Esse sujeito me bloqueou depois de me chamar de “ignorante”, apenas por questionar a selvageria de sua proposta. Não quero criar nenhuma discussão nem queimar publicamente ninguém, mas o que me chama a atenção é que esse tipo de discurso circula livremente na nossa sociedade. Numa lista de 30 ou mais comentários deste post apenas o meu questionava seu desejo de aplicar a pena capital a um menino de 9 anos. Outros comentaram que ele deveria sofrer o mesmo que causou aos bichinhos, e todos aplaudiam a justeza de uma pena violenta contra uma criança.
“No entanto, a infância não é um fenômeno natural, mas sim histórico. Ao longo da história, a infância foi compreendida de maneiras diferentes: Na Idade Média, as crianças eram vistas como “mini adultos”, com um mesmo modo de vida dos adultos. No século XVI, a infância passou a ser entendida de forma diferente, com características como dependência e obediência aos adultos. No século XXI, a criança é vista como um ser pleno, com diferenças individuais, e a ação pedagógica deve reconhecer essas diferenças.”
Portanto, o reconhecimento da infância como período de construção da personalidade foi um passo essencial do desenvolvimento da civilização. Aplicar sobre crianças julgamentos e penas que são aceitáveis somente para adultos com plena consciência dos seus atos não tem outro nome que retrocesso civilizatório ou barbárie. Aceitar que alguém escreva um texto de exaltação da pena de morte para crianças é igualmente um ato criminoso, mas por inação pusilânime, e isso não consigo fazer.
Esses dias alguém me mostrou a foto de um antigo colega de faculdade, uma pessoa a quem não vejo há mais de 35 anos. Quando vi sua imagem lembrei de imediato de duas situações em que estivemos envolvidos nas quais ele não foi muito legal comigo. Uma das ocasiões foi nas reuniões de preparação para a cerimônia de formatura e outra ocorreu durante o atendimento de um parto, já na residência. Minha reação inicial foi um pensamento ao estilo “Não gosto desse cara, ele é arrogante e prepotente”.
Logo depois de pensar isso me dei conta que esse tipo de julgamento é brutalmente injusto. Não é concebível tratar uma pessoa – mesmo em pensamento – como se ela tivesse um caráter estanque, imutável, congelado há quase 40 anos. Não seria correto imaginar que uma fotografia distante no tempo pudesse ser a definição mais acabada do caráter de alguém. Como acreditar que a vida que teve não o jogou para lugares distantes, perspectivas diferentes, novos valores e posturas? Por que deveria ser aquela a imagem que o definiria? Ato contínuo, lembrei de uma atitude estúpida que tive com uma colega na mesma época – entre a formatura e o início da residência – e senti vergonha de pensar que ela poderia ter cristalizado essa ideia de mim, julgando-me um grande idiota, da mesma forma como fiz com meu colega de aula.
Somos muito dissimulados em nossas ações cotidianas, e temos máscaras muito bem construídas. A impressão que deixamos em nossos encontros fugazes como regra é enganosa, tanto para o bem quanto para o mal. O verdadeiro eu não pode ser vislumbrado à vista desarmada, e se o fosse não seria uma vista agradável. O simples fragmento de um encontro não é capaz de mostrar senão uma foto imperfeita e embaçada da nossa alma. Qualquer análise de um sujeito por esta breve percepção seria tão injusta quanto avaliar a beleza de uma sinfonia por uma nota isolada, aleatoriamente escolhida.
Em verdade, estes julgamentos falam muito mais de nós mesmos do que destes personagens passageiros da nossa linha do tempo. Eles, a mais das vezes, aparecem em nossa vida apenas para ressaltar as nossas próprias falhas, medos, dificuldades e limitações.
Por esta singela razão eu tenho grande admiração por aqueles que falam coisas boas de quaisquer pessoas que tenham cruzado sua trajetória. Mesmo sem o saber, esta visão positiva, compreensiva e condescendente com as falhas alheias deixa transparecer a própria luz de suas almas. Como dizia minha mãe “a boca fala do que o coração está cheio”, e o que dizemos daqueles ao nosso redor é o melhor espelho do que, em verdade, somos.
A primeira vez que testemunhei esse fenômeno foi há uns 10 anos ao resolver comprar um produto pela Internet quando estava nos Estados Unidos. Recebi o produto pelo correio alguns poucos dias depois da compra e ele veio com um papel onde se lia algo como: “Se o produto tiver qualquer avaria avise-nos antes de fazer sua avaliação no site. Faremos o possível para resolver a questão e estaremos à disposição para ouvir sua reclamação. Não nos avalie negativamente antes de nos dar a chance de resolver seu problema”.
Percebi, pela primeira vez, o quanto valorizavam minha opinião, minha avaliação do produto e o que achei do atendimento. Eles preferiam mandar um produto novo – sem custos!! – do que lidar com uma avaliação negativa na seção de “comentários” da página. Ficou óbvio que uma avaliação muito negativa deveria afastar centenas de potenciais compradores. Imagine olhar os comentários antes de decidir comprar e ler: “Não compre. Quebrou em uma semana e não devolveram meu dinheiro”. Não há dúvida que manter o comprador satisfeito é a política mais segura. Para alguém que passou a vida inteira sem nenhuma alternativa depois de fazer uma compra, esse empoderamento súbito da minha perspectiva como comprador pareceu um milagre, o que foi possível com a popularização das compras on line. Pois naquele singelo bilhete eu estava, em verdade, vendo as primeiras manifestações de um fenômeno tão significativo quanto novo: o surgimento do sujeito solitário que expressa sua opinião sobre produtos publicamente, mas agora com inédita relevância.
Não há dúvida que o medo do comerciante gerou uma necessidade de melhorar os produtos e os serviços. Já fiz reclamações em compras da Amazon por envio errado de produtos cujo conserto por parte dos vendedores custou mais do que o próprio produto que comprei. Ficou evidente que uma avaliação mordaz e negativa poderia causar muito estrago. E não se trata de criticar a força que a ponta consumidora acabou ganhando, longe disso. Porém, outro fato se associou a este “novo poder” garantido ao comprador: não apenas os produtos passaram a ser avaliados, mas também as pessoas. A partir de então, as figuras públicas passaram a ser vistas e tratadas como produtos que consumimos nas redes sociais. Caso elas não cumprissem nossas expectativas, poderíamos usar da nova ferramenta social chamada “cancelamento“. A partir deste novo modelo de interação social, passamos a cancelar gente “à rodo”, pelas mais diferentes razões, mas em especial pelas escolhas políticas, as posturas morais, o comportamento, as manifestações públicas, etc. “Fez o L?”, cancelado. “Votou no Bozo?” cancelado. “Separou da mulher?”, você não vale mais nada. “Talaricou?”, você está fora. “Foi acusado de algo horrendo, como abuso sexual?” então você será destruído impiedosamente, sem direito a perdão, mesmo que no futuro se prove que era tudo mentira.
Nesse novo modelo, o trabalho das pessoas, sejam elas jogadores de futebol, cantores, pensadores, jornalistas, médicos, etc. passou a ser secundário à persona pública do sujeito. O que você faz é menos relevante do que o que parece ser. Hoje inclusive existem “gerentes de imagem”, funcionários que controlam tudo o que o sujeito pode dizer, de que lado deve se postar, se deve apoiar este ou aquele candidato, o que deve dizer sobre a Palestina, a Ucrânia, o aborto, as mulheres, o machismo, os gays, os negros, as trans, o sexo, etc. Isso determinou que hoje em dia nenhuma opinião é real e verdadeira; todas são, determinadas por aqueles que controlam a imagem do “influencer” e são moduladas pelo interesse dos fãs – que em última análise controlam como seus ídolos devem ser.
Hoje o cancelamento é uma adaga que balança sobre nossas cabeças. A mera suspeita de um malfeito não confirmado causou o cancelamento de PC Siqueira, sua depressão e posterior morte. A menina, sobre quem se criou uma série de mentiras sobre o namoro com um comediante, também não suportou a pressão das redes. Outros fizeram piadas que ofenderam identidades (ou identitários) e foram imediatamente cancelados. Calados, amordaçados, enviados para a “Zona Fantasma”, desapareceram ou foram destruídos, mandados para onde são jogados aqueles cuja opinião não podemos tolerar. Ninguém está livre de ser julgado e condenado pelo tribunal da redes, basta ter uma opinião contra-hegemônica.
Sequer estou me referindo à ação autoritária da justiça, que deseja “regular” as redes sociais para evitar “abusos”. Sobre isso o caso Monark (youtuber cancelado por dizer que era a favor da criação de qualquer partido, até mesmo o nazista) é didático ao nos mostra como o conceito de “abuso” pode ser absolutamente subjetivo e também servir oportunisticamente aos interesses dos poderosos. A censura nos ameaça tanto de maneira formal quanto na informalidade das redes. Não…. aqui falo apenas aqui do sujeito que, na condição de relativo anonimato e segurando um celular nas mãos, decreta a destruição de um outro baseado em antipatia, discordância ou mera implicância. Esse sujeito, empoderado como consumidor, é capaz de gerar pequenas – e até grandes – tragédias.
Como diria o filósofo contemporâneo Roger Jones “…as redes sociais nos jogaram ao mesmo tempo na modernidade e na idade média. Basta abrir o “x”, ex-Twitter, e veremos que todo dia há uma nova vítima jogada à fogueira; é assim que funciona. É o mercado da punição, algo que está enriquecendo muita gente, porque funciona como um negócio. Anotem: semana que vem surgirá um novo “monstro” para ser empalado publicamente, porque esse é o combustível, a força que nos impele a ligar o celular e gozar com o novo linchamento. As redes sociais vivem de pecados alheios; esse é o grande barato e o grande lucro desse negócio”.
A idade nos oferece alguns presentes um pouco desagradáveis como dores nas juntas, a queda dos cabelos, um estômago mais sensível e uma memória que a cada dia se torna mais apagada. Por outro lado, a maturidade nos ensina – pela pedagogia das múltiplas quedas – a não julgar o semelhante com tanto fervor. O tempo de vida recomenda duas coisas: não jogar pedras por erros que você mesmo poderia ter cometido e não sofrer por ser o último a sair do avião.
Deixa eu explicar dessa forma: Élcio de Queiroz, o assassino de Marielle e Anderson, horas antes de cometer o crime foi ao Vivendas da Barra, condomínio de luxo na Barra da Tijuca, e apertou no número 58, exatamente a casa de Bolsonaro. O porteiro contou à polícia que, horas antes do assassinato, em 14 de março de 2018, Élcio adentrou o condomínio e disse que desejava ir à casa do então deputado Jair Bolsonaro. Não se trata de uma especulação; há provas materiais disso. Marielle era desafeto de Flávio, mal vista por Carlos e inimiga das milícias cariocas – a cloaca que sustenta Bolsonaro. Façam as contas…
Existem muito mais provas de que Bolsonaro está envolvido na morte dessa moça do que suspeitas para colocar culpa em alguém do Partido dos Trabalhadores na morte de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André – ele próprio um integrante do PT. A partir de insinuações de que houve uma possível motivação política envolvida na morte de Celso Daniel o caso foi foi amplamente investigado em São Paulo por uma polícia ligada ao PSDB, que teria todo o interesse em jogar a culpa deste caso no PT.
Enquanto isso, resultado de todas as investigações conduzidas mostra, de forma inequívoca, que a morte de Celso Daniel foi comprovadamente um crime comum. Sequestraram o sujeito errado. Não resta dúvida sobre isso. Vinte anos depois, pelo desespero da mídia e pela falta de realizações do governo atual o caso está sendo requentado para atacar Lula e o PT e – de novo – forjar a narrativa mentirosa de que o partido dos trabalhadores é uma organização criminosa, enquanto os partidos patronais e do grande capital são honestos e virtuosos, mesmo que todas as provas e a nossa experiência recente apontem para o oposto disso. O ex delegado geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Lima Carneiro, afirma que se “Sombra” – amigo de Celso Daniel – tivesse sido condenado como mandante do crime, como querem os conspiracionistas, este seria um dos maiores erros da história do judiciário brasileiro.
O caso Celso Daniel foi julgado há mais de 20 anos, e nada foi comprovado além do óbvio: crime comum. Houve 4 inquéritos independentes: um da polícia federal e três da polícia civil que levaram à mesma conclusão: um crime comum. Atualmente a deixa para reabrir o caso estaria em um depoimento do condenado Marcos Valério que teria feito delações a respeito do caso. Mais ainda, Marcos Valério disse essa barbaridade para ganhar alguma vantagem. Seu depoimento é o seguinte: “ouvi de algumas pessoas que me falaram que….”. Marcos Valério também fala de um dossiê com provas sobre o caso que teria sido escrito pelo próprio Celso Daniel, mas que teria sido destruído. A própria Lava Jato não aceitou a cena feita por Marcos Valério, por ser inconsistente e carecer de provas. Até ela…
Vamos combinar que o espetáculo midiático protagonizado por Marcos Valério é pior que uma delação sem materialidade; trata-se da exata definição de uma “fofoca”, uma mentira contada para ganhar algum benefício espúrio, porque o Valério sabia que na Lava Jato aceitariam qualquer coisa que envolvesse o PT. Além disso, pense bem. Caso Celso Daniel tivesse sido morto por alguém do PT, o que o PT enquanto instituição teria a ver com isso? Por acaso a morte do petista em Foz do Iguaçu, cometido por um bolsonarista fanático, significa que o próprio Bolsonaro ou seu partido o mandou matar? É isso que a direita pensa sobre o caso? A culpa é do partido dele? Até onde o lavajatismo mais tacanho, misturado com o bolsonarismo paranoico pretende levar essa fábula?
A história requentada de Celso Daniel, agora com especial na TV Globo, jogando dúvidas sobre um caso mais do que esclarecido, é mais uma cartada goebbeliana conhecida e muito utilizada pela grande mídia e pelo esgoto do “Gabinete do Ódio”: repetir uma farsa ad nauseum, para convencer aqueles que assim desejam se deixar enganar. Não importa que o caso esteja encerrado e não interessa que nunca tenham surgido provas. Pouca relevância tem o fato de que Marcos Valério usou este estratagema para conseguir algum benefício em sua pena através do recurso de agradar os abutres do Ministério Público, sedentos de – literalmente – qualquer coisa para implicar Lula e o PT em algum tipo de escândalo. O objetivo sempre foi político, jamais policial e nunca pela busca da verdade.
Liberais americanos disseram que Kyle Rittenhouse, que foi a uma manifestação de rua vestido com um rifle automático, merecia ter sido atacado, pois “estava pedindo”. Disseram eles: “Afinal, quem sai na rua assim está querendo o quê?”
Gente, os liberais!!! Os mesmos que atacam (com justiça) esse mesmo argumento quando se volta contra as mulheres, e que afirmam que esta lógica é torpe. Aqueles que dizem que a forma como você se apresenta não dá direito aos outros de tomarem atitudes ou fazer qualquer julgamentos de caráter.
Coerência gente, coerência…
Kyle Rittenhouse atirou em 3 brancos. Sabiam que um deles levou um saco de merda para atirar nos adversários e que estivera internado em um hospício até poucos dias antes? E que um outro foi armado com uma pistola para a passeata, e só ao apontá-la para Kyle foi atingido? “As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam”, como diziam Tunay e Sérgio Natureza, e por isso é importante ter em mente o risco que é julgar os casos pelas aparência, pela superfície. Quando examinamos o que realmente ocorreu a história se transforma. Se uma pequena horda sair correndo atrás de você gritando “mata”, e logo depois um cara bater na sua cabeça com um skate e lhe jogar no chão e por fim um outro puxar uma pistola contra sua cabeça enquanto você está caído… acreditam que aí se caracteriza legítima defesa? Ele não atirou em ninguém antes de ser agredido, e foi atacado POR SER QUEM ELE ERA!!!
Aliás, os abusadores de meninas dizem: “queriam que eu fizesse o que? Eu apenas reagi. Sou homem.”
A lógica que aqui tento comparar é a de que um sujeito não pode ser atacado pelo que aparenta, e a aparência de alguém não pode ser justificativa para uma agressão. Aliás, a polícia burguesa usa essa mesma lógica para massacrar a população negra diariamente. Sair de casa com capuz, carregar uma furadeira na rua, ter alguma coisa nos bolsos, sair à noite sendo negro, etc… é o que a polícia diz para justificar suas abordagens brutais, que muitas vezes terminam em morte.
Será a culpa dos negros e dos pobres? Seria uma furadeira uma real ameaça (na perspectiva dos policiais)? Uma mulher de roupas curtas e provocantes/sedutoras é algo atraente, mas estas roupas não podem dar direito a que alguém abuse dela. Um sujeito com um rifle é uma provocação, mas não é uma agressão em si. Ninguém pode agredir ou tentar matar um sujeito apenas porque se acha intimidado por quem ele é ou como está vestido, Essa é a analogia.
Aliás, para quem quiser saber, eu acho que uma mulher com roupas sensuais em lugares que podem conter psicopatas é um brutal equívoco, mas isso não dá direito a ninguém de atacá-la. Ir para uma passeata de protesto com uma arma semiautomática é uma profunda estupidez, mas isso não dá aos passantes o direito de tentar matá-lo.
Não é justo usar a condição de alguém – rico, branco, homem, ou com passado comprometedor – como prova de culpa, ao mesmo tempo em que não se pode usar a condição da suposta vítima – mulher, gay, trans, etc – como um escudo para crimes. Para julgar é preciso se ater aos fatos. Caso contrário será puro preconceito.
PS: Kyle Rittenhouse é um garoto mimado, fascista, racista, supremacista racial, idiotizado pela mídia, “gun lover”, admirador de um presidente psicopata, estúpido e um perfeito produto dos tempos atuais. Houvesse uma cultura de armas (e amparo legal) aqui, como a que existe nos Estados Unidos, e teríamos um fac-símile desse modelo. Veríamos muitos garotos bolsonaristas a andar de garrucha pelas ruas, provocando os transeuntes. Se imitamos descaradamente um touro na calçada e uma estátua da liberdade chinelona, porque não copiaríamos garotos justiceiros? Todavia, dos crimes dos quais Kyle Rittenhouse foi acusado, ele é inocente. Não há como aceitar que ele seja culpado pela forma como se apresenta, da mesma forma como nenhuma mulher é culpada por vestir-se de forma atraente ou sedutora. Ao meu ver fez-se justiça.
Para além de ser um futebolista, o garoto Neymar é mais um ídolo negro desprezado pelas elites. Essa é a razão da disputa de narrativas que envolve há muito tempo a figura desse jogador e a controversa defesa que o PCO faz de sua representatividade no imaginário nacional.
Basta uma pesquisa simples para vermos que ninguém jamais se perguntou se Zico, Piquet, Fittipaldi ou Airton Senna sonegavam impostos, se tinham amantes, e muito menos a qualidade do seu caráter. Senna já morreu, mas os outros três são, a propósito, bolsonaristas. Mas é claro que não se pergunta isso para ídolos brancos. Por outro lado, Neymar não pode ter esse tipo de falha.
Eu pessoalmente acho o Neymar um chato; um bebê imaturo. Um Michael Jackson da bola, gênio desde os 11 anos, infantilizado e mimado. Ser tratado como Rei – ou Rainha – desde a mais tenra infância costuma destruir personalidades brancas de Hollywood, mas Neymar não tem esse direito, por ser negro. Ainda por cima é cercado de gente do pior tipo, como o seu pai trambiqueiro e sonegador. Mas só ele é julgado por ser assim, e essa é uma clara face do racismo e do ataque sistemático ao futebol brasileiro.
A chantagem que recebeu naquele caso de falso abuso sexual há alguns anos mostra que, ao colocar-se automaticamente ao lado da suposta vítima, estimulando um linchamento público, e antes que as evidências (ou a falta delas) viessem à tona, a imprensa fazia coro às tentativas de destruir um ídolo que ousa ser negro em uma sociedade fortemente racista.
Desta forma o PCO tem razão ao criticar quem tenta destruir a imagem do Neymar e do próprio futebol, tratando-os como fenômenos menores. Assim como fizemos com Pelé e as críticas à sua paternidade, Neymar é outro ídolo negro que precisa ser destruído – assim como o futebol brasileiro, um dos poucos fatores de integração do negro em nossa sociedade.
Passam-se os anos e os ventos não mudam. O mesmo disco quebrado repete o enfadonho réquiem de uma alma que se foi, condenada pelo desejo. “Assassina, assassina”, vociferam as consciências silenciosas da turba em êxtase ao ver o cortejo. Enquanto isso, na procissão macabra a jovem mulher canta sozinha a marcha fúnebre em seu esquife, calada, pálida e impedida de oferecer seu testemunho. “Fez-se a vontade de Deus”, diz a moça branca, enquanto do outro lado da rua, de dentro de um carro a voz rouca de um homem apressado grita “Saiam da frente”. Pobre anjo, diz a senhora idosa ao seu lado, mas engana-se quem pensou na falecida. Era para o embrião que se escondia em seu ventre o lamento da velha. Para ele as homenagens; para sua mãe o inferno.
Kathy McGuire-Daniels, “The Hell of Ourselves”, Ed. Printemps, pag 135
Kathy McGuire-Daniels é uma escritora estadunidense nascida em Bayard, Novo México. Estudou letras e literatura na Universidade do Novo México e passou a lecionar inglês em escolas de sua cidade natal. Em seu romance “The Hell of Ourselves” ela descreve o drama de Cynthia, uma mulher que mora em um acampamento de trailers junto com sua irmã Sylvia. Esta, se envolve com Gregory, um jovem bonito e inescrupuloso que trabalhava numa lanchonete próxima ao acampamento. Desse encontro ela engravida, mas vem a falecer em decorrência de uma tentativa frustrada de produzir um aborto em si mesma. A falta de empatia de seus companheiros de comunidade com a morte da irmã, e a solidão que lhe é imposta pela sua partida abrupta, a fazem abandonar a comunidade e cruzar os Estados Unidos – de baixo para cima – para reencontrar a mãe em Cleveland-Ohio, a quem não vê a mais de 20 anos e que está à beira da morte. Sua viagem de retorno, e a verdade terrível que precisará contar sobre a ausência da irmã, fazem desta trajetória uma intensa experiência de resgate, dor e renascimento. Kathy Daniels é casada com o advogado especializado em defesa de minorias e imigração Albert Lavalle, mora em Albuquerque e tem dois filhos Jessica e Rolland.
Muitos insistem em vociferar verdades nas mídias sociais, mesmo que elas não venham acompanhadas de uma prova sequer do que afirmam. São sujeitos carregados de certezas e ideias simples, repletas de embates do “bem contra o mal”. Acusam a todos, julgam e condenam sem piedade. São carrascos virtuais, prontos a colocar seus desafetos no pelotão de fuzilamento.
Porém, é fácil perceber que estas pessoas se comportam tal qual os fanáticos religiosos que gritam versículos bíblicos na praça. Seus discursos cheios de fervor não servem para que os outros se convertam; são ferramentas para que eles mesmos acreditem em suas palavras. Diante da incerteza do que afirmam insistem na veemência de suas convicções, mesmo quando tudo à sua volta lhes prova que estão no caminho errado. Não são discursos reais; são tristes solilóquios.
Seus gritos funcionam como uma proteção contra o medo de estarem errados. Com este discurso tentam bloquear a realidade, porém esta, mais cedo ou mais tarde, acaba mostrando sua face dura. Triste o momento em que percebem que suas convicções não eram mais do que seus desejos transformados em discurso. Mas não será esta a verdadeira iluminação?
André Capuani Riggo, “Mídia e psicanálise”, Ed. Lambert, pág 135
A solução fácil para resolver o problema é considerar que os sujeitos que cometem estes crimes não são pessoas. “Sim, eles são monstros, não podem ser considerados como nós”. O fascismo é um produto numa prateleira de supermercado ao alcance de nossas mãos.
Aliás, a liberalidade como matamos durante toda a história os nativos das Américas (norte, sul e central), os judeus na Europa e os Palestinos sempre se faz com argumentos desumanizantes. Torná-los monstros não-humanos (como cães) nos desobriga de exercitar qualquer empatia. A partir desse artifício podem ser eliminados como uma ninhada de gatos inoportunos.
Ainda soa para mim com sentido a máxima de Terêncio. “Sou humano, e o que é humano não me é estranho”. Existe dentro de mim a fagulha das maiores genialidade e a das piores monstruosidades humanas. O que faz uma delas brilhar é, muitas vezes, algo completamente alheio à minha decisão. Colocar estas pessoas num estrato inferior ao nosso é um crime muito pior do que o que ele mesmo cometeu, pois aquele crime solitário prejudica um punhado de pessoas, enquanto desumanizar pode colocar milhões em risco, como a história nos mostrou reiteradas vezes.
A demonização dessas criaturas e a retirada de suas características humanas – sua história, seus motivos, suas angústias, seus medos e suas fragilidades – é a face mais horrenda deste fato. Eu esperava mais compaixão por todos e não apenas por aqueles cuja identificação é simples e automática. Entender o algoz e seu drama também faz parte do processo, mesmo reconhecendo que “entender” não significa “inocentar“.