concedidas 79 bolsas de “aperfeiçoamento”. No ano seguinte, foram oferecidas 155 bolsas. A partir dos anos 60 muitas modificações ocorreram na pós-graduação brasileira, a começar pelo parecer do Professor Newton Sucupira, de 1965, que determinava que os cursos de pós seriam divididos em stricto sensu e lato sensu. Não havia, antes disso, diferenciação e menção explícita ao mestrado e doutorado, cujas concepções surgiram somente a partir daquele ano. Ou seja, as denominações e graus acadêmicos de “mestre” e “doutor” não têm ainda 60 anos. Durante os séculos que antecederam estes movimentos na Academia, mestre e doutor eram denominações populares usadas para oferecer uma qualificação às pessoas que detinham um determinado conhecimento na sociedade. (Veja aqui outras informações sobre a história dos cursos de pós graduação)

Assim, exigir que o costume popular e arraigado na cultura se modifique em nome dessa formação moderna, relativamente recente, é um erro, um comportamento tão equivocado quanto valorizar em demasia as formações acadêmicas em detrimento da experiência e da vivência. Por isso chamar um profissional de “doutor” pelo costume, sem que este tenha cursado um doutorado, não é errado, pois obedece a uma ordenação ancestral e de valor para as pessoas comuns.

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Vergonha

Sobre a foto de uma médica que publicou os “nascimentos de novembro”, em que todos eram cesarianas.

Na minha perspectiva, atacar o intervencionismo de cesaristas, mostrando o efeito deletério de alienar as mães do processo de nascimento, não causa o resultado que esperamos. Temos a ilusão de confrontar o sujeito com uma realidade que lhe cause vergonha, mas raramente se consegue produzir este sentimento.

(A vergonha só ocorre entre os obstetras chamados “liberais”, ou seja, os que reconhecem o abuso mas se julgam impotentes para contê-lo. Segundo Marsden Wagner, estes são os mais perigosos. Conheci vários…)

Essa ideia de afrontar os defensores da tecnocracia tem, via de regra, o mesmo efeito de dizer para um apoiador de Moro que o ex juiz subverteu a lei, corrompeu sua imparcialidade, agiu ilegalmente apenas para tirar Lula do páreo e com isso elegeu Bolsonaro. Ao contrário de ficar constrangido, esse sujeito vai olhar para você surpreso e dirá: “Claro, mas é por isso mesmo que o apoiamos!!!”

Para muitos cesaristas, a cesariana é o aprimoramento natural do mecanismo de parto, artifício criado pela tecnologia humana para tirar as mulheres da barbárie e colocá-las na civilização. Esta cirurgia é aclamada por eles como um avanço inquestionável da ciência, da mesma forma que um cavalo avança sobre o andar a pé, o automóvel sobre a tração animal, e os aviões rompem os limites do solo. A cesariana é o destino natural do parto e questioná-la significa virar as costas para o próprio progresso humano.

Essa visão teleológica da tecnologia como processo libertário é ensinado e estimulado na escola médica – em especial na obstetrícia – como um dos pontos centrais do rito de transformação que ocorre com todo estudante de medicina. Se entendemos que a medicina se estabeleceu e fortaleceu exatamente pelo uso dessas técnicas e equipamentos, que sentido haveria de abandoná-los – ou mesmo criticá-los – após tantos séculos investindo no estabelecimento desse paradigma?

O uso da tecnologia em obstetrícia é o ponto nevrálgico que sustenta sua prática. Qualquer crítica ao seu uso será rechaçada como anátema ou aberração. Se a crítica vier de dentro, será heresia e traição.

Acho que os cesaristas não se ofendem; apenas lamentam nossa falta de amor pelas mulheres cujas cesarianas as salvaram do sofrimento imposto por uma natureza madrasta

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Medicina e Socialismo

Muitos médicos fazem da prática da medicina toda a sua vida, pois é dela que extraem seu valor social, seu significado e sua importância. Ter essa conexão com a profissão não é exatamente errado, mas é perigoso. Em primeiro lugar porque somos muito mais do que a profissão que abraçamos. Somos uma potencialidade infinita de funções e modos de ser. Somos pais, avós, filhos, escritores, marceneiros, empresários, cantores em potencial e ater-se apenas a uma forma de expressão pode impor uma limitação desnecessária a qualquer um de nós.

Muitas mulheres – e até homens – colocaram na sua relação amorosa todo o valor de sua existência. Como Florbela Espanca, dizem “tu não és sequer a razão do meu viver, pois que já és toda minha vida”. Alguns profissionais fazem o mesmo, e alienam sua existência a um ofício. Em medicina isso é muito comum. Todavia, creio ser importante criar outras formas de ser relevante e sentir-se produtivo. Ou, como diriam os apostadores, não devemos colocar todas as fichas (da nossa paixão) no mesmo número.

Em segundo lugar, a Medicina tanto abriga quanto oprime. Ela é uma mãe poderosa, amorosa e benevolente, porém possessiva e vingativa. Ao mesmo tempo em que lhe oferece um poder desmedido, valor social e dinheiro ela lhe cobra fidelidade. Para a imensa maioria de seus filhos essa fidelidade é oferecida sem queixas. Afinal, quem reclamaria do preço a pagar diante de produto tão valioso? Existem, entretanto, aqueles a quem sua fidelidade está direcionada a valores outros, como uma mente livre e sem amarras. Para estes a conexão à medicina e seus postulados só terá sentido se não afetar outros aspectos da vida, como a equidade, a justiça, os direitos humanos e a liberdade do sujeito de fazer suas próprias escolhas.

É nesse momento que os choques podem ocorrer. No caso da Medicina, a expressão da arte médica se faz no espaço que se forma entre a justa ação de proteção dos pacientes e a apropriação indébita da autonomia destes pelo jugo imposto pelo capitalismo. É nessa zona esfumaçada e incerta que operam os profissionais. Para a maioria, os abusos sobre a autonomia dos doentes são um preço baixo que eles devem pagar para a sua prometida segurança. Para outros, liberdade é a meta última, e qualquer ação que destrua a autonomia alheia será criminosa.

Uma mente inquieta sofrerá a inevitável dor e padecerá da angústia, do sofrimento e viverá em conflito quando estiver diante desse “imperativo de consciência”. Calar-se e acovardar-se diante da injustiça produz doença e martírio moral. Lutar causará dor, feridas, ressentimento e tristezas profundas. Consciência e postura ética cobram um preço deveras alto. Para alguns o embate será inexorável e muitos sabem que essa luta poderá não trazer qualquer resultado além do próprio sacrifício pessoal. Nesse aspecto a luta política pela conquista do socialismo emparelha seu caminho com a luta por uma medicina mais democrática. Não faz sentido que a luta pela saúde dos pacientes não incorpore a ideia de uma sociedade justa e igualitária. Imaginar que é possível tratar os sujeitos doentes sem se importar com as causas primeiras do adoecimento é fazer o jogo mórbido das indústrias que lucram com a doença e o martírio.

Baruch Espinoza, judeu sefardita holandês nascido em Amsterdã, resolveu fazer críticas à dogmas cristãos e à própria Bíblia que foram consideradas pesadas e inadequadas pela oficialidade da comunidade judaica, por agredir elementos essenciais do cristianismo. Estes rabinos, com razão, temiam que suas posições deixassem em risco os judeus que foram recebidos na Holanda após sua expulsão de Portugal pela inquisição portuguesa.

Apesar das pressões, Espinoza não se retratou, por fidelidade à sua consciência e pelo valor que dava à sua liberdade de expressão. Foi humilhado, excomungado e expulso de sua comunidade, vindo a se refugiar em um sótão para trabalhar como relojoeiro até o final de sua vida. Ele é, para mim, o maior exemplo de integridade e respeito a si mesmo. Muitos médicos que conheci – como vários colegas do Brasil e do exterior – seguem esse padrão ético e pessoal. Muitos deles tem marcas na alma das lutas incessantes contra um sistema cruel cujo respeito à autonomia dos pacientes não ocupa o lugar central que deveria ter na ação terapêutica. Para estes minha reverência e meu respeito.

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Teias

“Cuida como vives; talvez sejas o único evangelho que teu irmão lê”.

Consigo enxergar essa frase escrita com a inconfundível letra desenhada de minha mãe. Seu sentido era dar a devida importância ao exemplo de vida, atos e palavras cotidianas, que têm o enorme poder de influenciar os nossos semelhantes.

Lembro de uma curta caminhada com meu pai pelo centro da cidade aos 5 anos de idade quando lhe perguntei porque não comprava vários bilhetes coloridos de loteria. “Podia a gente acertar o número e ficar rico”, disse-lhe eu na sintaxe infantil, pensando nas riquezas possíveis para um garoto daquela época – carrinhos, gibis e balas. Sem diminuir o passo ele respondeu: “Nenhuma riqueza pode vir se não for pelo trabalho”. Ele não notou – e por certo não lembra – mas ali fazia brotar a semente de um pequeno coração comunista.

De minhas brevíssimas conversas com Michel Odent, Marsden Wagner, Moysés Paciornik, John Kennell e Robbie Davis-Floyd (esta última não tão breves) retirei fragmentos que a eles não passaram de palavras, as quais sequer se detiveram a reter na memória, mas para mim significaram enormes setas de luz a indicar o caminho por onde seguir. Por esses pedaços de frases devo nada menos que a minha eterna devoção.

Digo isso porque ontem à noite uma moça me escreveu contando sua história de transformação através dos partos. Não me conhecia pessoalmente, mas leu muito o que postei nos últimos 20 anos e criou coragem (“o vinho ajudou”, disse ela) de escrever diretamente. Partindo de uma cesariana mal indicada chegou ao seu parto vaginal como “turning point” e ganhou ainda de bônus a bênção de ajudar uma vizinha a parir antes da chegada do SAMU. Agradeceu a mim por tê-la inspirado.

A frase que minha mãe escreveu e colocou na parede continua hoje plena de sentido. Hoje podemos influenciar pessoas do outro lado do mundo e de forma instantânea, sendo nossa experiência o evangelho que elas consultam diante dos seus dilemas. Nossos atos – e o que escrevemos – são adubo para o solo fértil de quem deseja aprender. O mundo de agora nos oportuniza encontros que jamais seriam possíveis há poucas décadas, o que só aumenta a responsabilidade que todos carregamos.

Olhados de cima, esses encontros são como linhas de luz a tecer a teia luminosa da vida por onde circulamos. As pontes luminescentes que são lançadas – para o bem e para o mal – acabam nos alcançando e sendo amplificadas. Que sejamos fiéis portadores do brilho que recebemos graciosamente da vida.

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Obstetrícia e Ciência

CURSO DE HUMANIZAÇÃO DO NASCIMENTO

Ric Jones

(Baseado no artigo “Bad Habits” de Masden Wagner, MD)

I. Introdução

Segundo a concepção de vários escritores e pensadores da atualidade, a ciência contemporânea ocupa o espaço deixado vago pelas religiões no imaginário social, oferecendo as mesmas promessas de redenção e elevação que historicamente foram sustentadas pelas organizações religiosas. No ocidente, imagens de progresso permeiam a mídia relacionadas à tecnologia aplicada à saúde, criando uma atmosfera de ufanismo em relação ao combate às doenças e muitas vezes abafando o necessário senso crítico. Estimula-se uma ideia de transcendência e salvação, uma trilha de bem-aventurança pelo caminho da sofisticação tecnológica, que enfim vai nos redimir das limitações humanas. O progresso, entretanto, pode ser enganoso. Muitos chamam esta vinculação mítica com o progresso tecnológico simplesmente como “modernidade”, apesar de que talvez seja mais bem interpretado como escatologia.

Na teologia cristã a escatologia é aquilo no que depositamos esperança, o que preenche o futuro, os objetivos da história sendo materializados no Reino dos Céus ou na vida eterna (Janice Raymond). Em função desta visão mitológica relacionada ao uso da tecnologia, no caso especial da assistência ao parto, as discrepâncias entre a prática médica obstétrica cotidiana e as recomendações baseadas nas evidências são chamativas e desconcertantes. O debate relativo ao uso apropriado da ferramenta tecnológica para o parto não vem de longa data, sendo recentes as primeiras tentativas de estabelecer um consenso. Hoje em dia, em função dos custos crescentes na atenção à saúde, e a ideia de que este modelo tecnocrático é uma “bolha” prestes a explodir, é clara a necessidade de que se construa um espaço de diálogo entre as evidências científicas e a ação médica cotidiana.

Ao observar a inexistência de embasamento em inúmeras práticas rotineiras durante a gestação e o parto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) criou, no ano de 1979, o Grupo Europeu de Estudos Perinatais (European Perinatal Study Group), convidando múltiplos atores sociais para um debate sobre as práticas relacionadas ao parto e nascimento. Dentre os representantes encontrávamos obstetras, neonatologistas, parteiras, enfermeiras, epidemiologistas perinatais, administradores da saúde, economistas, psicólogos, sociólogos e usuários. A ideia central destes encontros, financiados e promovidos pela OMS, não era como lidar com gestações de alto risco, mas, pelo contrário, seus objetivos precípuos eram como trabalhar com a vasta maioria de mulheres saudáveis que se encontravam diante dos desafios de uma gravidez normal.

No início das discussões, nos primórdios da década de 80, o termo “medicina baseada em evidências”, ainda era pouco utilizado, e não tinha a importância que tem nos dias de hoje como a principal ferramenta clínica para a prática médica (vide módulo IV – Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências – deste mesmo curso). Assim, o Grupo Europeu de Estudos Perinatais questionou as práticas vigentes em inúmeros serviços de atenção ao parto, utilizando as evidências científicas como critério para determinar quais as que deveriam fazer parte da prática rotineira e quais as que deveriam ser abandonadas por uma falta de consistência científica.

Este grupo pioneiro realizou um estudo da literatura mundial sobre práticas obstétricas e perinatais que demonstrou que apenas 10% das intervenções médicas tinham uma base satisfatória em evidências (Fraser, 1983).

Tal grupo conduziu pesquisas demonstrando grandes variações nas práticas obstétricas, com pequena ou nenhuma diferença nos resultados perinatais (Bergsjo et al, 1983). Estas variações ocorriam entre países, dentro dos países, entre distritos e mesmo entre hospitais, comprovando que muito da prática obstétrica e perinatal não é necessariamente baseada nas melhores evidências científicas, mas nas opiniões e crenças dos médicos locais, especialmente na figura do “chefe de serviço”.

A realização das práticas obstétricas passa por uma construção essencialmente mitológica e totêmica. Aqueles em posição de autoridade possuem o poder de estabelecer rotinas e protocolos, sem a necessidade de que suas condutas recebam um tratamento científico e apurado; as “eminências” se tornam mais importantes do que as “evidências”. Apesar da aparência científica e racional, nossa organização médica obedece aos mesmos modelos de autoridade das sociedades simples e primitivas de milhares de anos passados.

As questões que surgem desta situação, que é comum em todo o mundo ocidental, são variadas e complexas. Se não são as evidências científicas as principais norteadoras das condutas dos profissionais que assistem aos nascimentos no ocidente, quais são as suas reais motivações?  Porque um evento essencialmente feminino como o parto é conduzido por pressupostos filosóficos tão marcadamente masculinos? Porque a distância entre as recomendações da OMS, Ministério da Saúde, OPAS, Biblioteca Cochrane e outras instituições renomadas e a prática diária nas maternidades do ocidente? Porque a ponte entre ciência e assistência está quebrada?

II. Razões para as Diferenças

Os profissionais que assistem ao nascimento humano são normalmente guiados por “padrões de assistência”, ou protocolos. A origem destes protocolos é multifatorial. Alguns deles são verdadeiramente baseados em evidências científicas, mas isso está longe, como veremos, de ser uma regra. Se as evidências revelam que uma prática em particular é extremamente arriscada (como Talidomida, Dietilestilbestrol, Raios X, etc…) é provável que esta conduta seja descartada dos protocolos. Se as evidências oferecem suporte para uma prática que favorece os médicos (monitorização fetal deve ser usada quando existe indução hormonal e bloqueio peridural) era será padronizada. Se uma prática é incontroversa e benéfica, mas não é favorável ao médico (postura verticalizada para o parto) a probabilidade de ela ser padronizada em um serviço é muito pequena, e é por esta razão que temos uma distância muito grande entre as evidências científicas e as práticas cotidianas nos centros obstétricos. Os critérios, no modelo contemporâneo de assistência, não são centrados na paciente; deslocaram-se para a figura do médico, atual detentor do conhecimento autoritativo relacionado ao evento. Assim percebemos que movimentos como a Humanização do Nascimento se baseiam na reversão de um padrão médico que deslocou mães e bebês do centro da atenção para colocar neste lugar as necessidades de médicos, instituições e os lucros do mercado da saúde.

Dentre as razões para a assimetria observada entre as evidências científicas e o que realmente observamos nos centros obstétricos, podemos enumerar as que se seguem:

a) Hábito – Os protocolos de assistência são questões importantes porque na sua elaboração concorrem vários fatores não médicos. Mesmo quando os clínicos oferecem a “experiência pessoal” como justificativa para a adoção de uma determinada prática a razão mais provável deve ser o “hábito” – a maneira como sempre foi feito. Por outro lado, é interessante notar, como nos ensinou Robbie Davis-Floyd, que o hábito não ocorre aleatoriamente nas sociedades, desde as primitivas às mais complexas. Em verdade, seria mais adequado chamar este fenômeno de “ritualística”. Mas porque deveríamos acreditar que os protocolos ou rotinas hospitalares são na verdade “rituais”, controlados por forças não racionais (ou pré racionais) poderosas e ligadas aos valores profundos de nossa cultura? Para entender melhor essa proposta faz-se necessário entender o conceito de ritual que Robbie Davis-Floyd utiliza:

“Um ritual pode ser definido como um ato repetitivo, padronizado e simbólico, de uma crença cultural ou um valor. Estas atitudes podem ser simultaneamente ritualísticas ou técnico racionais”.

Desta forma, a repetição padronizada de condutas dentro do centro obstétrico poderia caber perfeitamente no conceito de ritual, desde que essas mesmas condutas sejam representantes simbólicas de crenças e valores culturais. Ainda como nos diz Robbie,

“O Sistema de Crenças de uma cultura é encenado através de rituais, e uma análise destes rituais pode mesmo nos levar diretamente à compreensão deste sistema de crenças”.

Os enemas (lavagens), as roupas brancas e indiscretas, a separação da família, a tricotomia (corte dos pelos), o soro endovenoso, a episiotomia (corte vaginal para a saída do bebê) são rituais modernos que podem nos levar à compreensão de valores culturais profundos, principalmente no que diz respeito, ao feminino, à mulher e à própria posição que esta ocupa na cultura. O momento do nascimento é de profunda abertura sensorial, e o melhor período para que se determine o específico lugar que a mulher deve ocupar na sociedade. Com o surgimento do patriarcado, há dez mil anos, o evento da gravidez e do parto tornou-se um momento propício para um reforço da submissão feminina à nova ordem social. Muitos rituais encenados durante o nascimento são carregados desta simbologia. As limpezas, os cortes, as ligações com a instituição (soro), e a separação do recém-nascido cumprem essa função subliminar, e por esta razão são tão uniformemente distribuídas entre as culturas.

“Às vezes, as crenças e valores existentes são explicitados enquanto são representados, mas muitas vezes os valores profundos que um ritual expressa são da ordem do inconsciente, ao invés de conscientemente determinados”.(Robbie Davis-Floyd, 1992).

Os “hábitos médicos”, como vimos, são muitas vezes rituais que o sistema tecnocrático de assistência utiliza para ressaltar os valores dos quais os médicos são reprodutores e guardiões. Evidentemente que, em sua imensa maioria, estas atitudes são inconscientes. Entretanto, daí é que vem toda a força dos rituais obstétricos, pois a racionalidade não atinge as origens primitivas destes comportamentos, que se escondem no mundo obscuro dos desejos e motivações irracionais. Mesmo que existam explicações (e não justificativas) para a utilização de um grande número de rotinas hospitalares, a simples discussão racional de sua conveniência ou risco se mostra incapaz, em curto prazo, de desfazer a sua utilização em larga escala. Mostrar racionalmente a inadequação, por exemplo, da posição de litotomia, enemas, tricotomias ou da utilização irrestrita de episiotomias não se mostrou eficaz para erradicar rotinas evidentemente inadequadas e arriscadas para as mulheres e seus bebês, e as razões para essas discrepâncias estão nas raízes inconscientes para a sua utilização.

b) Conveniência – É evidente que em um mundo controlado pelo tempo o parto desempenha um desafio ao modelo contemporâneo de praticidade. Um nascimento pode ocorrer em 10, 12, 24 ou mais horas, requisitando a presença de um profissional que ofereça suporte, segurança e apoio para a paciente em trabalho de parto durante todo este tempo. Nos moldes atuais um obstetra (principal responsável pela assistência ao parto nas culturas das Américas) tem dificuldade em conciliar suas tarefas, empregos, férias, lazer e consultório privado com a eventualidade de um nascimento. A tentativa de controlar o início de um parto pode ser vista na incidência alarmante de induções de parto (uso de hormônios para o estímulo das contrações) ou mesmo nas cesarianas com hora marcada. Como um exemplo deste condicionante como modificador dos resultados, podemos ver no gráfico abaixo, a incidência de cesarianas na cidade de Porto Alegre e a sua frequência diminuída em sábados e domingos, indicando uma clara relação com o conforto dos profissionais que controlam sua execução.

O gráficos abaixo parte da base de dados de Registro Civil da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados). Ela contém diversos indicadores, como data, hora e local de nascimento, para 628 mil partos normais e cesarianas em todo o estado de São Paulo em 2014. Os dados permitem observar alguns padrões, que parecem não ter se modificado nos últimos 20 anos. (https://www.nexojornal.com.br/grafico/2018/03/14/Quais-os-dias-e-hor%C3%A1rios-mais-frequentes-para-partos-normais-e-cesarianas)

Não se trata de culpabilizar categorias ou corporações, mas de entender que as motivações não relacionadas diretamente com o bem-estar materno e fetal são realidades inquestionáveis e que produzem efeito. Estes efeitos podem ser claramente mensuráveis, e são responsáveis por inúmeros problemas na atenção às grávidas. Alguns destes resultados podem ser constatados pela incidência de 55.6% de cesarianas no Brasil, e mais de 30% nos Estados Unidos. A OMS determina, através dos consensos de assistência adequada ao nascimento, que “não existe justificativa para uma incidência de cesarianas acima de 15%, em qualquer lugar do mundo”. Assim sendo, os índices exagerados de intervenção, por si só, são indicadores muito claros de que algum conflito de interesses existe, forte o suficiente para modificar as condutas e procedimentos médicos.

Além disso, podemos contabilizar as dificuldades de pagamento para os profissionais que prestam assistência ao parto através de convênios de saúde. Em muitas grandes cidades do Brasil esses valores mal ultrapassam U$ 200.00, e é exatamente nas mulheres da classe média que as operações cesarianas são mais utilizadas. Como diz Marsden Wagner, “a camada social que menos necessita desta cirurgia é a que mais faz uso dela”.  A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) afirma que 88% das pacientes da classe média tem seus filhos através de cesarianas, o que significa que quase nove de cada dez mulheres deste segmento social realizam uma grande cirurgia para o nascimento de seus filhos, arcando com todos os riscos associados a ela.

Outro fato relacionado à conveniência é o treinamento deficiente dos profissionais médicos, tanto na escola médica quanto nas residências médicas. Com uma formação cada vez mais centrada na patologia e na resolução de problemas e doenças, o obstetra acaba devotando pouca atenção ao aprendizado complexo da assistência ao parto normal. Quanto mais se (ultra) especializa, mais perde o contato com a fisiologia do nascimento, e mais vai se afastando das habilidades múltiplas necessárias para a prática obstétrica fisiológica. O atendimento ao parto é uma capacidade desenvolvida através de milênios de adaptações, e tem sua sabedoria própria. A “redução” do nascimento a uma série previsível de eventos mecânicos retirou dos profissionais que o atendem as capacidades de entendimento psicológico, afetivo, emocional e espiritual, fundamentais para uma compreensão ampla do processo.

Cada vez mais os obstetras sabem menos como lidar com as demandas emocionais dos partos e, de forma inconsciente, direcionam suas pacientes para que sejam tratadas da forma para a qual foram treinados. As cesarianas, por diminuírem o tempo destinado ao cuidado, não atrapalharem o descanso do profissional, não colidirem com horas de consultório e emprego, não produzirem angústia diante do inesperado e por representarem o procedimento para o qual médico é mais treinado, representam uma solução mágica para os dilemas do parto. Infelizmente, mães e bebês é que continuam a pagar esta conta.

c) Medo dos Processos Na Inglaterra, já nos anos 90 do século passado, 85% dos médicos eram processados uma vez, e 65% duas vezes (Capstick & Edwards, 1990; Lancet Editorial, 1991; British Medical Journal Editorial, 1991). Nada nos faz acreditar que esta tendência tenha diminuído nos últimos 30 anos. No Brasil a cultura de processos contra médicos não chegou ainda a este ponto, mas o medo dos tribunais já faz com que os médicos daqui comecem a utilizar a “medicina defensiva” como postura padrão no atendimento aos pacientes. Como um exemplo deste clima de medo, a própria ACOG (American College of Obstetrics and Gynecology) apresentou ainda em 1995 um pronunciamento que critica a monitorização fetal contínua (ACOG, 1995), mas isso não foi suficiente para diminuir o uso alastrado de monitorizações fetais em trabalhos de parto normais. Essa conduta, baseada na insegurança e no medo do sistema jurídico, acaba obrigando o médico a uma reação protetiva, mas acarreta interpretações equivocadas de estresse fetal que, por sua vez, levam a intervenções e cesarianas em profusão. Muitas vezes esta conduta é a ação deflagradora da “cascata de intervenções” do cuidado com o parto. Tal atitude é provocada pelo pânico que os médicos apresentam de que a ausência de uma documentação clara do bem-estar fetal possa ser usada contra si mesmos em juízo.

Os obstetras no Brasil são a especialidade mais processada, e quase todos os processos estão relacionados com a assistência ao parto normal. Quase nunca encontramos acusações contra médicos que abusam de cesarianas, mesmo que os resultados sejam funestos e desastrosos. Profissionais que usam a tecnologia, mesmo que de forma inadequada e perigosa, estão protegidos por um manto de proteção, através do “imperativo tecnocrático”, que diz que “se houver tecnologia ela deve ser usada”. Esses comportamentos se baseiam no “mito da transcendência tecnológica”, que é um dos mitos mais poderosos da cultura ocidental contemporânea.

Acreditamos, enquanto sociedade tecnológica individualista, na capacidade transformadora e redentora da tecnologia, e essa crença – de caráter pré racional – é a principal condutora de nosso comportamento. Enquanto os médicos que utilizam a medicina baseada em evidências não forem protegidos, através de uma discussão global de políticas de saúde que inclua o judiciário e o Ministério Público, o medo dos processos e dos julgamentos baseados em modelos de práticas locais continuará a manter nos médicos uma atitude amedrontada e defensiva, acarretando um crescimento de intervenções e da consequente morbidade relacionada ao parto.

d) Interesses Comerciais – O poder dos interesses econômicos no parto é sutil, mas muito difundido. Universidades, hospitais e médicos cooperam de maneira íntima com a indústria. Esta tem acesso aos pacientes e a pesquisadores médicos altamente capacitados. A indústria também ganha na publicação paga de pesquisas – relacionadas ao uso de tecnologia – em jornais médicos e congressos. Médicos e outros profissionais podem promover suas carreiras através de pesquisas financiadas pela indústria de medicamentos e equipamentos, o que é uma forma de conseguir status e reconhecimento.

Inegavelmente, desde a transformação da medicina em um “negocio bilionário”, as pressões das grandes corporações de medicamentos são cada vez mais fortes. Hospitais faturam mais com as cirurgias internações, produzindo uma necessidade de manter a lotação dos hospitais sempre acima de um nível crítico, usando a mesma lógica da hotelaria comum. Os custos hospitalares são altíssimos em função dos profissionais qualificados que são chamados a trabalhar lá, além da manutenção dos equipamentos de alta tecnologia e de última geração. Diante dessa contingência, hospitais são vistos como empreendimentos caros e gerenciados com a mesma lógica capitalista de lucro, segurança de investimento e risco. Por outro lado, a “matéria prima” dos hospitais é o doente, que se torna moeda corrente e objeto de manipulação. Com todas estas pressões é natural que existam interferências de caráter econômico e financeiro nas decisões dos profissionais concernentes às condutas clínicas e, em última análise, sobre a saúde e o bem-estar dos pacientes.

III. Conclusões

O princípio básico fundador da atividade médica é de que, qualquer que seja a conduta, ela deve ser primariamente em benefício do paciente, e não dos profissionais ou do sistema. Desta maneira, os fatores não médicos de hábito, conveniência, medo de processos e interesses comerciais – que são claramente relacionados com os interesses dos profissionais – jamais deveriam influenciar os protocolos e rotinas de atenção ao parto. Infelizmente a realidade nos mostra que tais protocolos e rotinas obstétricas, em todos locais avaliados, refletem uma compilação e uma legitimação das opiniões e experiências de médicos influentes, baseados simplesmente no que estes realizam em suas práticas. Infelizmente, as práticas assim determinadas não são normalmente baseadas em evidências, e refletem fortemente a pressão de fatores alheios ao cuidado nestas condutas e rotinas.

Ao lado disso, o poder do conhecimento usado por profissionais que possuem autoridade não se expressa no sentido da adequação destas condutas, mas porque “é assim que funciona” (Jordan, 1993). A antropóloga alemã Brigitte Jordan, descreve que:

 “Para legitimar uma forma de conhecimento como sendo autoritativa é necessário desvalorizar ou diminuir todas as outras formas de conhecimento” (Jordan, 1993).

Assim, os profissionais da área da saúde que resolvem trabalhar com um modelo humanístico, centrado na pessoa e mesmo com condutas baseadas em evidências, são frequentemente tratados como “hereges” ou ameaçantes ao sistema (“Global Witch Hunt”, Marsden Wagner). Segundo, ainda, as palavras de Brigitte Jordan,

“Aqueles que se ligam a sistemas alternativos de conhecimento tendem a ser considerados como atrasados, ignorantes, ingênuos ou ‘criadores de caso’. O que quer que digam a respeito da negociação sobre práticas obstétricas de rotina, por exemplo, é considerado irrelevante, sem fundamento ou sem relação com o assunto”.  (Jordan, 1993)

A lista de intervenções contemporâneas com discrepâncias entre as práticas e as evidências científicas é longa, e inclui: ultrassonografias de rotina durante a gravidez, uso rotineiro de monitorização fetal, indução com ocitocina ou misoprostol, posição de litotomia durante o período expulsivo, cesarianas e episiotomias (veja mais sobre esses procedimentos no módulo IV “Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências”). Além disso, alguns modismos obstétricos aparecem de tempos em tempos. “Cada dogma tem sua chance de aparecer”, como já nos alertava Marsden Wagner, em “Bad Habits”. Há algumas décadas o manejo ativo do trabalho de parto (Active Management) era um destes dogmas, apesar de nunca ter apresentado uma base científica consistente (Thornton & Litford, 1994). Outro modismo é a epidemia de bloqueios peridurais no combate à dor no parto, com igual falta de suporte em evidências (Howell, Chalmers, 1992; Chalmers, 1992). Além disso, os riscos para mães e bebês raramente são incluídos nos consentimentos informados a respeitos dos bloqueios anestésicos (Thorp et al, 1993; ACOG, 1995).

Muitas outras condutas atuais representam esta tendência de aplicar às rotinas condutas influenciadas por fatores não médicos, mas que de alguma forma beneficiam os profissionais e suas corporações, o modelo econômico e as instituições. Qualquer incorporação de tecnologia é recebida quase sem restrições e, mesmo que os resultados sejam comprovadamente negativos (episiotomias de rotina, monitorização eletrônica, parto em decúbito dorsal, ultrassonografias de rotina, etc.), sua retirada é extremamente lenta. Como um exemplo muito claro dessa tendência, os trabalhos definitivos contrários às episiotomias de rotina datam de 1987, há mais de 3 décadas. Entretanto, ela ainda é realizada na imensa maioria dos partos normais do Brasil. A razão para isso é que sua introdução sintonizava fortemente com uma crença social inconsciente de “transcendência tecnológica” além de apoiar e sustentar a compreensão cultural da “defectividade feminina essencial”. Somente o entendimento destas forças incorpóreas e poderosas será capaz de fazer com que sobrepujemos estas crenças despregadas da realidade científica e possamos oferecer o melhor para as mulheres que passam pelo mais incrível e transformador “ritual de passagem”: o nascimento de seus filhos.

Bibliografia

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Exercícios sobre o Texto (Módulo 3)

Estude cuidadosamente o texto “Obstetrícia e Ciência” e responda as questões que seguem de modo objetivo e procurando dar exemplos práticos sobre os assuntos a que elas se referem. Preferencialmente, não utilize mais do que duas páginas para todas as respostas solicitadas neste exercício.

  1. Porque os protocolos obstétricos podem ser considerados como rituais? Explique.
  2. Qual a origem das discrepâncias entre as práticas obstétricas correntes e a medicina baseada em evidências?
  3. Porque a utilização de condutas baseadas em evidências científicas esbarra na postura de profissionais em posição de autoridade?
  4. Como as questões econômicas influenciam as práticas rotineiras em centros obstétricos? Que alternativas podemos oferecer para este tipo de interferência?

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Liberais

Há alguns anos eu conversava com o pediatra e epidemiologista Marsden Wagner (já falecido) enquanto tomávamos café no intervalo de uma conferência. Mostrei a ele a manifestação de um professor da Faculdade de Medicina da minha cidade sobre parto humanizado, cheia de críticas vulgares e posturas sem embasamento.

– Um “liberal”, disse ele. Estes são sempre os mais perigosos.

Pedi que me explicasse o que queria dizer com isso.

– Vou descrevê-lo, mesmo sem tê-lo visto jamais. Ele é sério, educado, afirma que mudanças são necessárias, que os médicos realmente abusam das cesarianas, que é preciso melhorar o ensino de obstetrícia, que os médicos de hoje não querem mais atender partos, que a arte obstétrica está acabando e que os médicos atuais “atrofiaram” suas habilidades de atender partos pélvicos e gemelares. Ele se posiciona contra condutas baseadas em “autoridade” e cita com frequência estudos e metanálises, em especial a Biblioteca Cochrane.

– Exatamente, disse eu. Você o descreveu muito bem.

Marsden continuou.

– Eles são os liberais da medicina, Ric. Acreditam que é possível “ajustar” o modelo hegemônico, sem mudar sua essência opressiva. Acham que as falhas encontradas (como o abuso de cesarianas, violência obstétrica, etc) não são devidas a um paradigma equivocado, mas relacionadas ao mau uso do modelo atual. Por isso eles falam em melhorar o atendimento, mas não aceitam sua reformulação. Aposto como ele combate os 3 pontos nevrálgicos do modelo de parteria:

1- Atendimento por parteiras profissionais aos partos de risco habitual,
2- Casas de Parto e
3- Parto Domiciliar.


– Acertei?

– Sim, este é exatamente seu discurso. Sempre fez de tudo para boicotar o atendimento ao parto realizado pela enfermagem no hospital escola, além de combater todas as formas de parto extra-hospitalar.

– Eles são iguais no mundo todo, meu caro. São gentis, estudiosos, avançados e se diferenciam da “velha guarda” dos professores. Entretanto, acreditam que é possível mudar a assistência deixando as pacientes atreladas ao velho paradigma – que garante aos profissionais relevância e importância social – mantendo gestantes coisificadas, tratadas como objetos e não como sujeitos de seus partos. Para eles o protagonismo reservado ao médico é o limite. Avançar para além disso seria uma perda inaceitável de controle, além de um sério risco de ver desaparecer toda a respeitabilidade conquistada.

Lembrei disso hoje ao debater sobre os liberais de esquerda, aqueles que acreditam na possibilidade de “domesticar o capitalismo”, humanizando-o e eliminando seus “exageros”, sem reconhecer que é da essência do capitalismo a divisão em classes e a exploração de uma pela outra.

O mesmo ocorre com os liberais da atenção ao parto e nascimento, os quais acreditam ser possível produzir avanços e melhorias mantendo a mesma lógica da assistência, a mesma hierarquia rígida e o mesmo sistema de poderes centrado no médico. Todavia, sem a garantia do protagonismo à mulher conquistaremos apenas a “sofisticação” da tutela sobre elas exercida há milênios pelo patriarcado. A verdadeira mudança profunda será possível com esta garantia e o entendimento que o nascimento só poderá ser verdadeiramente seguro se for com autonomia e em liberdade.

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Médicos do bem

O fato de existir ainda uma escassez de médicos em ambientes de humanização prova a minha tese de que é preciso seduzi-los a entrar.

A questão que eu considero relevante é a posição de destaque do médico no contexto tecnocrático e em relação aos conhecimentos autoritativos.

Como exemplo trago a conversa que tive por Skype com uma ativista do parto no Japão, especificamente em Kyoto. Ela viu uma palestra minha e queria me perguntar algumas coisas sobre o Brasil e o modelo interdisciplinar de atenção ao nascimento. Ela me relatou não haver “birth doulas” na sua cidade, apenas doulas para pós parto. Disse também que fará em um futuro próximo um curso para doulas nos Estados Unidos, mas reconhece que terá dificuldade para trabalhar porque nenhum médico aceita essa função no Japão. O Japão está uns 20 anos atrasado em relação a nós no que diz respeito ao movimento de doulas. (desculpe falar assim, mas essa deve ser a unica cousa que estamos na frente deles).

Eu argumentei com minga amiga japonesa que sem essa “fissura na ordem médica” – isto é, a existência de um(a) obstetra humanizado(a) em um contexto tecnocrático – as doulas de parto ficam de mãos amarradas. Entretanto, o surgimento de UM médico apenas sendo “convertido” abrirá as portas para dezenas de doulas – e até parteiras. Eu mesmo sou um exemplo vivo disso; outros médicos no nosdo país também.

Portanto, não se trata de valorizar mais os médicos, mas de reconhecer que seu poder na atenção ao parto é estratégico. Por que não usá-lo em nosso favor?

Lembro quando Marsden Wagner dizia que odiava ser chamado de “doutor, mas notava que quando era obrigado a se anunciar assim “todas as portas se abriram facilmente”. Portanto, por que não permitir que os “doutores” possam abrir portas para os que vem atrás? Por que não usar esse poder médico a favor da humanização do nascimento?

Quem conheceria Marsden Wagner se ele não tivesse se tornado um médico rebelde e fosse – por exemplo – uma doula ou parteira? E Michel Odent? E Klauss, Kennell, Caldeto-Barcia e Paciornik? Quem leria Leonardo Boff se ele não fosse um padre heterodoxo e “herege”?

Poisceu afirmo que as suas condições DISTÓPICAS dentro de suas corporações é que lhes garantitam a merecida notoriedade, a qual estaria escondida se estivessem ocupando outras funções menos autoritativas.

Por isso os médicos convertidos são tão importantes do ponto de vista estratégico. Eles abrem as picadas e trilhas no meio da selva da tecnocracia, que depois poderão ser pavimentadas pelos outros atores da cena do parto, como as doulas e parteiras.

Eu seria o último sujeito do mundo a olhar para o movimento de humanização como uma organização “medicalizada”. Aliás, lutei toda minha vida contra a medicalização do parto. Entretanto, sou obrigado a reconhecer a importância capital dos obstetras e neonatologistas como pontas de lança na mudança de paradigma.

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