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Ruptura

Se houve uma vitória moderada da extrema direita no parlamento europeu (de 118 para 131 cadeiras) nas eleições recentes também é verdade que os comunistas obtiveram um forte crescimento, em especial nos países nórdicos, e com uma retórica claramente antissistema, anticapitalista e contrária à guerra. Desta forma, fica claro que a vitória nas eleições foi daqueles que repudiam, com maior ou menor veemência, os atuais sistemas de governança europeus. Protestam contra os sintomas de degenerescência de um modelo econômico de maturidade tardia, mas que é incapaz de oferecer o que prometeu: o crescimento econômico aliado à qualidade de vida aos trabalhadores. Segundo o pensador esloveno Slavoj Zizek, a crise ecológica, a revolução biogenética, os desacertos do próprio sistema (propriedade intelectual, a disputa por petróleo, matérias-primas, comida e água) e o dramático crescimento das exclusões sociais através do refinamento da concentração de renda, serão cada vez mais intensificados no século XXI. Se é verdade que o capitalismo teve um sucesso espantoso na produção de bens de consumo e no estímulo à descobertas também é certo que sua tendência concentradora de riqueza e a divisão social inexorável denunciam sua senescência.

Ou seja, o fracasso da esquerda liberal, em especial os partidos da social democracia europeia, deveria nos fazer reconhecer o quanto a rota de “adaptação” ao liberalismo usada pela esquerda tradicional da América Latina também vai inevitavelmente nos levar a um beco sem saída. Não será mais possível continuar a afagar o mercado e os capitalistas ao mesmo tempo em que tentamos oferecer um horizonte mais justo ao trabalhador. Por esta razão, é inútil tentarmos moderar a sanha capitalista, humanizar seus ganhos ou domesticar sua voracidade; é preciso recriar o discurso de ruptura da esquerda, sem concessões ao capital, de enfrentamento à direita, frontalmente contrário ao imperialismo e contra o discurso bélico da OTAN. Se isso não for feito, permitiremos que a extrema direita, eternamente subserviente aos Estados Unidos, cresça usando a fantasia da indignação, a narrativa antissistema, com a falsa retórica da ruptura para manter o poder das corporações e do imperialismo intocado.

Ainda segundo Zizek, as fases de adaptação à morte do capitalismo se assemelham àquilo que ocorre na intimidade do indivíduo quando defrontado com um diagnóstico inexorável de morte. Segundo ele, da mesma forma como os indivíduos, as sociedades utilizarão o sistema de adaptação ao luto criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross para resolver as mortes de suas utopias. A primeira fase é a da negação, que vai se observar na ideia de tentar mostrar o capitalismo como o “fim da história”, e a democracia liberal o derradeiro e acabado modelo social. Esta negação, profunda e dolorosa, apenas retarda o reconhecimento do desfecho inevitável. A ela se segue a raiva, e provavelmente esta é a fase que podemos identificar nas massas bolsonaristas ou na juventude de extrema-direita fascista nas marchas neonazistas na Europa. A raiva com o sistema político foi capitalizada pela direita para usar a energia de indignação para dar uma sobrevida ao capitalismo na UTI. Depois disso, vencida a raiva pela triste confrontação com a realidade, vem um processo de barganha, quando haverá a tentativa de adaptar o capitalismo moribundo a uma forma mas justa de divisão de riquezas, mas mantendo intacta a divisão de classes que caracteriza o modelo mesmo tempo que o condena ao desaparecimento. Diante das falhas nas fases anteriores, e em face do aprofundamento dos sintomas do paciente terminal, sobrevém uma depressão. A partir dessa tristeza – pela da morte do sistema que nos seduziu nos últimos séculos – deverá surgir a aceitação, que nos levará ao processo revolucionário e a necessária superação do capitalismo.

Não podemos esquecer que foi exatamente esse o caldo de cultura para o crescimento do fascismo europeu há 100 anos, cuja retórica tinha a mesma origem: a insatisfação com a estrutura da circulação do capital global. O que os europeus rejeitam é o atual estado de coisas, mas ainda não perceberam que a direita é a exata manutenção – travestida de mudança – no atual modelo capitalista concentrador de renda e destruidor do meio ambiente. A Europa mostrou nas últimas eleições o que não quer, mas ainda não percebeu que esta consciência não basta; é precisa mostrar o que realmente deseja. A esquerda do sul global precisa entender que não é o momento de realizar concessões à direita, mas que é o tempo de radicalizações, de aprofundamento das contradições do capitalismo, mostrando – em especial à juventude – que temos alternativas à esquerda para a crise mundial do capitalismo. Esperamos que a ruptura necessária que se esboça não conduza ao poder os mesmos fascistas perversos que levaram 60 milhões à morte no século passado.

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Velhos

Apenas os covardes, os oportunistas e os mentirosos abandonam as utopias. Enxergar uma utopia é o mesmo que viver acalentado pela paixão; só a abandona sem se rende aos interesses mais rasteiros e mesquinhos. A paixão não cabe ser abandonada, apenas amadurece quando direciona sua força e seu poder transformador.

Quando nos defrontamos com sujeitos que desistem das lutas em nome de seus interesses mais egoístas podemos dizer que tal mudança não se deu por amadurecimento, apenas se deu por envelhecimento; senescência no sentido mais obscuro desta palavra. Perderam qualquer sinal de indignação – a característica clássica de quem é velho e reconhece sua impotência. Rendem-se à posição de ressentidos sem escrúpulos, associados aos elementos mais danoso da sociedade. Muitos aceitam postos de relativo poder, para que sua voz seja monitorada e sua visão de mundo se mantenha sob controle

Esse é o destino natural dos medíocres: ganhar um cantinho na Casa Grande para que fiquem calados, domesticados em troca de uma boa refeição. Tais sujeitos jamais tiveram um real perfil progressista ou que fosse capaz de enfrentar o imperialismo e a dominação da ditadura burguesa. Sua falência moral é um bom exemplo da importância de reconhecer muito cedo quem é o verdadeiro revolucionário.

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Karen

Eu bem sei como funciona o “entitlement”, um fenômeno produzido na última década como um “efeito colateral” do movimento feminista. Este tipo de comportamento surge em mulheres de classe média, normalmente brancas, que se acham no direito de fiscalizar e regular o comportamento alheio. O empoderamento inédito das mulheres nas últimas décadas fez despertar uma pequena minoria que acredita que sua condição de mulher lhes garante total impunidade. Existem muito menos homens nessa condição porque os meninos, desde cedo, apreendem que, se você engrossar, pode levar um tabefe e as coisas saírem do controle. Já as Karens acham que são intocáveis, podem fazer o que bem entendem, podem inclusive bater nas pessoas como vemos todos os dias.

Deixo claro que as mulheres não são Karens,; esse comportamento não fala da essência da mulher, assim como ser violento não é da essência do homem. Na minha experiência as mulheres são até muito mais ponderadas, na média, do que os homens quando estão diante de conflitos – a maternidade e as disputas entre os filhos ensinam isso. As Karens são uma franja minúscula – mas escandalosa – de pessoas embriagadas por uma percepção ilusória de superioridade moral. Elas se assentam sobre o poder mítico do “corpo intocável” e um supremacismo feminino para abusar de uma pretensa autoridade.

O antídoto ao se deparar com uma Karen é pegar a energia negativa delas e a transformar em afeto. Minha mulher, Zeza, sabe muito bem como agir assim e por isso reconheço nela uma inteligência da qual careço. Acho isso admirável e tem a ver com a “comunicação não-violenta”. Quem sabe um dia aprendo.

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Indignação

Michael Löwy é um pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique.

Nunca esta frase de Michael Löwy foi tão importante para acordar as novas gerações. A indignação é o motor de todas as verdadeiras transformações sociais, das menores às maiores. Sem ela não há afeto, e sem as emoções afloradas não é possível mobilizar nossa potencialidade para a luta. Parafraseando a antropóloga britânica Sheila Kitzinger em seu livro “The Politics of Birth”, “Não se faz uma revolução com tapinhas nas costas”. Não mudaremos a realidade política no Brasil cuidando dos sentimentos feridos, acalentando emoções despedaçadas ou tendo cuidado para não ferir suscetibilidades. Para fazer um omelete é preciso quebrar as cascas dos ovos. O espírito de indignação precisa ser estimulado, porque sem ela só produzimos a estagnação e a cristalização das opressões.

Não é possível modificar os sistemas de poder numa determinada sociedade sem atingir aqueles que se acastelaram em posição de autoridade. Fazer concessões insensatas, acreditar em “consensos”, iludir-se com promessas e apostar em avanços fantasiosos (criados para que nenhuma mudança real ocorra) são formas altamente eficientes de adiar o necessário câmbio de paradigma. Todavia, poucos tem a capacidade de reconhecer a importância da inquietude que brota de um espírito revolucionário; a indignação ainda é vista como defeito, como uma falha de caráter que ocorre em sujeitos a quem nenhuma satisfação é possível. Por resta razão, mesmo nos movimentos populares e no seio do ativismo, prolifera um espírito contra-revolucionário que nos estimula a ter “paciência”, a conversar com os poderosos, a fazer infinitas concessões, a negociar e acreditar que a retórica move montanhas e que o bom senso, no fim, prevalecerá.

“Parem de nos matar”, dizem as próximas vítimas, na ilusão que isso fará aflorar a comiseração dos algozes. “Queremos comer” gemem os famélicos esperando, ao menos, migalhas dos seus opressores. “Exigimos dignidade” dizem as gestantes, despidas de autonomia e protagonismo, como se alguma vez na história da humanidade qualquer direito tenha sido conquistado pela bondade de quem o concedeu.

Sem a necessária indignação nenhum movimento é possível. Ela é a força da transformação, sem a qual tudo se cristaliza e morre.

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Vingança

Josh, ainda com os braços apoiados na mureta de tijolos da sacada, olhava para o horizonte como que a procurar a resposta para sua angústia no grupo de nuvens que buscava um pouco de calor nos raios avermelhados dos últimos brilhos do sol.

– Não faz diferença, Josh; o que você diz não faz a menor diferença. Entenda que seus argumentos e explicações podem inclusive ser iguais àqueles usados pelo seu oponente. O fato de que você foi colocado a priori na posição de inimigo fará com que qualquer coisa que você disser será desvirtuada para parecer o contrário do que em verdade disse. Por que perder tempo tentando achar concordâncias com quem se nega a aceitá-las?

Josh manteve-se fixado na linha do horizonte enquanto o café perdia calor e fumegava na mesa ao lado. Parecia não haver qualquer maneira de acalmar sua tristeza. Ele finalmente voltou seu corpo para o quarto, onde seus olhos encontraram Pearl sentada à beira da cama, segurando sua xícara enquanto tentava encontrar uma brecha no muro de decepções que o cercava.

– Não consigo entender porque tanta aversão. Qual o sentido dessa barreira que desafia o bom senso e a lógica?

Pearl respirou fundo para responder, mas interrompeu sua fala antes da primeira sílaba. Percebeu que também seriam inúteis suas palavras. Não haveria nenhuma possibilidade de que frases e ideias, por si só, pudessem reparar os danos. Do fundo do poço do ressentimento ele só conseguiria emergir quando o tempo fosse capaz de cicatrizar as feridas abertas. Olhou o vapor do seu café e pensou que, ele também, só poderia ser tomado quando o calor amainasse.

Terence H. Werther, “Revenge as a cursed inheritance” (A vingança como herança maldita), ed. Project, pág. 135

Terence Hash Werther começou a escrever no Kentucky Herald em 1969 como repórter esportivo, atuando na cobertura das corridas de cavalos. Ao invés de fazer análises técnicas sobre o histórico dos cavalos e suas chances estatísticas nos diversos pisos, usava da criatividade e produzia textos cheios de humor e graça. Foi o criador das famosas ‘entrevistas com os cavalos’, mas quais dublava os animais e fazia divertidas entrevistas com aqueles que estavam prestes a correr. Com o tempo, foi transferido para os setores de economia e posteriormente para literatura e arte, onde manteve uma coluna sobre cinema e livros por mais de 20 anos no mesmo jornal. Ao se aposentar escreveu seu primeiro romance, chamado “Among horses and beers”, sobre cocheiras, cavalos e jóqueis, espaços onde conviveu por muitos anos. Em “Revenge” ele acompanha os passos de Josh Daniels, um jovem judeu de Minesotta viciado em corridas e apostas que deseja ficar rico em New Jersey e voltar para sua cidade. Nada disso, aconteceu, e ele acabou envolvido com o submundo das apostas, drogas, prostituição e crime organizado. O filme baseado no livro está em fase de produção e será estrelado por Jeremy Altman no papel de Josh e Mary Gorgulho como Pearl, a garota autista prodígio que se apaixona por ele e o ajuda nas apostas.

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Idiomas distintos

Os médicos que ultimamente discursam contra o uso do termo “violência obstétrica” tem argumentos que eu consigo entender perfeitamente. Convido a uma reflexão.

Imagine que você passa 30, 40 anos trabalhando apenas em hospitais, atendendo bebês que não conseguem nascer de parto normal, tratando diabéticas, aprendendo sobre as drogas a usar, cuidando de hipertensas, gestações ameaçadas pela pré-eclâmpsia, analisando o melhor momento para intervir, operar, retirar um bebê pela via cirúrgica, depois costurar e aguardar a cicatrização adequada da ferida operatória. E fazer tudo isso com genuíno interesse de cuidar, muitas vezes conseguindo até salvar as vidas em risco.

Não apenas isso, mas há que contabilizar anos de dedicação, aulas na faculdade, provas, estágio, residência. Plantões intermináveis, noites mal dormidas, dedicação absoluta, pagamento escasso, crises familiares, angústia, medo, filhos sem pai ou mãe no aniversário. Estresse.

E aí aparece um monte de mulheres furiosas dizendo que o que você faz é violência obstétrica, como se tudo o que é feito pela medicina fosse carregado de egoísmo e maldade. Como se as ações realizadas não passassem de agressões dissimuladas, e igualmente destrutivas. E as vidas salvas? E os bebês resgatados de uma morte certa? E as mães que sucumbiriam sem esta ajuda?

Tente se colocar dentro dos sapatos dos médicos e andar mil km com deles. Só então poderá entender esta indignação.

Não há como negar esta perspectiva e não é necessário, da mesma forma, pintar os profissionais que atendem parto como seres cruéis e insensíveis. A questão não é moral, é sensorial e sistêmica.

A verdade é que estes velhos obstetras, apesar da idade, jamais se permitiram tocar por um nascimento fora do universo conceitual da biomedicina ocidental. É o único paradigma que lhes foi permitido conhecer. Para eles, parto e nascimento se esgotam no conhecimento técnico, focado na patologia, na figura do profissional médico e encerrado dentro dos hospitais. Carecem eles de uma perspectiva mais sensível e emocional, social e espiritual, psicológica e humana, elementos que compõe a complexidade desse evento. Essa perspectiva complexa e abrangente não é oferecida na escola de Medicina porque se contrapõe à ordem da obstetrícia, a qual se estabelece a partir da defectividade essencial feminina e do imperativo tecnocrático.

Em verdade as pessoas continuam cometendo equívocos mesmo depois de saberem que estão erradas ou ultrapassadas, pois as forças inconscientes que mantém estas condutas são mais fortes do que aquelas que as impelem à mudança. Só a dor produz transformação. Por outro lado, é preciso entender e acolher. Em verdade, creio que fazendo nós mesmos o que exigimos deles será o melhor caminho. Porém, lembre que “entender” não significa “aceitar” ou “concordar”.

Por certo que existe sentido em responsabilizar a Universidade, mas sejamos sinceros; os alunos repetem e incorporam como rotina o que escutam nas aulas ou que observam de seus referenciais profissionais? No meu tempo (espero que seja diferente hoje) os professores davam aulas (via de regra muito ruins) sobre fisiologia de parto e depois traziam pacientes particulares para serem operadas sem qualquer justificativa médica em hospitais públicos no plantão do hospital escola em que fazíamos residência. Todos nós sabíamos que os consultórios privados deles eram uma fábrica de cesarianas. Alguns davam aula e sequer trabalhavam com obstetrícia, mas aceitavam cesarianas com “hora marcada”.

Os alunos aprendem, acima de tudo, pelo exemplo!!! Alguns contratados da residência respondiam com risadas ao comentarem sua prática e diziam de forma cínica “lá fora o mundo não é acadêmico”. Esse exemplo entra direto no coração dos alunos: lutar pelo parto normal é “academicismo”; o mundo real é diferente do que se escuta em aula.

Sei que existem profissionais de qualidade hoje em dia, mas a realidade dos abusos, das múltiplas violências e da epidemia de cesarianas não pode ser encarada como ocasional. Ela é fabricada coletivamente pela cultura, e executada pelos profissionais. Pacientes envolvidos em medo e desinformação produzem médicos amedrontados e que apostam nessa mesma desinformação como forma de proteção. Um círculo vicioso que só se quebra com ação política e informação.

Há muitos anos que não me deixo seduzir pela ilusão de que é possível educar médicos para que tenham uma prática mais baseada em evidências no que diz respeito à obstetrícia. Não há como treinar profissionais durante 9 anos pela ideologia da intervenção e depois solicitar que sua prática se contraponha a isso. Todavia, eu cobro dos médicos pela situação absurda que vivemos, em função de sua posição de autoridade e pelo conhecimento que deveriam ter. Deveria partir dos médicos a reflexão necessária, mas o que fazem? Montam seminários pomposos para combater o termo “violência obstétrica”, ao invés de aceitar as críticas, reconhecer os desvios e lutar por uma reforma obstétrica – a exemplo do que ocorreu com a psiquiatria.

Para estes velhos médicos é incompreensível o que escutam das mulheres, porque jamais conseguiram entender o parto por um viés diferente do que receberam. Trata-se de um debate “lost in translation”; as mulheres exigem ser tratadas como sujeitos e protagonistas de seu destino, mas falam em um idioma que eles não entendem. Para entender essa língua estranha é preciso olhar com outros olhos, mudar a perspectiva, e com isso desafiar todo o seu conhecimento. Esta mudança de postura, desenvolvendo uma forma desafiante de sentir o parto, demanda coragem.

E isso também não se aprende na escola.

A revolução do parto, portanto, não virá de uma melhor compreensão dos médicos sobre o processo de nascimento, e nem de uma obediência rígida aos avanços da ciência por parte deles, no que tange ao respeito à fisiologia do parto. Não, a transformação virá da união da sociedade civil exigindo que a atenção ao parto seja conduzida da melhor forma e pelos melhores profissionais; será, sem dúvida, pela luta das mulheres.

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Figurantes

Quando meu filho tinha por volta de 7 anos ele conheceu o universo dos “jogos de computador”. Eu, que vivi o apogeu do fliperama, nunca consegui ser influenciado por estes jogos – estava velho demais para ser contaminado – mas meu filho por alguns anos se dedicou aos jogos de guerra em “primeira pessoa”, onde era possível incorporar um soldado que enfrentava os inimigos em campos de batalha. Eu não gostava de jogar, mas adorava assisti-lo jogando e não me furtava de fazer alguns comentários. O mais comum – e que virou piada interna – era reclamar das matanças que seu personagem protagonizava. Eu lhe dizia: “Olha, você matou vários soldados inimigos!! Você acha que eles não tem família? Acha que eles não têm mulher e filhos? Acha que eles não tem uma casa para voltar quando você desliga o computador?”. Ele me explicava que eles não eram pessoas de verdade, e eram apenas as dificuldades que o jogo colocava para chegar até o “chefão” e vencer o jogo.

Fiquei feliz ao saber que, anos mais tarde, a minha piada sobre os “capangas” (que continha uma crítica à desumanização) um dia apareceu em uma comédia dos irmãos Zucker. Na verdade, estes jogos expõem, de forma dissimulada, uma face bem cruel da nossa sociedade – mas absolutamente verdadeira. Existem aqueles que merecem a condição de protagonistas da vida e da história, enquanto para outros esta condição não é oferecida; eles apenas merecem a condição subalterna, condenados a ser figurantes. Estes últimos são desumanizados, não contam, suas mortes não precisam ser lamentadas e são apenas o suporte para que os protagonistas possam brilhar.

Quando vejo os comentaristas da imprensa corporativa contextualizando o massacre das mulheres e crianças de Gaza, colocando a culpa das mortes nos próprios palestinos, dizendo que as mortes não aconteceriam se eles se rendessem ou parassem de usar suas mulheres e filhos como escudos humanos (uma mentira repetida mil vezes…), é inevitável trazer à memória Golda Meir. Foi ela, antiga primeira ministra de Israel, que popularizou a frase genocida: “Jamais perdoaremos os palestinos por terem obrigado nossos filhos a matarem os seus”, em conversa com Anuar Sadat, presidente do Egito. Como Israel é uma colônia ocidental, criada por invasores europeus e encravada em terra árabe na última e mais mortífera de todas as experiências colonialistas, percebi que a sociedade europeia continua a se considerar protagonista do planeta, e a periferia (em especial os palestinos, os negros africanos, os habitantes da Indochina e os “cucarachas” do Brasil) são como os capangas do jogo de computador do meu filho, cujo sofrimento e morte não contam porque ocorrem nos corpos dos figurantes no grande tabuleiro do planeta. Para eles nosso mundo continua dividido entre aqueles cujas vidas e mortes contam e os “outros”, para quem a a existência não faz diferença alguma na grande contabilidade do capitalismo.

Mesmo após termos eliminado boa parte do colonialismo em África, Ásia e Oceania, a mentalidade ocidental ainda é guiada pela ética dos colonizadores europeus que dizimavam populações nativas inteiras, dando gargalhadas com a desorientação de aborígenes que jamais haviam visto uma arma de fogo. Somos como os franceses na Argélia, os belgas no Congo, os alemães na Namíbia. Somos insensíveis às lágrimas e gritos das mães palestinas, mas questionamos a resistência palestina chamando-a de “brutal”. Não aceitamos que os figurantes assumam o controle do seu destino, usem de sua própria língua, plantem e colham de sua própria terra e conquistem sua tão sonhada autonomia.

A fala emocionada dos jornalistas também me lembra os clipes carregados de emoção que mostram soldados americanos voltando do front da Ásia central ou oriente médio, fazendo surpresa para suas mães, companheiras e filhos. Depois de destruir as famílias de líbios, afegãos, sírios, palestinos, vietnamitas, coreanos e qualquer um que ouse enfrentar o Império, eles voltam felizes e emocionados para abraçar os seus, todos lindos, limpos e loiros. As mortes que causaram nos “outros” são irrelevantes diante da felicidade do reencontro, mas foram importantes para que seu heroísmo fosse exaltado. Essa é a face mais cruel do imperialismo, e por isso deve ser combatido se desejamos um mundo com equidade e justiça para todos os povos

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Deuses

Ela entrou no consultório vividamente alterada. Sentou-se rapidamente na cadeira à frente da escrivaninha de granito e sentou-se com o corpo projetado à frente, como a se jogar contra mim. Colocou as mãos sobre a pedra fria e me olhou fundo nos olhos.

– Não vim consultar, doutor; estou aqui para conversar porque sei que o senhor se posiciona firmemente contra a violência obstétrica e acredita que os pacientes precisam ter voz. Venho pedir para que o senhor me ajude a condenar um colega seu que cometeu um crime. Ele matou meu sobrinho.

Dava para sentir na pele o clima pesado. Ela estava no último estágio da indignação. Sua dor era perceptível; seu ódio queimava a pele e se irradiava à distância. Respirei fundo. Pensei no quanto de angústia ela já havia vivido até sentar-se à minha frente. De certa forma eu era sua esperança de paz, uma forma de auxílio para carregar o pesado fardo do sofrimento.

– Quer me contar o que houve? disse eu, temendo abrir uma comporta que seria posteriormente incapaz de fechar.

Ela fez uma pausa e contou sua história.

– Meu sobrinho, morreu. Ele nasceu com uma malformação cardíaca. Foi diagnosticada apenas depois que nasceu porque não conseguia respirar direito, ainda na sala de parto do hospital. Ele nasceu roxo e assim continuou, doutor. Foi direto para a UTI onde ficou no oxigênio. No dia seguinte foi dado a nós o diagnóstico da malformação no seu coração. Ficamos totalmente arrasados. Morreu dois dias depois de nascer.

– Posso imaginar a dor de vocês, disse eu ingenuamente.

Ela me censurou com o olhar e disparou frases duras, como se essas palavras estivessem presas há tempo em seu peito.

– Vocês não sabem o que é isso, disse ela. Vocês não conseguem sentir o que nós sentimos. Essa dor passa longe da experiência de vocês. Sempre frios, assépticos, insensíveis e distantes. Não, doutor, vocês não conhecem a dimensão dessa dor, o vazio que fica, o amargo na boca e a escuridão que se interpõe entre o agora e o amanhã. Só estando desse lado da mesa é que é possível entender o quanto dói esta ferida.

Preferi ficar em silêncio pois a porta da empatia havia sido fechada. Mentalmente disse “entendo”, mas percebi que entender, compreender e colocar-se no lugar era para mim vedado. Ela exigia a exclusividade do lugar de sofrimento, impedindo que eu pudesse ao menos me aproximar dele. Só para ela havia o direito de sofrer. Resolvi me acercar, com todo o cuidado, da motivação expressa do contato.

– E como quer que eu lhe ajude? Ainda não me disse onde houve o erro que conduziu seu sobrinho ao óbito.

Outra fuzilada no olhar.

– O médico do pré-natal, o Dr. Fulano – e faço questão de dizer seu nome com todas as letras, F-U-L-A-N-O – não pediu ao meu sobrinho uma ultrassonografia cardíaca durante o pré-natal. Se nós soubéssemos de antemão tudo poderia ter sido diferente. Foi negligente, impediu um diagnóstico a tempo. Por isso quero vê-lo pagar pelo crime que cometeu.

Ela tocou em um tema muito delicado, pelo menos para mim. O abuso de exames para a gestação sempre foi um assunto que me interessou desde os tempos da escola médica. Esse parecia ser um daqueles casos que, lidos ao contrário, poderiam nos dar a ilusão de que “algo poderia ser feito” para evitar a tragédia, bastando para isso que os médicos pudessem ler o futuro. Retrospectivamente tudo faz sentido e todos os pontos se ligam. Seria como internar todas as crianças com febre porque uma em um milhão poderia estar iniciando uma meningite. Não faz sentido fazer isso na vida real, mas quando se olha para trás sempre é possível perguntar: “mas por que não internaram na UTI quando a temperatura começou a subir?”

– O que você acha que seria diferente se ele tivesse solicitado este exame? Em que ele poderia mudar o cenário? Veja, este bebê nasceu em um hospital plenamente equipado. Foi direto para a UTI neonatal. Esteve ao cuidado dos profissionais de lá e sucumbiu ao drama terrível de uma malformação no coração. O que poderia ter sido feito para evitar este desfecho, pela sua perspectiva?

Hoje, lembrando da cena, acredito que aqui esteve sempre o meu grave erro. Já era óbvio que sua indignação era sem objeto. Não havia dolo; não havia sequer culpa de nenhum profissional que atendeu aquela mãe e seu bebê. Entretanto, o caótico da vida é insuportável para quem sofre seus reveses. A pior dor é aquela que não pode ser colocada em uma linha clara de causalidades. Se uma criança – que carregava esperanças e idealizações de uma família – não sobrevive, então alguém deve ter falhado. Exercer o ódio arrefece a dor da nossa alma; apontar o culpado nos oferece alívio.“Ufa, afinal sabemos o que houve. Foi um erro médico”. A pior escuridão é quando nos falta a luz de uma resposta; como a procura por um filho que desapareceu aguardando por uma resposta – qualquer uma – que possa acalmar um coração imerso na dúvida mordaz e corrosiva. Por outro lado, ser compreensivo, acalentar essa dor, acolher esse sofrimento e ficar em silêncio diante do seu relato, apenas atrasaria a necessária tomada de consciência sobre a verdade que ela se negava a encarar. Minha dúvida nunca será desfeita: qual o enfoque caberia utilizar, o “materno” ou o “paterno”?

Certa vez um colega foi duramente punido no hospital onde eu trabalhava. Muitas vezes escutei a sua história e quanto mais a ouvia mais era fácil perceber que não havia culpa alguma em seus atos. O diretor o puniu porque se sentia obrigado a dar algum tipo de satisfação à família enlutada. Para a família produziu um efeito calmante, mas para o meu colega – injustamente acusado – o resultado foi devastador. Ele me dizia que a pior punição era mental: “Sou prisioneiro dos meus pensamentos. Revivo a cena centenas, milhares de vezes por dia. Eu preciso me livrar dessa prisão e dessa tortura que parece não ter fim”.

Todavia, as minhas próprias dores diante das injustiças me impediram de guardar o devido silêncio, assim como a escuta respeitosa e calma. Respondi. Devolvi para ela a irracionalidade de suas palavras. Tentei responder com a razão uma demanda puramente irracional, fruto da dor, da mágoa e dos afetos destroçados. Um erro que carregarei para sempre comigo. Depois de fazer a pergunta ela perdeu os limites da civilidade.

– Como você ousa perguntar isso? Não percebe a tolice de suas palavras? Todos os dias somos bombardeados por informações das maravilhas da medicina e da tecnologia, e negar isso aos pacientes é um crime inaceitável. Se houvesse esse diagnóstico antes do nascimento ela poderia ter sido operada até mesmo antes de nascer!! Ou você não sabe da existências dessas cirurgias?

Lembrei da foto do braço do feto pendurado para fora do útero aberto segurando o polegar do cirurgião, uma foto que correu o mundo mostrando a possibilidade de uma cirurgia fetal intrauterina. Provavelmente era esse tipo de intervenção que ela se referia, mas por certo que ela não tinha a menor ideia do que se tratava. Apenas juntou em sua mente a doença congênita e a possibilidade – mesmo que apenas teórica – de mudar o quadro através de uma operação heroica. Também ela era vítima de uma propaganda médica tecnológica fantasiosa e sem limites, como se um novo mundo se descortinasse à nossa frente pela via dos equipamentos maravilhosos que a criatividade humana produz. Diante de tantos avanços a morte de uma criança inocente só poderia ser o resultado da brutal negligência daqueles que controlam essas maquinas fantásticas e seus feitos extraordinários. Na minha frente apareceu Marsden Wagner me sussurrando: “Quem brinca de Deus acaba pagando pelos desastres naturais”.

– Não tenho como lhe ajudar. Entendo seu sofrimento, mas não acredito – pelo seu relato dos fatos – que tenha ocorrido qualquer falha dos profissionais que acompanharam seu sobrinho na sua breve passagem por aqui. Perdoe minha sinceridade, mas acredito que esse tipo de ação provocará ainda mais dor e, na pior das hipóteses, produzirá injustiças contra pessoas que fizeram o possível para ajudar essa criança.

Ela, finalmente, explodiu em ódio e indignação.

– Eu sabia!! Você é como todos os outros. Achei que poderia encontrar em você alguém diferente, que pudesse me ajudar nessa busca por justiça, mas não passa de mais um covarde. Vocês sempre se protegem e encobrem os erros uns dos outros. Não passam de carniceiros e mercenários, incapazes de entender e respeitar a vida dos pacientes. Acham-se deuses, infensos aos sentimentos de empatia e amor ao próximo. São cães, arrogantes e prepotentes!!

Desta vez fiquei em silêncio. Quando ela se levantou, também me ergui da cadeira.

– Vocês podem escapar de tudo, menos da justiça divina. No dia do julgamento seu silêncio será colocado na balança. Passar bem, doutor.

Eu a acompanhei até a porta. Na passagem pela secretária fiz um gesto com a mão para que ela ficasse tranquila, já que escutou os gritos que vieram da sala. A paciente saiu porta afora e nunca mais a vi. Na volta para a minha sala pedi um café para a secretária e me sentei, ainda sentindo os músculos do corpo retesados. Por sorte haveria meia hora para me acalmar, já que a consulta fora abruptamente interrompida. Em minha mente eu apenas pensava. “Sim, muitos se acreditam deuses; entretanto, se acham mesmo que essa postura é arrogante e sem sentido, por que insistem tanto em nos colocar nessa posição?”

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Sobre dor e perdão

Quando sua filha nasceu estava de plantão no último dia como doutorando no hospital escola onde estudou. Passados 13 dias veio a se formar, e apenas três semanas depois já estava novamente de plantão, agora como residente. No dia do parto não tinha mais do que 26 anos e, além dos temores que cercam o parto, ainda estava angustiado com a escolha dos novos residentes, o que deveria acontecer nos próximos dias.

Por certo que o jovem estudante prestes a se formar não interferiu no parto da própria esposa, que ficou a cargo de uma residente. O parto foi muito tranquilo, apesar das violências de praxe comuns daquela época. Entretanto, depois de várias horas de ocorrido, já no fim da madrugada, o recém pai foi profundamente maltratado pela residente. Esta foi grosseira, maldosa e até ameaçadora. Fez uma cena em pleno centro obstétrico apenas porque o doutorando foi acompanhar sua mulher e filha recém nascida à maternidade e não permaneceu ao seu lado para passar os dois casos restantes da noite anterior para os próximos plantonistas.

Nunca conseguiu aceitar a violência daquelas palavras. Era impossível entender as razões pelas quais ela foi tão bruta com um colega seu que acabava de ser pai e precisava dar assistência à sua esposa e filha. A raiva do seu olhar nunca lhe saiu da cabeça, como uma interrogação, uma dúvida. Entretanto, intuía que tal manifestação era direcionada a outro sujeito, e que estaria tão somente ocupando o lugar de outra pessoa.

Muitos anos mais tarde ele finalmente ficou sabendo do que se escondia por detrás do meramente manifesto na cena. Aquela médica era namorada – há vários anos – de um homem casado. Certamente que nutria a esperança que ele abandonaria a esposa para, finalmente, ficar com ele, e testemunhas lhe contaram que esta médica era verdadeiramente apaixonada por aquele sujeito. Entretanto, exatamente na época deste parto, o namorado comunicou que estava abandonando sua esposa… mas também não a queria mais. De uma só tacada livrou-se das duas mulheres de sua vida para se juntar a uma terceira, a qual nenhuma das duas tinha conhecimento.

Para ela o efeito foi devastador. Uma relação de muitos anos desmoronava de uma hora para outra. Nesse ínterim, seu colega – um sujeito sem importância, sem brilho, sem destaque, sem glamour – torna-se pai durante o seu plantão. A alegria do nascimento e a exaltação do parto conquistado foram demais para ela. Explodiu em indignação e, por certo, enxergava na felicidade do jovem colega o amante a quem tudo ofereceu e nada obteve em troca. Colocou naquele amanhecer toda a sua indignação nos ombros de alguém que passava por um dos momentos mais intensos e transformadores de sua vida.

Por muitos anos ele a odiou em silêncio. Não podia admitir que tamanha grosseria pudesse ser justificada. Sua alma só veio a serenar quando, finalmente, pode conhecer o drama que se desenrolava por detrás da violência verbal a que foi submetido em um momento onde só deveria haver felicidade.

Por fim foi possível perdoá-la, mesmo sem jamais ter lhe dito como havia ficado magoado com suas atitudes. Sua dor iniciou e findou sem que ela soubesse.

Não há dúvida que, fosse possível conhecer as dores que habitam os corações machucados, seria mais fácil entender as reações violentas que nos atingem. Por certo que muito mal já fizemos aos outros sem sequer notar a amplitude do dano que causamos, mas tenho a esperança que o perdão possa um dia acalmar estes corações.

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Fabrício e Adelir

Fabrício-Adelir

Exatamente nos umbrais de abril, um ano depois de Adelir ser forçada a realizar uma cesariana sob ameaça e coerção, um jogador de futebol se rebela, joga a camisa do clube que o sustenta ao solo, sai de campo vaiado, recebe ofensas de todo tipo (raciais?) e termina seu ato dizendo que vai embora para não mais voltar.

Qual a relação entre estes dois fatos, ocorridos na mesma terra, no extremo mais conservador do Brasil?

Não creio em coincidências, e muito menos que a distância entre estes fatos não possa ser ultrapassada com um pouco de análise crítica. Penso que os valores que circulam no campo simbólico acabam se acumulando sobre as nossas cabeças como nuvens, as quais por fim se precipitam sob a forma de raios e tormentas aparentemente sem causa, diante de fatos cuja intensidade oportuniza uma fissura na casca protetora dos discursos.

Os elementos que ressaltam em ambos os casos são relativos à forma como a sociedade enxerga estes personagens. Se de um lado Adelir era uma “máquina de parir” à nossa disposição, cujo produto – o bebê – a nós pertence, também Fabrício é uma “máquina de jogar”, cujo passe pertence ao clube, e sua arte a todos nós. Um jornal local chegou a chamar Fabrício de “um ativo financeiro do clube” e que, por isso (seu valor como mercadoria), deveria ser preservado.

Em ambas as situações os sujeitos coisificados se rebelaram.

Adelir refugiou-se em sua casa com uma doula, aguardando o momento mais adequado – o mais tarde possível – para chegar ao hospital, esperando com isso conseguir seu parto normal. Foi ameaçada, trazida de casa por policiais armados e sem chance de defesa. Sucumbiu ao poder maior dos proprietários de corpos, os que manipulam nossa vida em nome de uma ordem imutável. O objeto de parir foi conduzido para o lugar que a cultura designa, sem qualquer autonomia sobre sua vida e seu destino. Calou seu corpo e submeteu-se à lâmina fria que cortou seu ventre e seu sonho.

Fabrício também deu seu grito de basta. Com as vaias e apupos trancados na garganta, misturados com uma história pessoal de perdas, dores, mágoas, tristezas e decepções, ele explode de raiva e indignação incontidas. O objeto de jogar chora e grita em campo, afasta-se dos companheiros, xinga a turba ensandecida, caminha de cabeça erguida para o vestiário e grita para todos “eu vou embora, aqui não jogo mais“.

Nós testemunhamos um sujeito se desmanchar emocionalmente em campo. Quase todos viram um jogador desesperado, mas alguns viram um ser humano despencar devido a uma pressão violenta e insana. Um gladiador que, ao ver a turba ensandecida clamando por sangue e glórias, se rebela. Tira seu escudo e suas armas, joga-as ao solo. Olha para os assistentes com indignação, os quais respondem com incredulidade, que logo dá lugar ao ódio.

Penso na crise existencial de Fabrício e não consigo tirar da mente a imagem de Spartacus…

Dois atos separados por um ciclo solar, mas unidos pela rebeldia. Em Fabrício e Adelir vemos a insistência em ser protagonistas de suas vidas, e de não entregar seus corpos ao gozo alheio. Adelir tornou-se um símbolo na luta contra a violência obstétrica institucional, e um ícone do protagonismo responsável que almejamos. Fabrício e seu ato tresloucado representam a insurgência contra um modelo que objetualiza pessoas para servirem como depositários de nossas frustrações, mágoas e fracassos.

Que ambos sirvam de reflexão para a posteridade. Que o protagonismo da mulher no parto seja sagrado e respeitado por todos, e que o respeito à pessoa humana do artista, ou de qualquer figura pública, seja uma constante.

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