Consideramos classicamente as cirurgias mutilatórias e ritualísticas da medicina ocidental (em contraposição à clitoridectomia, oriental) as seguintes intervenções: Postectomia (circuncisão), Tonsilectomia (retirada das amídalas) e Episiotomia (corte perineal no parto). É digno de nota que as três intervenções ocidentais citadas alcançaram um apogeu e estão em franco declínio, pela falta de evidências científicas para o seu uso e pela pressão popular pela sua diminuição. O mesmo se aplica à clitoridectomia, proibida no ocidente e com severas críticas de países ocidentais quanto à sua prática em alguns países islâmicos, em especial a Nigéria.
Entretanto, para além das cirurgias acima descritas, já é possível incluir a cesariana como uma cirurgia mutilatória e ritualística, largamente alastrada no ocidente, já que tem a mesma base irracional das anteriores para a sua abrangência.
Isto é: mesmo reconhecendo a importância dessas cirurgias em casos específicos (não é necessário enumerar a importância das cesarianas para salvar a vida de mães e bebês em situações especiais), sua abrangência fala muito mais de uma relação ritualística do que de um uso operacional (em nome de uma real necessidade clínica).
Segundo Robbie Davis-Floyd, um “Ritual” pode ser definido como um procedimento padronizado, repetitivo e simbólico carregado de sentido cultural, e cuja leitura (exegese) de seus pressupostos pode nos levar ao código profundo de valores que sustenta uma específica sociedade. A existência de cesarianas em profusão nos permite analisar que tipo de valor está na base da cultura onde elas se inserem. No caso das sociedades ocidentais os valores que se mostram evidentes são o patriarcado e o capitalismo, aliados a uma ideia contemporânea de praticidade (tempo) e conjugada com a mitologia da transcendência tecnológica (que nos diz que todo procedimento tecnológico é melhor que sua variante natural).
Portanto, faz todo o sentido analisar as cesarianas sob este prisma. Os exemplos citados de pressões culturais sobre a mulher (espartilhos, pés esmagados, dietas, culto à beleza, etc.) estão absolutamente adequados para sustentar esta análise, por também serem regidos pelos mesmos elementos sociais inconscientes. O mesmo tipo de constrangimento social se aplica às cesarianas e, como nos exemplos anteriores, fica claro que o exagero desta cirurgia beneficia muito mais as corporações e instituições do que as mulheres e seus filhos. As evidências que confirmam esta afirmação estão aí para quem se puser a investigar.
Mais um pouquinho sobre as críticas à cesariana da cantora Sandy…
Bem… Muitas ativistas exageram mesmo, mas isso é normal quando se luta por ideias. Eu já sofri na carne o ataque de algumas pessoas por ter uma postura mais aberta nas questões feministas, mas entendo que seja normal o exagero diante da barbárie da condição da mulher. Como diria John Lennon, “A mulher é o negro do mundo”. Como não perder o rumo diante de tanta energia para a mudança? A injustiça, mesmo condenável, tem um sentido, que é a transformação social. Mas essa energia precisa ser domada e controlada, para que não sirva de armamento contra pessoas que fazem suas escolhas, certas ou não.
Mas a proposta de não atacar as escolhas das “celebridades” me parece adequada. Acusar as mulheres que fazem cesarianas é continuar a agredir a vítima, e isso não podemos admitir.
A escolha pela cesariana é triste, mas é uma escolha como tantas outras que fazemos na vida. Mulheres que “escolhem” cesarianas sofrem do que eu chamei anteriormente de “violência ideológica”. O mesmo tipo de violência silenciosa que fazia as chinesas esmagarem seus pés para deixá-los pequeninos e delicados. O mesmo tipo de agressão ideológica que faz mulheres escolherem cesarianas por acreditarem que elas são “limpas, civilizadas, indolores e seguras”. Também se expressa na pressão que as meninas sofrem para ter um corpo magro e perfeito, até que a anorexia as conquiste. É também aquela usada contra mulheres que optam pelo parto normal. De longe parece mesmo que estas mulheres fizeram escolhas: malhar, comer pouco, esmagar seus pés ou abrir o ventre para extirpar um bebê, mas quão livres terão sido elas? Que tipo de pressão foi exercida para que elas tomassem estas decisões? Que carga tiveram elas que suportar – psicológica, emocional, física – para optar por um caminho com a qual não concordamos? Afinal, quem atira esta pedra?
É o que penso: que tipo de forças houve em cada caso de cesariana a ponto de fazer uma mulher esquecer sua escolha anterior pelo parto normal e refugiar-se na cirurgia? Culpá-la por ter sucumbido a estas pressões não é justo. Precisamos cultivar uma postura compreensiva, onde o parto será exposto como uma forma segura, tranquila e bonita de parir, mas jamais um modelo imposto por um grupo fechado em sua ideologia. Para isso já temos os cesaristas…
Eu entendo a indignação de quem se horroriza com algumas atitudes que são cometidas contra mulheres e seus filhos. Eu também me solidarizo com todas as mulheres que tiveram seus sonhos rasgados por uma cultura que criminaliza o afeto, a proximidade, a doçura e estimula o autoritarismo. Entretanto, concordo com o meu amigo Luis Tavares de que a nossa resposta NÃO pode ser no mesmo nível vibratório. Xingar profissionais, atacá-los, processá-los (como algumas pessoas estão sempre prontas a sugerir) pode apenas recrudescer a violência, fazendo com que aumente a distância entre cuidadores e clientes.
Nos Estados Unidos temos exatamente este cenário: processos diários, e por qualquer razão, cheios de ódio, ressentimento e (como evitar?) oportunismo de pacientes e advogados espertos. O resultado é uma catástrofe: médicos encaram seus pacientes como potenciais inimigos, e os pacientes desconfiam de seus médicos, imaginando-os torturadores arrogantes e insensíveis. Desarmamento dos espíritos – e não a insensata e compulsiva confrontação – é a chave. Sei que minhas palavras podem parecer uma fraqueza, mas já vi como a guerra funciona. Não há saída para este tipo de cilada: “eu desconfio de você e por isso você age apenas para se proteger, e não para NOS proteger”. Por favor: prestem atenção nas palavras dos poetas, pois ele tem muito a nos ensinar. Aliás, onde o entendimento cru e racional patina, a poesia desliza.
Há muito que se critica a passividade feminina diante dos desmandos sobre seus corpo, sua autonomia, sua liberdade e sua sexualidade. Ninguém suficientemente honesto deixa de perceber o quanto ainda temos que progredir para alcançar uma sociedade igualitária para os gêneros. Mas lembrem-se, que reagir a uma situação como essa não significa usar as mesmas armas do agressor. Reagir não é o mesmo que “contra-atacar”. Indignar-se não é o mesmo que usar a Lei de Talião, onde um olho vazado se trocava por outro, um dente também. Reagir significa agir em resposta, mas esta resposta PODE SIM ser repleta de compreensão, carinho ternura e…. FIRMEZA. Em Gandhi, temos a resposta e o exemplo de sucesso; a resistência pacífica dos Palestinos desarmados, também. Podemos responder aos médicos cesaristas com palavras, críticas de nível, artigos, blogs, páginas do Facebook e tantas outras formas de ativismo sem generalizar (os “médicos maus”, as “pacientes vítimas”) e sem crucificar.
Existem sim alternativas. A violência gera mais violência. Podemos educar (os médicos, os pacientes e a sociedade) sem PALMADAS !!! Para isso é importante paciência e “paralaxe” (a capacidade de ver o que o outro vê, por suas próprias perspectivas).
A propósito, com relação às cesarianas em excesso…
Diminuir “na marra” as cesarianas excessivas que presenciamos no mundo contemporâneo jamais será uma solução definitiva. De que adianta diminuir índices de cesariana para aumentar taxas de violência obstétrica? Nada, pelo contrário, tal atitude só tornará a situação pior e criará uma fama injusta para o parto normal. É inútil solicitar aos profissionais errados que façam o trabalho correto. Michel Odent já falava isso há muitos anos. A simples diminuição de cesarianas não nos leva a lugar algum. O que precisamos é tornar o parto um evento tão grandioso e prazeroso que a cesariana se tornará a mais tola das escolhas, ou a mais rara das opções.
É necessário MELHORAR o parto, para que as cesarianas caiam por consequência, e não por decreto
Alguém escreveu uma frase a respeito de um tema que sempre me interessou, e ultimamente de uma forma mais intensa e profunda. Disse ela:
“Assim, se você opta por acreditar que um lado é bom e o outro é mau, que só há dois extremos, que só existem dois lados, então você automaticamente exclui todas as infinitas nuances e possibilidades com que a vida nos contempla.”
Concordei de pronto com a manifestação de minha amiga. Entretanto, alguns minutos depois outra amiga escreveu um post declarando que em algumas circunstâncias – em especial na necessidade de “sobrevivência” – é importante “não perdoar“, e adequado “não compreender“. Não posso reproduzir o que ela escreveu, mas a tese central era a de que em momentos especiais temos que fazer escolhas e optar por um lado, colocando o outro lado como inimigo e aceitando “não compreendê-lo“.
Achei confusa a manifestação e respondi indagando se eu tinha entendido de forma correta, mas acabei sendo bloqueado, provavelmente por questões passadas. Mas o que eu queria dizer, e acho que isso sim tem importância, é que a visão compreensiva sobre a posição do outro, e a possibilidade de analisar um fenômeno por diferentes perspectivas, permite fugir do reducionismo maniqueísta e injusto no qual frequentemente incorremos. A busca de uma “paralaxe”, o olhar múltiplo sobre o mesmo objeto, enriquece nossa compreensão sobre qualquer fenômeno. “Para combater o racismo e o nazismo é preciso entender porque eles foram (e são) tão populares…”, disse eu.
Simplesmente eleger os nazistas, xenófobos, homofóbicos, racistas e coxinhas (mas poderiam ser os esquerdopatas, ok) como inimigos, desreconhecendo as razões que os motivam, impede que possamos defender nossas ideias com determinação e abrangência. Não é necessário concordar com tais atitudes, por certo, mas perceber que elas são expressões legítimas do pensamento humano é importante até para que um dia possam, finalmente, desaparecer.
Eu respondi à amiga: “Mas, abrir mão de uma visão imparcial e abrangente em nome do quê? Compreendo que se deva tomar partido e fazer escolhas, mas daí a reduzir o adversário à sua condição de “inimigo” e aceitar “não compreendê-lo” como uma desculpa para não aceitar suas razões é demais para mim. Não entender as razões do outro pode ser considerado certo? Por quê? Pois é exatamente no momento da “sobrevivência” que essa compreensão se torna uma ferramenta fundamental! Revoltar-se é legítimo e necessário, até no que diz respeito à violência obstétrica, entre outras mazelas. Mas “não entender” as razões daqueles que perpetuam estas atitudes seria o mais inaceitável dos erros.”
Olhar para o outro como igual, na infinitude de diferenças que a vida nos contempla, é tarefa árdua. Entretanto, sem esta mirada respeitosa com a experiência alheia jamais poderemos absorver as verdades que o adversário graciosamente nos propicia com a oferta do contraditório.
É impossível exercer ativismo sem parecer estar julgando. Quando comecei a falar sobre partos humanizados, partos em paz, partos com prazer, amamentação por livre demanda e autonomia para as gestantes fazerem escolhas informadas muitas mulheres se sentiam atingidas pela força das minhas palavras. Qualquer elogio à uma mulher que havia parido livremente parecia ser uma ofensa àquelas que haviam optado pela cesariana, ou mesmo que haviam realizado uma com indicações dúbias. Falar da alegria e da suavidade de parir parecia – apesar do paradoxo – algo rude e insensível.
Não culpo as mulheres que se sentiram atingidas por estas descrições de parto. Escutar tais relatos parece ofensivo; é como relatar a nossa felicidade diante de alguém que sofre. Entretanto, se é importante manter a chama de paixão sobre estes temas, pois que eles nos falam de nossa vinculação mais profunda e perene com a vida, há também que se cuidar dos interlocutores, os quais podem se ferir com as nossas palavras, mesmo quando repletas de esperança e otimismo.
Aprendi errando, sem dúvida. Entretanto, entender a visão diferente que as mulheres podem ter do próprio corpo e seus partos é fundamental, assim como compreender os diferentes estágios de percepção que temos diante de um determinado problema. Algumas pessoas podem discordar à primeira vista dos pressupostos da humanização do nascimento, ou do combate ao consumismo infantil, da alimentação saudável e tantas outras questões, mas podem mudar sua ideia de acordo com o amadurecimento de suas concepções. Propostas como estas, que atingem valores muito profundos de uma cultura, não podem ser impostas; precisam ser cozidas em fogo lento, vagarosamente, com a chama das evidências. Por isso é que elas precisam ser necessariamente vagarosas, para que possam ser efetivamente assimiladas.
Nunca abandone teus sonhos, tuas lutas e tua dedicação a estas causas, e continue com esta postura de acolher a todas que porventura quiserem aprender com tua experiência. Auxiliar sem julgar, oferecendo a mão a quem desejar, é o centro de qualquer proposta de sociedade digna e justa, que entende e estimula a diversidade.
Qualquer postura radical e que não respeita a visão discordante do outro tende a produzir uma atitude defensiva dos oponentes. O que me parece mais sensato é cultivar a paciência e aguardar o amadurecimento, mesmo que demorado. Aliás, é assim que educamos crianças: com paciência, amor, carinho e a inevitável paixão, que deve permear todas as relações humanas.
O segredo do consumo é o incentivo à infelicidade.
Pessoas felizes não consomem além de suas necessidades. O que nos leva a comprar de forma desenfreada é a ilusão de prazer que é vendida com qualquer produto. O problema é que, após cada compra, percebemos que a felicidade não veio; o pedido é feito, mas não é entregue. Ao invés de questionarmos a proposta inicial (a felicidade que se vende) e investirmos mais em valores perenes e menos no efêmero dos fetiches do comércio, decidimos comprar mais e mais, na esperança de que o próximo produto, o modelo mais sofisticado, a última novidade possa, por fim, nos oferecer o que tanto procurávamos.
Em verdade, tudo o que é de fato importante na vida é totalmente gratuito…
O apartamento onde morei até completar 6 anos – quando nos mudamos do “interior” para a capital – tinha uma característica comum aos prédios dos anos 40 e 50 do século passado. Ao invés de um toldo sobre portas e janelas, havia uma marquise que oferecia proteção tanto para a chuva quanto para o sol que protegia o apartamento térreo. A janela de frente do primeiro piso era do quarto das crianças. Ali, eu e meus irmãos, fazíamos as primeiras bagunças, mal saídos das fraldas. Foi neste contexto que ocorreu um fato que se tornou marcante na minha vida. Uma oportunidade, quando tinha não mais do que 5 anos, minha mãe me colocou de castigo no quarto, devido a uma pequena desavença com meus irmãos. Vá saber qual a travessura possível para uma criança dessa idade. Entretanto, poucos minutos foram cumpridos nesse cativeiro. Há muito tempo que eu vinha arquitetando um plano, e aquele parecia ser o momento ideal para a realização do grande desafio. Durante muito tempo eu desenvolvi a ideia de que era possível sair do meu quarto pela janela, ao invés da porta. Sim, para uma criança de apenas 5 anos não poderia ser uma ponderação muito elaborada. Lembro de olhar da rua a janela do meu quarto e imaginar que seria fácil sair por ali. Estimulado pela oportunidade do castigo, abri a janela com meus dedos gordinhos e curtos e, sem muito esforço, pulei para a marquise logo abaixo.
– Chegar até aqui é que demanda coragem; até o chão é apenas mais um salto. Não tema. Vai dar tudo certo. Meus pensamentos reforçavam meu desejo de levar minha aventura até as últimas consequências.
– Cale-se, irresponsável! gritou minha consciência. Você tem apenas 5 anos! A distância até o chão é mais do que o triplo do que você tem de altura. Você não enxerga o quanto de risco existe aqui?
Dei um passo adiante e mirei a calçada de grés logo abaixo. É muito mais alto visto de cima; era evidente o quanto a visão de baixo havia me dado uma falsa perspectiva da altura. Os carros, as pedras, o vão mal recortado das lajes, tudo estava muito mais distante do planejado. Enquanto elaborava meu plano, sentei na beirada e balancei as pernas, muito mais para me acalmar e ganhar tempo do que para avaliar a distância que me separava do solo. Talvez, se eu esperasse mais um pouco, minha mãe voltaria para me resgatar. Segurei as alças dos suspensórios que seguravam meu short marrom, respirei fundo e olhei para a quadra de futebol do clube em frente à nossa casa. Minha mãe devia estar cantarolando uma canção de Chico Alves enquanto secava a louça na cozinha. Ela não virá, pensei. Não adianta adiar muito; é necessário tomar a decisão: voltar para o quarto humilhado e fracassado ou embarcar na maior aventura imaginável para uma cabecinha de 5 anos.
Meu espírito aventureiro sorriu; meu instinto de autopreservação colocou as mãos na cabeça e a sacudiu de um lado para outro. Apesar da contrariedade entre ambos, eles já sabiam que a decisão havia sido tomada em meu pequeno coração de menino. Ajeitei meu corpo para frente e olhei para a janela uma última vez. Despedi-me de suas frestas por onde me acostumei olhar a rua mesmo durante a noite, quando minha mãe me mandava dormir. O movimento seguinte era óbvio. Virei-me de costas para a rua, ajoelhado na beirada, coloquei as pernas para baixo e estiquei lentamente o corpo, ficando preso apenas pela barriga. Joguei meu corpinho para um lado ao outro, balançando as pernas penduradas. Passados alguns poucos segundos e eu fiquei preso à pedra fria da marquise apenas pelas mãos. Meus dedinhos gordinhos a seguraram enquanto meus pezinhos de tênis bamba apontavam para o solo.
Naqueles instantes pude entender de forma instintiva muitas das coisas que minha vida depois ensinaria de forma mais consciente. Existe uma inevitabilidade na busca pela autonomia e liberdade, tanto do sujeito que deseja ser livre, quanto dos povos que desejam a emancipação das amarras que os impedem de exercer a plena soberania. Não há como fugir deste caminho, mesmo que ele se mostre duro, perigoso, complexo e desafiador. Entretanto, diante de algumas encruzilhadas e decisões tomadas, é forçoso reconhecer o momento onde não há mais volta, quando é impossível retroceder do ponto alcançado. Meus dedinhos rechonchudos doíam na pedra, agarrados à esperança de que alguma força mágica fizesse mudar o destino. Eles tentavam segurar o que eu ainda era, mas a gravidade me avisava que não há como conter a força da vida tentando se emancipar. Esse momento em minha vida explicaria muitas das situações em que estive envolvido durante toda a minha juventude, maturidade e até agora entrando na velhice. O impulso de ir, o medo de olhar para trás, e a necessidade imperiosa de me arrojar ao desconhecido, movido por um desejo irrefreável de suplantar meus limites.
O mundo abaixo tremia tanto quanto minhas perninhas rechonchudas. Olhei mais uma vez para cima, mas a janela já se apequenara. Eu havia chegado ao ponto sem retorno; não havia escapatória; minhas alternativas eram o chão ou… o chão. Meus braços aguentavam firmes a pressão do corpo pouco, mas senti os dedinhos fraquejando sob o peso da gravidade. Maldito Newton, se não a houvesse inventado eu não estaria nessa situação. Olhei para o céu, minhas pernas balançaram num desejo ilusório de alcançar algo que sabia não estar lá. O espaço subitamente se tornou o opressor, ameaçando meu corpo pendurado, ávido de firmeza.
Os dedinhos continuaram firmes pela eternidade de poucos segundos, quando começaram, cada um por sua vez, a desistir da dureza pétrea da marquise. Senti minha força minúscula ceder aos chamados da superfície terrena. Falanges, falanginhas, até que, finalmente, falangetas. Cada uma delas deslizou pela aspereza da borda, até que a última se desprendeu e caí. Meu corpinho agora deslizava pelo vazio. O ar me envolvia por todos os lados, trazendo de volta a velha angústia do nascimento: o excesso de ar a completar de nada o meu entorno. Liberado de todas as prisões, agora eu era o soberano de todos os reinos, de todas as terras; nada me prendia, nada me oprimia. Meus braços esticados agitavam-se no infinito cósmico e acenavam para as nuvens acima. Minha face lívida se contraiu, e da pequena boca se esboçou um grito.
Primeiro o pé direito, depois o esquerdo. A perna direita dobrou-se, e sobre ela recaiu o peso do corpo. Um soco surdo na face da rua tomou o lugar do grito engasgado. Meu corpo se jogou para frente, em direção à parede do edifício, e minhas mãos apararam seu peso. Amarrado novamente ao mundo, tentei me erguer, mas minha perna direita doía. Um silêncio, que durou milhares de fragmentos de segundo, seguiu-se ao som opaco de minha queda, como a mudez das árvores que antecede as tormentas. Então que, transposto o imobilismo momentâneo do universo, olho para frente e vejo uma porta se abrir.
– Que foi menino? Caiu?
Era a vizinha do apartamento de baixo. Escutou o barulho e veio ver do que se tratava.
– Escutei o barulho de uma bola caindo e queria saber se os vizinhos estavam de novo jogando bola, continuou ela. Eles sabem que tem gente de idade descansando. Aqui não pode!
Eu continuava sentado sobre a perna direita, sem coragem de levantar. Estava estático, mas não chorava, ainda estupefato com o que havia acontecido. Eu era o “menino voador”; havia desafiado a mais antiga das leis, a lei da gravidade, e tinha sobrevivido a ela. A vizinha se mantinha falando algo sobre o ruído que ouvira, e sobre a minha mãe, mas eu não entendia. Apenas percebia os sons de sua voz de mulher, sem captar a plenitude do sentido. Creio que de forma automática ela se virou para dentro da casa e trouxe um copo d’água, o remédio mais tradicional que se dá aos outros quando nós mesmos estamos nervosos. Olhou para mim mais uma vez, depois dos três goles regulamentares, e me perguntou: “Você está mesmo bem?”
Até então eu não havia me dado conta de que ela não tinha percebido o meu voo milagroso e inusitado. Apenas abrira a porta e se deparara com uma criança sentada no chão. Resolvi ficar em silêncio e nada dizer; talvez essa confissão fosse demasiado forte para ela. Nunca se sabe até aonde a emoção descontrolada de uma mulher pode desestabilizá-la. Foi nesse momento que ela me deu sua mão e eu me ergui.
Uma jamanta, como se dizia na época. Sim, parecia que eu havia sido atropelado por uma. Meu joelho direito doía, e a nádega do mesmo lado também. Porém, fiquei feliz de ver que o corpo inteiro respondia aos meus comandos. Consegui dar dois passos e entrei na sua casa. Ela pediu para eu ficar ali, aguardando, enquanto ela chamava minha mãe no andar de cima. Fiquei olhando em volta, as paredes, os quadros, a mesinha no canto, as relíquias de guerra do seu Scherer. Meu vizinho era um brasileiro de origem alemã que havia lutado na segunda guerra, um “pracinha” que adorava ostentar a cicatriz profunda em seu ventre, sua melhor e mais vistosa condecoração. Pouco mais de 20 anos nos separavam do fim do combate sangrento na Europa, mas as suas histórias continuaram até seu último dia de vida. Subitamente, chegou minha mãe, escoltada pela vizinha. Olhou-me sem entender o que havia acontecido. Perguntou o que houve, mas limitei-me a dizer: “caí”. Ela me examinou de cima a baixo, como só as mães sabem fazer, virou-me de costas, apalpou meus ombros e cabeça. “Você está bem? Como passou por mim sem que eu lhe visse?”
Nada falei. Apenas dei de ombros. Ainda era cedo para ela saber do meu salto, da minha aventura suprema. Não queria assustá-la revelando o pequeno herói que tinha em casa. Depois ela mesma perceberia, e então eu teria muitas explicações para dar. Mas naquele momento eu queria apenas gozar a suprema emoção de ter vencido um grande desafio. Arrojado no espaço, destemido, confiante e sentindo a mais inebriante das sensações: o êxtase de ultrapassar os próprios limites. Olhei para minha mãe e a preocupada vizinha por mais uma vez, e de minha voz saiu apenas uma frase: