Tive muita sorte. Meu pai morreu em 2021 depois de 3 meses de hospitalização na luta contra um câncer. Eu sempre soube que meu pai tinha defeitos, como qualquer pessoa, mesmo que seus defeitos pareceriam brinquedos diante dos meus – bem elaborados e profissionais. Apesar disso, quando ele morreu ninguém se aproximou de mim para lembrar de suas falhas e seus erros, e ninguém ficou repetindo ininterruptamente para mim e para meus irmãos algum de seus deslizes. Creio que as pessoas ao meu redor sabiam que, na morte, é preciso respeitar a dor dos que ficam, e preservar o amor e o carinho que nutriam pela alma que se vai. Espero que quando for a minha hora, que não deve tardar, as pessoas tenham a mesma consideração. Publiquem todo o seu ódio apenas quando meu corpo, corroído pelas bactérias e desfeito das fibras que o sustentavam, esteja frio, cego e surdo, preparado para voltar à terra, ao pó e ao esquecimento.
Peço àqueles que julgam a vida pessoal do Pelé, exaltando suas falhas e minimizando suas glórias, que não me julguem por esta mesma lógica quando eu estiver morrendo, pelo menos não em frente aos meus. Espero também que não sejam julgadas desta forma – e com a mão tão pesada – quando seu próprio tempo estiver para chegar. A crueldade sobre os corpos frágeis e indefesos daqueles que estão se despedindo da vida não leva ninguém ao céu; sequer lhes torna melhores, mais nobres ou superiores. Deixem os julgamentos para quem é isento de pecado.
Pelé é o maior gênio do futebol, o esporte que tanto amamos. Por certo que para alguns, que tem as emoções controladas e agem sempre de forma racional, é fácil fazer desaparecer da memória e dos sentimentos décadas de emoções compartilhadas com o maior ídolo do esporte, movidos por um suposto erro pessoal na vida do nosso craque. Eu, infelizmente, não consigo. Para aqueles que não se afetam com a iminente partida de Pelé eu pergunto: será que apenas quando a tragédia lhes atinge pessoalmente ela é digna de lágrimas?
Parece bem claro para mim que, fosse Pelé uma mulher e seria mais fácil perdoar seus deslizes. Todavia, ele é homem e ainda por cima é negro!!! Difícil para muitos sentir algo pelo Rei Negro do Futebol. Melhor e mais fácil seria adorar o Airton Senna, não? Esse pelo menos sempre foi da classe média e bem branquinho.
Não há dúvida de que o futebol é um fato político, como qualquer outra atividade humana – pois que não há ação coletiva de pessoas que não seja politicamente determinada – mas o jogo deve ficar o mais distante possível da política, da filiação partidária e das escolhas e vinculações subjetivas de cada um dos participantes. Sem isso teremos a política contaminando o esporte, criando rótulos, vinculações, perseguições, boicotes e preferências que nada tem a ver com o jogo e suas regras, mas com fatores de outra ordem.
Quem acredita que o futebol pode sofrer interferências da política deveria aceitar quando um treinador comunista da nossa seleção fosse defenestrado por suas convicções em um governo de direita. João Saldanha foi vítima disso. Comunista, filiado ao PCB (ainda quando na ilegalidade), proferiu sua frase mais famosa ao ditador Emílio Médici: “Você comanda seu Ministério e eu organizo meu time”, impedindo que o presidente desse opiniões sobre a seleção brasileira. Pois eu pergunto: Seria justo demitir um treinador liberal num governo de esquerda? E o melhor jogador da seleção, poderia ser retirado do time por questões suas com o fisco?
Nossa seleção representa o povo brasileiro, e ainda é um símbolo para bilhões de torcedores espalhados pelo planeta inteiro que enxergam na camiseta canarinho a esperança dos povos oprimidos pelo imperialismo. Aceitar que a política doméstica possa interferir na nossa seleção é absurdo e imoral. Quem faz isso atua contra os interesses do país.
Recebi pela terceira vez esta semana pedidos para me unir aos esforços para combater o regime “misógino” do Irã.
“Os EUA, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá impuseram sanções a algumas instituições e líderes iranianos em decorrência das violações aos direitos humanos, mas muito ainda precisa ser feito!”
Essa propaganda chegou ao meu e-mail, enviada por estes grupos de “defesa” das populações oprimidas. Usa o mesmo artifício retórico das sanções contra a China por sua política que ataca os Uigur, tentando mostrar que o governo chinês – diferentemente do que ocorre no ocidente – é composto por bandidos que não respeitam os direitos humanos. Quando vamos pesquisar com cuidado e atenção, percebemos que as acusações são falsas ou criminosamente retiradas do contexto.
Mais uma vez o que se vê o identitarismo sendo usado para a desestabilização dos países não alinhados e rebeldes. É apenas asqueroso ver o uso que se faz de causas justas, como a defesa das mulheres, dos negros e dos gays, para angariar a simpatia de muitos ao redor do mundo, quando sabemos que o real objetivo é atacar os países que ousam enfrentar a crueldade do Império Americano.
Será tão difícil assim perceber que estes são movimentos coordenados para atacar o Irã – um país anti imperialista – para iniciar uma nova “Revolução Colorida”, uma “Primavera em Teerã”, cujo único objetivo é desestabilizar o governo local? Basta uma pesquisa rápida para entender que as mulheres estão sendo (mais uma vez) usadas para levar adiante um ataque do Império às nações “desobedientes”. Por que não iniciamos sanções aos Estados Unidos, onde 220 mil mulheres estão presas, numa população carcerária de mais de 2.3 milhões de prisioneiros, mais de 50% não brancos, em uma população onde eles são minoritários? Por que não iniciamos campanhas para punir os Estados Unidos pelo estímulo à guerra fratricida entre Rússia e Ucrânia? Por que não culpabilizamos o imperialismo do Otanistão pela crise dos imigrantes, pela Guerra na Síria, pela destruição da Líbia, pelos massacres sionistas em Gaza?
Por que escolhemos exatamente o Irã, e por que agora? Sim, no exato momento em que este país formaliza o desejo de se juntar aos BRICS para se juntar aos países já alinhados e formar um enorme bloco de oposição ao Imperialismo, os ataques ao país se tornam mais intensos, sempre baseados em questões morais, como a “defesa das mulheres”. Aqueles que se juntam a estes protestos são os mesmos que choravam com a vitória do Talibã em solidariedade às mulheres e meninas daquele país, sem se aperceber que muito pior é a dominação imperialista no país e suas inúmeras acusações de execuções, prostituição e a rede de pedofilia que foi liderada (ou tolerada) pelos americanos no país.
Por pior que seja o Talibã, nada pode ser pior que o domínio de uma potência cruel e destruidora como o Império Americano. Se nos Estados Unidos quase 20 mil mulheres das Forças Armadas americanas foram abusadas sexualmente por seus colegas apenas no ano de 2010, o que dirá das mulheres e suas filhas que vivem nos países brutalmente ocupados pelo exército americano invasor? Vamos cair de novo nessa armadilha montada para destruir o sonho de um mundo multipolar?
Confesso que já vi muito piores, algumas atacando a perna inteira, com bolhas e úlceras coalescentes. Todavia, eu creio que a erisipela é o que existe de mais saudável no Bolsonaro. Em verdade, o aparecimento de um sintoma como este num momento depressivo como o que ele está passando se configura como uma legítima válvula de escape para os conteúdos emocionais extremamente danosos para a economia orgânica.
Ou seja: a erisipela (e menos ainda o estreptococo) não é a causadora do desequilíbrio, mas sua consequência – e representa sua tentativa derivativa de resolução. Sua simples supressão, com antibióticos ou tratamentos locais, não é capaz de devolver a saúde, apesar de resolver momentaneamente uma lesão local que pode inclusive ameaçar a vida.
Para Bolsonaro se “curar” – numa concepção mais analítica e profunda – seria necessário uma trajetória longa e dramática de retorno a um estado de homeostase. Todavia, não creio que ele seja capaz de empreender esta viagem de volta…
Pelé e Lula na Comemoração do cinquentenário do primeiro mundial (1958)
Já é possível sentir o bater de asas dos abutres esperando o Pelé morrer para despejar seu racismo em forma de críticas morais ao Rei do Futebol. Não é fácil para o Brasil Branco exaltar um Rei Negro. Nunca o aceitaram, e não será agora. Agora nas redes, e do alto de sua pureza moral, identitários estão postando críticas à vida privada de Pelé, numa tentativa de destruir a imagem do maior ídolo do esporte mais importante do planeta.
Sempre que eu escuto a narrativa da filha é nítido que aqueles que a contam não conhecem a história toda e estão fazendo críticas baseadas em meias verdades, mentiras e fofocas. Poucos se dão ao trabalho de escutar os dois lados do enredo. Mas antes desse episódio Pelé já era atacado por “não ajudar Garrincha” – sendo desmentido por Elza Soares – ou de “não ter ido ao seu enterro“, como se cuidar do craque das pernas tortas (que jamais foi seu amigo) fosse sua obrigação. Sempre existiu uma enorme patrulha sobre quaisquer atos de Pelé, como se o fato de ser negro e famoso lhe conferisse uma dívida com os brancos que permitiram a sua notoriedade.
Quando Pelé dedicou o milésimo gol às crianças, naquele jogo emblemático no Maracanã contra o Vasco, foi porque não passava de um ingênuo que estava fazendo demagogia. Quando levou o nome do Brasil para todo o mundo, sendo eleito o maior atleta do século XX e patrimônio da humanidade, o fez apenas por dinheiro. Se foi o maior jogador do mundo é apenas porque “naquele tempo era mais fácil”, mesmo que as agruras do futebol violento a que foi submetido nos anos 60-70 fossem inimagináveis quando comparamos com o que é praticado nos dias de hoje.
Em verdade os ataques a Pelé muito se assemelham às agressões sofridas por Lula desde que este se destacou como líder no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista. Quando Lula ressaltou a importância de dona Marisa na criação do PT em seu velório foi atacado por estar fazendo comício sobre um corpo já sem vida. Se Lula vai a um restaurante caro é um “comunista gourmet”, mas se faz um piquenique com dona Marisa e carrega um cooler de isopor na cabeça é porque não passa de um populista criando um personagem. Quando Lula visitou um apartamento, sem jamais ter a posse do mesmo, foi caçado impiedosamente por uma horda de promotores fanáticos e um juiz corrupto.
A verdade é que, inobstante o que façam, Pelé e Lula jamais serão aceitos pela burguesia deste país exatamente por serem quem são: representantes das camadas populares, do povo pobre, dos descamisados, dos negros, dos operários, dos mulatos, nordestinos e retirantes. Ídolos dos torcedores cuja alegria máxima é o gol e heróis para os pobres que sonham com uma vida digna para sua família. Não há perdão para os ídolos que, emergindo das camadas inferiores da sociedade, tornam-se ícones planetários por suas habilidades, seja no esporte ou na política.
Não terei pena daqueles que resolverem tripudiar sobre o corpo frágil do Rei do Futebol, o atleta máximo do século XX, o maior gênio que o esporte já criou neste planeta. Eu me impressiono muito com o esforço imenso que algumas pessoas fazem para odiar Pelé. Pois eu digo: odeiem o Chico Buarque também. Apesar de ser branco, se procurarem bem vão achar alguma razão para ele ser cancelado. Vamos, sei que imaginação não lhes falta.
Em uma página de Facebook encontrei uma apaixonada defesa da Alemanha em que se tenta apostar na tese, muito disseminada no governo Dilma, de que os alemães são uma civilização superior e que essa superioridade moral determinou a vitória de 7 x 1 sobre um Brasil que construiu “estádios fantasmas” e estava grávido de bolsonarismo.
Estas teses xenofílicas e viralatistas, que apostam na inferioridade natural dos povos abaixo do Equador, são muito comuns aqui no sul do Brasil. O autor da página é de ascendência italiana e frequentemente dispara ataques violentos contra o cidadão Neymar, e recebeu de mim um discreto contraponto. Acho sua manifestação quase um estereótipo daquelas que testemunhei durante toda minha vida surgindo de colonos, tanto alemães quanto italianos do Sul do país e que estão na origem do bolsonarismo por estas bandas.
Sua manifestação trouxe também alguns pontos bem curiosos. Faz uma critica à gozação contra a Alemanha por sua desclassificação chamando-a de xenofobia mas, para além disso, trouxe uma informação final impressionante. Disse ele:
“É sério que tem torcedor de copa comemorando a eliminação da Alemanha por causa dos 7×1? Vocês acham mesmo que a culpa disso foi da Alemanha, que em um Brasil já grávido de Bolsonaro deu um exemplo de civilidade construindo um CT e deixando como legado, enquanto nosso país construiu estádios fantasmas? É tipo a rivalidade Brasil e Argentina, criada pelo Galvão Bueno em 1990. Vocês são sem noção.”
Ou seja, a velha marca macunaímica de achar que os europeus são moralmente superiores e nós, meros colonizados, não passamos de corruptos e perdulários. Ou seja, nossa derrota de 7 x 1 não foi pela lesão do Neymar no jogo anterior, ou pelos erros táticos do nosso time. Sequer ocorreu pela superioridade tática e técnica dos alemães. Não, ela ocorreu porque eles são alemães e nós simples brazucas, subdesenvolvidos, corruptos e moralmente inferiores, adoradores de Bolsonaro.
Mas o mais inacreditável da manifestação foi a frase final. A rivalidade Brasil x Argentina foi criada por Galvão Bueno? Em 1990?? E a “Copa Roca”? E a pauleira que os argentinos deram no Santos de Pelé nas libertadores dos anos 60? O que dizer da Copa de 78 na Argentina, e as suspeitas do jogo comprado do Peru para nos desclassificar? E o frenesi da nossa vitória por 3 x 1 no embate de 82? E nossa derrota em 90, com direito a envenenarem a água dada aos brasileiros?
Eu acompanho essa rivalidade desde os anos 60 e sei bem como é. A insinuação de que a maior rivalidade futebolística entre nações surgiu há 30 anos por causa de um narrador esportivo não faz sentido algum, mas bem demonstra o desconhecimento sobre essa disputa já centenária.
Quanto à Alemanha, nossa “vingança” contra eles só haverá no dia que eliminarmos os alemães na casa deles numa Copa, fazendo uma sonora goleada. Caso contrário, não. Precisamos maturidade para aceitar nossa derrota, assim como só conseguimos ser campeões do mundo após aceitar o fracasso de 1950.
Depois de explicar o quanto é absurdo considerar a rivalidade Brasil x Argentina como uma simples “invenção de Galvão Bueno” fui, claro, bloqueado.
Propaganda imperialista tradicional, manjada e corriqueira. Parece com as piadas que se usava nos anos 70 para estereotipar os ditadores africanos. A ideia é sempre mostrar os árabes (apesar dos iranianos não serem árabes, ainda que sejam muçulmanos) como bárbaros, selvagens, violentos e incivilizados. Pura propaganda. Entrem no Facebook, no Twitter e no WhatsApp e verão a quantidade enorme de ameaças feitas a todo mundo, mas ninguém coloca estas tolices como manchete principal com o único propósito de manchar a índole de uma nação.
Agora imaginem o que aconteceria no Brasil se a nossa seleção resolvesse ficar em silêncio e não cantasse nosso hino até que, por exemplo, revelassem quem mandou matar Marielle. E aí…. o que fariam os bolsonaristas? Talvez mandassem uma delegação ao Qatar com uma tonelada de pendrives para arremessar nos jogadores.
Todos já ouviram ou testemunharam algum dia o discurso de um sujeito que acredita na planicidade do planeta Terra em contraposição à versão hegemônica de que ela é redonda – ou bem perto disso. A esfericidade da Terra sempre nos pareceu um conceito bem claro, cientificamente determinado, claramente estabelecido por milhares de anos de observações e comprovações vindas do mundo da Ciência. Todavia, por mais estabelecida que seja esta crença ela começou a sofrer há poucos anos uma contestação muito poderosa de um grupo chamado de Terraplanistas.
Em verdade a ideia de contestar a versão dominante de uma Terra esférica renasceu depois de milhares de anos apenas em meados do século XIX. Quem primeiro a lançou foi um médico e inventor chamado Samuel Rowbotham (1816-1884) que escreveu em 1849 um panfleto (posteriormente transformado em livro em 1881) chamado “Astronomia Zetética – A Terra não é um Globo”, sob o pseudônimo de “Parallax”. Neste livro ele aponta uma série de “contradições” no modelo “globalista” e demonstra que a Terra é, em verdade, um disco com o polo Norte ao centro, tendo em suas bordas uma muralha de gelo, estando o Sol, a Lua e as demais estrelas apenas alguns poucos quilômetros acima de nossas cabeças. Essas ideia acabaram ficando restritas a um grupo diminuto de pessoas até que em 2016 começaram a ser publicados vídeos no YouTube que defendiam a tese de uma Terra Plana em contraposição à crença disseminada de que ela é uma bola que gira, tão redonda quanto o Sol, a Lua e as estrelas do firmamento. Aí se inicia o apogeu desta tese.
Entretanto, mais interessante do que entender porque Samuel e seus seguidores resolveram questionar uma das concepções mais arraigadas do conhecimento popular, é o título do livro: “Astronomia Zetética“. Afinal, o que isso quer dizer?
Zetética é uma palavra derivada do grego “zetein“, e significa perguntar, questionar, perscrutar e tem como finalidade desmanchar as concepções pétreas que carregamos como verdade, sem perceber que não são baseadas na observação clara dos fenômenos, colocando-as sob escrutínio infinito, sendo, portanto, explicitamente especulativa. O fundamento básico do zeteticismo é a dúvida, e seu método é analítico. Desta forma, para fazer suas investigações sobre a razão primeira de qualquer fenômeno, vai fundo no questionamento das premissas que o sustentam. Ou seja, o zeteticismo é essencialmente um modelo cético e radicalmente empírico de busca da verdade.
Nas palavras da professora Sabine Hossenfelder a ideia da Terra Plana está, apesar de toda a retórica que a sustenta, profundamente equivocada, mas isso não torna a ideia terraplanista uma profunda estupidez. Apesar de estar errada, sua sustentação é criativa, inteligente e curiosa, mas se sustenta em um erro lógico importante: afirmam que a Terra é plana pela falha dos seus detratores em provar o contrário. Em verdade, os erros do terraplanismo são até fáceis de explicar, mas os argumentos utilizados pelos cientistas para provar que vivemos em um Globo não são aceitos por seus adeptos por serem meros “argumentos de autoridade“. Como existe uma ciência muito elaborada para explicar o conceito de globo terrestre e a lei da gravidade, que não é acessível imediatamente aos sentidos, as evidências são rejeitadas.
Mesmo que as concepções da Terra Plana tenham se modificado nestes últimos 150 anos, o modelo de compreensão continua baseado na filosofia zeteticista, a qual assevera que “se quisermos entender a natureza deveremos nos basear tão somente na informação que nos chega através dos sentidos”. Por isso é tão fácil contestar o heliocentrismo, já que os nossos sentidos atestam com clareza que o sol se move diariamente sobre nossas cabeças, enquanto o chão se mantém estático. Quando navegamos pelos inúmeros vídeos que circulam pela Internet a respeito do tema veremos que os argumentos utilizados pelos defensores se baseiam claramente nesta perspectiva filosófica. Em um deles pessoas contestam a esfericidade da Terra ao mostrar a Lua e o Por do sol ao mesmo tempo, demonstrando que ambas estão visíveis a partir de uma terra plana. Outros vídeos, ainda mais simples, mostram pessoas com réguas emparelhadas com o horizonte do oceano, como a demonstrar que a ideia de uma curvatura é falsa, e que nossos sentidos provam essa falácia. Em seu livro Rowbotham nos diz explicitamente que “não vivemos em um mundo heliocêntrico esférico, e isso pode ser comprovado pelos nossos sentidos“.
Essa tese é muito semelhante ao zeteticismo aplicado pelos bolsonaristas nas últimas eleições, que exercitam um ceticismo e um empirismo que os leva às últimas consequências. Por isso pedem provas de que as urnas não foram fraudadas sem, contudo, apresentarem provas de ilegalidades ou vícios nas votações de 1º e 2º turnos. Assim, vociferam contra as eleições como autômatos, apenas por não aceitarem a derrota que o bolsonarismo teve nas urnas. Por certo que por trás dessa descrença não existe um “amor exaltado pela verdade”, mas sim um interesse de caráter político para permitir que os fazendeiros, latifundiários, financistas, militares, líderes evangélicos e especuladores possam manter um mandatário do seu interesse – e sob seu controle – no governo central. Por fim, é claro que os argumentos usados por estes “patriotas” – que se aglomeram em frente aos quartéis, passando privações e usando banheiros unissex enquanto cantam hinos nacionalistas – muito se assemelham ao zeteticismo dos terraplanistas, pois rejeitam a realidade através de um ceticismo radical pelo qual se negam a enxergar a vitória das forças populares nas eleições majoritárias de 2022. Desta forma, entender as bases dessa filosofia e suas consequências mais radicais nos ajudam a entender o bolsonarismo e sua negação da realidade, suas fantasias e o delírio anticomunista que pregam.
É importante levar a sério tanto os terraplanistas quanto os negacionistas que desejam a volta da ditadura militar. Se eles partem de um ponto correto – o ceticismo que nos estimula a duvidar e investigar sem preconceitos – eles o desvirtuam ao rejeitar sistematicamente as evidências científicas sólidas e bem estruturadas que lhes são apresentadas, demonstrando que seu ceticismo é apenas a fachada para encobrir ações antidemocráticas que desprezam a ciência em nome dos seus interesses.