Arquivo do mês: julho 2020

Divisionismo

Esse é o divisionismo que me irrita. Grupos contra hegemônicos normalmente tem divisões internas, algumas relevantes e outras não. O feminismo se fragmenta, o movimento negro também e os LGBT também, o que não é necessariamente ruim, mas deve ser colocado em perspectiva quando existe uma luta comum a todos dentro do grupo, como o racismo, o patriarcado, a homo e transfobia, etc.

Essa é a tática, tão antiga quanto atual, e que ainda funciona: dividir para conquistar. Colocar mulheres contra si, negros odiando negros, latinos desprezando latinos, gays atacando outros gays.

No fim aparece alguém com coragem suficiente para desagradar uma parte do seu grupo em nome de fazer algo, dar um passo à frente e mudar a paisagem, elevando o debate para um novo patamar.

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Marcas no corpo

– Adeus mãe, melhor dizendo, até breve.

Suas mãos pálidas cruzavam o peito deixando à mostra os ossos proeminentes. Os olhos fundos e as bochechas encovadas registravam a solidão de seus últimos tempos. Solitária em seu mundo de lembranças e visões pouco absorvia do mundo que a rodeava. A memória, como chama fina no candeeiro, esmaeceu-se lentamente, como o frio que nos invade na chegada do inverno. Lembrei, por alguns momentos enquanto olhava seu rosto pela última vez, das histórias de “Juca e Bolão” que contava para nos seduzir a secar a louça com ela, da letra linda, dos cadernos que corrigia, do meu imenso prazer em fazê-la explodir em gargalhadas. Suas histórias de tombos fantásticos, que adorava contar pela metade, pois as crises de riso a impediam. Sua comida cujo cheiro reconhecia a uma quadra de distância ao chegar da escola. Arroz, feijão, guisado, farinha de mandioca. Suas sonecas na tarde e a porta trancada do quarto. Olhei mais uma vez a cicatriz que trazia no antebraço, que vinha do punho até quase o cotovelo, lembrando a história que se escondia por detrás, e que me foi contada há tanto tempo que sequer consigo recordar a época exata.

Foi uma brincadeira infantil que quase produziu uma tragédia. Escondida debaixo de um sofá, num inocente jogo de esconde-esconde, foi finalmente encontrada pelos amigos. Quando foi resgatada de lá o braço ficou preso, trincou e quebrou. Não tinha mais do que 5 anos na época. Ainda assustada, ela é levada ao hospital e faz um tratamento padrão para a época, meados dos anos 30. Alguns dias depois acorda com febre e uma mancha vermelha e feia no local da fratura. Seus pais a levam para o hospital e recebem o diagnóstico, dos poucos que a minha mãe sabia dizer: osteomielite.

Estávamos há décadas de comercializar antibióticos. O médico inglês Alexander Fleming desenvolveu pesquisas sobre estafilococos e acabou por descobrir a Penicilina em 1928, dois anos antes do seu nascimento. Esta descoberta, assim como tantas outras na ciência, deu-se em condições muito curiosas, graças a uma sequência de eventos imprevistos. Mas quando minha mãe chegou ao hospital nada disso estava à disposição dos médicos.

– Será preciso amputar o braço de sua filha, disse o médico, sem devaneios, ao meu avô, “Seu Olinto”.

Meu avô ficou absolutamente arrasado, mas aceitou o que o destino havia lhe reservado. Saiu da sala do médico e foi até a cafeteria do hospital Moinhos de Vento para fumar um cigarro e tomar um café. Lá encontrou um amigo para quem compartilhou a história, e puderam juntos lamentar o ocorrido. Quando estava indo embora, sentiu um toque no ombro e se virou. Lá estava um jovem rapaz, com seu chapéu nas mãos.

– Eu escutei a história que você contou ao seu amigo. Desculpe pela intromissão. Sou o Dr. Heinrich* e acabo de voltar de um ano de estudos na Alemanha. Eu vi que meus colegas preconizaram a amputação do braço da sua filha, mas nós desenvolvemos um tratamento para estas condições que talvez permita curar a infecção sem precisar agir de forma tão radical.

Meu avô a tudo escutava com paciência, que aos poucos se transformou em esperança. Se era possível uma cura sem extirpar um dos seus braços, por que não tentar? Pediu ao médico que tomasse conta do caso e assim foi feito.

Minha mãe contava que o tratamento se baseava em abrir a extensão da pele até o osso e fazer “raspagens” e lavagens, até que ele curasse de dentro para fora. Quando minha mãe descrevia essas peripécias e essa aventura eu tremia, tanto de excitação quando de medo ao ouvi-la descrevendo as raspagens dolorosas e sacrificiais mas, acima de tudo, corajosas. Ao fim do tratamento estava curada, apenas com a vistosa cicatriz a lembrá-la para sempre do que passou.

Hoje eu creio que muito do que eu fiz da minha vida está inscrito nessa história. Para o bem e para o mal a minha trajetória está marcada por esta narrativa.

Estava ali a sua cicatriz, marca de sua força e resiliência, que a acompanhou até o fim da vida. A longa marca que lhe riscava o braço permaneceu com ela até depois da memória ter se recolhido para o último sono.

– Até breve, disse eu, mais uma vez.

* um nome inventado. Minha mãe contava que era um médico da comunidade alemã de Porto Alegre, onde todos se conheciam pelos sobrenomes e pelas origens.

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Felizes para sempre

Quando eu era criança as mulheres separadas eram socialmente marcadas. Lembro de uma artista local que foi impedida de frequentar o clube por ter se separado do marido. Era o tempo em que ser “desquitada” era uma vergonha, e muitas mulheres suportavam até espancamentos em nome da “união da família” e pelo “bem dos filhos”. Era também o tempo em que muitos homens procuravam sexo e prazer nos prostíbulos, já que a mãe dos seus filhos não precisava cumprir essa função.

Durante séculos, casamentos foram arranjos sociais e não projetos afetivos. Serviam para fazer filhos, juntar patrimônio, cuidar de propriedades. Não se propunham a servir de veículo para o amor.

Talvez esse seja o destino do casamento do futuro: um projeto para fazer filhos e dedicar cuidado a eles por um tempo. Sem vinculações afetivas profundas, sem conexões obrigatórias de ordem sexual. Tudo apenas em nome da reprodução.

Talvez a liberdade sexual das mulheres, esta novidade introduzida no século XX, produza uma sociedade com o mesmo tipo de liberdade de que os homens dispunham nos séculos passados, só que agora compartilhada pelas mulheres, tanto dentro quanto fora dos casamentos. É possível imaginar um futuro sem corpos presos…

De resto, casamentos duradouros não são uma virtude social. Mostram apenas rigidez nas estruturas que sustentam a sociedade patriarcal. A mim parece que ainda é melhor uma sociedade de relações instáveis do que casamentos rígidos e insatisfatórios, mesmo que duradouros.

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Sobre dor e perdão

Quando sua filha nasceu estava de plantão no último dia como doutorando no hospital escola onde estudou. Passados 13 dias veio a se formar, e apenas três semanas depois já estava novamente de plantão, agora como residente. No dia do parto não tinha mais do que 26 anos e, além dos temores que cercam o parto, ainda estava angustiado com a escolha dos novos residentes, o que deveria acontecer nos próximos dias.

Por certo que o jovem estudante prestes a se formar não interferiu no parto da própria esposa, que ficou a cargo de uma residente. O parto foi muito tranquilo, apesar das violências de praxe comuns daquela época. Entretanto, depois de várias horas de ocorrido, já no fim da madrugada, o recém pai foi profundamente maltratado pela residente. Esta foi grosseira, maldosa e até ameaçadora. Fez uma cena em pleno centro obstétrico apenas porque o doutorando foi acompanhar sua mulher e filha recém nascida à maternidade e não permaneceu ao seu lado para passar os dois casos restantes da noite anterior para os próximos plantonistas.

Nunca conseguiu aceitar a violência daquelas palavras. Era impossível entender as razões pelas quais ela foi tão bruta com um colega seu que acabava de ser pai e precisava dar assistência à sua esposa e filha. A raiva do seu olhar nunca lhe saiu da cabeça, como uma interrogação, uma dúvida. Entretanto, intuía que tal manifestação era direcionada a outro sujeito, e que estaria tão somente ocupando o lugar de outra pessoa.

Muitos anos mais tarde ele finalmente ficou sabendo do que se escondia por detrás do meramente manifesto na cena. Aquela médica era namorada – há vários anos – de um homem casado. Certamente que nutria a esperança que ele abandonaria a esposa para, finalmente, ficar com ele, e testemunhas lhe contaram que esta médica era verdadeiramente apaixonada por aquele sujeito. Entretanto, exatamente na época deste parto, o namorado comunicou que estava abandonando sua esposa… mas também não a queria mais. De uma só tacada livrou-se das duas mulheres de sua vida para se juntar a uma terceira, a qual nenhuma das duas tinha conhecimento.

Para ela o efeito foi devastador. Uma relação de muitos anos desmoronava de uma hora para outra. Nesse ínterim, seu colega – um sujeito sem importância, sem brilho, sem destaque, sem glamour – torna-se pai durante o seu plantão. A alegria do nascimento e a exaltação do parto conquistado foram demais para ela. Explodiu em indignação e, por certo, enxergava na felicidade do jovem colega o amante a quem tudo ofereceu e nada obteve em troca. Colocou naquele amanhecer toda a sua indignação nos ombros de alguém que passava por um dos momentos mais intensos e transformadores de sua vida.

Por muitos anos ele a odiou em silêncio. Não podia admitir que tamanha grosseria pudesse ser justificada. Sua alma só veio a serenar quando, finalmente, pode conhecer o drama que se desenrolava por detrás da violência verbal a que foi submetido em um momento onde só deveria haver felicidade.

Por fim foi possível perdoá-la, mesmo sem jamais ter lhe dito como havia ficado magoado com suas atitudes. Sua dor iniciou e findou sem que ela soubesse.

Não há dúvida que, fosse possível conhecer as dores que habitam os corações machucados, seria mais fácil entender as reações violentas que nos atingem. Por certo que muito mal já fizemos aos outros sem sequer notar a amplitude do dano que causamos, mas tenho a esperança que o perdão possa um dia acalmar estes corações.

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Diferentes

A descrição depreciativa que fazemos dos outros é inversamente proporcional à condescendência que reservamos para nossas falhas e defeitos. Isso vale para o Oriente médio, o islã, a Ásia, os LGBT, os homens, as mulheres e para todos a quem ilusoriamente consideramos – em essência – diferentes”.

Martha Chistensen, “Le Second Autre”, ed. Maigret pág. 135

Martha Schneider Christensen é uma blogueira e influencer sueca. Seu blog tem uma imensa popularidade em seu país e nele ela trata de costumes, sexualidade, religião, islamofobia e ateísmo. É engenheira química de formação, mas dedica-se ao “jornalismo das redes sociais” como formadora de opinião desde 2009. É fundadora da ONG “United Against Discrimination” – UAD – que luta pelos direitos LGBT e pela proteção aos habitantes da Faixa de Gaza.

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Superando cancelamentos

Não é de se espantar que Noam Chomsky, J. K. Rowling e Margareth Atwood também se preocuparam com o tema sobre o qual escrevi diversas vezes. Intelectuais como eles estão participando de um movimento que visa estabelecer um freio à política de “cancelamentos” que ocorre entre os progressistas. Junto com Salman Rushdie, Gloria Steinem, Martin Amis e outros escreveram uma carta aberta denunciando a intolerância entre os ativistas de esquerda nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Para mim, os cancelamentos são atos de covardia. Servem para calar vozes e silenciar discordâncias. Seguem-se a percepções moralistas da realidade, julgamentos superficiais e ações oportunistas. Muitas vezes o sujeito é cancelado por um detalhe menor em seu percurso – uma piada que pode ser interpretada como racista ou homofóbica, um gracejo quando tinha 15 anos de idade ou uma acusação vazia de violência de um ex-parceiro(a) – para, assim, atacar a obra inteira, e evitar ter que enfrentá-la com argumentos e evidências.

A “cultura do cancelamento” é uma das marcas da pós-modernidade e das mídias sociais. Personalidades e reputações são transformadas em pó por grupos de guerrilheiros fanáticos que usam da manipulação de emoções compartilhadas para seu intento destrutivo, movidos por vingança e ressentimento. Como eu já disse, não me convidem para cancelar pessoas cujos crimes eu mesmo já cometi. Chega de hipocrisia.

Chega de tribunais midiáticos cheios de juízes raivosos de bunda suja.

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Hierarquias

*Eu já disse, há uns 25 anos, algo parecido com “cidadão, não”, mas por sorte os celulares ainda não haviam sido inventados. Não me convidem para linchamentos de crimes que já cometi.*

O sargento se aproximou de mim carregando nas mãos as folhas de papel datilografadas nas velhas máquinas do quartel. Trazia consigo as escalas de plantão de “médico de dia” e as escalas da obstetrícia do hospital militar onde eu trabalhava. Eu havia pedido a ele algo razoavelmente simples: a troca de plantão da sexta feira porque ele coincidia com trabalho que eu realizava em outro hospital. Era notório que, apesar de ter vontade, eu não possuía o dom da ubiquidade. Como tenente médico eu estava acostumado a estes encontros com os sargentos que trabalhavam na administração do hospital. Como todos tínhamos plantões fora do hospital era normal e corriqueiro que tivéssemos choques com nossa “agenda externa”.

Esse era o dia-a-dia dos sargentos que trabalhavam no setor administrativo do hospital. Homens por volta de 45 a 50 anos de idade, geralmente em final de carreira, que haviam seguido por anos a fio a carreira militar dentro do hospital ou do quartel adjacente. De nossa parte, éramos oficiais médicos, mas também enfermeiras, dentistas e bioquímicos – muitos, como eu, temporários – que apesar da pouca idade (eu tinha na época menos de 30 anos) éramos hierarquicamente superiores a eles.

“Nunca chame um soldado, cabo e mesmo um sargento pelo nome”, era a regra não escrita. O correto era chamá-los pela função, uma forma de torná-los “uniformes” e retirar deles qualquer caráter de subjetividade. “Passe-me a lista de plantões, sargento”, disse-lhe eu ao chegar no setor. Assim, sem qualquer sinal de que estava falando com outro ser humano igual a mim.

Esse foi o primeiro grande choque que senti entre o mundo civil e o mundo militar. Sempre fui ensinado a chamar as pessoas mais velhas de “senhor”, pois além da determinação bíblica que nos fala “honrai pai e mãe”, há que respeitar uma específica gerontocracia cultural, que nos fala que os mais velhos precisam ser tratados com a devida reverência.

Ali era o contrário. Um senhor de quase 50 anos tratava um garoto de 29 como “senhor”, enquanto nós, meninos imberbes e garotas recém formadas, tínhamos que tratá-los por “tu”, ou “você”. Isso criava uma distopia que só podia ser entendida no contexto militar.

– Não há como trocar seu plantão, doutor. Seu nome já saiu no boletim.

Eu não podia aceitar essa negativa. Meu plantão em outro hospital era tradicionalmente às sextas feiras e eu não tinha como fazer a troca por lá. Precisava ser no hospital militar. Disse-lhe, do enorme problema que teria caso não houvesse a troca, mas ele apenas remendou:

– Não é possível, doutor. Estou com o boletim em mãos e o seu nome já consta aqui.

Eu sabia que ali também estava presente a “opressão dos pequenos poderes”. Sei bem que era possível fazer uma “gambiarra”, colocar uma emenda no boletim, riscar um nome e colocar outro. Sabia, entretanto, que as trocas só podiam, dentro da lei, ser feitas com 48 horas de antecedência, e faltavam apenas 36 horas para o meu plantão. Eu estava errado, eu havia esquecido, eu não tinha razão.

Fiquei furioso, mas nada disse. Eu sabia que a culpa do choque de plantões era só minha. Fiquei olhando para o sargento e pude imaginar a sua alegria dissimulada por dizer não para um superior. Pensei argumentar mais alguma coisa, mas foi um pequeno deslize do sargento que me salvou.

– Você pode falar com o Coronel, se quiser. Eu não tenho autorização para fazer a troca.

Foi a sua única falha. Pontual e quase imperceptível. Talvez ele mesmo a tenha percebido imediatamente após a última sílaba dita, mas já era tarde. Foi a minha deixa.

– Você? Tem algum “você” aqui? Pois saiba, SARGENTO, que eu sou TENENTE, e que devo ser chamado por “senhor”. Está bem entendido? Agora veja como vai consertar este meu problema…. Sargento.

Ele ficou em silêncio e seu olhar se dirigiu para o chão, onde quatro sapatos lustrados nos sustentava. Logo depois balançou afirmativamente a cabeça. Não podia dizer nada. Silenciosamente pegou os papéis à sua frente e riscou meu nome.

– Vou trocar seu plantão e colocá-lo na próxima semana.

Prestou a devida continência e se afastou. Meu problema estava resolvido.

Bastou ele virar as costas para eu entender que havia quebrado um mandamento pessoal que havia criado para mim mesmo quando comecei a trabalhar como médico em uma unidade militar. “Jamais permitir que as artificialidades do mundo militar me corrompam”. Era minha promessa silenciosa que acabava de ser quebrada; bastou chegar em um ponto limite de tensão para usar as mesmas prerrogativas que eu desprezava. Fui arrogante, fiz um uso indecente da autoridade que tinha. Humilhei um sargento usando de minha patente superior. E tudo isso para resolver uma questão que era de inteira culpa minha, por ter esquecido de trocar o plantão.

Já se vão 25 anos dessa experiência, e jamais me esqueci dela. Ficou marcada como uma mancha, uma nódoa. Percebi que ninguém pode se dizer infenso a estas veleidades sem ter passado por um teste, onde seus valores serão avaliados no limite. Eu passei por este teste e fracassei.

Não tenho nenhuma autoridade moral para criticar aqueles que, diante de momentos de tensão e angústia, também sucumbiram à tentação fácil da arrogância.

PS: curiosamente, eu já havia contada essa história há muitos anos, exatamente com o mesmo sentido: mostrar que todos nós, por melhor que seja a imagens que temos de nós mesmos, carregamos máculas que aparecem em circunstâncias limítrofes, mostrando uma parte escondida de nossa alma – aquela que não gostamos de enxergar. Se quiser conferir a versão antiga (e mais completa) ela está aqui.

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Declarações desastrosas

Qualquer interação com a polícia ou a imprensa tem o risco potencial de produzir devastação. Uma pessoa sensata, vivendo em tempos de ódio, se afasta disso. Hoje a atitude que parece ser mais racional é o silêncio. Para quem tiver estômago e pendor suicida, um “raid kamikaze” contra os fogos antiaéreos pode ser a última entrevista.

Lembro quando as rádios e os jornais ligavam no início do inverno para a Liga Homeopática em busca de um homeopata para dar entrevista sobre vacinas. Partiam do princípio de que, por questionarem a medicalização abusiva da sociedade e cultivarem uma postura crítica diante da indústria farmacêutica, os homeopatas automaticamente repudiavam vacinas.

Nem sempre.

Quando o telefone tocava e a secretária avisava que o jornalista estava na linha a gente dava risadas, avisando que estávamos em atendimento. Essas entrevistas eram ciladas, criadas especificamente na busca de conflito e polêmica. Entretanto, a gente sabia que não teria a mínima chance de um debate justo. Bastaria uma resposta titubeante para que o massacre fosse iniciado.

Uma das rádios que ligava tinha todo o seu setor jornalístico controlado pela corporação médica – até hoje. O Conselho, o sindicato e a Unimed local patrocinavam pesadamente os programas noticiosos. E por quê o faziam? Que produtos ou bens um CRM ou um Sindicato têm para que os ouvintes possam comprar?

Ora, vendem sua credibilidade e influência na cultura da cidade. Propaganda institucional da categoria. Todavia, pelo montante de verba aplicada, por certo que controlam as pautas. Precisa ser ingenuo para acreditar que tal aporte de publicidade não demandaria contrapartida.

Uma mensagem qualquer durante uma entrevista, por mais ingênua ou suave que fosse, poderia desencadear uma resposta violenta das instituições. Lembram do ativista do parto humanizado que ousou falar de partos domiciliares no Fantástico – respaldado por evidências científicas – e foi atacado duramente pelos membros da corporação de outro estado?

O linchamento midiático que recaiu sobre o casal do Rio (o engenheiro e sua parceira) é um exemplo de como a punição nos tempos de internet é veloz, destruidora e até mesmo desproporcional quando opiniões impensadas são jogadas diante de uma câmera e um microfone. Não é preciso debater o quão errados, em muitos níveis, eles estavam, mas fica claro que hoje em dia se deve adotar o silêncio como proteção. Debater temas sérios como o racismo, feminismo, Venezuela, Israel, Cuba pode causar um massacre terrível produzido pelas patrulhas à esquerda e à direita.

É uma lástima que estas patrulhas engessem as discussões, imobilizem o debate e promovam a “lei do silêncio”. E digo isso apenas porque ontem passei o dia recebendo mensagens inbox me dizendo “eu não concordo, mas não ouso dizer para não ser linchado”.

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Benemerência

Cara… não posso aceitar gente cobrando caridade dos ricos deste país, como se os milionários tivessem que fazer aparições públicas de distribuição de presentinhos ou cestas básicas…

Silvio Santos sequer deveria ajudar. Não é função dos ricos fazer isso. Não é obrigação de nenhum rico fazer a caridade que ELES querem para quem ELES querem. Isso é caridade e caridade é HUMILHANTE. O Brasil não precisa da bondade do Silvio Santos, do Neymar, do Huck, do dono da Ambev ou do Gerdau. Não é certo esperar que eles sejam bonzinhos ou caridosos. Ponto.

O que a gente precisa é de uma LEI para cobrar IMPOSTOS DURÍSSIMOS dos ricos, para que NÓS utilizemos esse dinheiro onde NÓS acreditamos ser o melhor para o país, e não mais admitir estas propagandas onde os capitalistas abonados usam as migalhas que dão como publicidade.

O Sílvio Santos NÃO DEVE DAR NADA como benemerência, mas tem que ter sua fortuna TRIBUTADA DURAMENTE. Não quero favor dessas pessoas, quero que o seu dinheiro (que em última análise foi retirado de nós) reverta para o bem do povo, e não para falcatruas ou para essa publicidade barata que os ricos fazem.

Desconstruam essa ideia de que ricos devem distribuir dinheiro do jeito que desejam. Eles devem PAGAR IMPOSTO PESADO!!

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Corretivos

Eu sei que é piada. Sei que “psicólogos” poderia ser colocado entre aspas. Não quero ser o “problematizador das piadas”. Sei também que entre as pessoas da minha idade é raro ver alguém que não tenha sido submetido a surras ou ao menos umas palmadas, em especial os meninos, já que a cultura dizia que “não se bate em meninas“. (Até nesse aspecto é interessante combater o patriarcado: nesse modelo são os meninos as principais vítimas das sevícias parentais).

Entretanto, não acho mais aceitável a glamorização do espancamento de crianças com a desculpa de que isso produz bons cidadãos, com adequada “castração” e “leais respeitadores das leis”.

O que me deixa abismado é ver a enorme aceitação desse tipo de “pedagogia da violência” entre as pessoas da minha geração. No fórum onde essa imagem foi apresentada a aceitação foi quase unânime. A exceção foi de algumas poucas mulheres que disseram “não apanhei, mas meus irmãos, muito“, e eu.

Crianças que passaram por estas torturas cresceram traumatizados, marcados pela dor, inseguros, raivosos e carregando uma ferida profunda e inconsciente, até porque a fonte de seus males inconfessos é a mesma dos seus amores mais profundos e primitivos, produzindo uma insuportável dicotomia em suas almas.

Crianças que foram surradas por seus pais não são adultos saudáveis; são sobreviventes da dor, cheios de cicatrizes que são obrigados a carregar por toda sua vida. Não há nenhuma razão para se romantizar espancamento infantil, e não é verdade que estes recursos produziram “cidadãos de bem”; sua única função foi criar uma geração de ressentidos que acreditam na violência como solução dos problemas.

Muitas dessas crianças hoje fazem o sinal da arminha ou carregam cruzes flamejantes.

Hoje tenho filhos adultos e netos. E se querem saber, dei palmadas nos meus filhos, mas aprendi que bater em crianças é sinal de fracasso, não ensina nada além de medo, e não produz cidadãos saudáveis e produtivos. Não condeno quem bateu, até porque eu também apanhei; condeno a ideologia da violência banalizada contra os pequenos, como se fosse algo inócuo ou parte do desenvolvimento normal das crianças.

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