Arquivo do mês: junho 2018

Expropriação do parto

Assisti não mais de 3 minutos da fala de um obstetra do centro do país com o tema “Você quer estar certa ou obter resultados?“. Logo me dei conta de que estava diante da mesma retórica de risco que escuto há 40 anos e que – ao se analisar em profundidade – serve como substrato ideológico para a submissão das mulheres ao controle médico no momento apical de sua feminilidade: o parto. Em suas palavras encontrei o mesmo discurso da “mulher bomba relógio” que justificaria a perda total de autonomia e que colocaria o médico como o único sujeito capaz de tomar atitudes em seu nome. O resumo de sua fala poderia ser “Você quer ser livre ou continuar vivo?”. Ou ainda “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Só vais te manter viva se for por mim“.

Para este médico reduzir-se a uma fiel e subserviente paciente, curvada diante de seu saber absoluto, é a única maneira de sobreviver à terrível jornada da gravidez e do parto. Sua voz parece surgir das catacumbas, colocando para o exterior um paradigma mumificado e bolorento. Entretanto, não há mais espaço no mundo contemporâneo para acorrentar as mulheres a um paradigma que as coloca como coadjuvantes no nascimento dos próprios filhos!!! Não há mais lugar para uma visão iatrocêntrica, focada no profissional, sem que a mulher possa escolher como e onde vai parir. Não se justifica mais a falta de conexão com as evidências científicas que mostram o parto domiciliar como tão seguro quanto o hospitalar no que tange mortalidade materna e neonatal, e com inúmeras vantagens acessórias.

O que resta de verdade após escutar essas mensagens de anacronismo e preconceito é que vozes carcomidas pelo tempo e visões antiquadas sobre a mulher e o feminino não devem se manter como hegemônicas; é preciso que a voz dos profissionais humanizados se faça ouvir cada vez mais na Academia e que sejam estes novos modelos os principais canais a informar as pacientes. Chega de ouvir médicos falando sem embasamento científico e sem qualquer conhecimento de causa.

Quando a proposta se resume a “Você quer estar certa ou ter resultados” na verdade estamos diante de outra demanda: o desejo de que se abra mão de toda a autonomia e que se sucumba à ordem hierárquica perversa de expropriação do parto.

Que a onda verde atinja esses médicos para que a liberdade deixe de ser slogan e vire prática cotidiana.

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Vento

Passam-se os anos e os ventos não mudam. O mesmo disco quebrado repete o enfadonho réquiem de uma alma que se foi, condenada pelo desejo. “Assassina, assassina”, vociferam as consciências silenciosas da turba em êxtase ao ver o cortejo. Enquanto isso, na procissão macabra a jovem mulher canta sozinha a marcha fúnebre em seu esquife, calada, pálida e impedida de oferecer seu testemunho. “Fez-se a vontade de Deus”, diz a moça branca, enquanto do outro lado da rua, de dentro de um carro a voz rouca de um homem apressado grita “Saiam da frente”. Pobre anjo, diz a senhora idosa ao seu lado, mas engana-se quem pensou na falecida. Era para o embrião que se escondia em seu ventre o lamento da velha. Para ele as homenagens; para sua mãe o inferno.

Kathy McGuire-Daniels, “The Hell of Ourselves”, Ed. Printemps, pag 135

Kathy McGuire-Daniels é uma escritora estadunidense nascida em Bayard, Novo México. Estudou letras e literatura na Universidade do Novo México e passou a lecionar inglês em escolas de sua cidade natal. Em seu romance “The Hell of Ourselves” ela descreve o drama de Cynthia, uma mulher que mora em um acampamento de trailers junto com sua irmã Sylvia. Esta, se envolve com Gregory, um jovem bonito e inescrupuloso que trabalhava numa lanchonete próxima ao acampamento. Desse encontro ela engravida, mas vem a falecer em decorrência de uma tentativa frustrada de produzir um aborto em si mesma. A falta de empatia de seus companheiros de comunidade com a morte da irmã, e a solidão que lhe é imposta pela sua partida abrupta, a fazem abandonar a comunidade e cruzar os Estados Unidos – de baixo para cima – para reencontrar a mãe em Cleveland-Ohio, a quem não vê a mais de 20 anos e que está à beira da morte. Sua viagem de retorno, e a verdade terrível que precisará contar sobre a ausência da irmã, fazem desta trajetória uma intensa experiência de resgate, dor e renascimento. Kathy Daniels é casada com o advogado especializado em defesa de minorias e imigração Albert Lavalle, mora em Albuquerque e tem dois filhos Jessica e Rolland.

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Abortos e Armas

Como sempre os debates estão emocionalmente determinados e atacam os aspectos morais, e não factuais. Todavia, minha experiência diz que militantes pró-vida não são “matadoras de mulheres” e as ativistas pró-escolha não são “assassinas de bebês”, porém enxergam esta questão por diferentes perspectivas – e AMBAS são válidas.

Eu já estive nos dois lados do debate e me recordo vividamente dos discursos inflamados que fiz na defesa dos dois paradigmas. Em ambos eu achava estar correto e defendendo o bem, a justiça e a vida. Não acho que algo egoísta ou perverso me movia nessas discussões e não acho que eu estava “errado” nas minhas defesas.

Mudei de lado porque a realidade me venceu, mas olho para o meu antigo “lado” de forma compreensiva, mesmo que eu o tenha abandonado há quase 30 anos. Alguns argumentos que leio nas mídias sociais dizem que deveríamos investir em educação como se o problema fosse o “desconhecimento” ou a “ignorância” por parte das pessoas que engravidam sem planejamento ou vontade. Entretanto, posso afirmar que isso não é verdade. Eu mesmo tive dois filhos não planejados enquanto era um estudante de medicina namorando uma estudante de enfermagem. Ignorância? Conte outra…

Mais uma vez eu lembro do debate sobre as armas nos Estados Unidos. Os defensores da “segunda emenda”, que lutam pela liberalidade das armas para o uso quase irrestrito pelos cidadãos, dizem que a educação seria a solução, mas por mais que se fale na TV, nas escolas, nas igrejas ou na internet os massacres se sucedem. Essa é a realidade: a educação não eliminou os tiroteios em escolas.

O mesmo ocorre na gravidez indesejada. Mesmo que, a exemplo das armas, se suponha que algum sucesso tenha sido alcançado, por mais que se eduquem os jovens as gravidezes indesejadas continuarão a ocorrer, levando muitas meninas a ações extremas como os abortos inseguros, e as mortes daí derivadas continuarão a ser um drama afetando, em especial, as camadas mais pobres da população.

A razão para essa discrepância é simples de entender: as motivações para puxar um gatilho ou fazer sexo estão muito aquém da racionalidade; elas se escondem nos estratos inferiores de nossa consciência, nos porões sujos e escuros onde moram nossas emoções mais primitivas – como o ódio, o ressentimento e o desejo – onde a razão, como facho de luz que ilumina o entendimento, não consegue entrar para clarear as decisões.

Por isso mudei, mas ainda entendo o fervor de quem defende o lado que um dia eu acreditei ser o mais correto.

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Aborto

Tenho uma certa autoridade para falar sobre interrupção da gravidez. Acho o aborto algo horrível. Nunca faria um aborto, como sujeito, pai, avô ou médico. Fui pai aos 21 anos, ganhava meio salário mínimo, mas o aborto nunca esteve no meu horizonte Todavia, como eu disse, minha opinião e experiência pessoais não tem nenhuma relevância. Existe um drama contemporâneo que precisa ser tratado com coragem.

Passei os primeiros 30 anos da minha vida sendo contrário ao aborto, numa posição ideológica de “proteção ao feto”, proteção à vida e sem aceitar qualquer violência contra indefesos. Entendo exatamente todos os argumentos contrários ao aborto; já os usei e por muitos anos. Entretanto, foi preciso testemunhar o horror e o absurdo da morte de uma jovem de não mais de 25 anos em um plantão durante a residência para saber que o combate ao aborto não resolvia problema algum para os fetos e apenas acrescentava outros para as mulheres em desespero. Não era aceitável ver uma vida ser exterminada por uma gestação indesejada.

Meu choque foi com a crueza da morte, a pele marmórea, os lábios roxos, a mão gelada e o olhar vítreo fixo no teto. A cena não consegue escapar da minha mente, mesmo depois de 3 décadas. Aquela menina foi vítima de nossa insensibilidade, nosso muro social, nossa condenação das pobres ao inferno das curiosas, das agulhas, do Citotec clandestino e do submundo das clínicas de aborto.

Liberar o aborto legal é uma questão de democracia no acesso à saúde. “Ricas fazem aborto, pobres morrem tentando”. Não pode haver real justiça quando as de baixo arriscam suas vidas e as de cima tem todas as vantagens que o dinheiro garante.

Por mais que seja terrível a ideia de exterminar um ser em potencial que cresce no ventre de uma mulher nossa sociedade precisa aceitar que a luta contra o aborto MATA milhares de mulheres jovens era não diminui o número de embriões eliminados. Falhamos.

Precisamos pensar nessas mulheres e suas vidas. Continuar condenando essas meninas à morte precoce é um horror que não cabe mais neste mundo.

Como sou um velhinho de barba branca, quase um Dumbledore, posso dizer que o nível do debate sobre o aborto continua o mesmo dos últimos 40 anos. Lá pelas tantas aparece um “Só Deus pode dar e tirar uma vida“, e aí não resta nada a acrescentar que possa fazer qualquer diferença.

Esse debate parece com aqueles relacionados com a posse de armas nos Estados Unidos. O FATO de que mulheres morrem nos abortos clandestinos e de que crianças morrem nas escolas nos massacres parece ser desimportante diante de valores abstratos como a “liberdade”, “segunda emenda” ou “direito a nascer”. A realidade crua acaba sucumbindo diante das ideologias.

Sejamos sensatos.

A nossa opinião pessoal sobre o tema é irrelevante. Os dados sobre mortalidade na clandestinidade falam mais alto e por isso a liberação do aborto é uma necessidade, ou se quiserem, um “mal necessário”. E não adianta reclamar, pois já contamos vítimas demais causadas pelo nosso moralismo. O Brasil vai liberar a realização de abortos seguros, com limites reconhecidos por outros países, igual às outras nações do mundo, isso é uma questão de tempo. Aborto legalizado é um passo civilizatório inegável, pois salva vidas e oferece autonomia à mulher sobre seu próprio corpo.

Que a “onda verde” nos atinja!!!

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Futebol e Política

É evidente que manifestações de jogadores de futebol relativas à política são raras e a imensa maioria dos jogadores e clubes não se posiciona politicamente, por desinteresse, ignorância ou pura alienação.

Entretanto cabe ressaltar 4 episódios recentes que demonstram as relações de personagens do futebol com a política:

  1. Os apoios de Neymar e Ronaldo Fenômeno à campanha de Aécio Neves;
  2. A intenção de Ronaldinho Gaúcho de concorrer ao senado no mesmo partido do candidato da direita mais reacionária;
  3. A frase gritada de cima do caminhão de bombeiro, por Renato Portaluppi, em apoio ao “juiz” da Lava Jato, nas comemorações do campeonato da América;
  4. Os jogadores Felipe Melo, Jadson e Roger declaram apoio a um candidato de extrema direita à presidência, cujas posições incluem racismo, misoginia, ditadura, apoio a torturadores, penas capitais e ataque aos homossexuais

Existem, mesmo que de forma tímida, manifestações de caráter político circulando no mundo futebol. Entretanto é evidentemente um setor dominado pelos conservadores e pelas posições à direita no espectro político-partidário. A esquerda é uma expressão bissexta na cultura do futebol. Os clubes são controlados desde sempre pela burguesia empresarial, advogados, membros do MP e magistrados aposentados. Na CBF quem manda é o dinheiro e as ligações com as empresas de TV, material esportivo, etc. Isto é: o futebol está ligado de forma umbilical à nata das classes altas. São estes atores que puxam os cordéis dos marionetes de chuteira, enquanto manipulam a paixão do povo pelo ludopédio. Berlusconi e Macri são os ícones máximos dessa realidade.

Não é difícil de entender as razões para este divórcio entre os jogadores de periferia pobre e o mundo de significantes que deixam para trás. Ao ascender socialmente eles entram no mundo da fama e do consumo e, via de regra, assumem os valores da cultura que os recebe. Esquecem rápido de onde vieram e olham deslumbrados para o mundo de luzes que os recebe. Muitos, como Ronaldo Fenômeno, chegam a mudar de cor e assumem o tom de pele que mais representa suas aspirações.

Assim, o que é mesmo raro não é a adoção de posições política ativas e explícitas, mas que estas sejam relacionadas com o desejo de transformar o mundo do qual os jogadores são egressos. As posições progressistas e de esquerda podem ser contadas nos dedos; já as conservadoras se multiplicam na mídia. Na contramão do conservadorismo chamou atenção o apoio do técnico Wanderley Luxemburgo ao presidente Lula durante o cerco ao Sindicato dos Metalúrgicos, uma ilha de legalismo de esquerda num oceano de punitivismo, conservadorismo e o mais escancarado reacionarismo. As posições de Casagrande, sobrevivente da democracia do mito Sócrates, são notáveis exceções no universo da bola.

Há política no futebol, mas o que nos falta são personagens verdadeiramente engajados numa postura de esquerda, pelas minorias, pela democracia e, principalmente, pelos pobres, exatamente o que eles tentam de toda forma esquecer que um dia foram.

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Surpresas

O sujeito tinha uns 45 anos e batia palmas freneticamente no portão da minha casa. Quando me aproximei ele me contou sua história. Havia sido policial e há 15 anos, durante uma batida, ele baleou uma criança que estava na linha de tiro, que veio a falecer. Foi expulso da polícia militar e condenado a 9 anos de prisão. Havia sido liberado naquela tarde e precisava de dinheiro para voltar para sua casa no interior do estado. Perguntei sobre o Serviço Social do presídio e ele me disse que “estas coisas não funcionam” e os funcionários “nunca dão dinheiro para ex-prisioneiros“. Sozinho e desamparado, pedia uma ajuda para voltar para sua cidade, sua única referência, onde encontraria sua mãe, tudo que lhe restava.

Senti pena do rapaz. Uma vida desperdiçada por um erro. Uma fatalidade que o fez passar quase uma década afastado de tudo e de todos, por um momento de desatenção. Que tristeza!! Coloquei a mão no bolso e tirei as notas que tinha comigo. Entreguei a ele e disse “Vá com Deus”.

Passei alguns dias impactado pela história. A sensação incômoda de fragilidade diante da imprevisibilidade da vida. É verdade; a qualquer momento tudo pode mudar e sua existência virar do avesso. Pobre homem!!

Cinco dias depois, ao chegar em casa, encontrei um senhor negro, de uns 50 anos parado ao lado do portão. Pediu desculpas por estar tão tarde do dia na frente da minha casa e disse que precisava de uma ajuda para voltar para casa. Explicou que durante uma ação policial havia matado uma criança por uma bala perdida, pelo que foi expulso da polícia e condenado a 9 anos de prisão. Estava saindo naquela noite do Presídio Central e por isso necessitava ajuda para a passagem do ônibus.

Olhei com firmeza para o homem e pedi que fosse embora, e que combinasse melhor as histórias com seus parceiros. Por outro lado, fiquei feliz pela criança que não morreu e pelo homem que não foi preso pelo crime que jamais cometeu.

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A arte de dissimular

A gente finge que sabe alguma coisa de medicina e a maior parte do trabalho médico é fazer os pacientes acreditarem que sabemos o que está acontecendo e que estamos no controle. Somos dissimulados, atores sofisticados. No parto também agimos assim e, em verdade pouco sabemos do que ocorre dentro daquela barriga. Igualmente não sabemos porque uma chuva deixa um sujeito apenas molhado, ou com resfriado e o outro com pneumonia. Não sabemos porque um bebê tranca na saída enquanto o outro é “cuspido”. Não sabemos porque algo nos faz mal e aos outros só traz prazer ou alegria.

A grande barreira da medicina ainda é o sujeito e seu universo interior, suas idiossincrasias e seus mistérios. Continuamos, por enquanto, a tratar gente como gado, como se fôssemos iguais, sem reconhecer a unicidade de cada um. O drama é nossa condição humana, nossa subjetividade e as consequências de nossa identidade.

E a arte de curar ainda se torna mais complicada quando ocorre dentro do capitalismo, onde o “Seu Toshiba” e o “Seu Siemens” precisam vender aparelhos de ultrassom, e o Complexo Farmacêutico mundial vende remédios como pílulas encantadas como se fossem a solução para nossos problemas. Onde as corporações lucram com tais tecnologias, que são usadas como “varinhas mágicas” para resolver os problemas dos pacientes.

Difícil é aceitar que elas, na verdade, apenas simulam um saber sobre a intimidade de nossa dor.

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Fogueiras

E lá vamos nós pelo 20º ano consecutivo falar do “nicho de mercado”, dos “dinheiristas” e dos “mercenários” do parto humanizado.

Quer saber porque não tem parto humanizado no SUS? Porque as mulheres ainda – como grupo – NÃO querem isso. O dia que quiserem MESMO fazem uma passeata monstro na frente do Ministério da Saúde e acabam com essa violência. Fecham hospitais e maternidades. Falam na TV e questionam a máfia da cesariana em público. Mas ainda preferem ficar de bem com os “doutores“.

Sabe porque tem corrupção? Sabem por que tem violência policial? Sabe por que tem iniquidade? Sabem por que temos baixos salários? Sim… a mesma resposta. A culpa não é do oprimido, mas a responsabilidade pela mudança é apenas dele. Ninguém vai lutar a sua luta. Culpar os poucos médicos que sacrificam suas vidas pessoais é sempre fácil, difícil é fazer a sua parte e LUTAR por mudanças. Uma frase cheia de testosterona da minha época dizia “É aí que se dividem os homens dos meninos”. Troque o gênero quando falarmos de parto e teremos a resposta.

Brace yourselves. The bonfire will begin…

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O Caminho como Metáfora

Em 2003 fui apresentar uma aula onde procurava mostrar graficamente como o modelo tecnocrático e intervencionista da obstetrícia contemporânea era algo extremamente recente na história da nossa espécie. Minha primeira ideia foi mostrar um relógio e explicar que este modelo, que ora usamos, representava apenas os últimos 15 segundos de um dia inteiro de aprendizado para lidar com os desafios da parturição. Os 40 anos de tecnocracia mais agudizada ficavam minúsculos diante dos 200 mil anos de adaptação apenas desta espécie, sem falar na carga de ensinamentos que recebemos dos 7 milhões de anos de história de bipedalidade.

Um tempo depois pensei uma imagem mais próxima de nós – uma estrada. Em verdade próxima de mim e da minha fantasia adolescente. Coloquei o gif de um caminhante sobre o mapa do norte da Espanha, com o traçado que liga Saint Jean Pied de Post (na França) até Santiago de Compostela, já na Galícia. Abaixo os dizeres: “Caminho de Santiago = 800 km“. A ideia era mostrar que se a forma como atendemos o parto fosse em um tempo igual ao Caminho de Santiago, o modo tecnocrático, intervencionista, medicamente controlado, cientificista, insensível, frio e afastado das evidências científicas representaria apenas os últimos… 80 metros.

Espero que tenham entendido como as modificações recentes no parto, em especial a hospitalização, produziram efeitos muito importantes e graves na forma como entendemos e sentimos esta parte tão importante da sexualidade humana.

Agora eu me sinto no fim dos pródromos de um grande trabalho de parto, que durou 37 anos. Desde a minha viagem de 108 km de Porto Alegre até o litoral, quanto não contava mais do que 20 anos de idade, que sonho em percorrer a rota mística de Santiago. Ela esteve presente em meus sonhos, nos livros que li, nos filmes e documentários que assisti e nos inúmeros e infindáveis devaneios sobre o que me aguardaria na travessia.

As contrações agora se intensificaram e começo a sentir uma certa regularidade. Não sinto mais tantas dores, as bolhas serenaram, a sola engrossou, ou músculos pararam de se embebedar com o ácido lático de todos os dias. Apesar das dores os passos estão mais confiantes. A cada albergue que chegamos cresce nossa confiança; são como nas pausas silenciosas depois de cada contração. Os olhares de apoio das minhas companheiras de caminho são como as massagens de divinas doulas sobre um corpo cheio de cicatrizes e uma alma ainda rasgada de indignação. São elas que me estimulam, e quando dizem, jocosamente, “é logo ali”, sinto o mesmo frescor das palavras que por tantas vezes eu mesmo disse a quem sofria a dor do desconhecido.

Na minha jornada – o caminho é sempre solitário – levo no alforje a metáfora do nascimento. Se existe sentido na dor, na lágrima, no nariz que corre, no músculo retorcido e nos pés que sangram também terá valido a pena lutar para que o nascimento seja um evento de luz, com autonomia, liberdade, segurança e comunhão de almas.

Sigamos!!!
Ultréia!! Suséia!!!

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Depois da morte

Aprendi que haveria níveis diferentes para onde a alma iria depois da morte. Um mais baixo, com os “espíritos inferiores”, um segundo nível composto de espíritos em “expiação”, um mais elevado com os espíritos de maior esclarecimento e um acima, o angelical, onde estariam seres com uma experiência maior e responsáveis pela coordenação da própria vida na Terra.

Nada parecido com as organizações sociais mundanas que existiram por séculos, como escravos, proletários, burgueses e nobres. Mera coincidência, certo? O método de ascensão entre as classes? Ora, a meritocracia (com variações, por certo).

Lembrei disso porque me sinto caminhando em uma estrada que se segue ao abandono. De uma certa forma pulso em dois mundos: à frente a redenção e a superação, enquanto para atrás fica a vida de dificuldades e mágoas, embora tantas vicissitudes sejam entremeadas por amores e conquistas.

Entretanto, ao invés de focar minha atenção no porvir e no Caminho, não consigo cortar as amarras do mundo que ficou para trás. A vida ainda parece por demais intensa para ser esquecida. Por isso escrevo aqui…

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