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Mudanças

Fiquei sabendo da entrevista de um economista brasileiro que, num determinado momento de sua vida, abandonou as teses neoliberais que sempre o guiaram e passou a enxergar a sociedade por uma perspectiva mais humanista, valorizando as relações pessoais, a simplicidade e a necessidade de um mundo mais justo e equilibrado. Movido pela curiosidade, fui assistir.

O título era chamativo: Me arrependi, e o entrevistado era o economista José Kobori. Na entrevista, ele conta como passou de um profissional conectado ao catecismo financeiro tradicional para se tornar um crítico do modelo econômico surgido após a era Reagan. Minha curiosidade era pelo caminho que ele teria percorrido para alcançar o extremo oposto de seu antigo pensamento. Que tipo de leitura o convenceu? Teria conhecido Marx, quiçá foi tocado pela leitura de Lenin, Trotsky ou algum socialista contemporâneo, como Harvey?

A resposta não me surpreendeu, pois que eu já intuía que tais mudanças raramente ocorrem mediante epifanias de ordem intelectiva. Quando Nia Georges e Robbie Davis-Floyd estiveram pesquisando profissionais da humanização do nascimento no Brasil, para saber as razões de sua mudança paradigmática na direção de um modelo contra-hegemônico e humanista, as respostas oferecidas por inúmeros profissionais deixaram as suas motivações expostas: todos haviam passado por dramas pessoais, afetivos, emocionais, que os fizeram enxergar a realidade de forma distinta daquela que tinham até então. Não foi a leitura de um livro, ou uma aula na faculdade; foram fatos, quedas, solavancos emocionais, muitos deles doloridos e até vexatórios, que os levaram à mudança.

José Kobori, o economista até então liberal, foi preso na onda de justiçamentos da Lava Jato. Pela descrição que li do seu caso, tratou-se de uma prisão abusiva, absurda, autoritária, sem provas e baseada em vingança. Ele sofreu várias ameaças de morte e foi perseguido por organizações criminosas envolvidas em propinas com governos estaduais. Entretanto, naquela época ninguém ousava questionar os métodos medievais e abusivos da República de Curitiba, tanto a imprensa – apaixonada por figuras nefastas como Moro & Dalanhol – quanto as instâncias superiores do judiciário. Ele foi mais uma vítima dos linchamentos judiciais que mancharam a lisura da justiça brasileira.

E foi esse drama pessoal, e os quase três meses em que esteve injustamente preso, que o fizeram rever seus valores. Quando foi finalmente solto, havia perdido tudo que havia conquistado em termos materiais e foi obrigado a começar do zero. Como tinha experiência como professor, começou a dar aulas pela internet, desta vez mostrando os equívocos do modelo neoliberal. Todavia, foi sua experiência na prisão que abriu as portas para uma visão mais abrangente da sociedade. Lá encontrou assassinos e criminosos comuns, conheceu os sistemas de poder da prisão e teve de se adaptar a essa nova realidade. Entretanto, o que mais lhe chamou a atenção foi que na prisão havia pessoas, como quaisquer um de nós. Boas pessoas, pessoas ruins, egoístas, fraternas, inteligentes e limitadas, culpadas e inocentes; todo o tipo de ser humano, exatamente como havia conhecido fora de lá. Foi então que começou a questionar a justiça social, a fraternidade, a equidade e até a meritocracia, um mito por tanto tempo acalentado que agora desmoronava diante dos seus olhos. Depois dessa vivência traumática, sua vida se transformou.

A mesma experiência teve Miko Peled, filho de um general israelense que foi herói na guerra de 1967. Já entrando na idade madura, teve a oportunidade de debater a questão da Palestina com amigos palestinos que encontrou fora de Israel, o que lhe permitiu abrir os olhos e enxergar o mundo sem a viseira do sionismo. Foi do sofrimento originado da confrontação de suas antigas crenças com as aspirações de liberdade do povo palestino que conseguiu enxergar uma realidade alternativa. Foi sentindo em si a dor da ocupação, recebida pela voz embargada de seus amigos palestinos que descreviam os horrores do apartheid, que a mudança se tornou possível. A partir desse encontro, ele transformou sua vida e assumiu como missão pessoal a luta pela Palestina Livre e pelo fim do regime sionista.

Nesses exemplos fica evidente a veracidade de um antigo axioma: “Não há como mudar racionalmente uma crença surgida da irracionalidade”. A única maneira de mudar posturas recalcitrantes é por meio da abordagem emocional, afetiva e pessoal. Mais do que entender o problema, é preciso senti-lo, e só assim será possível conhecer uma verdade superior. Essas experiências, muitas vezes difíceis e dolorosas, como a prisão no caso de Kobori, ou a morte de uma sobrinha num ato de terrorismo, no caso de Miko, são preciosas por serem fantásticas alavancas de transformação pessoal, desde que possam ser absorvidas de forma construtiva e criativa. O mesmo se pode dizer dos abusos da Lava Jato. A dor que o país ainda experimenta pelos desmandos jurídicos deveria servir como uma lição cívica para que nunca mais se repitam. Esperamos que assim seja.

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Memórias do Homem de Vidro – 07

Simulacrum

Passados alguns anos da saída da residência médica, minha inquietude com a obstetrícia atingia limites preocupantes. Já naquela época eu trabalhava em hospitais de periferia como plantonista do centro obstétrico. Nesses locais, eu po­dia vivenciar o tipo de obstetrícia que se oferecia à grande massa da população brasileira, pois a clientela atendida era basicamente formada por trabalhadores de baixa renda oriundos do cinturão de pobreza que circunda as grandes cidades. Ali, à margem dos grandes centros, os procedimentos rotineiros não diferiam muito daqueles que aprendi no transcorrer da residência médica. As condutas eram to­madas sem um critério sólido de embasamento científico, e atitudes aparente­mente banais, como abolir a tricotomia (corte dos pelos pubianos), eram vistas pelos colegas e pela enfermagem com desconfiança e, muitas vezes, com explí­cita aversão. Eu, entretanto, já estava por demais contaminado com uma forma diferenciada de entender o parto, e essa compreensão se manifestava inexora­velmente na minha prática cotidiana, tornando-se um incontornável gerador de tensão.

Meu ingresso na profissão foi cercado de desafios e conflitos inevitáveis. Algumas auxiliares de enfermagem desses hospitais eram antipáticas aos meus procedi­mentos médicos, e dentre elas algumas eram manifestamente contrárias. Diziam que não achavam correto “deixar uma mulher para ter filhos como uma galinha botando ovo”. Não aceitavam a quebra que eu produzia em um modelo de partos que elas repetiam irrefletidamente havia mais de 20 anos. Para elas, as explica­ções científicas sobre a postura de cócoras, por exemplo, eram completamente inúteis, e me diziam que, “se fosse certo nascer assim, o senhor não seria o único a fazer”. Na verdade, elas acreditavam que eu assistia partos de cócoras só “para ser diferente e chamar atenção”. Nessa época, eu já era alvo do escárnio de al­guns colegas, mas as próprias funcionárias, mulheres que tratavam de mulheres, eram tão ou mais cáusticas. Não foram poucas as que me informaram que não gostavam de trabalhar comigo, porque eu era “cheio de manias”. Minha presença era considerada uma ameaça. Minha pior “mania” era pedir que tomassem cuidado com tudo que fosse dito na frente das grávidas em trabalho de parto, porque sua fragilidade, causada pelo estado alterado de consciência, as tornava facilmente susceptíveis. A entrada de um centro obstétrico, além de ser um local de extrema violência institucional, é também um local onde se encontra muita “patologia da palavra”, que, em se tra­tando do nascimento, pode ser entendida como “a morbidade causada pelo uso inadequado de expressões, atos ou gestos que podem fazer a paciente adentrar o ciclo vicioso do medo-tensão-dor”. Maximilian, meu colega e “guru”, batizou esse processo de verbose.

Lembro-me de uma história em que a desatenção e o uso irresponsável de uma expressão colocou um grupo inteiro de pessoas em pânico. Nesse mesmo hospital de periferia, há mais de 10 anos, uma paciente adentrou o centro obstétrico com uma ultrassonografia demonstrando um abortamento fetal precoce, de menos de 10 semanas. Vinha encaminhada diretamente da clínica de ecografias, e parecia estar já conformada com a perda da gravidez. Apresentava sangramento vaginal moderado e o colo uterino estava aberto. Conversei um pouco com ela, expliquei como seria feita a raspagem uterina e pedi que o marido ficasse por perto para estar ao seu lado quando acordasse da anestesia. Ela concordou, mas pediu que eu falasse com ele, porque se encontrava nervoso e preocupado. Determinei, en­tão, que uma das auxiliares de enfermagem solicitasse a presença do marido para falar comigo.

A funcionária prontamente dirigiu-se à porta de entrada do centro obstétrico e de lá disse em voz alta, dirigindo-se para a pequena aglomeração de familiares que aguardava informações:

— Por favor, o marido da paciente que perdeu o bebê, queira entrar para falar com o médico.

Detalhe: naquele momento, estavam internadas cinco ou seis pacientes em tra­balho de parto. Para cada grávida, existem em média 2,5 acompanhantes, o que significava quase 15 pessoas aguardando, espremidas e ansiosas na pequena sala. Quando a funcionária disse essa frase, todos se ergueram em sobressalto para saber quem era a infeliz paciente que havia perdido um bebê. Afinal, poderia ser qualquer uma das gestantes internadas. Criou-se um alvoroço que só foi con­tornado quando eu expliquei a cada um a confusão, e reforcei que as suas espo­sas/filhas/irmãs, assim como seus bebês, estavam muito bem.

Apesar de a admissão nos centros obstétricos ser marcada por condutas equivo­cadas, como a narrada acima, era no interior deles que ocorriam as mais questio­náveis e insensatas atitudes. Continuava sem entender porque, apesar de termos veículos ágeis e de fácil acesso, como a Biblioteca Cochrane, os livros do Ministé­rio da Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde, poucos médicos se inte­ressavam em discutir medicina baseada em evidências. Sentia-me isolado, por­que, diante dos meus questionamentos, meus colegas frequentemente se justifi­cavam dizendo que suas condutas estavam calcadas em “anos de experiência”, ou que “foram ensinados dessa forma pelo doutor Fulano, que era um grande mestre”. Não era fácil encontrar posturas críticas e criativas; a grande maioria re­petia atitudes e jargões padronizados. Diante desse cenário de conformismo com o modelo vigente, minha prática como obstetra que assistia “partos de cócoras” era vista como “modismo”, algo estranho e sem importância, que apenas algumas mulheres eivadas de fervor místico consideravam digno de consideração. Eu era tratado como “sonhador”, ou alguém que enxergava a medicina de forma român­tica e ingênua.

Meu sofrimento era incrementado pela ausência de explicações convincentes para as idiossincrasias da prática obstétrica. A despeito de ter percebido os maus re­sultados produzidos pela distância que mantínhamos das evidências científicas, eu ainda não tinha as respostas para uma pergunta que me torturava: por que, apesar das provas contundentes de que já dispomos, nós, médicos, continuamos a agir de forma mitológica e repetitiva, reproduzindo terapêuticas comprovada­mente inúteis e/ou perigosas para as nossas clientes? O que nos movia? Por que a distância entre nosso saber e nosso gesto? Por que nossas condutas eram tão afastadas do cientificamente comprovado como útil e seguro?

Naquela época, esse hospital tinha índices de cesarianas superiores a 45%, e questionar a validade de, por exemplo, episiotomias de rotina (entre outras con­dutas corriqueiras e igualmente equivocadas) era considerado quase um sacrilé­gio. Essas perguntas, relativas às práticas comprovadamente ineficazes ou inade­quadas, eram frequentemente respondidas pelos colegas com afirmações do tipo: “É o efeito inercial; agimos assim porque mudar é sempre complicado e difícil. Fomos treinados em um determinado tipo de proceder e nos mantemos nele por hábito”. Em uma frase que acabou famosa através de uma tese da Dra Simone Diniz, uma ginecologista explicava a razão pela qual aplicava episiotomias nas suas pacientes, apesar de saber de sua inutilidade: “Eu até tento não fazer, mas minha mão parece que vai sozinha!”. Também chamavam essa conduta repetitiva e automática de “hábito vicioso”, que poderia ser definido como a “dificuldade em mudar um procedimento previamente conhecido que nos oferece a segurança de um resultado previsível”.

Nada disso me satisfazia. Eu costumava responder a essas afirmações com uma pergunta capciosa: “Se você ganhasse um milhão de dólares na loteria, continua­ria indo para o trabalho de ônibus porque teria dificuldade em romper um hábito de 25 anos?” Nunca escutei nenhuma resposta afirmativa a essa pergunta; ninguém manteria um costume como esse sem ter uma boa justificativa. A tese de “repeti­ção inercial” ou “hábito” parecia querer esconder motivações inconscientes, que provavelmente seriam complexas ou constrangedoras demais para serem explici­tadas.

Mas que motivações inconscientes seriam estas? Tratar-se-ia, por acaso, de sa­dismo por parte dos médicos? Utilizariam eles cesarianas em excesso, enemas, tricotomias, episiotomias etc., muito além do que seria medicamente admissível, apenas para que suas pacientes sofressem intervenções injustificadas? Seriam os médicos tolos, ignorantes e cegos às realidades disseminadas modernamente sobre a validade desses procedimentos? Não pareciam ser estas as respostas. Rebater as críticas a uma prática médica cientificamente equivocada com argumentos de ordem moral me parecia uma tá­tica escapista, muito utilizada para explicar outros fenômenos sociais. Assim era com a criminalidade, tratada como uma mácula social criada pela ausência de va­lores éticos, dessa forma mascarando as questões econômicas e culturais envol­vidas na distribuição da riqueza. Não me permitiria acreditar nessa interpretação tacanha da realidade, que mais escondia do que revelava respostas. Deveria exis­tir algo mais profundo, recôndito e de difícil acesso que pudesse responder a es­sas questões.

Se as explicações eram escassas, os fatos, por sua vez, eram inquestionáveis: bastava uma passada superficial pelas estatísticas para perceber a brutal distân­cia entre realidade e evidências científicas. Na minha cidade, existiam hospitais privados em que o índice de cesarianas era maior do que 80%. Essa realidade ainda vigora incrivelmente nos dias de hoje, e depois do trabalho de Joe Potter e Kristine Hopkins (mostrando que as cesarianas não são a preferência das ges­tantes, como foi historicamente apregoado) já não podemos culpar as mulheres pela opção insensata do nascimento pela via cirúrgica. Nossa mortalidade ma­terna, que estava nessa época em um patamar superior aos atuais 75 por 100 mil nascimentos, é fortemente ligada às hemorragias e infecções — muito mais fre­quentes nas cesarianas — e está entre as mais altas do mundo, pareada com os mais pobres países da África. Onde estaria, então, a resposta para esse divórcio entre ciência e prática médica?

As explicações para o intervencionismo no nascimento humano às vezes apre­sentavam características que oscilavam entre o absurdo e o bizarro. Em uma con­versa que tive alguns anos atrás com um colega obstetra durante o congresso de ginecologia e obstetrícia da Febrasgo no início deste milênio recolhi essa pérola, que tentava explicar o índice abusivo de cesarianas no nosso país. Dizia ele, com ares de inequívoca sapiência, que o problema do excesso das cesarianas no Bra­sil estava relacionado com a miscigenação entre negros e europeus, pois criava as condições para uma desproporção céfalo-pélvica. Sendo os negros menores e mais “estreitos”, acabavam por obstaculizar o nascimento de indivíduos com ge­nes europeus, maiores e mais largos. Olhei para o colega sem acreditar na serie­dade da sua tese racista e disse-lhe: “Mostre-me seus dados! Estarei pronto para acreditar nisso se o senhor me apresentar de onde saiu essa afirmação”. Ele, ob­viamente, nunca me enviou nenhuma informação sobre isso.

Comecei então a procurar em outras áreas do conhecimento as respostas que a medicina não me apresentava, principalmente na história, na psicanálise e na an­tropologia. Passado algum tempo, caiu-me nas mãos um dos artigos mais eston­teantes sobre a obstetrícia contemporânea que eu já havia colocado meus olhos: Obstetrical Training as a Rite of Passage, de Robbie Elizabeth Davis-Floyd. Rob­bie é uma antropóloga americana e ativista do nascimento, que escreveu vários livros e artigos sobre o parto humano através de uma visão antropológica. Encon­trei esse artigo “por acidente”, ao vasculhar as referências bibliográficas do livro Obstetric Myths and Research Realities, da educadora perinatal Henci Goer. Os capítulos finais desse precioso livro são todos dedicados ao modelo que Robbie descreveu sobre as motivações para os procedimentos repetitivos e ritualísticos da prática médica contemporânea.

Foi uma descoberta reveladora e violenta. Ali, pela primeira vez, encontrei o signi­ficado da ritualística médica, tecnocracia e rituais de passagem. A leitura desse artigo — e posteriormente de todos os livros publicados pela Dra. Robbie — fez com que o meu entendimento sobre a obstetrícia desse uma guinada fabulosa, levando de roldão toda a minha vida.

Coincidentemente, poucos meses depois da leitura deste artigo, chegou na minha cidade o filme “Matrix”. Seduzido pela expectativa de um filme de aventuras e fic­ção científica, acabei sendo surpreendido por uma instigante e estonteante metá­fora para a compreensão do mundo contemporâneo, que produziu um profundo choque no meu entendimento sobre a realidade circundante. A partir de então, fiquei tão impactado com essa coincidência que comecei a traduzir o mundo em que eu estava inserido através da metáfora poderosa dos irmãos Wachowski.

Quando saí do filme, em 1999, estava acompanhado dos meus fiéis escudeiros, Lucas e Bebel. Só me permito ir ao cinema assim escoltado, porque depois de qualquer sessão se forma um debate acalorado sobre o filme, regado a Coca Light e suco de laranja. Sempre assim, mesmo que o filme seja insuportavelmente ruim. Dessa vez, não foi diferente. Saí da sessão com a nítida sensação de que havia visto mais do que um filme. Havia assistido algo que tinha a ver com a minha vida, e uma maneira específica de enxergar o mundo. Ainda emocionado, encarei meu filho Lucas e, com o dedo apontando ameaçadoramente contra seu peito, disparei:

— Lucas, não permita que seus olhos o enganem. O mundo é feito de ilusões, e a maior delas é a de que elas são obra apenas de nossa imaginação. A ilusão é a face oculta da realidade. Olhe para o simbolismo abrangente contido nesse filme. Não permita que os efeitos especiais ofusquem sua compreensão da verdade, verdade esta que se esconde por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Existe algo de Matrix aqui, nesta cafeteria. Existe algo de Matrix na sociedade em que vivemos, assim como dentro de você. Os meandros do seu inconsciente escondem porções que seriam violentas até mesmo para a sua inte­gridade. Tem certeza de que é realmente Coca-Cola o que você está bebendo?

Lucas me encarava com atenção, e certamente levou a sério o que eu estava di­zendo. Olhou para o meu dedo em seu peito e sorriu. Seu sorriso me dizia que também acreditava em uma forma outra de ver a realidade, apesar da sedução apresentada pela experiência cotidiana dos sentidos. Bebel sacou na hora. Olhou para o suco de laranja e fez cara de nojo. Voltou-se para mim, com a face ainda contorcida, e disse:

— Vou devolver esse suco, “paps”; está cheio de “bits e bytes”!

A possibilidade de analogias infinitas e criativas com o mundo que nos rodeia me pareceu fascinante desde o princípio. Entendi que o mundo, assim como em Ma­trix, é sustentado por uma arquitetura invisível, criada por nós mesmos, para nos fixar ao core system da sociedade, e consolidar os valores fundamentais sobre os quais nossa vida social se assenta. Somos tão somente seres guiados por forças incorpóreas e poderosas sem que nos apercebamos disso. Agimos socialmente tal qual marionetes, sustentadas por finos arames invisíveis ao olho desarmado. Ime­diatamente, inseri a obstetrícia contemporânea nesse cenário, e sobre essa ideia tracei os inevitáveis paralelos com o trabalho de Robbie E. Davis-Floyd, que incri­velmente não assistira Matrix.

“O que quer a Matrix?”, perguntaria em “A Pílula Vermelha” o articulista Read Mer­cer Schuchardt. “Ela quer manter a nós, humanos, escravizados pelas nossas ilu­sões, a principal das quais é a de que tecnologia não nos escraviza, e sim nos liberta.”

Percebi a existência de uma ultraestrutura que governa o atendimento às mulhe­res gestantes e que pretende conformá-las com o mundo como foi construído, para que obedeçam ao sistema sem contestá-lo. A gestação, com sua natural fra­gilidade, é o momento ideal para determinar a posição específica da mulher na sociedade, assim como ensiná-la (doutriná-la) sobre a forma como seu filho deve ser inserido na mesma. Apesar da presença de absurdos incontestes, equívocos inaceitáveis e crenças insustentáveis, a fé no sistema, e nos seus condutores, deve persistir. Olivier Clerc, pensador francês contemporâneo, alinha de forma muito curiosa a forma da medicina atual lidar com a realidade e suas interpreta­ções, pareando-a com a religião e considerando-a a sucedânea desta no imaginá­rio social, no qual a “verdade” pode ser buscada através dos “clérigos modernos”, que parecem ter trocado a batina pelo jaleco. Diz-se de Santo Agostinho, padre dos padres, a frase “Credo quia absurdum” (creio por ser absurdo), e nisso colo­cava a força de sua fé. Parece que dos médicos solicita-se o mesmo tipo de vin­culação poderosa e pré-racional a um modelo religioso e mítico, porque essa liga­ção é fundamental para a manutenção do sistema.

No que tange à obstetrícia e ao nascimento humano, hoje em dia o sistema mito­lógico, etiocêntrico, iatrocêntrico e hospitalocêntrico da medicina ocidental nos pede que acreditemos que as mulheres são incompetentes para gerar e parir seus filhos, mesmo que nos demonstrem diuturnamente sua capacidade e talento. A epidemia de cesarianas e, modernamente, as terapias de reposição hormonal, a ideologia da ablação menstrual e a proliferação de clínicas de fertilização artificial são demonstrações claras de uma visão específica da sociedade sobre o feminino e a mulher. Essas manifestações e fenômenos sociais ganham sentido contempo­raneamente porque nos levam diretamente ao âmago do sistema de valores de nossa sociedade, que se ergue em nome do patriarcado e do capitalismo, através de um modelo cartesiano de percepção da realidade. No sistema patriarcal, não há lugar para mulheres poderosas e livres. Elas devem acreditar — como os ha­bitantes da Matrix — que o lugar onde estão (o sistema de valores que as consi­dera subcidadãs) é o melhor para elas. Esse modelo é o cimento básico que nos une. Temos medo de perder o controle sobre tudo o que construímos enquanto humanidade. Uma sociedade baseada na igualdade nos amedronta.

Em um mundo que dissemina a inferioridade básica das mulheres, é necessário que elas mesmas sejam convencidas dessa realidade, assim como é necessário que o pobre se convença de que sua pobreza é obra do destino ou de sua etnia, para que o mesmo não confronte o sistema distribuidor de riquezas. Toda a cons­trução da obstetrícia contemporânea se assenta sobre a crença básica da defecti­vidade essencial das mulheres porque, baseada nesse modelo, a medicina obsté­trica poderia construir as ferramentas e tecnologias adequadas para consertar esta “máquina”, agora entendida como equivocada e defeituosa, como bem nos revelou Robbie Davis-Floyd. Mas essa visão sobre o parto não se estabelece em um vácuo conceitual. Outros acontecimentos exclusivamente femininos como a menstruação — chamada por alguns de “sangria inútil” — e a menopausa são exemplos claros de eventos fisiológicos tratados pela ciência médica como patolo­gias. Minha pergunta aos colegas na época era: que evento fisiológico masculino merece um tratamento pela medicina contemporânea?

Recebia apenas sorrisos como respostas. A verdade é que o homem não neces­sita ser tratado em sua normalidade funcional, porque ele é o espelho de Deus. Ele traz consigo a perfeição Divina in essentia. O contrário acontece com a mu­lher. Culpada, entre outros crimes, pelo “pecado original”, foi punida pelo Senhor com a pena dos partos dolorosos e do sangramento mensal. Mulheres são a falha, o desajuste e o equívoco da criação. Henci Goer, educadora perinatal americana e ativista do CIMS – Coalizão para a Melhoria dos Serviços de Maternidade fala que a medicina trata como disfuncional tudo aquilo que foge ao padrão. O parto foge dos padrões da normalidade porque não ocorre nos homens.

Levando mais adiante nossa ideia, mais do que acreditar na sua defectividade, faz-se mister que as próprias mulheres disseminem essa crença. Iniciando esse processo, é fundamental que elas sejam doutrinadas desde o berço com a ideia de que uma mulher tem uma incompetência básica inata, que faz com que qual­quer uma de suas decisões tenha que passar, em última instância, pela ordem do masculino. O parto, momento apical da feminilidade, é o momento ideal para que essas crenças sejam reforçadas e disseminadas. Ali podemos encontrar todos os valores sociais profundos encenados de forma sutil, mas poderosa. A natural abertura sensorial determinada pelo evento nos propicia a possibilidade de instruir as mulheres e seus filhos nas posições específicas que desejamos que ocupem na estrutura social. Por essa razão, o estudo da simbologia representada no nas­cimento nos leva ao cerne dos valores mais profundos que estruturam nossa civili­zação.

Olhar para esse cenário de fora da Matrix é angustiante. Uma tortura. Em Matrix, diante da verdade revelada a Neo por Morpheus, este inicialmente negou. Depois vomitou. Desperto do sono tecnocrático, não queria acreditar no que via. Não su­portou a confrontação da imagem que nutria da humanidade com a dura realidade que seu libertador lhe apresentou. Teve náusea, fruto da impotência diante de um sistema muito maior do que ele próprio. Sentiu-se fraco e desesperançado.

As pessoas que se defrontam com essa nova forma de encarar a realidade na medicina (assim como em outras áreas do conhecimento) acabam sofrendo o mesmo processo pelo qual Neo (de “novo”, mas também um anagrama de “one”, o “um”, ou mesmo “éon”, energia emanada de um ser supremo) passou ao ser res­gatado da fantasia da Matrix. Dor, sofrimento, negação, angústia, tristeza, re­morso, vergonha. Descobrem também que é necessário passar por um ritual de despojamento das falsas certezas e do orgulho rastejante para, assim renovadas, serem verdadeiramente leais com sua própria existência. Lembram que nosso he­rói fica nu ao ser desplugado? Parece mesmo a nudez de São Francisco de Assis no filme Irmão Sol, Irmã Lua, quando este abre mão de seus valores — dinheiro, roupas, crenças — para adentrar uma vida de desapego aos valores mundanos.

Não existem orgulhosos no céu.

A leitura do artigo de Robbie, que se transformou em um maravilhoso capítulo do seu livro Birth as an American Rite of Passage, me deu a exata dimensão de mi­nha arrogância e da minha estupidez, mas ao mesmo tempo me deu a esperança de que apenas através do reconhecimento de nossas próprias fragilidades é que podemos nos fortalecer. “Toda a vitória se ergue dos escombros de uma derrota”, como sempre me dizia Max. Toda relação pessoal se instaura sobre um fracasso egoico. Toda esperança se cria quando reconhecemos nossas fraquezas. Neo percebeu sua vocação libertária ao se defrontar com sua infinita pequenez e insig­nificância, mas para isso foi necessário despertar no “campo de cultivo”, as plan­tações em que a humanidade era usada como “energia barata” pelas máquinas.

Matrix está aí fora, criando nas mulheres a ideia de que, se elas se submeterem aos ditames que “sempre existiram” e que “incontestavelmente são os verdadei­ros” (em outras palavras, a “realidade expressa”, o roteiro que se aplica sobre as marcas do real), elas estarão seguras para todo o sempre. A Matrix quer fazer acreditar que sem as máquinas (tecnologia/masculino/instituição) nenhuma mulher pode arcar com suas aptidões biológicas. A Matrix não admite que o poder seja repartido ou que a fraternidade seja um modelo factível de relação entre as pes­soas. A Matrix nos diz que a estrutura básica deste mundo não pode ser mudada, sob pena de que esse mesmo mundo venha a ruir.

Ao acordar no mundo real, Neo foi avisado por Morpheus de que a dor que sentia nos olhos se devia ao fato de que nunca anteriormente havia enxergado. Ao ne­garmos a oportunidade de vislumbrar a dura realidade de um sistema de crenças centrado no poder dos que dominam a tecnologia, sucedânea contemporânea da religião, ficamos também cegos às verdades outras que surgem da própria experi­ência feminina com o nascimento. Disse-lhe também que pessoas mais velhas — e talvez aqui “velho” não esteja necessariamente ligado à idade cronológica — dificilmente eram libertadas da Matrix, porque o resultado era invariavelmente ruim.

Algumas crenças ficam tão impregnadas que não esvaecem jamais. Neo, em Ma­trix, escondia seus programas piratas em um livro que retirou da estante. Nesse livro, além de vários discos, havia um maço de notas, mostrando um aspecto mer­cantilista do personagem; era, provavelmente, o combustível para que ele pu­desse subsistir na Matrix. O nome desse livro é Simulacra and Simulation, de Jean Baudrillard. Nele Baudrillard apresenta as teses fundamentais do pós-moder­nismo. A ideia básica é de que o mundo real não mais existe, permanecendo entre nós apenas o seu simulacro. Após a criação da linguagem, o “mundo real” deixou de ser possível, como nos ensinou Lacan, sobrevivendo apenas a sua versão, construída por nós. O parto real não mais existe, apenas a variante que criamos dele, construída pela medicina ocidental contemporânea.

Remontando-nos a outro filme, O Sentido da Vida, no capítulo “O Milagre do Nas­cimento”, os comediantes ingleses do Monty Python nos mostram uma cena de nascimento hospitalar contemporâneo, em que aparece como estrela principal não a mulher parindo, mas a máquina que faz “ping”. Indagados pela angustiada paci­ente do que se tratava tal máquina, explicam, orgulhosos, que essa tecnologia era a que “poderia dizer se o bebê ainda estava vivo”. No caso, era a tecnologia quem ditava as percepções maternas, como na famosa imagem apresentada por Robbie em uma de suas palestras, na qual uma mulher observa o monitor fetal acredi­tando que os batimentos cardíacos que ela escuta são verdadeiramente produzi­dos pela máquina, e não pelo seu bebê. A verdade subjugada pela sua interpreta­ção.

O Dr. Marsden Wagner, da OMS e ativista da humanização do nascimento (que para a minha trajetória funcionou como Morpheus para Neo), costuma contar a história de que, falando para médicos em grandes audiências, solicitava: “Ergam o braço quem dentre vocês já acompanhou um parto domiciliar”. A reação era inva­riavelmente a mesma: em uma plateia de 400 médicos, nenhuma mão se erguia. Aqui aparece a face pós-moderna mais dolorosa da medicina: perdemos total­mente o contato com a realidade do nascimento. Perdemos seu odor, seu clima, sua temperatura e gosto. Nós, médicos, só conhecemos a sua representação, seu simulacro, sua imagem refletida na parede da tecnocracia. Continuando o raciocí­nio do articulista Dino Felluga, no seu artigo Matrix: Paradigma do Pós-Moder­nismo ou pretensão intelectual?, “fizemos um roteiro tão assemelhado com a ver­dade que aquele se justapôs a esta. Hoje em dia, a realidade é que se desfaz por entre as linhas riscadas do mapa”. Mentimos o parto, falseando a natureza.

Minha mais agradável fantasia é imaginar The Farm, no Tennessee, a comuni­dade pós-hippie onde trabalha e mora a parteira Ina May Gaskin, como a Zion de verdade, onde o nascimento pode ser tratado despido das múltiplas capas que o aprisionam no mundo tecnológico. Nesse “laboratório” de afeto e sexualidade apli­cada ao nascimento, já ocorreram mais de 2000 nascimentos desde os anos 70, e a taxa de intervenção é baixíssima (índice de cesarianas de 1,4%), com resultados maternos e neonatais superiores aos melhores centros tecnológicos do mundo. Por que a obstetrícia contemporânea desvia seu olhar desse tipo de realidade? Por mais que continuemos em uma realidade artificial criada pela cultura, como disse Morpheus, “um mundo que foi colocado em frente aos seus olhos para cegá-lo da verdade”, o mundo real continua existindo como “farpa na sua mente que o faz enlouquecer”, demonstrando, através da inquietude, da indignação surda e da inconformidade, a possibilidade de questionar as ideologias dominantes. A sexua­lidade viva que emana de uma mulher parindo, ou a ideia de uma “Xanadu” pós-moderna, em que o parto poderia ser vivido como um processo de empodera­mento feminino e em estado de graça, funcionam como as mais doloridas farpas com que convivo.

Por outro lado, quais as estratégias de mudança no modelo vigente? Como con­vencer os médicos a modificar suas condutas, direcionando-os para uma postura profissional embasada em evidências e centrada nas necessidades de suas paci­entes? Além disso, como se comporta um sistema que se ergue sobre um modelo cartesiano, positivista, capitalista e patriarcal e que coloca um profissional, invaria­velmente mal pago e pressionado por resultados, como seu “ponta de lança”? Tentemos fazer esse médico mudar sua conduta profissional, mostrando que suas atitudes médicas, mesmo que aceitas por seus pares, arriscam a vida de suas pa­cientes e bebês, e ele lhe dirá que, no atual contexto médico e jurídico, apenas os que defendem o parto humanizado e a medicina baseada em evidências é que são condenados.

A realidade do dia a dia nos demonstra que os médicos são também vítimas desse paradigma, criado por todos nós. Nesse modelo, baseado no medo ances­tral da confrontação com o desconhecido, somos levados a criar sistemas de crenças e rituais que nos oferecem a ilusória ideia de controle sobre a natureza. Sobre essas crenças, passamos um fino verniz de intelecto, para que elas fiquem justificadas perante nossa visão racionalista, como nos fala Olivier Clerk. Médicos confrontados com o nascimento humano sentem medo porque esse evento foge ao seu controle, tal qual a erupção de um vulcão desobedece nossas vontades. A forma ritualística de realizar procedimentos obstétricos padronizados produz um senso de ordem cultural que se impõe sobre o caos da natureza, o que nos produz alívio, assim nos falava Robbie Davis-Floyd em Birth as an American Rite of Pas­sage.

Nosso sistema de saúde é completamente aderido à Matrix. Somos governados por um modelo de crenças tecnológico, naquilo que se chama modernamente de “infotecnocracia”, que é a “ideologia que coloca em posição de poder aqueles que controlam a tecnologia e a informação” conforme a definição do antropólogo ame­ricano Peter Reynolds. Ela se comporta como o “sistema operacional” da Matrix contemporânea ocidental. Basta olhar ao redor e perceber isso no nosso quotidi­ano. Mesmo que a biblioteca Cochrane e a OMS despejem toneladas de informa­ção a respeito da forma segura — e barata — de tratar as mulheres, grávidas e puérperas, continuamos atrelados ao sistema mitológico em que fomos inseridos, porque o modelo obedece às premissas básicas desse sistema de crenças. É o que chamaríamos de “mapa” ou “roteiro” do parto, o que Baudrillard chama de “segunda ordem da simulação”, em que o simulacro mascara a realidade. O parto tecnocrático como o conhecemos é uma alegoria do que é em verdade, e só a confrontação com o fenômeno na natureza é que poderia nos livrar do engodo da simulação.

Muitos anos depois, Madalena me ofereceria essa confrontação, permitindo-me a possibilidade de ver outra realidade. Usando a metáfora de Marsden Wagner em Fish Can’t See Water, a experiência com o parto desmedicalizado, fora do con­texto da tecnocracia, seria o salto para além da superfície do oceano, que permiti­ria ao peixe perceber a água em que esteve sempre envolvido. “Fora da infotecnocracia não há salvação”, diz o apologista da tecnologia aplicada ao nascimento humano (e que, obviamente, lucra com ela). Não conseguimos, a não ser com uma quantidade enorme de esforço e sofrimento, nos desvencilhar disso, porque os que se atrevem a sair da Matrix tecnocrática são vistos como he­réticos e perigosos. Em grego, “hairetikós” significa “aquele que escolhe”. Ter a possibilidade libertária de escolher nos torna hereges e, portanto, suscetíveis de perseguições. Curioso, apesar de trágico, é perceber que frequentemente, como Cristo ou Neo, os hereges são apedrejados exatamente por aqueles a quem ten­tam libertar!

“Tudo se resume a escolhas”, disse Neo ao Arquiteto. Escolher. Decidir seu des­tino. Fazer caminhos com suas próprias pernas. Nada mais revolucionário, peri­goso e… herético. Apenas para citar uma ritualística ainda firmemente incorporada à prática médica, temos a episiotomia rotineira realizada nos hospitais de nosso país. Nessa ques­tão específica, o bem-estar ou segurança da paciente não é o fator que mais se considera ao se traçarem protocolos. Se fosse assim, bastaria ler artigos, estudar prós e contras, e tudo se resolveria. Convenientemente, não faríamos uma cirurgia mutilatória que nunca conseguiu provar sua validade como procedimento de ro­tina. Dessa forma, a episiotomia seria realizada de forma ética e em um número muito reduzido de casos.

Não é o que acontece. Diante das evidências contra a sua realização de rotina, que se acumulam há mais de duas décadas, é muito difícil entender porque essa cirurgia é feita em até 95% dos partos no meu país, quando deveria ser feita em menos de 10%. Sem uma explicação de caráter médico, e não caindo na ingênua armadilha do “hábito”, é fundamental entender em que espaço de discussão — técnico, sociológico, psicológico, antropológico — ela pode ser inserida. Robbie, mais uma vez, mostrou-nos o caminho para a compreensão dos rituais que se de­senvolvem nos ambientes hospitalares em se tratando do nascimento humano. Existem inúmeros fatores que nos impulsionam a realizar procedimentos médicos: o mais poderoso de todos é a ritualística. É importante salientar que os procedi­mentos ritualísticos podem ser (e frequentemente o são) ao mesmo tempo simbó­licos e operacionais. Isso quer dizer que o fato de uma episiotomia ter uma expli­cação médica (mesmo que falsa) como proteger a vagina de lacerações e fragi­lidades do assoalho pélvico — não impede que ela seja realizada com um pode­roso conteúdo simbólico.

Fazemos episiotomias ritualisticamente. Também vestimos branco, usamos um jargão hermético, fazemos tricotomias e enteroclismas de forma ritual. O ritual existe no comportamento humano para conformar a realidade a um padrão racio­nal e fenomenológico previamente reconhecido. Realizamos isso no nosso dia a dia, e fazemos isso desde que o mundo é mundo, e desde que temos medo do caótico e do incerto. Essa é a razão básica pela qual lançamos mão de rituais sempre que nos deparamos com a incerteza dos fenômenos naturais. Todos estes são fenômenos dominados por uma instância superior à nossa cons­ciência, mesmo que, nos dias atuais, já tenhamos desvendado alguns segredos que estavam escondidos da nossa razão. Ainda vemos a natureza com medo e assombro. Mesmo assim, a essência desses acontecimentos continua submersa em um oceano de mistérios. Para fugir do pânico que nos assola ao olhar para a face lívida do desconhecido, criamos rituais, que tentam fazer com que esses eventos se ajustem aos nossos padrões de compreensão racional. Assim sendo, acreditamos sinceramente que o sacrifício dos carneiros poderia satisfazer a sede de vingança das tormentas e pensamos que rezar uma “Ave Maria” exatas 75 ve­zes vai fazer nosso time fazer um gol nos últimos cinco minutos da partida.

Da mesma maneira com que afugentamos nosso medo através do recurso da ritu­alística, aplicamos esse fingimento (inconsciente) na nossa arte de curar. Quando falamos de episiotomia, e da complexa ritualística hospitalar, é impossível não entender esses eventos como algo que faça parte de uma grande engrenagem, que visa a perpetuar um sistema de crenças e impedir que outras formas de com­preensão sejam estimuladas. Como visto acima, episiotomias, enemas, afasta­mento da família, roupas de CO, etc. são procedimentos que visam a nos trazer a ilusória sensação de controle sobre os fenômenos da natureza, e a ritualística aplicada tem a intenção de colocar em posição de destaque os profissionais que detêm o poder da técnica e da informação. Essas condutas automáticas e irrefleti­das ilusoriamente parecem modificar o rumo caótico (porque fora do nosso con­trole) do nascimento. Mesmo que as pesquisas demonstrem que não existe liga­ção alguma entre episiotomia e melhora das condições fetais e/ou maternas, a prática médica contemporânea a perpetua de forma ritual, mística, repetitiva e pa­dronizada, e com conteúdo simbólico subjacente. Nada poderia se encaixar me­lhor no conceito de rito.

Parece que a evidência científica, por si só, não produz quase nenhuma modifica­ção importante no nosso comportamento clínico. Esse foi o ponto de partida para a minha inquietude em relação à mitologia e à ritualística em obstetrícia. Percebi claramente que existem fatores muito mais poderosos para o controle dos proce­dimentos médicos do que aquilo que a racionalidade científica nos pode trazer. O ritual é um sistema pré-racional, portanto ligado ao desejo, e por essa razão é tão poderoso e pleno de vigor, mesmo em uma civilização pretensamente “racional”. Por outro lado, é fundamental que tenhamos em mente que os rituais não são es­colhidos aleatoriamente. Sua criação pressupõe a valorização e a perpetuação de valores profundos e ancestrais na nossa cultura.

O médico mantém e reproduz um sistema de valores que o sustenta como figura preponderante na sociedade e que cultiva os valores básicos de uma cultura tec­nocrática, mitológica, consumista, patriarcal e individualista. Médicos também são guardiões de um sistema de crenças que sustenta o mundo em que vivemos. A ritualística envolvida no parto serve aos interesses profundos dos profissionais da medicina, porque cria a ideia de uma necessidade que só pode ser sanada por quem detém um específico saber. Assim empoderados, os médicos tentam de to­das as formas manter uma situação em que se estabeleça a indissolubilidade en­tre o parto e essa tecnologia, por eles dominada. Agem inconscientemente assim, assegurando sua posição e importância social enquanto mantêm o sistema que os sustenta. O parto, que deveria ser um processo de profundo empoderamento fe­minino, acaba se tornando, na maioria das vezes, em um processo de fortaleci­mento dos médicos, das instituições e dos valores tradicionais, mantendo a mulher e o feminino em uma posição inferior e subalterna.

A mulher, relegada a uma posição de passividade e alienação, acaba sofrendo mais tarde, muitas vezes de forma obscura e inconsciente, o resultado dessas in­terferências, através de múltiplas formas: depressões pós-parto, morbidade au­mentada pelas ritualísticas excessivas (doenças, mortes, limitações), mágoas di­fusas, dificuldades na sexualidade, etc. Além disso, enquanto entendermos o con­trole da tecnologia como o zênite do proceder médico, estaremos hipervalorizando no profissional detentor desse poder/saber apenas uma qualidade específica, co­locando em um patamar secundário aquilo que é a alma do ofício médico, qual seja, o contato e o vínculo com os pacientes. Insistentemente, escutamos o atabaque da mídia insuflando em todos nós, habi­tantes da Matrix, a importância do uso de tecnologia aplicada à saúde. As notícias seguem sempre um mesmo roteiro previsível, em que as “novas tecnologias” no combate aos males são sempre as grandes heroínas, mesmo que o impacto des­sas descobertas no grande cenário da saúde mundial seja normalmente pífio. As­sim, ocorreu com a monitorização eletrônica fetal, as ultrassonografias e mesmo a própria internação hospitalar, que nunca comprovou ser superior ao parto domici­liar para as pacientes de baixo risco. Apesar de todas as confirmações científicas dessas realidades, o uso sem limite da tecnologia continua associado à questão da segurança.

“Segurança é a máscara que encobre uma verdade que subjaz: a questão do po­der”, já nos alertava Robbie Davis-Floyd. Enquanto não aplicarmos nosso criti­cismo mais intenso para modificar a forma como enxergamos o nascimento, va­mos continuar a observar o parto de uma criança como algo “feito” pelas institui­ções e corporações, e em seu próprio benefício, em vez de vermos o nascimento humano na graça e magnitude que ele contém. Continuaremos acreditando que a tecnologia desmedida pode propiciar segurança, quando ocorre exatamente o contrário. Hoje em dia, não existe muita dúvida a respeito da necessidade de cui­dados com o nascimento, e poucos se aventuram a defender a completa desas­sistência ao parto. Entretanto, a tecnologia aplicada ao parto apresenta resultados positivos até determinado ponto; a partir daí, o acréscimo de tecnologia faz ape­nas crescerem estratosfericamente os custos e aumentar a morbi-mortalidade materna e neonatal, segundo inúmeros estudos, incluindo aí o da Dra Daphne Rattner. Isso acontece tipicamente com os Estados Unidos, que aplicam esse mo­delo tecnocrático à saúde como nenhum outro país e amargam péssimos resulta­dos de saúde perinatal.

Em uma visão pessimista, misturando George Orwell com Jean Baudrillard, em um futuro possível as mulheres já não parirão seus filhos: eles serão produzidos nas chocadeiras imensas da Matrix. Lá se configurará o apogeu das tecnologias de separação, cortando definitivamente a ligação visceral de mães e filhos, já apregoada por alguns arautos dos novos tempos. Será a “Quarta Ordem do Si­mulacro” de Baudrillard, em que a simulação se torna absolutamente despregada da realidade, não guardando com ela nenhuma relação residual. A pergunta que não queria calar em minhas angustiantes divagações — como Neo, magnetizado pela palavra “Matrix” na tela do seu computador — era: por que é preciso “consertar” mulheres que estão tendo seus filhos? Seriam estes proce­dimentos ritualísticos, realizados pelos médicos nos centros obstétricos, uma es­pécie de batismo, atitudes carregadas de simbolismo que visam a conformar os indivíduos a uma determinada função social? Serei eu um “tecnobispo” a batizar todas as mulheres para adentrarem o mundo da maternidade?”

Depois de algum tempo praticando a obstetrícia, compreendi que jamais realizara qualquer dos inúmeros procedimentos ritualísticos hospitalares também chamados de “rotinas”, por serem comprovadamente necessários, ou porque acreditava nos seus benefícios. Jamais havia embasado essas condutas em evidências claras de sua adequação. Agia tal qual um autômato, governado externamente por um sis­tema invisível, e por isso mesmo muito maior e poderoso. Esse comportamento estereotipado e previsível não era sequer culpa do meu pobre professor de obste­trícia. Ele também estava adormecido, aquecido e nutrido pelo sangue que vinha do coração da Matrix, e só repetira para mim o que lhe fora ensinado. Estava à mercê do sistema, e seus músculos estavam atrofiados demais para que pudesse se movimentar. Eu agia daquela forma, afastando, invadindo, cortando, costu­rando e separando, porque assim a Matrix me dizia para agir; era levado a acre­ditar que as mulheres jamais poderiam parir (ou adentrar a maturidade social) sem que um homem (ou alguém representando o patriarcado) a autorizasse, através das “marcas” no corpo e na alma, estabelecendo um triste paralelo com o simbo­lismo da clitoridectomia, em outra cultura igualmente patriarcal e violenta.

Em Matrix, o filme, estamos todos representados em muitos dos personagens, basta decidir em que parte do filme. Podemos ser o alienado, que nada desconfia das forças poderosas que nos fazem acreditar na tecnologia como uma deusa to­tipotencial, que “enfim vai nos redimir” da nossa impureza e imperfeição. Podemos ser como as pessoas que vão para o trabalho e sentem que existe al­guma coisa estranha no ar, mas não sabem o quê, porque não pararam para pen­sar suficientemente no fato de existirem hospitais com 80% de cesarianas ou que os 5% mais ricos da população do país detêm 50% da sua riqueza. Podemos ser também como o Neo “pobre-coitado”, que vomita, chora, sofre ao ver como o mundo (interno e externo) não é exatamente como pensava ou fanta­siava. Somos muito mais imperfeitos e incompletos do que nossa infinita condes­cendência nos permite enxergar.

Por outro lado, podemos ser o Neo que percebeu que esse mundo feio é o único de verdade que temos, e que é na realidade dolorosa — e só ali — que as modifi­cações podem se processar. Esse Neo que enfrenta os inimigos — internos e ex­ternos — e que percebeu que a luta contra a opressão e a injustiça é o único des­tino daqueles que tiveram a oportunidade de enxergar mais além. Mais cedo ou mais tarde, a vida dentro da Matrix se torna insuportável, pois é da natureza hu­mana o destino de expandir-se. Liberdade é a nossa meta última. Um mundo em que prevaleça a dignidade, o respeito, a cidadania e em que as mulheres sejam vistas com igualdade, princi­palmente no momento mágico e sublime de terem seus filhos é nosso objetivo maior, e para isso qualquer sofrimento vale a pena.

Até mesmo a injustiça.

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Memórias do Homem de Vidro

Orelha – Prefácio – Introdução

Orelha

Ricardo Jones, MD is a physician who is both knowledgeable in evidence based – best practices and honors the wisdom of this sacred and sensitive time in a woman’s, baby’s and family’s life.  It is with this blend of wisdom and knowledge that Dr. Jones is shining a light on our current path of technocratic darkness to a new way of caring for women at this very special time in their lives.

“Memórias do Homem de Vidro”  shows us a model of physicians working in collaboration with midwives, nurses and doulas, supporting women as they reclaim the power and majesty of birth.   His strong yet gentle presence allows babies to enter the world in peace and surrounded by an environment of love and nurturing. In order to create a peaceful world, we must start by how we care for women and their babies at this sensitive and sacred time of bringing a new life into our world.

Dr. Jones in sharing his journey from doctor to healer, will encourage you to begin your own journey.   (Book Title) will have you reflect on your practices and your beliefs surrounding childbearing and transcend what is outdated and develop a new model of caring, that promotes, protects and creates peaceful births and ultimately a more peaceful world.

Debra Pascali-Bonaro, B.Ed, LCCE, CD(DONA) PCD(DONA)

Childbirth Educator, Doula Training and member of the Leadership Council Coalition for Improving Maternity Services, and the Adjunct Faculty for Continuing Education, School of Nursing, State University of New York at Stony Brook, Stony Brook, NY.

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Prefácio

Ricardo Jones é um homem com uma história para contar – uma história que começa com transparência, passa por transformação e flui para integração. Nesse maravilhoso livro, ele conta essa trajetória através das diversas narrativas dos partos que ele assistiu, e das mulheres que o ensinaram a maioria das coisas verdadeiramente importantes sobre o nascimento.

Eu conheci “Ric” – como ele se tornou conhecido no universo cibernético – no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento de 2000, em Fortaleza, onde nós – e todos os demais participantes – pudemos presenciar o nascimento de um movimento internacional de resgate do parto e nascimento. Os organizadores do Congresso esperavam ao redor de 600 congressistas, mas no fim do primeiro dia já havia 2000 inscritos. Médicos, enfermeiras-obstetras, enfermeiras, doulas, oficiais do governo, administradores de hospitais e dezenas de parteiras tradicionais se uniram em torno de uma profunda preocupação com as condições do nascimento e cuidado materno na América Latina. A alta taxa de cesarianas no Brasil foi o principal catalisador dessa conscientização geral pela necessidade de uma mudança. No congresso havia uma grande confusão sobre qual seria o real significado de “humanização do parto”. Alguns hospitais, através de seus diretores, se pronunciavam afirmando terem se “humanizado” porque agora permitiam a entrado do pai na sala do parto. Outros médicos, entretanto, insistiam que humanização deveria ser bem mais do que isso. Neste contexto, e na condição de antropóloga ligada à reprodução e ao nascimento, proferi uma palestra com a intenção de esclarecer o que a humanização do parto genuinamente é. Sabendo que a humanização só pode ser compreendida entendendo-se o que ela não é, apresentei três paradigmas internacionais do nascimento: o modelo tecnocrático, o humanístico e o holístico.

Sintetizando, o modelo tecnocrático enfatiza a separação entre corpo e mente, e estabelece a máquina como a mais adequada metáfora para o corpo humano. Esta metáfora privilegia a percepção do paciente como objeto, a alienação do médico de seu cliente e o uso intensivo de intervenções tecnológicas durante o parto. Objetiva melhorar o funcionamento ou corrigir as assim interpretadas disfunções do corpo/máquina da mulher que está parindo. No outro extremo deste espectro de conceitos, o modelo holístico define o corpo como um “campo energético” em constante interação com outros campos de energia, e insiste que intervenções no nível energético e emocional podem ser mais efetivas e muito menos danosas do que as intervenções tecnológicas. Os proponentes da Humanização do Nascimento encontram-se no terreno intermediário dessas duas correntes, definindo o corpo humano como um “organismo” e enfatizando a importância do paciente como sujeito relacional. Estes profissionais supervalorizam a conexão e o afeto entre médico e paciente como elementos essenciais de qualquer tipo de cuidado médico, incluindo-se aí o nascimento. Os Humanistas fazem, sim, intervenções tecnológicas, mas tentam minimizar seus efeitos potencialmente alienantes com amor, tato, carinho e compaixão, mantendo sempre uma atitude de respeito pela individualidade, desejos, vontades e escolhas de seus pacientes. (Para uma descrição e análise completas desses paradigmas ver: Davis-Floyd and St. John 1998; Davis-Floyd 2001).

OS MODELOS TECNOCRÁTICO, HOLÍSTICO E HUMANÍSTICO EM MEDICINA:

O Modelo Tecnocrático de Medicina

  1. Separação mente/corpo;
  2. O corpo é visto como uma máquina;
  3. O paciente como um objeto;
  4. Alienação entre médico e paciente;
  5. Diagnose e tratamento de fora para dentro (curando doenças, reparando disfunções);
  6. Organização hierárquica e padronização de atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes ao médico, não ao paciente;
  8. Supervalorização da ciência e da tecnologia;
  9. Intervenção agressiva com ênfase em resultado a curto-prazo;
  10. A morte é encarada como uma derrota;
  11. Um sistema dirigido pelo lucro;
  12. Intolerância com outras modalidades;

Princípio básico subjacente: separação;
Tipo de pensamento: unimodal, cerebral esquerdo, linear.

O Modelo Humanístico (Biopsicosocial) de Medicina

  1. Mente e corpo como uma unidade;
  2. O corpo como organismo;
  3. O paciente como sujeito relacional;
  4. Conexão e afetividade entre profissional e paciente;
  5. Diagnóstico e tratamento de fora para dentro e de dentro para fora;
  6. Equilíbrio entre as necessidades da instituição e as do indivíduo;
  7. Informação, tomada de decisões e responsabilidade compartilhadas entre profissional e cliente;
  8. Ciência e tecnologia contrabalançadas com humanismo;
  9. Focalização na prevenção das doenças;
  10. Morte como um resultado aceitável;
  11. Cuidado compassivo;
  12. Mente aberta diante de paradigmas alternativos de tratamento.

Princípio Básico Subjacente: Equilíbrio e Conexão
Tipo de pensamento: Bimodal

O Modelo Holístico de Medicina

  1. Corpo, mente e espírito como uma unidade;
  2. O corpo é um sistema de energia ligado com outros sistemas de energia;
  3. Cura a pessoa “inteira”, no contexto de sua vida como um todo;
  4. Médico e paciente como uma unidade essencial;
  5. Diagnose e cura de dentro pra fora;
  6. Estrutura organizacional em rede, que facilita a individualização do atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes a cada indivíduo;
  8. A ciência e a tecnologia são colocadas a serviço do indivíduo;
  9. Uma focalização que objetiva criar e manter a saúde a longo-prazo;
  10. A morte é encarada como uma etapa de um processo;
  11. A cura é o foco principal;
  12. Admite várias modalidades da cura;

Princípio básico subjacente: conexão e integração

Tipo de pensamento: multimodal, cerebral-direito e fluído.

 O Espectro Médico

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Modelo tecnocrático >>>><<<< Modelo humanizado >>>><<<< Modelo Holístico

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Essa tabela foi retirada do livro “From Doctor to Healer: The transformative Journey” de Robbie Davis-Floyd e Gloria St.Jonh. New Brunswick NJ: Rutgers University Press, 1998.

Ao me virar para sair do pódio, quando do término de minha palestra no Congresso de Fortaleza, dei de frente com um grupo de jovens e entusiasmados obstetras que desejavam me conhecer. Diziam eles serem médicos de muitas cidades do Brasil, esforçando-se, à sua maneira, para realizar um trabalho verdadeiramente humanizado, ou até mesmo holístico. Grande parte deles sofria pelo fato de serem os únicos profissionais tentando trabalhar de uma forma diferenciada em suas comunidades. Isolados e escassos, foram aos poucos se encontrando uns aos outros e criaram uma rede nacional – a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – que eles abreviaram como REHUNA. Eles pretendiam que essa rede e sua organização se tornassem parte integrante de um grande movimento de humanização da assistência à saúde no país.

Ric era um membro entusiasta desse pequeno grupo.

Em Fortaleza nosso encontro foi breve mas, 10 meses depois, em uma conferência no Rio de Janeiro, ele me ajudou como tradutor e como “professor” sobre a realidade do nascimento no Brasil. Lá, e em outras conferências que se seguiram, tive a oportunidade de ouvir suas palestras e conhecê-lo melhor. Acabei desenvolvendo uma profunda admiração pela sua jornada transformativa, afastando-se da obstetrícia intervencionista e tecnocrática e se aproximando cada vez mais de uma abordagem verdadeiramente holística. Eu fiquei surpresa ao saber que ele atendia em um consultório de ginecologia e obstetrícia, prestava assistência como voluntário em uma clínica homeopática para a população pobre de sua cidade e realizava partos em hospitais e nas casas das suas pacientes, utilizando uma abordagem multidisciplinar e atuando em equipe.  Sua equipe consiste de um obstetra (o próprio Ric), uma enfermeira obstetra (Zeza, que é a sua esposa) e uma doula (Cristina). Muito simples e muito eficaz. Juntos eles assistem partos nas casas das pacientes e, se uma transferência para o hospital se mostra indispensável, Ric como médico fará qualquer tipo de intervenção necessária. Eu pude perceber que esse modelo simples utilizado pela equipe de Ric agregava um valor que as parteiras do meu país, os Estados Unidos, emprestam muita importância, e que denominam de “continuidade de cuidado”. Percebi na arquitetura simplificada e eficiente que adota no atendimento às gestantes de sua cidade um exemplo claro de “modelo que funciona”, e o convidei a participar do meu novo projeto de livro que se chamará “Models That Work”, que congregará experiências transculturais de sucesso na abordagem ao nascimento no mundo inteiro.

Eu fiquei igualmente impressionada pela percepção que Ric tem de seu papel na assistência aos partos. Ele considera o trabalho de parto e o parto como sendo um processo por essência da mulher. Desta forma, ele tende a ficar “fora do caminho” para permitir que a doula e a enfermeira obstetra trabalhem para apoiar a mãe enquanto o processo se desenrola. Ele está lá para auxiliar com sua experiência e conhecimento, caso se faça necessário. Entretanto, gosta de brincar dizendo que sua principal função durante o trabalho de parto é como fotógrafo. Se a mãe escolhe ter um parto hospitalar ele estará lá para dar suporte junto com a enfermeira obstetra e a doula, intervindo, se necessário, com suas habilidades técnicas; o mesmo ocorrerá se a preferência for um parto domiciliar, desde que cumpridas as rígidas regras para assistência ao parto fora do hospital. A principal diferença entre obstetras como Ric e os mais tradicionais e tecnocráticos não é relacionada às habilidades, mas sim às ideologias que determinam sua prática e que estabelecem um atendimento mais baseado em evidências científicas atualizadas. Por seu profundo estudo destas evidências Ric sabe quando as intervenções são verdadeiramente indispensáveis para salvar vidas e quando essas mesmas intervenções vão apenas interferir negativamente no processo do parto e criar complicações. Suas pacientes que utilizaram ocitocina, fórceps, ou mesmo uma cesariana podem ter certeza que essas intervenções foram necessárias e apropriadas. Muitos médicos têm medo do que pode acontecer se apenas deixarem o parto fluir naturalmente, e são treinados para intervir a todo o momento para prevenir um possível desastre. Quando eles intervêem desnecessariamente essas intervenções freqüentemente causam problemas, que acabarão sendo resolvidos, ou não, com mais intervenções. Ao invés de passar por todo esse processo muitos obstetras brasileiros decidem por uma cesariana como primeira escolha, sem maiores reflexões. Poupam desta forma tempo, energia e dinheiro, livrando-se do compromisso mais rapidamente para poder retornar aos seus consultórios e atender seus pacientes privados. Ric teve o mesmo treinamento que eles médicos tiveram, mas durante o seu período de residência teve uma epifania transformadora, a qual ele relata nesse livro. Essa experiência, e as outras que se seguiram, lhe mostrou que o que estava fazendo, como um obstetra tecnocrata, era essencialmente tirar a habilidade e o poder feminino de dar a luz.

Diante desta dura constatação primeiramente ele se viu em choque. Percebeu que sua maneira de conduzir o parto estava equivocada, mas não conseguia encontrar uma alternativa de mudança. Foi então que começou a pesquisar a literatura internacional sobre humanização do parto e a estudar a enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os efeitos negativos das intervenções mal aplicadas, assim como os efeitos positivos de uma abordagem não-intervencionista. A partir deste ponto criou o Protocolo de Atendimento Obstétrico Humanizado (PAOH) que estimula as gestantes a andar, manifestar as suas emoções, receber apoio físico e emocional de seus parceiros e da doula, ingerir líquidos durante o trabalho de parto e dar à luz em posições verticalizadas. Além disso, aboliu as intervenções rotineiras não justificadas cientificamente, como enemas, tricotomia, monitorizações eletrônicas, jejum forçado, etc. Ele acompanhou seu trabalho de mais de 15 anos através de estatísticas, realizando relatórios minuciosos de cada parto assistido, e pôde assim ver com clareza o enorme melhoramento nos resultados que essa nova abordagem humanizada estabelecia.

Não importa quão humanizado, quão competente e quão hábil seja, todo obstetra terá, em algum momento de sua carreira, de enfrentar uma morte. Esse momento veio para Ric quando sua cliente e companheira de lutas no terreno do feminino teve uma súbita embolia por líquido amniótico durante um trabalho de parto que até o momento transcorria de forma absolutamente tranqüila. Essa é uma situação que nenhum médico pode prever ou prevenir, e mesmo com todos os esforços de Ric, ambos, mãe e bebê, não resistiram. Sua paciente e amiga veio a falecer de uma infecção adquirida no hospital, quando já estava curada da embolia que a acometeu. Essa tragédia marcou a sua vida desde então, desafiando-o em todos os níveis. Eu também sei o que é ser eternamente marcado pela tragédia – três anos atrás minha filha Peyton morreu em um acidente de carro apenas quatro dias antes do seu 21º aniversário. Um dia Ric e eu estávamos discutindo a importância dessas tragédias gêmeas em nossas vidas, e percebemos que ambas ocorreram no mesmo dia, quase que no mesmo instante. Foi então que percebemos que de alguma forma estávamos ligados no esforço de transcender as tragédias que ameaçam nos destruir, para continuar no nosso esforço de melhorar o atendimento às mães e aos bebês.

Com o tempo, Ric se transformou para mim em um modelo do que pode acontecer com um médico que tem a coragem de pensar fora dos estreitos limites estabelecidos pelo seu treinamento médico e que baseia sua atitude profissional na medicina baseada em evidências científicas e no ato de ouvir e de dar poder às mães durante o parto. Eu já havia escrito um livro sobre o mesmo tipo de transformações que ocorreram nas mentes e nas práticas dos médicos americanos que tiveram a mesma coragem de abrir suas mentes e seus corações. O livro se chama “From Doctor to Healer: The Transformative Journey”.

Esse livro mágico que você está segurando em suas mãos lhe contará as histórias da jornada transformadora de Ric e de seus maravilhosos partos. Aqui você vai poder sentir os resultados magníficos que suas pacientes puderam alcançar por ele estar lá não para controlar, mas para dar apoio e poder a elas. Foi escrito com paixão e amor, e é com paixão e amor que as mulheres que ele atende podem dar à luz no lugar e da maneira de sua preferência. Se todo o obstetra oferecesse às parturientes o mesmo tipo de atendimento que Ric lhes dá não haveria mais necessidade de melhoramentos no atendimento aos nascimentos, ou mesmo de movimentos sociais para criá-los. Mas ainda não é assim que as coisas ocorrem. É minha esperança que este livro ilumine o caminho de muitos outros, para que o sonho de um nascimento essencialmente humanizado e centrado na mulher, que eu e Ric sonhamos, possa se tornar realidade.

Robbie Davis-Floyd

Pesquisadora Sênior, Departamento de Antropologia, Universidade do Texas, Austin.
Professora Associada Adjunta, Case Western Reserve University, Cleveland, Ohio.
Cleveland, Ohio, Fevereiro 2004.

Bio: Robbie Davis-Floyd PhD é uma antropóloga médica especializada na antropologia da reprodução. Como palestrante internacional, ela é autora de mais de 70 artigos e do livro Birth as an American Rite of Passage (1992); co-autora do livro From Doctor to Healer: The Transformative Journey (1998), e de The Anatomy of Ritual (ainda por ser lançado); e co-editora de oito coleções, Techno-Tots (1998); Daughters of Time: The Shifting Identities of Contemporary Midwives (um exemplar triplo especial of Medical Anthropology 20:2-3/4, 2001), and Mainstreaming Midwives: The Politics of Change (ainda por ser lançado). Sua Pesquisa em tendências globais e transformações no cuidado médico, parto, obstetrícia e no trabalho das parteiras é contínuo. Seus projetos atuais abordam mudanças em parteiras e obstetras americanos, mexicanos e brasileiros.

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Prefácio à 3a Edição

Nos últimos anos, a partir do lançamento deste livro, muitos acontecimentos mar­caram a trajetória dos movimentos de humanização do nascimento no Bra­sil e no mundo. Como poderia ser facilmente previsto, os índices de cesariana no nosso País alcançaram o ponto que Maximilian chama de “flipping point”: o momento em que a chance de realizar uma cesariana em um determinado local é a mesma que acertar a face de uma moeda que ficará para cima quando arremessada ao solo. No ano de 2012 as taxas de cesariana atingiram 52% dos nascimentos. Desde que nos erguemos sobre nos­sos membros traseiros para vislumbrar um mundo de possibilidades infi­nitas, o mecanismo complexo do parto foi a nossa mais elabo­rada estratégia. Entretanto, hoje em dia, nascer através de uma grande cirurgia abdominal é mais co­mum do que ter um filho através de um mecanismo fisioló­gico, mecânico, hor­monal e psicológico com mais de cinco milhões de anos de experimentação.

Estaremos, nesse afastamento insidioso de nossa essência humana, caminhando celeremente para uma rota de fracasso, assim como ocorreu em nossa história sempre que desmerecemos as lições que a natureza nos ofereceu?

As transformações no imaginário sempre se processam primeiramente na pa­lavra. É ela quem vai ditar a marcha dos acontecimentos. Assim como ocorreu por oca­sião do surgimento da obstetrícia contem­porânea – onde foi necessária a desvalo­riza­ção sistemática da capacidade feminina de gestar e parir com segurança – o parto imerso na cultura precisava ser depreciado para que sua concor­rente – a ce­sariana – pudesse ser tratada como a “opção prioritária” para o nascimento. As pala­vras acabam desempenhando o papel de arautos de uma nova com­preensão e tradução da realidade. O comportamento tosco das “celebridades” contemporâ­neas apenas desnuda a forma de entender o nas­cimento no mundo atual. Onde antes vicejava a hi­pocrisia – se tudo se mantiver adequado tentaremos o parto normal – e todos sabíamos que a  história terminaria em uma mesa cirúr­gica, hoje existe o cinismo das cesarianas mar­cadas sem qualquer explicação ou justi­ficativa clínica. Mais ainda, produzindo uma reversão completa de valores, tornamos o parto normal uma eventualidade a ser evitada.  Inobstante a imensa quantidade de estudos com­provando os benefícios do parto normal quando comparados à cesa­riana, o parto fisiológico passou a ser entendido como um acidente de per­curso, que pode desviar perigosamente o rumo de um acerto previamente arranjado na forma de gravi­dez→cirurgia→recuperação. Um “acesso de parto” súbito e impre­visível é uma moléstia que pode colocar em risco o percurso “natural” de uma gra­videz, impe­dindo a realiza­ção de uma cesariana que agora se instala na “lógica cyborg”. Neste mundo ciborguificado – fanta­sia ciberné­tica alucinógena de Donna Haraway em “Cyborg Manifesto”- a cesa­riana se impõe como a prótese do parto natu­ral. Mesmo que através de falácias facilmente desmontadas, as cesari­anas são vendidas como a via mais segura, mais simples, mais rápida, mais controlá­vel, me­nos dolorosa, mais ba­rata (no tempo em que se utiliza um leito para parto hos­pitalar se reali­zam cinco ou mais cesarianas) e mais eficiente. Parece ser mesmo o modelo do século XXI. O mecanismo protético que superou o processo natural; ciência superando a natureza.

Resta saber até quando as mulheres se deixarão enganar por um modelo que as mantém afastadas de qualquer decisão, alienadas e dependentes de um poder que as desconsidera. Para além das questões relacionadas à autonomia e à li­ber­dade, esse modelo contemporâneo é responsável por conservar inalteradas as taxas de mortalidade perinatal en­quanto deixa a mortalidade materna acima de qual­quer limite decente ou tole­rável. No dia em que as mulheres perceberem que nessa histó­ria elas são apenas marionetes falantes, manipuladas por interesses outros, e não pelo com­promisso de segurança e qualidade no processo de nasci­mento, talvez te­nhamos uma nova era para o nascimento.

Por outro lado, os anos que nos separam da primeira edição desse livro também foram im­portantes para a solidificação de um movimento internacional de resgate do nas­cimento como evento feminino e fisiológico. Testemunhei o surgimento de inúme­ras organizações nos últimos anos, como a Parto do Princípio (Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa), a ANDO (Associação Nacional de Doulas), os GAPPs (Grupos Apoiados pela Parto do Princípio), a HumPar (Associação Portu­guesa pela Humanização do Parto), o IPU (Instituto Perinatal del Uru­guay) e o IMBCI (International Motherbaby Childbirth Initiative), além da conso­lidação da ReHuNa como a grande organi­zação nacional em prol da humani­zação do nasci­mento. O Núcleo de Parteria Urbana da ReHuNa é um dos novos integrantes dessa rede de organizações que lutam pelo resgate do feminino e pela restituição do protagonismo do nascimento à mulher.

Outro evento especial, a criação da Casa de Parto do Realengo-RJ, foi um marco no estabelecimento de um novo paradigma na assistência ao nasci­mento neste país. Os esforços para a sua manutenção dentro dos moldes de atenção humani­zada são um capítulo fabuloso da mobilização de organizações e profissionais humanistas do Brasil. As agressões sistemáticas contra colegas que apoiam esta iniciativa, por conta de corporações que se sentem ameaça­das, surtiram o efeito contrário: produziram a coesão de profissionais de todo o Brasil (e também do exterior) no auxílio a esta iniciativa, gerando uma avalan­che de apoios, manifesta­ções de adesão e ajuda, tanto explícitas quanto públi­cas. A partir desse episódio fortaleceram-se os grupos de profissionais huma­nistas, criando-se instrumentos de proteção profissional, para garantir amparo àqueles que desejam trabalhar com respeito à fisiologia do parto, restituindo o protagonismo à mulher. O resultado dessa luta foi o incentivo a uma visão integrativa do nascimento e às condutas respaldadas pela medicina base­ada em evidências.

A criação do programa “Rede Cegonha” pelo governo federal, e a participação de pessoas com perfil humanista na elaboração de projetos em nível federal para a saúde da mulher é outro fato que só pode nos encher de esperanças. As teses, outrora “radicais” ou “irreais” propagadas por profissionais ligados à ReHuNa agora são modelos admirados e perseguidos pelos gestores da saúde feminina do Brasil. Aos poucos, o que antes era o so­nho de poucos apaixona­dos tornou-se política oficial do Ministério da Saúde. Mesmo sentindo tristeza diante do descala­bro da assistência fria, autoritária e por ve­zes violenta a que são submetidas mu­lheres no Brasil no momento sublime de trazer vida à luz, é gratificante lembrar-se dos inúmeros obstetras, enfermeiras obstetras, parteiras tradicionais, obstetrizes, doulas, epidemiologistas, pediatras, psicólo­gas, nutricionistas, fisioterapeutas e tantos outros profissionais que dedicam sua vida a oferecer qualidade, afeto e se­gurança no seu trabalho cotidiano com a humanização do parto. Não há como de­sanimar; o trabalho árduo de res­gatar a porção de humanidade que se esvai pela coisificação do nascimento precisa de profissionais apaixonados e firmes.

A verdade é que ainda muito há que fazer. Uma recente pesquisa da FIOCRUZ demonstrou que mais de 27% das parturientes deste país atendidas pelo sistema público, e 17% das mulheres do sistema privado, relatam terem sido submeti­das a algum tipo de violência durante sua estada no hospital. As práticas insti­tucionais violentas são de todos os tipos: verbais, morais e até as físicas. Esta investigação apenas deixa claro que o evento do nascimento ainda carrega os preconceitos, violências e arbitrariedades construídas pelos séculos de visão sexista e diminu­tiva da mulher. Melhorar estas condições para transformar o nascimento num evento positivo é nossa tarefa.

Existem inúmeras formas de estimular a mudança de modelo de assistência ao nascimento através de estratégias complementares e não-excludentes.  Aqui es­tão as minhas sugestões, conforme publiquei no capítulo “Team Work” do livro “Birth Models that Work”, de Robbie Davis-Floyd:

  1. Atuação Governamental: Os governos centrais devem ser os grandes esti­muladores de mudanças sistêmicas e abrangentes. Para isso é fun­da­mental que existam critérios bem definidos para a implementação de polí­ti­cas de humanização. O objetivo dessa proposta é de que não se confunda “humanização do nasci­mento” com uma proposta de cesarianas profiláti­cas, anestesia peri­dural para todas ou outras ações que não favoreçam a resti­tuição do protagonismo do nascimento à mulher. O encaminhamento por parte do governo poderia iniciar com um processo lento e gradual de des­centrali­zação das unidades obstétricas, com o estímulo à criação de Casas de Parto desmedicalizadas, um reconhecimento do parto domiciliar assis­tido e com sistemas de referência ágeis, campanhas nacionais de su­porte ao parto normal e apoio aos médicos e enfermeiras que atuam em concor­dância com os protoco­los de assistência baseados em evidências. Além disso, a humanização do cuidado à saúde de forma global deve ser esti­mulada e financiada, através de modificações arquitetônicas nos centros obstétricos dos hos­pitais (a inclusão de piscinas de parto seria um grande passo) e pelo es­tímulo constante na educação continuada dos profissionais da saúde que atendem nos hospitais públicos.
  1. Atuação do Aparelho Formador: A modificação lenta e gradual de um pa­radigma iatrocêntrico (centrado no médico), etiocêntrico (centrado na patologia) e hospitalocêntrico (centrado no hospital) por um modelo mais moderno e de melhores resultados, como o modelo de parteiras, é uma das ações que pode ser realizada em longo prazo. Não é possível mais admitir que profissionais alta­mente treinados e qualificados para atender as patolo­gias sejam desviados para a atenção ao parto normal, que é um evento fi­siológico. O modelo das parteiras tem uma relação custo/benefício melhor, além de produzir resultados superiores, o que se pode comprovar pela dife­rença entre índices de morbi-mortali­dade de países desenvolvidos da Amé­rica e Europa. Cabe às universi­dades discutir essa realidade e investir na formação de parteiras profis­sionais, afim de lentamente mudarmos para um modelo mais racional e coerente. É igualmente importante criar um currí­culo humanista nas fa­culdades de medicina, enfermagem ou obstetrícia, enfatizando os aspectos relacionais e emocionais do processo terapêutico. Por fim é fundamental uma vinculação vigorosa com a Medicina Baseada em Evidências, exa­ta­mente porque ela é capaz de colocar freios às muitas mitologias in­consis­tentes que vicejam na obstetrícia contemporânea. Os ri­tuais de em­podera­mento de profissionais e instituições que percebemos na atenção à parturi­ente frequentemente servem como potentes desempode­radores das mulhe­res e seus bebês, não oferecendo a proteção que apre­goam, além de acrescentar riscos ao processo.
  1. Atuação do Terceiro Setor (ONGs): Para que estas iniciativas te­nham su­cesso é importante que haja interlocutores eficientes desta nova men­sa­gem. Para isso será necessário fortalecer as organizações não gover­na­mentais que trabalham pela humanização do nascimento, para que sirvam de ponte de ligação entre os desejos das mulheres e as diretrizes gover­namentais. Sem esses “pontos de intensificação” os sinais isolados tornam-se frágeis e débeis, impedindo que as demandas cheguem ao seu ende­reço. O fortalecimento e a unificação destas instituições são vitais para a construção de um novo modelo centrado na mulher. A unificação dos pro­fissionais humanistas do Brasil em torno da ReHuNa é um exemplo mundi­almente reconhecido de organização em prol dos ideais de renovação do modelo obstétrico.
  1. Atuação Educativa: Esse é o capítulo mais fundamental e mais com­plexo. Não existe modificação social profunda que não passe pela alte­ração das pessoas; não ocorrerá humanização do nascimento se não for através das mulheres. As mudanças de cima para baixo têm caráter autoritário, e desta forma os resultados obtidos só poderão ser fugazes e inconstantes. As verdadeiras e profundas alterações vêm na esteira de uma nova consci­ência, e por essa razão são lentas e graduais. Não se alteram valores e mi­tos (como o mito da transcendência tecnológica) através de decretos; eles só podem ser substituído quando uma nova vi­são social estiver apta para completar as lacunas do nosso imaginário. As mulheres são as grandes responsáveis pela alteração do paradigma, e por esta razão o diálogo com os grupos feministas, de mães, de con­sumidoras, etc., assume um caráter vital para o sucesso das iniciativas.
  1. Atuação Individual: No início dos anos 90 eu trabalhava em um pe­queno hospital militar no qual atuavam três obstetras. Eu e meu colega M. éramos vivamente interessados em realizar um trabalho diferenciado, ba­seado nas evidências médicas atualizadas, no apoio ao parto normal e res­peitando o protagonismo das mulheres. O terceiro colega era um interven­cionista con­victo que não aceitava os pressupostos da humani­zação, pois acreditava firmemente na inferioridade biológica da mulher. Um dia eu ob­servei ao meu colega M. que nós dois compúnhamos 66% de todos os atendimentos do centro obstétrico e que uma modificação nos resultados obstétricos da­quele hospital dependia apenas da nossa iniciativa. Na época nossa pe­quena maternidade ostentava a vergo­nhosa cifra de 45% de cesa­rianas. Não podíamos convencer o nosso colega a trabalhar do nosso modo, pois que ele não acreditava nos valo­res que defendíamos. Decidi­mos, então, que nós dois criaríamos um protocolo de trabalho simplificado para diminuir a incidência de cesaria­nas. Ele consistia de quatro pontos:
  1. Toda indicação de cesariana precisava ser discutida com o colega,
  2. Os partos seriam preferencialmente verticais,
  3. As pacientes teriam o direito a um acompanhante de livre escolha,
  4. As condutas seriam baseadas nas evidências científicas atualizadas.

Apenas nós dois utilizamos aquele modelo, enquanto nosso colega con­ti­nuou com seu modelo pessoal de atenção ao parto. Pois com aproxi­mada­mente dois terços dos atendimentos sendo realizados neste proto­colo sim­ples, em dois meses nosso índice de cesarianas pulou de 45% para 22%. Certamente aquela pequena unidade médica militar foi, por poucos meses, a de menor incidência de cesarianas do nosso estado. A que valor chegarí­amos se tivéssemos os três médicos atuando em conjunto? Esta singela iniciativa mostrou o poder das deci­sões individuais (no caso, de uma dupla de médicos) para produzir mo­dificações significativas, mesmo que em pe­quena escala. Infelizmente como esse modelo dependia da iniciativa pes­soal (e não institucional) ela voltou à estaca zero depois da minha saída do hospital. Entretanto, os resultados animadores dessa proposta mostram que iniciativas em pequeno nível são capazes de produzir resultados. Ja­mais podemos negligenciar o poder da iniciativa pessoal, principalmente quando esta é movida pela paixão transformadora. As palavras de Marga­reth Mead continuam sendo um estímulo para aqueles que lutam contra poderes estabelecidos e estruturas monolíticas de poder: “Nunca duvide da capacidade de um pequeno grupo de dedicados cidadãos para mudar os rumos do planeta. Na verdade, eles são a única esperança de que isso possa ocorrer”.

Para finalizar, espero que os anos que se aproximam fortaleçam os movimen­tos de resgate do feminino, aproximando de uma forma definitiva os ativistas que la­butam nas áreas do parto humanizado e da amamentação. O “continuum da hu­manização” deve ser cada vez mais valorizado e respeitado, pois que a própria continuidade da nossa espécie depende da forma como entendemos o processo de reprodução. Desmerecer a complexidade e a delicadeza das forças adaptativas que criaram a estrutura física e psicológica desse ser único e revolucionário cha­mado “homem” pode ser o nosso derradeiro equívoco.

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Introdução

O sol entrava pelo vidro duplo da janela do sótão, fazendo estranhos desenhos geométricos no carpete. No quarto acanhado, distribuí meus poucos pertences sobre a cama. Livros, roupas para o frio, minha câmera fotográfica e meu indefec­tível laptop. Na rua, a neve descoloria a paisagem, enchendo de branca monoto­nia os jardins das casas. Esquilos brincavam subindo e descendo a árvore, cujos galhos espiavam minha janela. As residências sem grades me causavam o incô­modo contraponto visual com as ruas da minha própria cidade, onde vivemos en­clausurados, envoltos em barras e muros, prisioneiros de nossa desigualdade so­cial.

Apesar da tristeza pela passagem por São Paulo, onde tive uma lição de desespe­rança absolutamente desnecessária, acordei aquela manhã em Cleveland com uma maravilhosa sensação de realização. Na noite anterior, telefonei para casa, avisando de minha chegada aos Estados Unidos, e Zeza imediatamente me falou do parto de “nossa” paciente.

— Nasceu o bebê de Pramuda. Foi tudo muito bem.

Não pude conter um suspiro de alívio. Depois abri os braços, em pleno restau­rante, e gritei: “Maravilha!”. Pramuda esperava seu segundo bebê e estava com 40 semanas e cinco dias. Seu primeiro nasceu em casa, já passados cinco anos. Na­quela ocasião, estávamos eu e Zeza tomando conta do trabalho de parto. Havia sido a primeira vez em que Zeza acompanhara um parto domiciliar, e depois do nascimento do pequeno Luis ela me confessou que ficara totalmente encantada. “Nascer em casa é uma outra história”, me dizia ela.

Daquela vez, ela e Cristina deram conta do recado. Ainda emocionada, ela me contou os detalhes principais do parto. Falou do medo, da preocupação, dos cui­dados, da sensação de impotência, das orações, da fé e da paciência. Falou tam­bém dos instantes de emoção incontrolável logo após o nascimento do pequenino.

— Foi o meu rito de passagem — disse ela ao telefone.

Eu tive uma imensa sensação de orgulho e júbilo. Zeza havia cruzado sua fron­teira pessoal e havia também crescido, junto com quem auxiliara. O nascimento humano é realmente uma ferramenta das mais poderosas para o processo de transformação.

Olhei para Robbie e os amigos em torno da mesa e lhes contei a história toda. Acabei me entusiasmando e falei das dificuldades da prática obstétrica humani­zada. A conversa acabou recaindo sobre todos aqueles que, diante de uma grande descoberta, sofreram a dor de carregarem um grande fardo. Estes eram os verdadeiros “super-heróis”, que levavam seu saber através de uma longa jornada e sentiam na própria carne o sofrimento que ele produzia. Outros personagens da história da medicina mereceram nossos comentários, até que chegamos ao meu preferido: o Grande Inácio, de Budapeste.

— Como poderia ser ele culpado de algo? — perguntei eu. — Ele foi um exemplo de mártir pela causa das mulheres. Qual seu erro, se sempre perseguiu os ideais de uma medicina mais humana e mais científica?

— Ele também teve a sua culpa, Ric. Faltou-lhe a temperança, além da necessária serenidade. Acabou vítima de sua própria descoberta. Não a descreveu da melhor forma. Guardou para si a sua indignação e fez do rancor a principal causa para a perda de sua sanidade. Ele deveria ter escrito suas conclusões, desde o princípio. Deveria ter apresentado aos colegas seus documentos, suas provas e estatísticas, mesmo que estes não os considerassem. Bateu de frente contra os poderosos, mas, em vez de seduzi-los lentamente com suas ideias, optou por combatê-los. Pecou pelo silêncio ou pelo modo atabalhoado e agressivo com que expunha seus conceitos.

Robbie foi firme e dura ao me dizer isso. Queria me mostrar que mesmo os gran­des homens podem falhar, se não souberem agir ou não tiverem generosidade suficiente para transmitir seu saber. Estávamos falando de Ignaz Phillip Semmel­weiss, médico húngaro que descobriu a origem contagiosa da febre puerperal no Hospital Geral de Viena, em meados do século XIX. Nunca conseguiu saborear o sucesso de sua descoberta porque, afastado do hospital e tratado como indigno para a função de médico obstetra, voltou para a Hungria, onde morreu vítima de septicemia, a mesma enfermidade que ele tanto tentou combater em suas paci­entes. Em seus últimos anos, estava insano, triste e amargurado, talvez maltra­tado pela culpa de não ter podido auxiliar as mulheres a quem atendeu. Durante décadas, carregou solitariamente, a chave para a salvação de muitas mães re­centes que morriam nos hospitais vítimas de infecções pós-parto. Muitos anos ainda se passariam para que suas conclusões fossem respeitadas e entendidas. Os paralelos com a iatrogenia hospitalar contemporânea sempre me impressiona­ram, assim como o pesado fardo que o levou primeiramente ao ostracismo, depois ao sofrimento e à loucura. É, sem dúvida, meu maior ídolo na obstetrícia, mas Robbie me apontava as falhas humanas que até os gênios carregam.

Flashback

Vejo-me deitado no divã da pequena sala no consultório de minha analista Eliana. Minha análise se iniciou quando da minha opção aberta pela homeopatia e pelas práticas alternativas no parto. Era preciso um suporte, um amparo, uma ajuda para poder atravessar esse caminho árduo que é a troca de um paradigma mé­dico. Sem essa ajuda, minha travessia seria muito mais dolorosa. Sem essa “doula”, é provável que minha caminhada pela medicina fosse muito mais dolo­rosa.

Com os olhos pregados no teto, choro a dor da incompreensão. A agonia maior é a da solidão, a falta de interlocução; a penúria de ouvidos compreensíveis. Falo da minha indignação diante de um modelo absolutamente apartado das verdades científicas e das necessidades das mulheres, movido por uma ideologia essenci­almente misógina. Não conseguia entender porque quase ninguém entendia o que eu tinha para dizer. Eliana sorri para mim e pergunta:

— E o que você escreveu a este respeito? Acha mesmo que ficar gritando aqui essas ideias é suficiente para modificar a realidade? Acha que é correto apontar desvios sem mostrar caminhos?

Fico em silêncio e me obrigo a concordar com sua observação.

Outro flashback

Minhas pálpebras cansadas recebem o brilho ofuscante e colorido da tela do com­putador. Já são mais de 11 horas da noite, e ainda estou no meu consultório, es­crevendo mensagens para as listas de discussão de parto natural. Através das linhas cibernéticas, conto para os meus amigos de longe uma história que me co­moveu muito e que me auxiliou a entender a dinâmica espiritual, afetiva e social do nascimento. Eu me encontrava em Recife, em 2001, como consultor em huma­nização do nascimento para os médicos do CISAM, hospital situado na divisa de Recife com Olinda, que atende um dos principais bolsões de pobreza daquela ca­pital brasileira. No centro obstétrico (CO), acanhado e apinhado de pacientes, foi criada a determinação de permitir a entrada de acompanhantes junto às grávidas, porque se percebia nessa iniciativa mais do que uma maneira de tranquilizá-las: entendia-se como um direito humano inquestionável. Assim, fui levado para lá exatamente porque a direção do hospital era simpática às ideias de humanização no atendimento às gestantes.

Em uma tarde de plantão no hospital, escutei uma cantoria vinda de um dos bo­xes, onde se encontrava uma grávida acompanhada de sua mãe. Voltei minha atenção imediatamente para lá, tentando entender do que se tratava. Era um cân­tico religioso, desses que são cantados em igrejas evangélicas. Imantado pelo som, abro a cortina de plástico que separa o box do corredor e vejo uma mãe con­centrada e de olhos fechados, cantando enquanto segura a mão de sua filha. Esta contrai o rosto a cada contração, imaginando diminuir suas dores de parir. Ao me ver adentrando a intimidade do pequeno espaço, a mãe imediatamente interrompe seu canto. Envergonhada, leva a mão à boca e diz:

— Desculpe doutor. Não queria incomodar. Essa canção é um louvor a Deus e um pedido de proteção para a minha filha. Desculpe atrapalhar; apenas tentava auxi­liar minha pequena, que está sofrendo para ter seu primeiro bebê.

Olho para a menina que está deitada ao lado. Não tinha mais do que 15 anos. Sua face exprimia dor e cansaço, mas parecia colada à mão de sua mãe. Fazia com ela uma união de corpos e almas, resgatando inconscientemente uma das mais antigas tradições da humanidade, qual seja, uma mulher sendo auxiliada por sua própria mãe a parir, e assim manter a humanidade, tarefa da qual todas as mulhe­res são devedoras. A candura e a profunda beleza da cena ficaram impregnadas na minha memória. Constrangido, quase nada pude dizer.

— Desculpe, minha senhora. Por favor, continue a cantar. Eu adoraria acompa­nhá-la, mas não conheço essa música. Sua presença aqui é muito importante para a sua filha. Não interrompa seu canto por minha causa.

Fechei a cortina e saí de perto, esperando que a mãe continuasse seu cantar, e nunca mais esqueci a voz daquela mulher simples e de seu canto melodioso, nem a intimidade verdadeiramente feminina dos dedos entrelaçados de mãe e filha.

Escrevi essa mensagem na lista de discussão com lágrimas nos olhos, porque percebia que pequenas atitudes muitas vezes são fundamentais para auxiliar uma mulher que está passando pelo mais fantástico ritual de passagem que um ser humano pode atravessar. Por outro lado, quantas pessoas estariam habilitadas a compreender o significado transcendental desta cena? Recebo como resposta na lista de discussão a frase:

— Ric. Você tem algumas histórias tão bonitas. Por que não escrever um livro so­bre elas?

Mais um flashback

Estou em um estúdio de televisão de minha cidade. Fui convidado a trazer minha opinião, como ginecologista, sobre o mau humor. Queriam que eu falasse das modificações hormonais da pré-menstruação e as consequentes alterações com­portamentais e psíquicas que as mulheres experimentam nesse período. Ao meu lado e em frente às câmeras, estão escritores, diretores de cinema, psicólogos e publicitários. A conversa acaba se concentrando na dor e sua potencial capaci­dade construtiva. Resolvo extrapolar os limites impostos à minha fala como gine­cólogo e decido discorrer sobre o sofrimento através de outro viés. Trato do mau humor como a “dor da inconformidade”. Tento mostrar que as transformações do pré-mênstruo possuem valor metafórico e simbólico, e que devemos sempre estar atentos a essas mensagens. Continuo minha fala observando que a dor é a mãe de toda a genialidade. Digo que Proust, Nietsche, Dostoievski, Virginia Woolf, en­tre tantos literatos (como Roger Jones, meu irmão e notório ranzinza), eram mal humorados e que a literatura era uma forma de “exorcismo”, capaz de aliviar suas dores. Terminei dizendo que a dor é a professora mais gabaritada do nosso pla­neta e que suas lições devem ser apreendidas em um sentido construtivo, para que através de seus ensinamentos possamos dignificar nossa expiação.

Mal sabia eu quão proféticas eram essas palavras.

*   *   *

A morte trágica de V. por uma infecção causada por varicela zoster em um hospi­tal da minha cidade e os tristes fatos que se sucederam foram o estopim para a minha determinação em escrever. Era fundamental que eu deixasse minhas pala­vras a respeito do nascimento humano e suas consequências médicas, sociais, psicológicas e humanas. Não poderia me permitir incorrer no mesmo erro dos que se calaram em função da dor, da indignação, da tristeza e da injustiça.

Pensei muito nos meus filhos ao escrever este livro porque queria que eles enten­dessem que, mesmo sofrendo, ainda existem suficientes razões para continuar na caminhada e lutar pelos ideais. Eles foram minha mais constante motivação. A eles eu dedico minhas histórias, porque sei que eles serão os que continuarão a construção de uma nova humanidade depois que eu me for.

As histórias deste livro são crônicas escritas nos momentos de tristeza e solidão que passei nos últimos três anos. Fazia uso da palavra escrita como o melhor analgésico para a minha dor. Os piores momentos de desesperança e tristeza os passei grudado a uma tela de computador, trocando mensagens e ideias com os amigos do mundo inteiro. Eles foram o esteio e a mão amiga nas piores horas. Muitas das histórias aqui relatadas foram originalmente escritas em madrugadas solitárias nas listas de discussão das “amigasdoparto”, do “partonatural”, do “par­tonosso” e das “maesempoderadas”.

As crônicas e os textos aqui apresentados não obedecem necessariamente a uma ordem cronológica, e assim podem ser lidos sem uma preocupação rigorosa com continuidade. São basicamente histórias de nascimento. Trazem a visão de um obstetra humanista na sua caminhada transformativa. São também uma ótica masculina sobre um evento visceralmente feminino. Os nomes das pessoas que compõe as histórias relatadas neste livro foram trocados, em sua maioria, para resguardar a intimidade que deve sempre cercar um evento tão significativo e pessoal quanto o parto. Minha sincera intenção ao contar minha história pessoal através dessas narrativas foi traduzir uma ínfima parte do encantamento que o nascimento humano é capaz de produzir no coração de quem se permite sentir.

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A Bailarina e o Segurança

Eu ainda acredito que o grande erro, no que diz respeito ao parto e nascimento, foi torná-lo uma especialidade médica submetida à lógica da intervenção que domina a escola de medicina. Durante mais de 20 anos eu falei publicamente da minha desilusão com a prática médica obstétrica, e isso se deu principalmente por ter saído do Brasil e visto como funciona este tipo de atenção à saúde em outros países, em especial no norte da Europa. No livro da antropóloga Robbie Davis-Floyd “Birth Models that Work” existe um capítulo dedicado ao atendimento em equipe realizado por nós aqui no Brasil, mas também inúmeras outras experiências centradas no sucesso do modelo de parteria aplicado tanto em países desenvolvidos quanto em nações em desenvolvimento. Muito do que eu percebo ainda hoje como atraso na atenção se refere ao desconhecimento pelas comunidades do parto – enfermeiras, médicos, anestesistas, administradores, etc – sobre uma forma alternativa ao modelo biomédico de atenção ao parto. Nós não conhecemos outras possibilidades e, como dizia minha amiga Debra Pascali-Bonaro, doula de New Jersey, “se você não conhece suas alternativas você não tem escolha“.

Sobre o tema de conhecer um universo distinto, eu lembro o impacto que me causou a história que Marsden Wagner – neonatologista da Califórnia e Diretor do Setor de Saúde da Mulher e da Criança da Organização Mundial da Saúde – me contou durante um congresso nos Estados Unidos. No intervalo das conferências, e tomando com ele uma xícara de chá, Marsden me explicou seu grande “turning point”, ou seu “ponto sem retorno”, que ocorreu com a confrontação de realidades absolutamente opostas sobre a questão do modelo de parteria. Vou tentar retratar aqui nossa conversa, sendo o mais fiel possível às suas palavras.

“Eu estava na Suécia almoçando na casa de uma grande amiga quando, depois de terminado o almoço, sentamos na ampla varanda para tomando um chá e trocar ideias sobre as questões da assistência global ao parto e nascimento. Naquela época eu já era contratado pela OMS para tratar da saúde materna e neonatal, vivendo em Copenhague boa parte do ano. No meio da conversa, o “bip” (os mais velhos vão lembrar) de uma das mulheres presentes tocou de forma estridente. Essa senhora era uma parteira sueca que estava sendo avisada que uma de suas pacientes estava em trabalho de parto, com fortes contrações. Imediatamente sorriu e recebeu de todos os presentes os votos de que tudo ocorresse bem para o bebê que estava por chegar. Nesse momento, a anfitriã voltou-se para mim e perguntou se não gostaria de acompanhá-la à casa da paciente, onde o parto estava programado para ocorrer.

Eu disse a minha amiga que, no meu trabalho no Hospital na Califórnia, havia atendido centenas de partos, e que mais um nascimento pouco poderia acrescentar à minha experiência sobre o tema. Curiosamente, todos os presentes sorriram, como se eu tivesse contado uma história engraçada, ou uma piada. Minha amiga então insistiu: ‘É um parto domiciliar, aposto como essa experiência você não tem‘.

Ela estava certa. Apesar de muitos anos trabalhando com neonatologia eu nunca havia assistido um parto domiciliar, até porque no meu país – os Estados Unidos – esse tipo de atendimento era considerado ultrapassado, perigoso e algo que deveria ser banido da prática profissional. Para mim, naquele momento, um parto domiciliar não era mais do que um parto como qualquer outro, apenas sem os aparatos tecnológicos que possuímos no hospital. Só mais tarde eu me referiria a estes equipamentos como “máquinas estranhas, manejadas por estranhos, fazendo estranhos ruídos”. Depois da sinalização de todos os presentes, estimulando-me a ir, e após o sorriso convidativo e simpático da parteira sueca, resolvi me levantar e acompanhá-la ao atendimento.

O que posso dizer deste parto é que ele foi um divisor de águas na minha vida profissional. A ideia de que se tratava de “um parto como qualquer outro” se mostrou a mais ridícula das concepções. Em verdade eu poderia dizer que tudo foi diferente, com exceção do produto final, o bebê. Entretanto, se analisarmos com mais profundidade, até mesmo este produto acaba se tornando diferente, porque a forma como o nascimento se desenrola vai produzir imprints no bebê, tão invisíveis quanto poderosos, que determinarão inclusive a sua saúde e condição psíquica no transcorrer da vida. Pela primeira vez eu tive a oportunidade de assistir um parto em silêncio respeitoso, penumbra, suavidade e delicadeza. Nada de luzes brilhantes, nada de pessoas estranhas – recebi o convite para ficar distante da ação e só me aproximar para receber o bebê da mãe – nada de comandos, gritos, ameaças, cortes, empurrões. O pai esteve presente o tempo todo e ajudou no nascimento; a família comemorou em plena comunhão. A parteira é um capítulo à parte neste episódio. Que talento!!! Quanta delicadeza, quando conhecimento da fisiologia do parto, quanto respeito aos desejos da mulher, quanto reconhecimento das fases do parto, não apenas no que concerne às questões mecânicas, mas igualmente aquelas relacionadas aos aspectos mais sutis, espirituais e emocionais. Tudo o que ocorreu foi tratado com naturalidade, desde as explicações sucintas, o toque, os abraços, as massagens, o carinho e a vigilância atenta e silenciosa.

O episódio todo mudou radicalmente minha percepção do fenômeno. A partir dessa experiência comecei a entender o parto pelo reverso; não aquilo que podemos fazer pelas gestantes, mas tão somente o que devemos esperar que elas façam. “Parto é algo que as mulheres fazem, Ric”. Não haveria mais como entender o parto da forma antiga, aquela que recebi da escola médica, pois ela se assenta sobre uma concepção equivocada, depreciativa e diminutiva das capacidades femininas de gestar e parir com segurança. A nós cabe, tão somente, resguardar o ambiente com segurança para que ela possa liberar seu bebê da forma mais suave e segura.

Robbie Davis-Floyd fez entrevistas no início deste século com profissionais do nascimento, médicos e parteiras humanizados, que estavam atendendo partos à época. Todos eles contavam que sua adesão ao modelo humanístico de atenção ao parto havia sido despertada através de uma epifania, um evento marcante em suas vidas, o qual abriu as portas da consciência para a entrada de novas perspectivas. Marsden Wagner, da mesma forma, foi confrontado com uma experiência de caráter sensorial, afetiva e emocional, e por isso conseguiu entender o parto por um viés diferente do que havia aprendido e praticado até aquele momento. Por esta razão, ele se tornou durante todo o resto de sua vida um defensor árduo das parteiras profissionais e do modelo de parteria, centrado no trabalho dessas profissionais.

Infelizmente nos países satélites, girando na órbita da medicina americana, o médico é ainda o principal atendente de partos, num desperdício gigantesco de habilidades e talentos. A medicina, como bem o sabemos, funciona na lógica da intervenção, e colocar um médico, cuja formação é centrada na intervenção direta sobre o corpo, para atender partos, é um erro inaceitável. A prática de receber bebês milenarmente construída é focada na fisiologia, na normalidade e na suavidade dos fluxos e ritmos do parto e, ao contrário da visão médica, sua lógica é centrada no cuidado. “Médicos deveriam ser os heróis da maternidade”, já dizia o velho adágio das parteiras, agindo tão somente quando as condições se aproximassem perigosamente da rota da patologia, deixando que as ações da fisiologia do nascimento humano ficassem a cargo das parteiras, legítimas especialistas no cuidado das mulheres e seus bebês.

Manter os médicos a cargo da normalidade dos nascimentos é como colocar o segurança do Teatro de Revista para dançar, realizando de forma desajeitada as delicadas piruetas que as bailarinas desenvolvem em sua dança sensual e voluptuosa. As condições para o atendimento ao parto ultrapassam em muito as meras habilidades técnicas, cirúrgicas e farmacológicas; os conhecimentos para a atenção segura ao parto aliam-se às habilidades de ordem afetiva, emocional, psicológica e espiritual que as parteiras acumulam há milênios, desde que a primeira mulher a parir pediu a mão de sua amiga para segurar o bebê que dela se separava. Reconhecer o lugar exato de cada profissional é o que deveremos fazer neste novo milênio, para que as mulheres voltem a ter escolhas reais para o nascimento de seus filhos.

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Hereges

Acho curioso o investimento que se faz em tecnologia aplicada à gestação, o período da vida de uma mulher onde se concentram os mais intensos medos atávicos e onde se manifesta o maior temor das mulheres: não ser capaz de gerar e parir seus filhos com segurança. Agora surgem no mercado empresas sofisticadas que oferecem serviço de ultrassonografias seriadas, insinuando que este acompanhamento aumenta as chances de “ter um bebê vivo e saudável no colo” (sic). Esse tipo de serviço representa o ápice da alienação, onde se consuma o afastamento mais intenso da mãe com seu bebê. Como a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd já dizia há décadas, depois de convencermos a todos – em especial as mulheres – de que o corpo feminino é frágil, falho e incompetente, nada melhor do que “arrancar” o feto do seu ventre e colocá-lo dentro de uma máquina, onde poderá ser medido, vigiado, avaliado e cuidado por pessoas confiáveis – médicos, cientistas – afastando-o dos perigos representados pelo corpo incompetente da sua mãe.

Eu, pessoalmente, acho esse movimento na cultura absolutamente inaceitável. Ele representa a subserviência suprema da mulher à tecnocracia, guiada pelo medo construído e disseminado pela cultura que, agindo de forma oportunista, gera lucros para médicos, indústrias de equipamentos e instituições, porém sem oferecer o que explicitamente promete através de propaganda.

Em tempo: não existe nenhum estudo até hoje publicado que demonstre que ecografias seriadas de rotina melhoram resultados maternos e neonatais em gestações de risco habitual. Ou seja: trata-se de um embuste tecnológico, mas que é vendido como “o futuro”, “tecnologia aplicada”, “prevenção” e “cuidado”…

Sim, é muito difícil gerar consciência nas pessoas, explicando a elas que tais exames não diminuem os riscos de uma gestação sem que haja uma indicação clara para o seu uso. Isso ocorre porque a tecnologia assume o lugar da religião no imaginário social, a qual nos vinculamos de forma irracional porque criticar seu uso é o mesmo que questionar a razão e o conhecimento científico. Guardadas as proporções, seria como explicar para um sujeito qualquer na Idade Média que fazer uma romaria ou rezar um terço não melhoraria suas chances de sobreviver à peste negra. Para ele não rezar seria inadmissível, pela potente conexão mágica que estabelece com esse ato, da mesma forma como a gestante se sente insegura se não se submeter a várias ecografias, nem que seja para dar “uma olhadinha e ver se está tudo bem”.

Na idade das trevas se você não rezasse e fizesse penitências seria uma herege que não merece a salvação. Hoje, se você fizer apenas os exames que comprovadamente melhoram suas chances durante a gestação, você será considerada uma irresponsável e relapsa.

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Os Três Porquinhos

Quem nunca escutou durante a infância a história dos três porquinhos e suas casas de diferentes tipos? Estima-se que a primeira versão desta história infantil tenha surgido por volta dos século X e XI da nossa era. Sua autoria não é conhecida, mas sua origem é anglo-saxônica. Em 1383 foi feita uma adaptação de Os Três Porquinhos para teatro, e mais recentemente, em 1890, o conto foi popularizado depois de ter sido reescrito por Joseph Jacobs. Mas, qual o sentido último dessa história? Seria a fábula dos três porquinhos uma propaganda de materiais de construção ou uma simples leitura da história a partir dos modos de construir abrigos?

Não creio que a verdade esteja tão à superfície. A história dos três porquinhos é rica em simbolismos, e a interpretação que mais me atrai é uma que me foi contada por Robbie Davis-Floyd, antropóloga de nascimento e reprodução de Austin – Texas. Sua perspectiva nos fala dessa história multimilenar como se referindo ao processo de desenvolvimento da relação dos humanos com a natureza, na época em que houve a mais significativa revolução de nossa história, 100 séculos atrás. Não esqueçam que esta história é muito mais antiga do que a nossa memória é capaz de captar, e sua sobrevivência no “catálogo” de histórias contadas em tantas latitudes apenas nos comprova a força dos simbolismos que ela carrega.

O primeiro porquinho, aquele que constrói a casa de palha, representa nessa história os caçadores coletores, humanos primitivos que usavam a estratégia de sobrevivência mais longeva que a nossa espécie utilizou, dominante por 95% do tempo em que habitamos a Terra. Nossos ancestrais construíam casas de um material simples e frágil porque necessitavam de abrigo somente por um ou dois dias, o tempo para recuperar suas energias das longas caminhadas em busca de comida e proteção das intempéries. Como eram nômades, não havia porque criarem casas que seriam imediatamente abandonadas assim que ficassem escassas a caça e a coleta de frutos, folhas e raízes.

O segundo porquinho é o que constrói as casas de madeira, o pastoralista. Após a revolução do neolítico e ao adquirirmos a capacidade de domesticação de plantas e animais, o pastoralista (atual pecuarista) precisava de habitações sazonais, ou seja, casas de madeira que durassem por um tempo maior, o qual era determinado pelas estações do ano e pelas pastagens para alimentar seus rebanhos. A casa de madeira do segundo porquinho simboliza a morada temporária dos vaqueiros e pastores que viajavam muitos quilômetros para levar seus animais para locais distantes, mas que seriam demolidas tão logo fosse adequado voltar para casa. Pela sua alta mobilidade, os pastoralistas foram grandes impulsionadores da migração da espécie humana. Na Idade Média, Genghis Khan, já no século XIII, foi originalmente um pastor que se transformou em guerreiro porque esta atividade necessita de terras, propriedades, pastagens e, portanto, conquistas bélicas para se estabelecer. Suas conquistas levaram genes mongóis para boa parte do leste europeu.

Por último, o porquinho da casa de alvenaria representa a agricultura, o ponto principal da revolução do neolítico. Com a domesticação das espécies vegetais, e o controle da sua reprodução em benefício do homem, tornou-se mais vantajoso manter-se ao lado de sua plantação do que mover-se constantemente para colher espécies silvestres e nativas. Com a sedentarização e a fixação do homem na terra criou-se uma estrutura social absolutamente diferente da anterior, e por isso pode-se entender o surgimento da agricultura como uma verdadeira “revolução”- certamente a maior de todas em sua amplitude de consequências. Com ela veio a noção de posse, a divisão de trabalho e de poderes e o patriarcado, que cuidava das mulheres como “matrizes” e controlava a descendência. As relações econômicas estariam radicalmente modificadas para sempre através da emergência da agricultura e da criação de animais como processos econômicos, com evidentes consequências civilizatórias.

E o “Lobo Mau”, o que representa? Ora, ele é a representação das forças erráticas da natureza, contra quem o homem eternamente se digladia. É evidente que a história dos “Três Porquinhos” exalta as casas de alvenaria, mostrando que elas seriam as mais eficientes para derrotar o lobo mau. Desta forma coloca a agricultura como a mais elevada forma de relação com a Terra. Em verdade essa história tenta vender a vida “civilizada” e sedentária como sendo superior à vida total ou parcialmente nômade. Entretanto, esta opção nunca será unânime entre os civilizados, pois que todos nós, de uma forma mais ou menos intensa, nos ressentimos pela desconexão com a natureza que hoje temos, muito diferente da ligação que os modelos anteriores nos garantiam.

* Os nomes dos três porquinhos em português são Cícero, Heitor e Prático, por ordem de aparição (palha, madeira e tijolos). Já em uma versão em inglês eles são chamados pelos instrumentos que tocam “Fifer” (flautista), “Fidler” (rabeca) e …. “Practical” (prático), que não toca nenhum instrumento por usar a lógica e a razão para construir sua morada. Em outra versão, mais antiga, são chamados de “Browny”. “Whitey” e “Blacky”, mas hoje seria proibitivo usar cores para descrever os porquinhos. Também em versões antigas o inimigo dos porquinhos é uma raposa, e não um lobo.

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Afinal, quem faz o parto?

Acredito que essa é mais uma daquelas perguntas que enseja uma resposta fácil. Entretanto, toda pergunta complexa recebe dos incautos uma resposta imediata e simples… e invariavelmente errada. Este é um tema que agitou as mentes de diversos “pensadores do parto”, uma casta de profissionais que investiram seu tempo no estudo da arqueologia do nascimento, as origens profundas de sua arquitetura. Se é verdade, como dizia um deles – Michel Odent – que “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, então a forma como os fenômenos relacionados ao parto operam devem ser semelhantes àqueles que agem sobre a sexualidade humana, em especial a feminina. Desta forma, sobre uma base instintual, que compartilhamos com todas as formas de vida sexuada desse planeta, é acrescida em nossa espécie uma fina camada de razão, um tênue verniz de massa cinzenta aplicado sobre as construções milenares do nosso cérebro. Entretanto, a despeito de sua singela espessura, ele foi capaz de nos oferecer o grande diferencial entre todas as criaturas que compartilham conosco desta biosfera.

A razão associada à carga instintual – agora chamada de pulsão – nos mostra fenômenos híbridos em sua manifestação. Tanto o sexo quanto o parto ocorrem de forma espontânea, mas seguros pelos finos cordéis da razão. Nem racional, pois que seria insípido, nem “natural” ou instintivo, pois que seria brutal. Os fenômenos sexuais, entre eles o parto, carregam desta forma elementos complexos e únicos, pois que demonstram de uma forma inequívoca a constituição última de nossa alma. Daí surge, no que diz respeito à “Humanização do Nascimento”, um ponto de tensão. Se aceitarmos a dualidade entre pulsão e razão na sua construção, devemos aceitar que o parto há muito deixou de ser “natural”, ou seja, afeito às leis da natureza e subordinado aos seus condicionantes. Portanto, “partos naturais” são vedados à nossa espécie, prisioneira que está da linguagem e dos elementos simbólicos que daí decorrem. Por outro lado, mesmo que tenham deixado sua naturalidade ao adentrar à linguagem, ainda são fortemente determinados pelas forças violentas que, em última análise, procuram de todas as formas perpetuar a vida. Pois, “mesmo o padre eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar”.

Assim, o que observamos no parto é um espetáculo único, onde a disputa entre estes dois aspectos da alma humana digladiam para exercer seu domínio. De um, lado milhões de anos de construção de processos, reprodutivos automáticos e irracionais, que culminam com a expulsão da cria. Do outro lado, milhares de anos de trânsito na hominalidade nos oferecem pensamentos lógicos e racionais, experiências pregressas, memórias e traumas a condicionar nosso pensamento na busca por proteção contra o medo inexorável que nos acompanha nestes momentos. Essa disputa terrível, que ocorre na mente da mulher que está parindo, produz necessidades de ordem afetiva que se expressam em sua atitude e nas suas palavras.

Para ilustrar estas perspectivas prefiro contar duas histórias que me ocorreram. Na primeira delas, fomos atender uma paciente em sua casa, com uma gestação à termo, por causa das contrações desconfortáveis que ela relatava, mas logo ao chegarmos percebemos que elas não eram fortes e sequer muito frequentes. Todavia, quando examinei a paciente me assustei ao ver que ela já tinha alcançado 8 cm de dilatação. Teoricamente, pouco faltava para a expulsão. Por esta razão, ficamos várias horas na sua casa aguardando as contrações finais, mas percebemos que as contrações se mantiveram fracas e infrequentes. Foi nesse momento que tive uma espécie de insight: “As contrações não deviam ocorrer de acordo com as minhas expectativas, mas a partir de uma ordenação que não deve estar sob meu controle. Não é a minha presença ou o meu olhar que determina a força contrátil do útero.” Eu estava certo: com o tempo as contrações foram escasseando e resolvemos voltar para casa e aguardar que o processo ocorresse por sua própria determinação. Durante uma semana fizemos avaliações diárias de bem estar fetal e, finalmente, o bebê nasceu 8 dias depois em um trabalho de parto de alguns poucos minutos.

Diante disso passei a enxergar o fenômeno sob outra perspectiva. Não apenas a minha vontade (e a angústia que se produzia a partir dela) não ajudava as contrações como minha presença provavelmente tinha um efeito inibidor. “É forçoso reconhecer que, em muitas vezes, sou eu quem atrapalha o processo com minha presença”, pensei. Sempre que uma paciente procura oferecer seu parto e sua “eficiência” a um olhar alheio ela deixa de aceitar que ele se forma a partir de uma produção autógena e própria.

O segundo relato é também sobre os olhares alheios e o quanto eles modificam o evento que observam. Robbie Davis-Floyd, antropóloga do parto e reprodução, tem uma história bonita sobre o nascimento do seu segundo filho, que ocorreu em casa depois de uma experiência traumática de uma cesariana anterior. Quando foi ter seu segundo filho decidiu que o teria em casa, para fugir das rotinas insensatas que, segundo ela, levaram seu parto a se transformar em uma cesariana. Durante muitas horas do seu trabalho de parto ela esteve acompanhada por várias pessoas em seu quarto: uma fotógrafa, duas parteiras, seu marido, a melhor amiga e as entradas ocasionais de sua filha pequena. O trabalho de parto foi árduo e doloroso, e por várias vezes pensou em desistir. Pela cesariana prévia, havia também um temor silente que percorria a consciência das parteiras, mas que, apesar disso, se mantinham confiantes.

Num determinado momento foi sugerido que ela poderia estar com a bexiga cheia, e foi pedido que tentasse aliviar a pressão. Diante da sugestão das parteiras foi até o banheiro e ficou sentada no vaso, com a torneira aberta, esperando que surgisse o desejo de urinar. Antes mesmo que isso viesse a acontecer teve uma contração forte, talvez mais forte do que todas as anteriores. Gemeu silenciosamente durante sua dor, e nesse momento teve uma “revelação”.

“As contrações aconteciam mesmo quando eu estava sozinha. Descobri que elas independem da plateia que as assiste. Esse sempre foi um assunto só meu; não é algo que devo oferecer a eles; só eu posso dar conta desse parto”. Para ela esta foi a chave que a fez “destravar” o processo: a permissão para que o nascimento ocorresse no seu próprio tempo e labor, e não pelo impressão que causa nos outros, pela expectativa de quem o observa de fora. A partir daquele momento as contrações se modificaram, sua atitude se transformou e pouco tempo depois conseguiu parir seu bebê.

“Parto é algo que as mulheres fazem”, já dizia Michel Odent respondendo a pergunta inicial, mas o fazem por uma construção inconsciente, por um motor que tanto está em si quanto fora de sua vontade. “É a mulher quem o faz, mas este controle está para além dela, e se expressa através dela”. Esta é a magia inerente de cada nascimento: a submissão a uma ordenação superior, maior do que nossos próprios desejos de controle. Essa mistura entre as forças eróticas poderosas e a razão que nos aprisiona contém os segredos mais profundos do nascimento humano. Para nós que buscamos auxiliar, saber que somos pequenos diante desse espetáculo é peça fundamental para compreendê-lo, mesmo quando tal compreensão apenas arranha a superfície de seu mistério. Entender que nossa participação enquanto cuidadores deve ser silenciosa, atenta e respeitosa, é aceitar humildemente o que nos cabe no grande concerto da vida.

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Parto: passado, presente e futuro

O movimento de humanização do nascimento não se produz num vácuo conceitual mas, pelo contrário, surge no bojo das profundas transformações do pós guerra no que diz respeito à distribuição dos gêneros no mercado de trabalho, nos costumes, nos direitos sobre o corpo e nas questões relativas à sexualidade – incluindo aí a contracepção e o ciclo gravídico-puerperal. Nos anos 70-80 pela primeira vez se tornou possível mensurar de uma forma metódica e abrangente o resultado da invasão tecnológica sobre o parto ao confrontarmos os resultados obtidos pela institucionalização do parto com sua versão artesanal e domiciliar que foi o modelo hegemônico por toda a história da humanidade. Por esta razão nesta época apareceram no nosso horizonte os primeiros contrapontos ao modelo vigente.

No que diz respeito ao terreno das ideias, a partir desse período era possível beber em diversas fontes. Entre as principais referências estavam na Inglaterra o obstetra Grantly Dick-Read, que tratou da ambiência do parto e suas repercussões (em especial o ciclo medo-tensão-dor) e o parto como fato social; na França surgiu Fernand Lamaze que falava dos domínios do consciente sobre o parto. Mais uma vez na França surgiu a questão da violência na atenção ao parto, e Frederick Leboyer surgiu com a perspectiva do recém-nascido e o conceito de “imprint”. Ainda na França, Michel Odent abriu um portal no entendimento do parto ao falar desse evento como fenômeno “mamífero”, com seus estudos da etologia e os efeitos da ocitocina para o rtabalho de parto e o psiquismo materno. Finalmente, nos Estados Unidos surge o trabalho da antropóloga e Robbie Davis-Floyd que nos apresenta a perspectiva ritualística do parto, e os elementos simbólicos das rotinas obstétricas. Estes foram personagens e ideias que produziram o arcabouço ideológico que fomentou nossa perspectiva teleológica do processo de nascimento. O modelo humanista, surgido do caldo de ideias desses pensadores, ocorre em contraposição à crescente alienação das mulheres no ato de parir e o domínio da tecnologia sobre seus corpos. Certamente que a tarefa de desconstrução sobre o modelo tecnocrático de atenção ao parto só poderia ocorrer de forma conflituosa, porque sobre o corpo das mulheres existem claras demarcações, zonas de domínio, que são próprias da estruturação do modelo patriarcal. Desta forma, o movimento de humanização passou por etapas cujo reconhecimento é extremamente essencial para sua continuidade. Também é importante entender que, como todo fenômeno social, estas etapas não são estanques e são intercambiáveis no tempo e no espaço.

1- Indignação e Acolhimento

A primeira etapa é o que eu chamo de “Acolhimento“. O acolhimento vai ocorrer quando um sujeito, vítima real de uma situação ou contexto, procura a ajuda de pessoas que possam lhe escutar e entender suas feridas e traumas. Os primórdios da humanização do nascimento, desde o início das “list servers” sobre parto humanizado, eram recheados de histórias e relatos de partos onde a dignidade e a autonomia das mulheres e bebês foi claramente ofendida. Era tarefa dessa comunidade acolher as vítimas de um modelo de atenção que lhes parecia violento e insensível. O problema é que o ser humano tem mecanismos de satisfação que lhe permitem obter vantagens pela sua condição de vítima, seja por benefícios ou privilégios. Essa atitude é muito primitiva em nós, bastando para isso ver uma criança que chora copiosamente ao cair, sabendo que isso significará um ação acolhedora da mãe. Com o tempo esta atitude pode se tornar padrão de comportamento, criando uma criança manhosa, que percebe na sua condição real (ou fantasiosa) de vítima uma chance de receber o prêmio do carinho que deseja. Na atenção ao parto muitas mulheres se recolhem na condição de vítimas do sistema e o movimento de humanização às acolhe, gerando um circuito que oferece a elas um gozo pela sua condição.

É evidente que esta ação não pode perdurar porque uma regra básica das relações humanas é que a pessoa que se encontra na condição de vítima não pode ser protagonista, uma condição antagônica a esta posição. Desta forma o padrão maternal acolherá a criança ou o adulto vítima e lhe dará o cuidado necessário para sua proteção e recuperação, mas manterá o sujeito preso a um vínculo de dependência. Somente a posição paternal subsequente poderá livrar o sujeito dessa condição, obrigando-o a uma posição proativa. É importante notar que posições maternais e paternais se referem às funções e não aos personagens mãe e pai e muito menos às identidades de mulher e homem.

2- Punição

Essa condição de vítima é geradora de ressentimentos e o ressentimento vai produzir o segundo passo neste processo que é o “Punitivismo“. Esta foi uma tendência marcada nos primeiros anos do movimento de humanização. Se conhecíamos as vítimas de uma atenção inadequada por certo que haveria aqueles a quem culpar, em especial os que detém mais poder e conhecimento autoritativo. Nessa etapa muito se discutia sobre as punições devidas aos médicos e hospitais que utilizavam de forma exagerada e insensata os recursos tecnológicos. Da mesma forma como o enxergamos nos problemas sociais, o punitivismo na obstetrícia se baseia na crença que o aumento ou alargamento das punições sobre médicos e hospitais poderia garantir uma maior qualidade da atenção, pela simples eliminação da impunidade. Décadas de observação e inúmeras experiências nos mostram que esta é uma estratégia equivocada e de resultados pífios. Se punir quem vendia álcool na lei seca não diminuiu seu consumo, porque a punição aos médicos poderia trazer qualquer benefício, em especial quando sabemos que eles são igualmente reféns do “imperativo tecnológico” que os mantém prisioneiros de um modelo tecnocrático e intervencionista, mesmo quando têm pleno conhecimento de que não é o mais adequado.

3- Idealismo

A etapa seguinte eu chamo de “Idealismo”. Esta etapa ocorre quando vemos o florescimento de uma enorme quantidade de ideias e propostas relacionadas à atenção ao parto. Começamos a nortear nossas ações centrados nos trabalhos, pesquisas e estudos de ideólogos e pesquisadores que produziram um olhar desafiador sobre o parto. Assim, o “parto Leboyer” surgiu como uma prática – repleta de variantes – a partir das ideias do obstetra francês Frederick Leboyer. Alguns anos após, outro francês, Michel Odent, nos convidava a refletir sobre nossa ancestralidade e as reais necessidades de uma gestante em seu momento de parir. A partir deles, muitos outros vieram, entretanto, como pode ser facilmente observado, “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam”. O livro de Robbie “Birth as an American Rite of Passage” foi publicado há mais de 30 anos, e nessas três décadas o cenário do nascimento humano no mundo ocidental apenas piorou no que diz respeito à autonomia das mulheres, mesmo com grande acúmulo de perspectivas inovadoras e estudos que as embasam. As taxas de cesariana no Brasil chegaram a um platô que se situava entre 55 e 57% e não conseguem descer abaixo disso – em verdade os últimos relatórios falam de uma taxa de 59.7% de cesarianas e 82% no setor privado – inobstante as boas iniciativas de algumas instituições e poucos profissionais. As Intervenções continuam em alta, apesar de inúmeras publicações demonstrando sua inutilidade e mesmo seu efeito deletério para o binômio mãe-bebê

Fica evidente que as ideias são incapazes – por si só – de promover mudanças. Por mais que os médicos saibam da inutilidade da episiotomia, da alta taxa de cesarianas, dos enemas e da posição de litotomia, o simples reconhecimento desses erros não os leva a mudanças significativas em suas atitudes. Esse tipo de pensamento idealista nos levou a fazer “caravanas” pela humanização do nascimento no início do século, baseados na ilusão de que a simples confrontação com a verdade das pesquisas seria capaz de imprimir novas condutas médicas. Ledo engano; não houve nenhuma mudança significativa; nenhum índice de intervenção se tornou melhor pela demonstração prática de sua inadequação. Mesmo o programa “Parto Adequado” que foi utilizado em hospitais privados – o ponto nevrálgico das intervenções desmedidas – teve um “sucesso” inicial de diminuir em 1% as intervenções de nascimentos cirúrgicos, mas os valores voltaram a crescer algum tempo depois. A “educação médica” não parece surtir efeito, pois parte de uma perspectiva que não reconhece a dinâmica de poder que permeia a atenção à saúde.

4- Reformismo

A próxima etapa é derivada do idealismo e se refere a um movimento que ainda é hegemônico entre os obstetras “liberais”, aqueles simpatizantes do parto normal (também conhecidos como “vaginalistas”) e entre muitos profissionais das correntes da humanização do nascimento. Ela se chama “Reformismo“, que consiste na ideia de que é possível transformar a atenção ao parto se houver uma educação ampla, reforma no ensino da medicina, contratação de médicos alinhados com os projetos de humanização e estímulo à contratação de enfermeiras obstetras pelos centros de atenção ao parto. Essa proposta acredita que é possível “moralizar” a atenção apostando no sujeito, nos “bons profissionais” (os “good guys”) na suavização de suas práticas, na eliminação de intervenções desnecessárias, na educação e na informação científica atualizada – mas não na mudança do sistema no qual estes profissionais estão inseridos.

Existem inúmeros hospitais de caráter reformista na atualidade, alguns por acreditarem nessa proposta, enquanto outros por entenderem que se trata de um modelo intermediário para uma verdadeira mudança que só ocorrerá num futuro distante. No último congresso internacional da ReHuNa houve um momento profundamente revelador dessa proposta: o convite para que o presidente da Febrasgo (Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil) tivesse uma fala. Nesta ocasião ele se mostrou educado, afável e compreensivo com as reivindicações dos seus entrevistadores. Para muitos um ato de reconhecimento de nossa relevância. Todavia, deveria ter ficado evidente para todos os presentes em sua palestra que a sua concordância – ou não – com as nossas propostas é absolutamente irrelevante para uma real transformação. O mesmo acontece com uma mesa em que representantes israelenses se encontram com a população palestina para discutir o futuro da região. As posições jamais serão alcançadas através da simples concordância com as visões dispares de mundo, e qualquer solução só poderá brotar do atrito e do choque de poderes – mais ou menos violento. Para isso é preciso uma abordagem “materialista e dialética”.

O Materialismo dialético é uma concepção filosófica e uma metodologia científica que propões a visão de que o ambiente, o sujeito e os fenômenos materiais e físicos tanto modelam a sociedade e a cultura quanto são modelados por eles; ou seja, que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social. Por mais que seja evidente a correção da luta por autonomia das mulheres em relação ao parto e nascimento, estas ideias somente terão avanços quando o ambiente social se modificar e as próprias mulheres se colocarem à frente do processo de mudança. Precisamos tanto de melhores profissionais quanto melhores clientes para o parto. Médicos e gestantes estão sujeitos ao mesmo modelo, atuam dentro dele e ao mesmo tempo são afetados por ele, e precisam agir em consonância para que este seja transformado. No atual estado da arte, a Medicina e sua lógica da intervenção está em antagonismo com as reivindicações das gestantes que desejam um parto humanizado. Jamais conseguiremos uma modificação profunda no sistema através de reformas que não mudam em profundidade o sistema de poderes que governa o corpo das mulheres, sua sexualidade e reprodução.

Enquanto o parto for considerado “ato médico” e se mantiver nas mãos de cirurgiões nenhum avanço significativo será alcançado, pois que a perspectiva médica e a visão da parteria são antípodas no espectro da atenção. A lógica médica aplicada ao nascimento objetualiza as pacientes, transformando-as em objetos dóceis e inermes para a sua atuação e intervenção. Essa lógica é essencial para o tratamento de muitas doenças e em especial para a realização de cirurgias, mas não se aplica ao atendimento de um evento fisiológico como o parto sem excluir as mulheres e seus bebês da equação. A aventura da Medicina no percurso do nascimento humano levou inexoravelmente ao apagamento das mães de qualquer decisão, colocando nas mãos dos médicos toda a responsabilidade do que vai acontecer a elas. Não por outra razão em nossa cultura os médicos “fazem partos”.

5- Revolução

O que resta como solução é deixar para trás as ilusões, entendendo a arena do nascimento como uma “luta de classes” que não vai chegar a qualquer consenso enquanto os médicos mantiverem o controle político e econômico sobre o processo de parir. Somente com a queda deste poder, e a ascensão das especialistas no parto – parteiras profissionais e tradicionais – haverá possibilidade de uma verdadeira “Revolução do Parto”, mas que só vai acontecer quando as massas, nutridas pela inescapável indignação, reivindicarem que a assistência volte ao controle das próprias mulheres e através do auxílio dos profissionais mais capacitados para este ofício. Cabe também resguardar aos médicos a nobre tarefa de agir nas circunstâncias em que a trilha da fisiologia se perdeu no emaranhado único de cada nascimento e adentrou na rota perigosa da patologia, para que eles sejam os heróis que tanto necessitamos. Todavia, diante dessa tarefa, é importante lembrar de Simon Chapman, professor de Psicologia na Austrália, que durante muitos anos estudou a questão do tabagismo e expôs a indústria de tabaco pelos seus malefícios à saúde humana. Em suas palavras “uma vez que seu trabalho ameace uma determinada indústria, corporação ou ideologia dominante, você será atacado sem tréguas e de forma cruel. Portanto, crie para si mesmo uma couraça de rinoceronte”. Todo aquele que deseja confrontar os poderes estabelecidos sobre o parto e, portanto, sobre o controle da sexualidade feminina, será atacado de forma incessante e violenta por aqueles que se sentem ameaçados pelo novo paradigma. Nunca isso foi tão verdade como agora.

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Our bodies, our selves

A ideia muito disseminada em anos passados que tratava o “corpo como embalagem do cérebro” foi uma tese contestada pelo movimento feminista nascente, através de um grupo de mulheres americanas dos arredores de Boston que escreveu um livreto chamado “Women and their bodies”, no ano de 1969. Já em 1970 esta pequena publicação se transformou em um livro que é considerado a Bíblia do moderno feminismo americano, chamado “Our bodies, our selves” – “Nossos corpos, nós mesmas” – que no ano 2020 completou 50 anos da primeira edição e vendeu mais de 4 milhões de exemplares em suas inúmeras edições posteriores.

A principal reivindicação dessa publicação é a conquista da autonomia dos corpos femininos, o direito à beleza e ao prazer e o reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais femininos. Entre as primeiras editoras estava a jornalista e autora feminista Gloria Steinem. A tese do corpo como mera “embalagem” do espirito sempre foi por elas firmemente contestada. Ou seja, sua visão era “nossos corpos somos nós mesmas”…

Lembrei disso hoje porque minha amiga Robbie participou como articulista em uma dessas edições e porque a falecida atriz Carrie Fisher (Star Wars), quando lhe comentavam que ela havia envelhecido, respondia dizendo que seu corpo era uma “mera embalagem do seu cérebro”

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Parto humanizado e mídias sociais

Eu as vezes sou convidado a assistir palestras sobre obstetrícia que tratam de temas que há muitos anos debatemos no movimento de Humanização do Parto e Nascimento. Nesta semana assisti mais uma vez o mestre Michel Odent – pensador e escritor francês de 91 anos – falar de suas teses centrais, como o “imprint” e a importância de oferecer à mulher um entorno de proteção, intimidade e privacidade para que a “entrega” seja a mais tranquila possível. Ter sido contemporâneo de Michel é um grande privilégio para qualquer pessoa que um dia trilhou pelos caminhos da humanização. Posso estar cometendo um sacrilégio mas, na minha perspectiva, os trabalhos de Odent e Robbie Davis-Floyd no campo da compreensão dos significados últimos e inconscientes do processo de nascer adquirem uma importância ainda maior do que aqueles conceitos sobre o “nascimento sem violência” oferecidos a nós um pouco antes por Frederick Leboyer, outro baluarte da grande revolução do parto.

Escutei também o comediante Rafinha Bastos falando sobre partos e doulas, na entrevista que fez com sua irmã – que é doula e professora de Yoga – e achei que sua visão superficial, preconceituosa, jocosa e até debochada do processo de nascimento é uma amostra razoavelmente adequada do pensamento médio dos homens brasileiros. Sua ignorância a respeito de elementos mínimos da proposta de humanização, sua repulsa com tudo o que existe de selvagem e essencialmente humano no parto – além da sua exaltação da “praticidade e limpeza” das cesarianas – são muito demonstrativas da visão majoritária que ainda é prevalente entre os homens. Acho lamentável sua percepção sobre um tema tão delicado, mas saber que ele se dispôs a escutar é algo que devemos saudar como positivo. Quando trocamos ideias com os companheiros das mulheres que nos procuram pela expectativa de um parto humanizado é importante ter em conta que estes sujeitos representam uma fatia francamente minoritária nesta sociedade.

Um pouco depois escutei a aula de uma enfermeira obstetra que falou sobre o tema da violência obstétrica para alunos universitários, um tema que a cada dia assume uma importância maior nos debates de gênero na Internet. Na minha perspectiva ela falou de uma forma bastante superficial, talvez um pouco mais do que o necessário, mas entendo que ela imaginava se dirigir a uma plateia ainda muito desinformada sobre o tema e, portanto, preferiu uma abordagem mais geral e simplificada.

Em verdade eu prefiro as perspectivas sobre o parto que são mais complexas, mais obscuras e menos debatidas e sobre as quais pouco se fala, em especial no que diz respeito à atenção ao parto como evento da sexualidade. Entretanto, tocar nesse ponto é arriscado e perigoso. Vivemos em uma sociedade de cancelamentos onde as ideias sucumbem à interpretação que se pode fazer delas, e onde a verdade é menos importante do que a aceitação e o reconhecimento das nossas “personas sociais”. Fugir de certos maniqueísmos é tarefa complexa, e seria um risco muito grande tratar desse tema para um grupo tão heterogêneo.

Nas perguntas que se seguiram à sua exposição chamou minha atenção algo que vi repetidas vezes quando tratei publicamente deste tema. Percebi que, o que muitas mulheres chamam de “violência obstétrica” é, na verdade, tão somente a ponta de um imenso iceberg, uma fração menor do que seja a violência que ocorre no parto. A maioria das mulheres (e também seus parceiros) aponta como violência apenas aquilo se que tornou visível e palpável, a parte que ultrapassa a linha das ondas e emerge do oceano como barbárie. Da mesma forma, a violência do encarceramento obsceno das sociedades capitalistas aparece sob a forma de desumanidade, tortura e morte, para só então ser condenada. Parece que a nós somente quando a brutalidade estrutural e ideológica submersa se torna evidente pelo exagero de um processo – que já é violento por natureza – temos a possibilidade de denunciar sua existência.

Ainda espero das jovens ativistas uma definição mais clara, concisa e firme do que seja “parto humanizado”. Parece faltar uma percepção mais elaborada, que fuja da ideia de “parto gentil”, “parto delicado”, “parto adequado”, “obediência às evidências científicas”, que são elementos importantes deste processo, mas que não contemplam o cerne da definição, o qual está visceralmente ligado à ideia de “garantia de protagonismo” às mulheres. Precisamos falar mais sobre a história desse movimento social, debater seus pilares de sustentação e entender que esta proposta surgiu muito recentemente como uma contraposição ao modelo tecnocrático hegemônico, que despersonaliza e objetualiza as gestantes, uma condição que se fortaleceu pela dominação do paradigma biomédico estabelecido de forma marcante a partir do século XX.

Na palestra da jovem professora ela elogiou as Casas de Parto e deixou claro para todos a importância das enfermeiras como cuidadoras primordiais do parto, o que é muito bom. Para além disso, eu me surpreendi com as perguntas feitas pelos estudantes a ela, o que sugeriu que ela poderia ter ido mais fundo nas definições, contradições e dificuldades no combate à violência obstétrica. Talvez ela tenha subestimado mais do que devia a capacidade de crítica dos alunos presentes à sua palestra.

Saber que esse tema toma a Internet hoje em dia me oferece a esperança de que estivemos fazendo certo em denunciar um modelo anacrônico de atenção ao parto e de mostrar que há perspectivas mais humanas e dignas de trazer as pessoas ao mundo.

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