Arquivo do mês: dezembro 2016

Festas

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Frases campeãs nas festas de fim de ano…

“O Panetone está seco, mas ainda tá bom”.
“Sobrou sorvete?”
“Não foi assim que eu falei pra tia Marilda, você está exagerando”.
“Bêbado como, se só tomei uma cerveja”?
“Também achei ridícula a roupa dela. Ela não tem mãe?”
“Ele sempre conta aquela piada quando bebe”
“Eu achei bom, mas tava meio seco”
“A gente sabe que o valor em dinheiro não é o mais importante”
“Como engordou tua prima, né? Se tu não te cuidar vai por esse caminho. Olha a genética”
“Sidra? Faz favor, né?”
“Qual a porra do problema de vocês com uva passa e maçã na maionese?”
“O sapato novo me destruiu”
“Mas é pravê ou pracumê?”
“Como você pode ter certeza que eu fui com a mesma bermuda o ano passado?”
“Eu me cuidei o mês inteiro, mas ontem fugi da dieta”
“Como é que a minha irmã aguenta aquele marido dela?”
“Ela não é uma criança má. Isso é uma fase que todas passam”
“Claro que isso é reflexo da mãe que ela tem”
“A mais moça é bonitinha, mas a mais velha pegou o nariz do pai. Pobre criança”
“Eu lamento pelos meus pais. Estão velhos, não mereciam passar por isso”
“Como é o nome daquela moça que estava falando com a minha filha? Como assim? Curiosidade só. Não posso perguntar?”
“Como cresceram os filhos dela!! Até ontem eu pegava no colo.”
“Também acho que não fica bem pra uma mocinha da idade dela”
“Ele já terminou o Colégio?”
“Gorda nada, meu amor. Estavas ótima. Linda mesmo”.
“Não, não chegou a enrolar a língua, mas quando começou a contar a piada da freira me despedi de todos e peguei a chave da sua mão”.
“Ah meu Deus, senti pena dos cachorros”
“Nunca mais vou na festa de Natal da família”
“Família? Hospício, você quer dizer”
“Que bom que a gente tem família para poder encontrar. Nem que seja uma vez por ano.”

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Abusos e assédios

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Há alguns dias rolou um vídeo (pode ser visto aqui) de uma jornalista e youtuber entrevistando o ator Vin Diesel, conhecido por filmes testosterônicos que misturam carros, mulheres, mortes, perseguições, etc. Em outras palavras, filmes de meninos. Neste vídeo ele tem um comportamento abusivo que chega a ser caracterizado como assédio. Alguns dias depois a jornalista vem a público denunciar o comportamento dele, mas, ato contínuo, aparecem falas dela se oferecendo para passar vaselina em outro machão lutador ou sentando no colo de outro ator. Com isso algumas pessoas teriam dito que caiu a “máscara de boa moça” da jornalista. Afinal…. como cobrar bom comportamento do Vin Diesel se ela é tão “liberal” com outros entrevistados?

Creio que o discurso machista ainda não percebeu o que está em jogo aqui e muitas pessoas continuam misturando as questões.

Existem DUAS ações que merecem ser analisadas separadamente. O fato de ela sentar no colo de um famoso (who?) e querer passar vaselina num lutador fortão (who?) podem ser julgadas por quem quiser. Se você quiser achar que é alegria e espontaneidade, este é um direito seu, assim como julgar que suas atitudes são vulgares e inapropriadas para uma mulher. Cada um com seus padrões morais e estéticos. Não me cabe julgar as lentes com as quais você olha o mundo. Vire-se com elas. Ponto.

Por outro lado, NADA da vida pregressa dessa moça pode AUTORIZAR o comportamento abusivo do “Mestre da Testosterona”. Ela pode muito bem dizer “sentei no colo do fulano porque gosto dele e não gosto de você” e este é um argumento absolutamente válido e justo, pois suas preferências e desejos não nos dizem respeito. Ela é dona do seu corpo e de suas escolhas. Ninguém pode cobrar ou exigir de uma mulher que ela se comporte de acordo com nossos padrões. Ponto.

E tem outra questão: se ela está usando esta situação para ficar famosa ou como um legítimo desabafo pelo constrangimento que passou eu não tenho como saber, mas isso TAMBÉM não pode servir como atenuante para a agressão que ela sofreu. Eu prefiro mesmo acreditar que ela está sendo sincera, e que sua súbita notoriedade é um efeito colateral, e não seu objetivo primeiro.

Não há porque vincular qualquer atitude dessa moça com o ato calhorda e abusivo cometido contra ela. Isso é o mesmo que justificar estupro por saia curta, decote, sensualidade ou porque ela “já saiu com muitos homens“.

Só ela pode  falar do seu desconforto com a situação. Respeitemos isso.

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Presentes

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Como estão vocês nesse corre-corre de fim de ano para comprar presentes para as crianças, filhos, netos, país, sobrinhos, cunhadas, irmãos, amigo-secreto, amigos, sogra, ufa…. Muito stress?

Eu, não…

Há mais de 30 anos que não compro nenhum presente de Natal. É verdade que também não ganho, mas o saldo me parece absolutamente positivo. Na minha família não há nenhuma vinculação das festas com comércio. Nem “lembrancinhas”. Nada. Nada para as crianças, nada de surpresas de Natal; nenhum pacote embaixo da árvore; nenhuma compra, nenhuma prestação, nenhuma angústia.

Não se trata de uma prescrição de “como deve ser”, apenas a confissão de alguém que fez diferente da maioria. Preferi transformar estas festas no que elas têm de especial: reencontro, abraços, conversas, família, retratos, sem concessões capitalistas. Não me arrependo.

Percebi que meus filhos nunca se traumatizaram com isso, até porque nada me impede de dar um presente quando quiser. Posso presentear minha mulher ou minha filha por passar na frente de uma loja e lembrar de algo que disseram ou que desejavam. Entretanto, não preciso usar estas festas para uma busca angustiante por presentes, subvertendo sua origem de comunhão e busca por congraçamento.

Para lidar com a pressao dos filhos e da sociedade expliquei que o Natal não era feito pra isso. Eles não engoliram, mas aceitaram. Falei que eles não precisam tanto de “cargo”, de coisas, e que eu compraria quando achasse possível ou achasse adequado.

Mas… vejam bem. Não havia a radicalidade de nunca comprar coisas para as crianças ou familiares, apenas a ideia de DESVINCULAR essas coisas do Natal.

Há um outro detalhe, que sempre me fez pensar a respeito dos presentes. Tenho uma amiga que dá muitos presentes para os netos, até de forma exagerada. Um dia eu lhe disse “Olhe bem, ele não precisava disso, e essas coisas estragam em uma semana!!“. Ela me respondeu fazendo uma cara de criança: “Mas tinhas que ver a cara dele quando abriu o presente. Ele me abraçou e disse ‘Eu te amo vovó’. Ninguém resiste, né?”

Sim, ninguém resiste. Nesse momento me dei conta que não era a criança que recebia o presente; era ela. O objeto era usado, inconscientemente, para comprar aquele momento irresistível de amor, comprimido em um abraço e uma frase. O presente não é o que a gente vê; ele tem uma dinâmica enganosa e dissimulada, e a sua pior face é usar uma criança para suprir nossa carência de amor. Compramos, por alguns vinténs, um carinho e um beijo.

Não me parece justo que as crianças paguem por isso. Aliás, o presente em si, sua matéria, é o que menos importa. O gozo não está nele, mas esperar por ele, e por isso mesmo perde o valor tão logo alguns minutos se passam depois da explosão inicial de prazer. Ali, no vazio deixado pelo brinquedo ou pelo vestido novo, surge de novo a angústia pela repetição do gesto, angústia essa que presente algum poderá jamais saciar.

Olhando o Natal se aproximar penso apenas que ainda terei alguns natais com a família toda reunida, e que esta é a única surpresa de fim de ano que vale a pena aproveitar

Estar presente, ao invés de dar presentes.
Para ler outra crônica sobre o mesmo tema veja aqui

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Hecatombe


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Se você ainda não percebeu que há algo de podre no Reino da Obstetrícia Brasileira, e continua acreditando nas perseguições medievais dos Conselhos de Medicina, preste atenção ao que está acontecendo ao seu redor. O “Caso Adelir” – cesariana sob ameaça da Polícia, em Torres, RS – foi um balão de ensaio. Ali ficou claro que, se for possível dispor do corpo da mulher sem que ela aceite e permita, a porta estará aberta para QUALQUER outra arbitrariedade.

(Não esqueçam que no caso de Torres as duas médicas que atenderam a gestante, além da juíza que lhe deu a intimação judicial, eram mulheres, o que expõe uma face cruel do nosso machismo: ele é reproduzido pelas próprias mulheres.)

Estamos muito próximos de uma “hecatombe médica”, quando nenhuma mulher mais tiver chance de ter seus filhos de parto normal pela total incapacidade dos médicos em atendê-las. O caso do Rio de Janeiro é emblemático: a Unimed não disponibiliza mais atendentes de parto normal. O parto, como evento fisiológico, está desaparecendo, consumido pelo monopólio médico que se interessa prioritariamente pelos ganhos e facilidades da cesariana, negligenciando seus riscos multiplicados. (veja aqui a decisão do tribunal do Rio de Janeiro)

Quem defende o parto normal é caçado (pode ser com “ss” também), agredido, violentado, difamado, perseguido e caluniado. Quem abusa de cesarianas recebe tapinhas nas costas dos colegas e jamais é admoestado por seus pares.

Somente a sociedade organizada, forçando a modernização dos operadores do direito, poderá mudar essa realidade. Não podemos mais admitir um ministério publico ainda tão inoperante nos casos de violência obstétrica  (ressalva aqui aos poucos e bravos procuradores que abraçam a causa) e a ignorância constrangedora de magistrados que continuam a julgar casos médicos por senso comum e sem a mínima noção do que seja medicina baseada em evidências.

O que mais precisa acontecer para que as mulheres percebam que seus partos foram roubados para oferecer conforto e dinheiro às corporações?

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Pena Capital

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Estudos comprovam que esse chip não reduz estupro ou assassinato, principalmente porque insistem em colocá-lo apenas na cabeça de negros e pobres. Antes que possamos nos dar conta esta sociedade formadora de delinquentes rapidamente os substitui por outros. Portanto, colocar esse chip só se presta para o sadismo branco de classe media, e não para resolver o problemas que nossa sociedade doente cria.

Mas o que esse “chip” é capaz de resolver?

Resolve apenas nosso estúpido desejo de vingança. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, onde a pena de morte no mundo do tráfico existe desde sempre. No mundo do jogo do bicho também era assim, lembram? E qual o resultado? Paz entre as facções? Menos mortes?

Pelo contrário. A pena de morte nunca diminuiu crimes graves ou contra a vida. Pena capital é comprovadamente incapaz de fazer decrescerem estas cifras. Responder assassinatos ilegais com assassinatos legais nunca solucionou o problema da criminalidade. Essa prática só produz o efeito pessoal de vingança que muitos veneram. Pior… estimula uma espécie abjeta de sadismo regulamentado, vil e medieval

Afinal, que diferença faz se o assassino não for mais este e for outro? Que diferença faz para o morto ou para a sociedade QUEM matou? Precisamos estancar a hemorragia e não ficar fazendo curativos tolos e ineficazes. Entretanto, é sabido que só se interrompe a sangria com equidade social, justiça, inclusão, igualdade de gênero, respeito às minorias, distribuição de renda, acesso à escolas e Universidades, política de cotas etc…. essa agenda “comunista” que os conservadores detestam. Isso, como bem sabemos, é insuportável para a casta que se acostumou com a “paz entre as classes” e o preço baixo da mão de obra que mora na senzala e trabalha por comida.

Pois eu aviso, irmãos, que sem abrir mão de nossas vantagens brancas e de classe continuaremos sendo vítimas da criminalidade crescente e matando pobres indiscriminadamente, pois é injusto pedir que os miseráveis se conformem eternamente com sua condição e aceitem os privilégios que nós tentamos desesperadamente naturalizar.

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Solidão

Vejo o sexo como a ação humana mais solitária que existe. O sexo funciona como uma partida de tênis em que os jogadores não tem uma rede entre si, mas uma parede. Jogam sozinhos usando as forças que imprimem nos braços e na bola, orientados pelo que escutam do parceiro que joga no outro lado do muro. Eles parecem estar jogando uma partida entre si, mas em verdade estão solitários, com sua própria bolinha e raquete, dependendo exclusivamente dos ruídos que escutam e da forma, força e direção que imprimem ao seu próprio jogo.

Entretanto, se é verdade que o jogo pode ser jogado sozinho e ainda assim ser prazeroso, mesmo sem se escutar as jogadas do companheiro atrás do muro, também é certo que ouvir a miraculosa sincronia das nossas raquetadas sendo respondidas pelo outro nos oportuniza uma sensação única de comunhão, e não é por outra razão que “até o padre eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar”.

“Sexo é algo que fazemos sozinhos na companhia de outra pessoa”. É de Freud a frase “A relação sexual é impossível”, pois é impossível compartilhar o mesmo fantasma. Assim, devemos nos satisfazer com a ideia de que a companhia e o amor podem nos ajudar a tornar a nossa vida sexual mais prazerosa, mesmo reconhecendo que ela é feita da mais pura solidão.

O gozo solitário pode, sem dúvida, nos satisfazer. A ausência do outro, a falta da maravilhosa sinfonia de bolinhas batendo no muro, ainda assim pode nos dar prazer, em especial pelo fato de que o outro sempre nos desafia e questiona. Lidar com a dor e o prazer alheios é um passo em direção à maturidade emocional, e isso nunca é feito sem que um preço seja pago. Este preço, para alguns, é alto demais.

A diferença está na singularidade dos sujeitos e suas respostas infinitas. Uma boneca inflável ou um vibrador apenas materializam a fantasia que carregamos e da qual somos inteiramente responsáveis. Já o outro, o resto que acompanha os genitais, este tem sua própria dinâmica fantasmática, que nos obriga a entender e respeitar. Porém, isso demanda um esforço que nem sempre desejamos despender.

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Lawfare

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Lawfare é uma palavra inglesa que representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política. Neste sentido, a lei é utilizada como uma espécie de “arma de guerra”, o que permite o uso de um instrumento jurídico com afeição política.

Lula, juízes garantistas e obstetras humanistas são perseguidos pela justiça e pelos seus pares, no caso dos obstetras, a corporação médica. A perseguição contra os médicos humanistas se insere como um capítulo negro na longa crise da obstetrícia brasileira que, sem capacidade de justificar a barbárie das cesarianas descabidas e outras tantas práticas anacrônicas, prefere atacar os médicos que se posicionam contrários a esta prática. No final, atira-se no mensageiro para atrasar a chegada da mensagem. Infelizmente para eles essa estratégia não dura muito tempo, e a verdade por fim se torna a única possibilidade de avanço.

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Eu e as Doulas

– Você sabe o que é uma doula?

Sua pergunta era direta e seus olhos verde-água me encaravam com a mesma firmeza doce com que segurava Miguel, seu filho recém-nascido. Poucos dias haviam se passado do nascimento, e ela vinha ao meu consultório para a revisão de rotina. Os desafios daquela gravidez e os mistérios daquele parto haviam me oferecido inúmeros ensinamentos sobre as conexões entre o espírito, a mente, o corpo e suas inúmeras e enigmáticas falas. Quando a pergunta de Cristina me chegou aos ouvidos eu sequer sabia que as grandes transformações ainda estavam para começar…

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Não, eu ainda não sabia o que era uma doula, mas Cristina teve paciência para me explicar o que elas faziam. Falou de Wendy, Klaus e Kennell, Dana Raphael, Penny Simkin. Falou do suporte psicológico, afetivo, emocional, físico e espiritual que elas podiam proporcionar. Falou também dos estudos, da biblioteca Cochrane, e de tantas outras verdades as quais eu desconhecia por completo.

– Eu sou uma doula, Ricardo, continuou ela. E nós vamos trabalhar juntos.

O convite inesperado me acertou em cheio. Sua proposta era simples: referência e contra-referência. Ela me encaminharia pessoas interessadas em um atendimento humanizado ao parto e eu encaminharia a ela gestantes que desejam um acompanhamento de Yoga durante a gestação e que desejam a presença de uma doula no parto. Os partos seriam uma tarefa compartilhada entre nós. Ali começava uma parceria que produziu muitos frutos, mas que também acabou atingindo de forma inquestionável um dos pilares da obstetrícia moderna: o poder sobre o corpo da mulher. O preço a ser pago, sei bem agora, seria o pior possível, e o perdão… impossível.

Nosso trabalho se iniciou de forma tímida, mas tinha uma característica importante: a busca de horizontalidade. Não se tratava de uma “auxiliar de médico” a fazer um trabalho acessório para ajudar o “nosso” trabalho. Não, o trabalho da doula vinha inserido em um outro entendimento da atenção, em que diferentes atores executam funções complementares e de igual importância. A doula fazia o trabalho de preparação física para o desafio do parto, e durante o processo se ocupava de oferecer conforto, confiança, determinação e relaxamento. Depois de cada parto conversávamos para ver os pontos positivos e negativos da nossa atuação, o que poderia ser melhorado e o que poderia ser repetido em novos atendimentos.

Todavia, o primeiro grande assombro do meu trabalho com as doulas não ocorreu pelos partos maravilhosos, pelo choro de felicidade, pela alegria de pais e mães envolvidos em um abraço comovido com sua cria, ainda úmida e quente, embalada nos braços. Não foi pelo clima maravilhoso de sensualidade, de carinho, de proteção e confiança. Não, não foram estas as causas do meu assombro.

Meu primeiro grande susto foi ver uma paciente escrever na internet uma nota sobre um parto que nós tínhamos atendido. Nela se lia, com palavras semelhantes a estas: “Agradeço ao meu marido, minha família, meus amigos e à minha doula. Sem ela eu jamais conseguiria.

A sensação que eu tive foi de espanto. “Como assim sem ela eu não conseguiria? E eu? E a minha arte, meu esforço, minha dedicação, meu talento, meus anos de estudo?” Meus pensamentos incontroláveis eram o suporte da minha indignação, mas era preciso absorver o golpe e tentar entender. Com o passar do tempo consegui compreender que minha irritação se dava por não conseguir admitir nada além de mim mesmo como merecedor de qualquer tipo de elogio pelo nascimento. Minha mente ainda acreditava que eu “fazia” os partos de minhas clientes e, sendo assim, não haveria como alguém querer roubar este corpo e este parto que a mim pertenciam.

Era preciso sair deste lugar, e eu sabia disso. Sem abrir mão da posição de “dono do parto” eu jamais poderia dar um passo adiante. “Humanizar o parto é garantir o protagonismo à mulher“, dizia eu. Se o protagonismo a elas pertence, que disputa é essa que se pode estabelecer entre pessoas alheias ao evento? “Se a posição de coadjuvante não lhe é suportável, esqueça esse ofício“, repetia meu amigo Max. “Médicos, parteiras e doulas não são feitos para brilhar, são feitos para refletir e ampliar a luz que emana de uma mulher parindo“. Aquela era a lição mais dura, a mais difícil, a mais complexa e a mais desafiadora. Descer do pedestal de saber auto erigido sobre o corpo da mulher é terrível. Quando vejo os ataques ferozes de elementos da corporação médica às doulas fica claro para mim que eles são tomados pelo mesmo sentimento que me atingiu ao ler aquela nota, mas sem a fidelidade aos compromissos de equidade, justiça e protagonismo garantido às mulheres aos quais eu me propunha.

Meu trabalho com as doulas foi abrindo um portal que eu jamais teria imaginado. Era como se um aspecto gigantesco, imenso e misterioso do meu trabalho houvesse sido trancafiado por 10 anos e só então pudesses ser aberto. Os aspectos psicológicos, absolutamente negligenciados durante toda a minha formação médica e na residência, finalmente faziam sentido. O enigma da página 138 do livro “Nacimiento Renacido“, de Michel Odent, podia ser desvendado: era essa conexão física, emocional, intensa e profundamente feminina que oportunizava às mulheres percorrer os labirintos obscuros do seu ser feminino com mais confiança. Era essa a parte que me faltava, da qual eu carecia e que as doulas poderiam ajudar, acrescentando a feminilidade e o contato amoroso ao trabalho técnico de médicos e obstetrizes.

Duro reconhecer, mas durante muitos anos eu fui um médico manco, claudicante, que andava me arrastando, sem saber como oferecer uma atenção que contemplasse as reais e profundas necessidades das gestantes e seus parceiros. Foi através das doulas, com sua calma, silêncio, tranquilidade, compaixão e arte que eu aprendi muito sobre os intrincados caminhos da feminilidade. Se o parto verdadeiramente é “uma parte da vida sexual normal de uma mulher” como dizia Odent, então a própria sexualidade feminina se desenrolava diante dos nossos olhos no momento sublime do nascimento, o que nos obrigava a uma atitude de solene admiração e respeito.

As doulas me levaram a uma revolução interna sem precedentes. Com elas percebi que a única posição subjetiva coerente de um médico é a humildade, aliada a compreensão do nascimento como um fenômeno para muito além do que conseguimos atingir com a mera pesquisa biológica e mecânica. Existem segredos ainda reclusos, que precisam ser descobertos, e cabe a nós a coragem de procurá-los. Para as doulas, e para Cristina – minha primeira doula – fica a minha homenagem e os meus agradecimentos eternos.

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A Destruição da Política

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O discurso destrutivo contra a política e os políticos nós reconhecemos facilmente nas ditaduras militares da minha juventude e nas ditaduras midiáticas contemporâneas.  Berlusconi, Doria, Trump e tantos outros “anti-políticos” são o resultado direto da desmoralização da política pelas forças conservadoras, com o discurso raso de que “os políticos são todos uns ladrões” e com a concepção tosca de que os cidadãos comuns (eu e você) somos mais honestos do que eles. Uma busca rápida e superficial de nossa própria consciência prova exatamente o contrário.

Os políticos são o espelho dos valores sociais medianos, o campo simbólico por onde todos circulamos. Não nasceram em outro planeta e seguem os mesmos valores do que nós. Pior, ao atacar a política e seus atores, criamos a falsa noção de que o empresariado e seus sequazes são “honestos”, “dinâmicos” e “progressistas”, quando na verdade são tão corruptos e virtuosos quanto qualquer outro sujeito social, mas que governarão a partir de seu especial viés de lucro e de capital. 

A tentativa de destruir a política e aniquilar a representatividade social se alinha com os piores movimentos fascistas e autoritários que conhecemos, de hoje e de sempre.

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Pets


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Eu escrevi há algum tempo um artigo controverso falando sobre o que considero uma crueldade moderna: a domesticação de cães e gatos. Mostrei estudos recentes que mostram que os gatos são responsáveis pelo extermínio de aves migratórias e isso se tornou um problema ecológico contemporâneo. Os cães modificados geneticamente, nas múltiplas espécies artificiais que produzimos, passaram a ter câncer, problemas de coluna, cegueira, desproporção cefalopélvica e uma vida mais curta. A isso podemos chamar “amor”? Terminei afirmando que não tenho “amor” pelos animais, porque esse amor eu considero muito estranho, e só se expressa na possibilidade identificatória. Isto é: amamos cães e gatos, mas não os ratos e os porcos, e todos eles são mamíferos. Nem pelos morcegos temos esse nobre sentimento. Baleias e golfinhos, mas não atuns e arraias. Baratas e mosquitos, nem pensar. Falei que nossa propensão a cuidar amorosamente de bichos aconteceu sempre que as civilizações diminuíram drasticamente o número de filhos. Lembra quando o culto aos “pets” era uma “frescura” europeia? Pois lá a diminuição da “prole humana” começou antes.

Os animais escolhidos para serem companhia para os homens e mulheres são sempre aqueles com quem podemos estabelecer um contato empático. Isto é: só servem aqueles que podem, de alguma forma, reproduzir a conduta humana. Gatos, cães, golfinhos, papagaios, etc.

Há pessoas que se ofendem com esse tipo de consideração, mais racional e fria. Porém eu lembro bem do comentário de um veterinário que disse em um programa de rádio: “entendo as inúmeras vantagens que os humanos tem –  em especial os velhos e as crianças – no convívio com os animais. Todavia, tenho sérias dúvidas se os animais tem algum benefício com a nossa presença”.

“Das raças de cães que existem na atualidade, 90% delas foram criadas nos últimos cem anos, e nossa insistência para que os cães atendam nossos padrões arbitrários – estéticos, de força, de aptidão para a guarda e a caça – está fazendo com que fiquem mais doentes e morram mais cedo do que seus ancestrais. O cão médio de raça pura é muito mais frágil que o cachorro comum, o conhecido “virá lata”. 60% dos Golden Retrievers acabarão padecendo de câncer. O “Dog Alemão” é tão grande que seu coração não suporta o peso do próprio corpo. Os Bulldogues, depois de um século de existência, estão com o o nariz tão amassado que mal podem respirar. Além disso, suas cabeças são tão grandes que só podem nascer através de cesariana Todos tem displasia do quadril e a expectativa de vida deles reduziu-se para seis anos”.

Quando eu disse que não tinha “amor” pelos animais – pelo menos não essa devoção antropomórfica que algumas pessoas demonstram – uma veterinária respondeu raivosamente dizendo que eu era uma “pessoa de merda”. Porém, eu comparo os animais domésticos às mulheres do harém. Lindas, charmosas, bem tratadas e bem alimentadas, vivendo do bom e do melhor. Entretanto, cativas. Será que por baixo das aparências de luxo essas mulheres realmente desejariam o cativeiro se a elas fosse oferecida a dádiva da liberdade?

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