Arquivo do mês: junho 2024

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Quando eu era criança um dos programas de maior sucesso da TV era a comédia dramática M*A*S*H* (Mobile Army Surgical Hospital – Hospital Móvel do Exército Norte-Americano), que retratava o cotidiano de um hospital de campanha americano na guerra da Coreia. Foi exibida pela CBS entre 1970 e 1983, e seu capítulo final foi durante décadas o recorde de audiência na TV americana. A série era uma brilhante comédia sobre dois cirurgiões, Hawkeye e “Trapper” John McIntyre (Alan Alda e Wayne Rogers), e suas traquinagens no hospital, em especial com seus superiores, sempre retratados como tolos e incompetentes. Ambos os cirurgiões aliavam suas excelentes habilidades cirúrgicas com um humor ácido e zombeteiro. O programa também era moralista ao extremo; os cirurgiões pegavam todas as mulheres, mas nunca as casadas; faziam troça de um casal (o cirurgião chefe e “hot lips”, uma enfermeira) que tinham um caso. Colocavam um nerd como figura importante e um “falso trans”, que se vestia de mulher para ser mandado embora – sem jamais conseguir.

Os 13 anos da série são um brilhante exemplo do “empacotamento americano”. Ele funciona quando um fato vergonhoso da história americana é empacotado como algo heroico, grandioso ou cômico e vendido desta forma “adocicada” para sua população e para todos os cantos do Império. Nesse contexto, a guerra na Coreia – ou a Guerra de Libertação Nacional para os coreanos – é retratada como algo engraçado, pitoresco, com figuras cativantes e com espaço para brincadeiras. Nesta série, os americanos são mostrados como nobres, justos, corretos misericordiosos e bons, e o coreanos como miseráveis, carentes e vítimas inocentes de uma guerra criada pelos comunistas que odeiam a liberdade.

Logo após a derrocada japonesa na guerra com o exército americano, a parte sul da Coreia saiu do controle japonês para se tornar um entreposto americano no mar da China. Enquanto isso, o norte mantinha sua luta pela libertação total do país, eliminando o último dos invasores: os americanos e seus sequazes. Pelo forte sentimento anticomunista (medo da União Soviética) a guerra foi um exemplo de brutalidade e de abusos contra os direitos humanos, tornando-se um divisor de águas do imperialismo. Até então, nunca havia ocorrido em tempos modernos tamanha crueldade com um país e seu povo como o ocorrido lá. Essa guerra se tornou o marco de violência, o modelo a ser aplicado em todas as outras intervenções imperialistas, como no Vietnã, Iraque, Afeganistão, Líbia e outros. Os Estados Unidos jogaram sobre a península coreana 635 mil toneladas de bombas e 33 mil toneladas de Napalm – mais bombas foram jogadas pelos americanos na Coreia Popular (Coreia do Norte) do que durante a guerra do Pacífico contra o Japão, apenas 6 anos antes. O famoso General MacArthur desejou explicitamente a utilização de bombas atômicas na península – entre 30 e 50 delas na fronteira com a Manchúria – o que deixaria um rastro imenso de destruição e radioatividade.

O norte do país foi totalmente destruído: hospitais, escolas, conventos, diques, represas, plantações, casas, indústrias e pontes jogando a Coreia na “idade da pedra”. Inúmeros massacres foram realizados pelos soldados americanos ou sob a sua supervisão, mas nada disso aparece – nem de forma sutil – nos 13 anos em que a série americana esteve no ar. Literalmente tudo foi bombardeado. No espaço de 3 anos os americanos mataram 1/5 da população civil do norte, por volta de 3 milhões de pessoas (a imensa maioria civis – mulheres e crianças), e estabeleceram no sul uma ditadura que perdurou por décadas. Apesar disso, um armistício foi declarado em 1953 e a Coreia Popular conseguiu estabelecer a autonomia sobre a parte ao norte do paralelo 38. No início dos anos 70, em uma forma diabólica de fazer desaparecer tantos crimes, eu e milhões de americanos dávamos risadas assistindo as travessuras dos médicos e enfermeiras na península coreana.

 “O que quase nenhum americano sabe ou lembra é que nós bombardeamos o Norte inteirinho por 3 anos, sem nenhum tipo de cuidado em relação aos civis”, explica Bruce Cumings, historiador da Universidade de Chicago, em seu livro “The Korean War: A History”.

O “empacotamento” também foi feito com os filmes de Hollywood em relação ao massacre das populações indígenas no século XIX na conhecida “corrida do ouro”. Surgiram a partir daí os filmes de faroeste (Far West, o oeste longínquo), Os Pioneiros, Rin tin tin, Gary Cooper, John Wayne, Forte Apache, etc. Um dos maiores genocídios do século XIX foi empacotado e vendido para o mundo como a vitória dos “pioneiros” cristãos contra as populações primitivas e violentas. E que história eles contam sobre a segunda guerra mundial? Ora, de que foram os vencedores, mesmo que qualquer historiador sério, baseado em números de soldados perdidos, unidades de infantaria e a importância logística cruciais das vitórias ao leste, reconheça que a grande responsável pela vitória contra o nazismo tenha sido a União Soviética e sua “Grande Guerra Patriótica“.

Somos bombardeados pela propaganda imperialista de forma incessante, ininterrupta, massiva e persistente. Tudo o que sabemos do mundo, em especial dos países da resistência ao imperialismo como Palestina, Rússia, Cuba, China e a Coreia Popular, vem de fontes empenhadas nesse tipo de empacotamento, pela falsificação da verdade, pela mentira contumaz e pela desumanização dos outros povos, de forma que só seja possível chegar até nós a versão escolhida pela máquina de propaganda controlada pelos Estados Unidos. A liberdade de um povo também significa contar sua própria história, e como diria Milan Kundera “A Luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

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Amor

Há alguns dias li uma entrevista do baixista John Paul Jones do Led Zeppelin em que ele afirmava que os integrantes da banda não eram amigos. “We weren’t friends”, disse ele secamente. Com isso não desejava dizer que eram inimigos, longe disso; negou que existisse qualquer tipo de animosidade, rancor ou mágoa entre eles, mas que apenas eles compartilhavam uma banda, tinham um trabalho juntos, e nada mais. Tão logo acabava uma turnê ou uma apresentação voltavam para suas casas e suas vidas.

“A questão é que nunca socializamos. Assim que saímos da estrada, nunca mais nos vimos, o que sempre achei que contribuiu para a longevidade e harmonia da banda. Não éramos amigos.”

O falecido psicanalista italiano Contardo Caligaris certa vez disse uma frase que me impactou muito durante uma de suas aulas na APPOA. Em meio a sua palestra, e questionado sobre o casamento e suas repercussões, ele respondeu de forma provocativa: “O casamento é uma instituição de sucesso. Entretanto, o único elemento que pode colocá-lo em risco é o amor. Sem este detalhe ele sempre foi a mais harmoniosa das instituições humanas”. Essa frase veio à minha mente ao ouvir a descrição de John Paul Jones sobre sua banda. Por certo que a inexistência do amor – em sua forma mais sofisticada, a amizade – seria capaz de oferecer sucesso e longevidade à banda. A amizade transtorna completamente qualquer relação de trabalho. Por isso, se acrescentarmos a este encontro uma pitada – mesmo que minúscula – desse afeto tão popular e o risco do equilíbrio se desfazer cresce exponencialmente.

Não deveria nos produzir qualquer surpresa este tipo de análise. O amor por sua potência é uma força descomunal. Quando ele se mistura com as relações puramente profissionais acaba trazendo consigo toda sorte de sentimentos conflitantes e igualmente poderosos. Ciúme, inveja, ressentimento, abandono, raiva, mágoa, etc. Não há dúvida que os casamentos insossos e puramente operacionais dos tantos séculos que nos antecederam eram muito mais consistentes e firmes do que os de hoje, onde o amor é a peça essencial. Foi o amor, a fissura bizarra da ordem cósmica, quem produziu o que entendemos por humanidade, mas ele está diretamente ligado à crise nos casamentos. Talvez ele seja o golpe definitivo para a sua desaparição, e as sociedades futuras não terão mais que se preocupar com fatiotas, grinaldas, vestidos brancos e listas de presentes.

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Fortunas

Virou um mantra dentro da esquerda progressista a proposta de taxar grandes fortunas. Vários analistas falam – com muita razão – que a burguesia “hard core” do Brasil não paga imposto, e que um milionário paga menos tributos do que uma professora de escola primária. Não há dúvida que, dentro do modelo econômico em que estamos inseridos, esta é uma proposta coerente; eu me permito, entretanto, uma pequena digressão. Para mim, a taxação das grandes fortunas funcionaria como liberar os animais do zoológico. Ora, todos concordamos com a necessidade de libertar os animais aprisionados das gaiolas onde estão expostos à nossa curiosidade. A crueldade de colocá-los “atrás das grades” para que possamos admirá-los à custa de seu sofrimento não parece ter cabimento no mundo atual. Todavia, esse recurso, apesar de justo e correto, tem a potencialidade de desviar a verdadeira questão do nosso horizonte e do nosso foco. O que deveríamos estar verdadeiramente questionando – com força e insistência – é a própria existência de zoológicos, que só existem porque nossa ganância desmedida causou a destruição do ambiente natural dos animais selvagens. Esse deveria ser o real debate – a preservação do ambiente natural – e não a simples libertação dos bichos cativos.

Mutatis mutandis, as grandes fortunas só existem porque o sistema capitalista concentra a riqueza de forma obscena, aumentando as distâncias entre o trabalho e o capital pela própria essência concentradora do capitalismo. Deveríamos estar discutindo as razões pelas quais existem bilionários, que são as maiores ameaças atuais à democracia. A razão simples é que essa riqueza abusiva destes sujeitos sempre se traduz em poder político, o que pode ser facilmente percebido pela atuação dos bilionários e suas corporações nos reiterados ataques às democracias da América Latina em todo século XX. Elon Musk e o conhecido bilionário das “revoluções coloridas” George Soros são o exemplo claro do risco que os bilionários representam para as nações do sul global. A ideia de taxar fortunas se encaixa na perspectiva de “mudar a superfície para manter a essência intocada”, e por isso mesmo serve aos interesses da esquerda liberal, que não aceita a luta de classes e insiste na ilusão de “disciplinar o capitalismo” e esperar por uma “conciliação de classes” que leve ao progresso, o que sempre se mostrou um fracasso.

É por esta razão que vedetes da “esquerda” liberal americana usam o slogan tax the rich, como se esta frente de lutas fosse uma linha de combate revolucionária, quando na verdade não passa de uma manobra diversionista do próprio capitalismo para nos impedir de adotar a luta anticapitalista como bandeira. A mais conhecida é Alexandria Ocasio-Cortez, a estrela da “esquerda” histriônica do partido democrata. Ela faz parte de um grupo de novatos do partido democrata chamado “The Squad“, que tem essa fachada jovem mas insistem nas práticas reformistas por todos conhecidas, e que jamais foram capazes de produzir reais modificações ou benefícios para a classe trabalhadora. Todas essas iniciativas partem da “esquerda woke” americana e deveriam ser repudiadas pois não passam de cortina de fumaça para nos impedir de perseguir o real objetivo através da verdadeira luta.

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Sobre a moça linda

No discurso da candidata de Sergipe ao Miss Brasil Teen 2024 ela tenta se defender do que chama de “vitimismo”, como a pedir para que suas origens não sejam confundidas com um pedido de atenção especial. Entre citações em várias línguas ela solicitou que sua condição de mulher negra, filha de mão solteira, neta de indígenas e pobre não fosse tomada como vantagem sobre as demais concorrentes. Para ela, o fato de sua situação social ser ruim não significaria que seja “limitante”. Diante desse tipo de discurso – que sempre contém a palavra “representatividade” – creio ser importante um pequeno ajuste.

Sim, os seus “parâmetros sociais” vão, sem dúvida, limitar os seus sonhos, e por isso mesmo para uma menina pobre e periférica na maioria das vezes restam as qualidades herdadas de beleza e graça para que possa alcançar algum futuro, furar a bolha das castas e conquistar seu lugar numa sociedade de classes. Se essa condição social não fosse limitante para os pobres, onde estaria essa menina caso fosse feia, ou apenas de uma beleza normal, e não fulgurante como é a sua? Onde estão as outras meninas, as filhas de mãe solteira, netas de indígenas e que vivem nos subúrbios? Na faculdade de Medicina, fazendo o curso de Direito, de Arquitetura? Serão elas, em boa conta, empresárias e artistas? Não, elas serão em sua grande maioria mães, donas de casa, manicures, diaristas, funcionárias de escritórios e empregadas do comércio, pois a sua condição social será um enorme impeditivo para a sua ascensão. Negar isso é cegar-se à realidade cotidiana.

Quando se fala de um sujeito com qualidades especiais, em especial uma menina agraciada por incontestável beleza, não se pode tirar do horizonte que ela é uma minúscula exceção em um universo que determina desde o berço o destino de quem nasce pobre e com a cor negra a colorir sua pele. Não é justo tomar a exceção como se fosse a regra, pois a realidade bate à porta todos os dias nos mostrando que o mundo não oferece oportunidades iguais para quem nasce no bairro nobre e para aqueles da periferia dos grandes centros urbanos.

Sem que a sociedade sofra uma revolução através da luta de classes essas meninas continuarão a ser a suprema exceção, o ponto desviante, cuja única esperança de alcançar o sucesso e a fortuna na vida será através da beleza física ou, no caso dos meninos, a arte de chutar uma bola. Acreditar que o sucesso ocasional de uma pessoa representa a “vitória dos excluídos” é jogar o jogo dos poderosos, fazendo com que a sociedade injusta que temos seja tratada como normal, a qual só pune os vitimistas e os que “não se esforçaram o suficiente”.

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Carteira de trabalho

Esta foto acima é a carteira de trabalho do meu pai, com a foto da família à época, antes do nascimento dos meus irmãos Roger e Nice Jones. Infelizmente a minha data de nascimento está errada, já que é público e notório que nasci em 1984. Reparem a angulação, ao estilo Hollywood, que a minha mãe se posicionou para a foto, e o bigodinho “limpa-trilho” do meu pai.

Sobre as fotos está o carimbo do IAPFESP – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados Públicos, que eram um dos múltiplos institutos de aposentadoria e pensões que existiam na minha infância. O INPS – Instituto Nacional de Previdência Social – foi criado no ano de 1966, originando-se da fusão de todos os Institutos de Aposentadoria e Pensões existentes à época. Já o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia federal, foi criado em 1977, pela Lei nº 6.439, que instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social.

Por sua vez o SUS, Sistema Unificado de Saúde, foi criado pela Lei 8080/1990 que desde então levou a uma trajetória de muito esforço e desafios enfrentados, diariamente, para proporcionar e garantir o direito universal à saúde como dever do Estado.

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Fuga de Tel Aviv

É oficial. Autoridades de imigração israelense confirmam: nos primeiros seis meses da guerra contra Gaza 550 mil pessoas fugiram por Tel Aviv para os países ocidentais e nunca mais voltaram. Aliás, existe um famoso filme infantil sobre a fuga de aves domésticas que retrata esse fenômeno.

Brincadeiras a parte, quem pode criticar essa disparada? Lembrem que 60% dos israelenses tem dupla cidadania, pois são imigrantes da Europa e Estados Unidos, em especial os milicianos armados dos assentamentos. Eles apenas estão voltando para suas casas no Brooklyn, na Inglaterra, na Rússia, etc.

Para uma população de 6 milhões de judeus em Israel a fuga de 600 mil representaria 10% da população. Seria o mesmo que assistir 20 milhões de brasileiros saindo do nosso país. Se os psicopatas de Israel realmente planejam um ataque suicida ao Líbano (de onde já saíam escorraçados duas vezes), esse número ultrapassará a barreira do milhão tão logo a primeira bomba caia no norte de Israel. Isso apenas vai apressar o fim inevitável do país do racismo, dos abusos e do apartheid.

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Comentaristas isentos

Aqui no RS existe, desde longa data, o costume dos comentaristas de futebol, repórteres de TV e rádio, serem “imparciais”. Na verdade, pela divisão das torcidas, definir-se por um lado significava ser odiado pelo outro lado. Por esta razão os profissionais da imprensa passaram anos fingindo uma imparcialidade para se forjar uma equidistância dos polos clubísticos. Como sempre, é impossível enganar todos o tempo todo, e a cor da camisa sempre acabava aparecendo.

Esse costume foi rompido há alguns anos com advento das redes sociais e o surgimento dos comentaristas “identificados” com os clubes. Na maioria não são jornalistas de formação e com o tempo foram eclipsando a luz dos famosos jornalistas sabichões, que tudo sabem do ludopédio. A partir de então, não apenas inúmeros novos comentaristas surgiram como alguns “isentos” saíram do armário, declarando abertamente seus clubes, sendo que a maioria, ao fazer esta revelação, causou tanta surpresa quanto a declaração “bombástica” do governador do Estado para o Pedro Bial.

O que me surpreende (mas não devia) é que esses novos “assumidos” agora agem como torcedores fanáticos, esbravejando, gritando o nome do seu clube, chorando ao vivo e disparando palavrões quando o juiz marca algo contra seu time. Isso me obriga a pensar: quando havia encenação? Antes, quando agiam com moderação e isenção ou agora quando atuam de forma histriônica e fanática?

Minha resposta simples é: em ambos momentos. Antes para evitar a desvalorização de suas opiniões, pois estariam afetadas pela paixão clubística, e agora para solidificar sua condição de representantes fanatizados da torcida, mesmo que, diferente de outrora, agora suas manifestações são irracionais, escandalosas e mediadas pelo fervor por suas cores. Ou seja: na crônica esportiva, como em qualquer outro setor do mundo do espetáculo, a luta pela audiência pressupõe um teatro incessante, onde o que importa é cativar a atenção do espectador usando todas as armas possíveis. No passado a máscara era a isenção e a seriedade; hoje se usa a desbragada afiliação ao clube do seu coração como ferramenta de marketing. A sinceridade, como sabemos, é um detalhe pouco importante.

PS: quem é da Aldeia conhece M. Saraiva e a instituição da IVI.

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Partus mutandis

Eu creio que hoje estamos vivendo o “Império do Imediatismo”. Nas conversas diárias as mensagens que ocorrem no ambiente da Internet precisamos ser concisos ao extremo e, quando possível, acrescentar um recurso qualquer que cative a atenção. Antes do advento das redes sociais tudo o que tínhamos para a troca bidirecional de ideias eram os “list servers”, as listas de discussão através de e-mail. Naquela época, para debater os dilemas do parto e nascimento e a violência obstétrica, só tínhamos o texto e seu conteúdo, o que nos forçava a pensar e resolver estas questões através da nossa capacidade racional. Hoje o esforço é por convencer; queremos derrotar os adversários e não pensamos duas vezes para usar recursos extraordinários para derrotar quem nos desafia – as dancinhas do TikTok, a retórica, as imagens, as fake news, os memes. Recursos para impactar e sentir, e não para pensar

Lembro que quando apresentei o Power Point ao meu pai ele me disse “Muito legal, mas cuidado. Ao fazer uma palestra esses recursos roubam a atenção e colocam você em segundo plano. Não esqueça que as pessoas vieram para ver você, não estes artifícios”. Ele se preocupava que as “firulas” pudessem tomar o lugar do pensamento, da lógica e da razão. Temia que o meio dominasse a mensagem, e parece que ele tinha razão. Hoje parece que o Facebook, Instagram, Tiktok, etc. são grandes e sofisticadas molduras ao redor de telas vazias ou insignificantes. Isso também explica o sujeito que é famoso “por ser famoso”, alguém que foi colocado nessa posição pelo BBB ou por alguma tolice de redes sociais, mas sem qualquer habilidade ou conteúdo que o faça merecer qualquer destaque.

Por certo que hoje o parto enfrenta novos desafios. Em uma população cada vez mais drogada, mais controlada externamente pela química, os médicos se comportam como se os pacientes fossem constantes ameaças, ao mesmo tempo em que os pacientes são ressentidos com uma corporação vista como onipotente e arrogante. Mulheres estão decidindo pela gravidez cada vez mais tarde, acrescentando uma nova configuração populacional e familiar, com o desaparecimento de irmãos, cunhados, primos e bisavós. Um número imenso de gestações agora ocorre na 5a década, através de fertilizações e inseminações, cujos riscos sequer temos plena compreensão. Aos poucos o parto fisiológico está desaparece do horizonte; mulheres já não podem contar com a própria fisiologia e suas capacidades inatas para parir, e talvez essa seja uma tendência irreversível, já que o medo de parir é estimulado por aqueles que controlam o parto nas culturas ocidentais. Se somos uma espécie especial no planeta porque nascemos de uma forma inusitada e bizarra, temo que o afastamento do processo de adaptação dinâmica à natureza fará surgir uma nova espécie, e não tenho nenhuma confiança de que ela será melhor do que esta.

Nas listas por e-mail do passado havia um desejo muito grande de vários atores sociais – obstetras, parteiras, doulas, pediatras, etc. – de oferecer uma perspectiva para a grande inconformidade que sentíamos em relação ao nascimento humano. Havia disputas no terreno das ideias, mas não existia muito espaço para lacração. Éramos jovens, cheios de energia criativa; os sonhos ainda nos dominavam. Eu espero que uma nova geração de ativistas de perspectiva materialista (ou seja, menos idealistas e mais práticos) venham a nos substituir. Ativistas que entendam o parto humanizado como ele realmente é: uma luta por espaços sobre a topografia física e emocional da mulher, e não uma disputa de saberes e evidências científicas, posto que estas não são capazes de produzir transformações. Precisamos ultrapassar o idealismo ingênuo e reconhecer a necessidade do enfrentamento, com a coragem de enfrentar os desafios inevitáveis.

A partir de uma conversa com Ana Cris Duarte

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Filhos

São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.

Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.

Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.

Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.

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Serjão dos Foguetes

Sabe qual o drama do Serjão dos Foguetes? O mesmo de quase todos os “produtores de conteúdo” do YouTube: a tirania do papel em branco, o mais terrível dos opressores para quem está conectado ao mundo do entretenimento.

Vamos combinar que existe muito material para falar de astronomia e geofísica – esta última é a área na qual ele tem formação. Há como falar dos achados incríveis do James Webb, das descobertas de exoplanetas, da Lua, de Marte, da viagem interplanetária, de Vênus, do furacão de Júpiter, da vida fora da Terra, de visitantes alienígenas, das teorias sobre o Oumuamua, etc., mas a gente sabe que existem tormentos para quem quer continuar a falar indefinidamente. O primeiro é que, apesar de vasto, estes temas não são infinitos; não há como repetir 4 ou 5 vezes um programa sobre a Lua ou sobre os satélites de Saturno. Desta forma, uma solução encontrada é sucumbir à “síndrome de Caetano”, que é a tendência a dar opinião sobre coisas sobre as quais não tem muito conhecimento. Aqueles que se deixam contaminar por ela acabam falando demais por terem atingido um grau de notoriedade que faz com que jornalistas fiquem insistindo em obter sua opinião sobre temas aleatórios. Eu sei o quanto é difícil ser humilde nessas horas e dizer: “não tenho opinião formada sobre isso”, e ter a grandeza de uma Glória Pires na premiação do Oscar. A maioria sucumbe a ideia ilusória de que sua opinião é indispensável.

Serjão era quase uma unanimidade entre aqueles que gostam de ciência popular. Com seu jeito de nerd, gordão, sorridente, brincalhão, e muito comunicativo, ele explica a astrofísica como se fosse um professor bonachão das séries iniciais de um colégio público. Não se furtava a brincar com o “mundial inexistente do Palmeiras”, com as teses amalucadas dos terraplanistas e com as descrições de visitantes extraterrestres a visitar nosso planetinha. Tudo ia muito bem, e seu canal já havia passado alguns muitos milhares de inscritos e, direi eu, de forma merecida, até porque sou um dos fãs dos seus programas.

O problema começou a ocorrer quando Sérgio Sacani – seu verdadeiro nome – começou a dar mostras de que, além de ser um excelente comunicador e divulgador científico, estava alinhado com as correntes mais conservadoras do pensamento político contemporâneo, flertando com a extrema direita e o bolsonarismo. Quando sua biografia foi exposta surgiram manifestações no mínimo comprometedoras, em especial quando sugeriu a morte do presidente Lula, mesmo que em forma de brincadeira. A partir daí, ficou claro que sua posição no espectro político estava situada muito mais à direita do que gostaríamos, em especial por ele ser um propagador do conhecimento científico. Serjão apoia a ciência ao mesmo tempo em que se aproxima dos grupos que mais a atacam. Também é notória a sua vinculação com figuras icônicas da extrema direita mundial, em especial Elon Musk. Sua defesa se baseava em uma Fake News: um fantasioso diálogo entre o herói bilionário e a “ONU” a respeito de uma doação de 6 bilhões de dólares para acabar com a fome, para a qual ele exigia a “nota” dos gastos para, só então, investir nessa iniciativa. Tudo indica que o diálogo e as exigências do dono da Tesla eram apenas uma forma de propaganda.

A privatização da Petrobrás, que ele defende, é uma das suas opiniões mais controversas. Para ele, “a Petrobrás está cheia de pessoas que não fazem nada, está inchada“. Assim, uma empresa nas mãos de investidores, entregue pelo governo à iniciativa privada, seria uma forma de deixar a empresa mais saudável, usando o velho argumento de que as empresas privadas são mais “honestas” e mais “enxutas”. Para ele, a importância estratégica de ter o petróleo sob o controle do governo é menos importante do que se livrar de funcionários que, segundo ele, pouco ou nada produzem. Também é pródigo em atacar a China, tratando sua ciência como se fosse inferior à americana, o padrão de excelência.

Assim, o que vemos com Sérgio Sacani, longe de ser um desvio na curva, é um padrão no comportamento dos divulgadores de conhecimento nas redes sociais. Assim que ele começou a falar de assuntos como geopolítica, capitalismo, sociedade, privatizações, socialismo, China, Coreia Popular e o significado dos bilionários na sociedade capitalista ficou evidente sua verdadeira essência conservadora. A exaltação do bilionário Elon Musk, visto com ele como um “gênio” e mecenas da ciência, e a de Lula, visto como alguém que poderíamos eliminar, deixa muito clara sua perspectiva de mundo. Porém, não é certo culpá-lo por estas opiniões fora do seu métier; ele na verdade sucumbe à tentação irresistível de ficar tratando de assuntos que desconhece; na maioria das vezes “ouviu o galo cantar mas não sabe onde”. Muito do que ele fala de política, do PT, do Lula, de Elon Musk, da China, da Coreia Popular é suco de senso comum, um amontoado de informações sem fonte e sem qualquer comprovação científica. Essa adesão oportunista aos cânones científicos é o que existe de mais censurável; quando é para criticar os terraplanistas a vinculação à ciência é mandatória; afinal, como tratar destes assuntos e ao mesmo tempo desprezar toda a ciência que sustenta nossa visão do cosmos? Todavia, quando critica os “vagabundos da Petrobrás” não é necessário mostrar nenhuma comprovação de que os funcionários da nossa maior estatal são relapsos – sua percepção pessoal e isolada é suficiente. Ou seja: ciência para quem precisa de ciência; senso comum quando interessa.

Entretanto, eu ainda prefiro esquecer as mancadas do Serjão dos Foguetes e escutar apenas as coisas interessantes que ele apresenta. Acho que é razoável e justo distanciar o autor da obra, o divulgador científico da sua posição política. Por outro lado, que isso fique como ensinamento: o fato de um sujeito ter uma vida acadêmica abundante, rica e ter acumulado conhecimento sobre um tema específico, não garante que tenha informações suficientes para tratar com profundidade outros temas. A compartimentalização do conhecimento nos permite que sejamos doutos em determinada especialidade e totalmente ignorantes em muitas outras. Nosso erro é valorizar as opiniões dessas pessoas fora dos seus domínios, onde eles possuem a mesma profundidade de saber do que qualquer um de nós.

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