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Poder e Ciência

Basicamente quando se procura um tratamento lançamos mão da melhor evidência sobre uma determinada doença, com o estudo mais abrangente possível e com o maior rigor científico que se possa aplicar. Não creio que possa haver algum profissional da saúde que esteja em desacordo com esta afirmação. Se a medicina não é uma ciência – mas uma arte e um saber – ela certamente se apoia na ciência para aplicar tratamentos e implementar exames e terapêuticas.

Entretanto, esse não é – nem de longe!! – o problema da aplicação de conhecimento científico aos pacientes e seus sofrimentos. O drama reside na adaptação destas evidências aos choques de poder inevitáveis que vão ocorrer quando se está diante de descobertas capazes de abalar sistemas de poder bem sedimentados. No caso das vacinas, para usar um exemplo em voga, são BILHÕES de dólares que estão sendo disputados pelas “biotechs” de vários países na luta feroz por fatias bilionárias de mercado com essa pandemia. A experiência nos mostra que nenhuma ética na história da humanidade resiste a tanto dinheiro – e o poder que dele emana.

Pensem bem: se as evidências funcionassem no sentido de implementar mudanças ou determinar protocolos, 90% dos remédios de uma farmácia comum seriam jogados no lixo, pois são comprovadamente inúteis e/ou perigosos – em especial os psicotrópicos. A maioria das cirurgias seriam abandonadas, em especial algumas altamente lucrativas como as intervenções cirúrgicas cardíacas. Muitos exames inúteis (boa parte das ecografias, por exemplo) seriam abandonados, assim como as mamografias de rotina. No campo da obstetrícia, não haveria episiotomias, cesarianas seriam exceções (nem 15% dos casos) e sequer haveria médicos atendendo partos, pois as evidências comprovam que eles são os piores atendentes de parto disponíveis, atrás de parteiras e médicos de família. A presença de doulas seria obrigatória em todos os hospitais.

Percebam como a “verdade” que emana dos estudos e das pesquisas não é suficiente – por si só – para implementar mudanças. É preciso haver pressão política para que uma verdade deixe de ser oculta e passe a ser a vertente hegemônica de entendimento de um fenômeno qualquer na sociedade.

Olhar para a ciência como uma entidade mítica e isenta, amorfa e imparcial, é um erro brutal. A ciência que nos chega aos sentidos é trazida por sujeitos como nós e feita por homens e mulheres com interesses, preconceitos, desejos e falhas. Seu trabalho sofre todo tipo de pressão para apresentar resultados. Acreditar que a ciência possa se expressar num vácuo cultural, infensa à vaidade humana e ao poder, é pura ingenuidade – que pode custar vidas.

Sobre essas drogas que são propagandeadas como “positivas para tratar a Covid19” existe um conflito muito grande. A respeito da Ivermectina há uma verdadeira cisão entre especialistas. Novos estudos – em especial um que surgiu há poucos dias na Argentina onde esta droga foi usada em profissionais da saúde – confirmam que pode existir um resultado muito positivo com seu uso, o qual não pode ser desprezado por preconceitos de ordem científica ou política.

Recomendo esse vídeo do senado americano para ver o quanto o debate por lá é muito mais intenso e aberto do que por aqui.

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Os Heróis da Capa da Revista

Que absurdo.

Essa “babação de ovo” para a corporação é tremendamente ridícula e injusta com o contingente MUITO MAIOR de enfermeiras, obstetrizes, doulas, técnicas de enfermagem e do pessoal de apoio (limpeza, motoristas, porteiros, etc) que trabalharam – muitos com o sacrifício da vida – nessa pandemia. Sim, os médicos se sacrificaram também, mas não mais que os policiais todos os dias, os bombeiros, os lixeiros, os salva vidas, os eletricistas, os funcionários que colocam cabos de telefonia etc. Não há porque chamar de heróis aqueles que cumprem sua função com dignidade e honestamente.

Nem preciso falar sobre o apoio institucional e disseminado ao golpe de 2016 entre os médicos, o que os torna responsáveis pela agressão à democracia e a eleição de Bolsonaro.

Fica evidente que por trás disso está a exaltação politiqueira do Mandetta, um médico cuja vida foi dedicada à desvalorização do SUS e SÓ POR ISSO foi escolhido pelo Bolsonaro para liderar a pasta da saúde. Ele não é herói de nada, não passa de um ex-bolsonarista que tenta limpar seu currículo cuspindo (agora) no prato onde comeu.

Tudo isso para lançar um nome da direita limpinha para 2022.

PS: esse post não é para desvalorizar o importante trabalho dos médicos, mas para ressaltar a injustiça de premiar um grupo em detrimento dos outros profissionais – tão ou mais importantes.

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Revelação

Algumas questões contemporâneas:

Quando o pessoal faz “chá de revelação” a mãe também não sabe o sexo do bebê ou ela já sabe e só finge surpresa? Caso seja surpresa também para ela, como faz isso? Combina com o ecografista para avisar apenas ao confeiteiro?

Minha curiosidade vem do fato de que meus filhos nasceram exatamente na época da introdução das ecografias na prática obstétrica. Não foram realizados estes exames durante as gestações de Zeza, mas também não havia nenhuma curiosidade sobre o sexo dos bebês que justificasse a invasão da intimidade do ventre materno. O sexo era uma descoberta emocionante, mas o que havia era o “parto revelação”. O parto revelava tudo: peso, cara, cabelos e o sexo de nascimento.

Entretanto, esse “modismo”de descobertas precoces seguidas de um espetáculo de revelação enseja uma série de perguntas: por que exatamente no momento histórico onde o sexo biológico é tão desprezado como “determinante de gênero” essa comemoração é mais intensa, espetacularizada e pervasiva? Afinal, aqueles pequenos detalhes têm ou não importância? Qual o significado último dessas cerimônias de “revelação”? O que essa aparente contradição tem a nos “revelar”?

Para além dessas preocupações sobre os sentidos da revelação, muitas vezes estas festas se transformam em espetáculos de grosseria explícita. Há inúmeros exemplos de como a revelação extemporânea do sexo de uma criança pode ser tratada de forma abusiva, fazendo do momento um Fla-Flu grotesco e sem graça. Pior: a criança enquanto sujeito não vale nada, resumida ao valor das apostas sobre qual sexo pertence. Um objeto de brincadeira entre os adultos.

Fica claro que no mundo atual os eventos precisam ser espetacularizados, e parece que ser reservado significa abdicar do protagonismo. Hoje mesmo vi alguém reivindicando o direito das mulheres em fazer “topless”. Eu acho que esse direito deve ser garantido, mas deixar de cobrir o corpo tem muitos outros significados para além de evitar o calor e proteger-se do fio. O principal deles é a perda insidiosa da intimidade. O corpo deixa de ser algo privado e se torna público.

Assim, tudo o que é seu é exposto, passa a ser de todos, e a noção de pudor ou intimidade se desfaz como um anacronismo sem sentido. Tudo, inclusive sua sexualidade mais pessoal, precisa ser exposto, aberto e iluminado pelos holofotes das redes sociais. O que vejo acontecer, como era de esperar, é um questionamento cada vez mais intenso sobre esse modelo de auto exaltação. Eu, pessoalmente, acho muito bom que haja esta revisão.

Minha inquietude se mantém, e minha pergunta é honesta: Por que logo agora a descoberta do sexo passa a ser valorizada e espetacularizada, exatamente quando aquilo que por milênios definiu nosso sexo está caindo por terra, em nome de uma identidade de gênero muito mais fluida – mais da palavra e menos do corpo?

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Obstetras ou “Obstétricas”

Model in studio isolated on white background

Afinal, é “enfermeira obstétrica”ou “enfermeira obstetra”?

Bem, aqui vai a minha opinião…

Eu discordo da tese que nomeia as enfermeiras com pós-graduação como “obstétricas”. Para mim o nome mais indicado é “enfermeira obstetra” por algumas boas razões, e acho que essa deveria ser uma luta da enfermagem em nome de sua valorização.

A primeira é que colocar “obstetra” no nome não se adjetiva o trabalho, mas o substantiva, coloca-o em uma pessoa. Querem um exemplo simples de entender? Quando me perguntavam minha profissão eu dizia “médico”, e se depois perguntassem a especialidade dizia “obstetra”, jamais “médico obstétrico”. E por que com as enfermeiras deveria ser diferente?

Ora… porque aos olhos do poder médico hegemônico na enfermagem NÃO existem obstetras, mas tão somente “enfermeiras que fazem serviços obstétricos“, o que retira delas esta denominação, essa função e esse poder.

Para mim fica claro que há um truque semiótico e semântico na retirada desse denominador, mas não contem comigo para usar um nome que pode servir para diminuir a importância da enfermagem obstétrica no cenário contemporâneo.

Se não houver uma determinação (equivocada, ao meu ver) para retirar o nome de “obstetras” das parteiras profissionais é assim que vou continuar a chamá-las. “Obstétrica” fala da função, “obstetra” da pessoa; prefiro reforçar o que SÃO, não o que fazem. Aí está a chave para entender a disputa.

Portanto, eu pessoalmente prefiro chamar as profissionais que atendem o parto de “parteiras profissionais” – para reforçar o nome e os valores da parteria – mas na esfera da enfermagem o nome que me parece justo é obstetra mesmo, pelo que eu expus acima.

Semiótica é tudo. Os nomes com os quais batizamos as coisas desvelam o valor que nelas colocamos. Por isso chamamos “paciente” quem nos espera para ser atendido ou descrevemos menopausa como “falência ovariana”. Não existe nome inocente. E não se trata de debater o português, mas as intenções inconscientes do seu uso.

Ahhh, a outra razão? Não acho legal uma profissional cujo nome termina em “tétrica”.

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Limites

Passados exatos 100 anos os fascistas na Itália já eram responsáveis pelo assassinato de cerca de 600 italianos, uma mostra da total impunidade dessas milícias que, por princípio, preferiam usar pedaços de pau e não armas contra seus inimigos – sindicalistas, socialistas, comunistas – pois seu objetivo essencial era humilhá-los, e não dar cabo de suas vidas.

Um médico na Itália, de sólida reputação e posição social, foi vítima dessas brigadas fascistas. Por sorte não morreu, mas recebeu seu quinhão de tortura e humilhação. Seu filho, ainda pequeno, a isso presenciou com terror, amargura e indignação.

Nesta época era comum na Itália que estas facções criminosas, os “camisas negras”, emboscassem líderes sindicais e atirassem nos joelhos, para que eles nunca mais pudessem andar; essa ação se chamava gambizzare. Outra prática era a purga: constranger o sujeito a beber litros de óleo de rícino para provocar tormentos na barriga e no intestino. Também havia ataques aos sindicalistas e líderes operários com correntes; esses eram os castigos determinados para o “crime” de liderar as reivindicações dos trabalhadores.

Assim era o pânico desse menino, que o aterrorizava todos os dias: receber à noite seu pai alvejado e tornado inválido pelos camisas negras fascistas. A guerra acabou. Mussolini foi executado e sua família foi exposta ao ódio que ele tanto semeou. O fascismo esmaecia na Itália e os camisas negras tornaram-se a triste memória da crueldade e do horror. Esse menino, filho do médico, já adulto volta à Itália já graduado depois de ter estudado com a nata do pensamento freudiano na França, tornando-se psicanalista. Abre uma consultório e começa a atender seus pacientes.

Certo dia encontra em sua sala um cliente novo, homem maduro à procura de atendimento. Trata de assuntos domésticos, angústias, dores do passado. Relata minuciosamente suas neuroses, suas dúvidas e suas feridas abertas. O atendimento continua sem novidades por algumas semanas até o dia em que ele conta de seu passado na Itália fascista, e revela que pertenceu a um grupo de agitadores cuja missão era atirar no joelho dos sindicalistas. Ele havia participado das gangues de “gambizzare”.

Nesse momento de revelação o coração do jovem psicanalista congelou. Por seus olhos passaram as cenas de terror e medo de sua infância, na iminência de ver seu pai voltando para casa baleado, aleijado ou morto, seu ativismo castigado pelos porretes e tiros dos camisas negras. Diante dessa confissão, nada falou, mas percebeu que uma lembrança muito sensível de sua alma foi atingida.

Na consulta seguinte pediu ao paciente que procurasse um colega. Criou uma desculpa qualquer e se despediu. Sentiu que havia sido atingido em um local por demais delicado de sua constituição emocional, ferindo mortalmente a relação que recém se havia iniciado.

Mas e quanto à isenção do profissional? E o que dizer da escuta sem preconceitos e julgamentos?“, perguntou o aluno, ao escutar a história contada pelo mestre.

Ora, não existe escuta isenta. Não há ouvidos que não transformem e metabolizem histórias no curto trajeto entre o tímpano e os sentimentos mais profundos. Exigir de um terapeuta que não seja tocado pelas narrativas que encontra em sua escuta cotidiana é pedir que negue o que há de mais humano em si. Se é justo pedir que as emoções e a perspectiva de mundo de um analista não conduzam um tratamento, também é correto aceitar que a carne que o constitui é suscetível às palavras e seus significados.

“Cada um sabe de seus limites”, respondeu ele com simplicidade. Da mesma forma, quando médicos invocam a “objeção de consciência” para recusar uma demanda podem estar falando de suas limitações diante da dramaticidade das escolhas que são obrigados a tomar. Não é justo tratá-los como se habitassem corpos ausentes de alma.

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Corporação

Sobre brigas na corporação…

Uma coisa sempre me chamou a atenção no comportamento dos médicos: nunca encontrei neles qualquer superioridade (ou inferioridade) moral ou intelectual quando comparados a qualquer outra profissão, mesmo as mais “humildes”. Médicos são humanamente imperfeitos como qualquer sujeito.

Isso me marcou desde o tempo de faculdade quando vi famosos professores da minha área fazendo fofocas mordazes para grupinhos de residentes atacando seus colegas de cátedra. Eu pensava: “mas… a vida na Academia é assim mesmo, como um recreio de escola?

Sim, sem tirar nem por. Esses personagens podem ser tão violentos e agressivos nas críticas quanto os piores políticos do baixo clero. Não havia nenhuma sofisticação neste grupo, o que foi um choque de realidade que agradeço por me alertar para a natureza humana. Entretanto, apesar de achar natural que haja lados e perspectivas distintas a defender, eu acho curioso esse ataque à legalização do aborto por parte de setores da corporação. Sério que existem facções na AMB, no CFM e até na FEBRASGO contrárias à legalização do aborto? Agora a moda é atacar candidatos por serem favoráveis ao aborto seguro, “lenientes” com a “invasão” das doulas e por reconhecerem a existência de violência obstétrica. Mesmo?

Pois vejamos; ser contra as doulas é uma bobagem. Elas já ganharam o jogo, estão presentes em todo os lugares. Legislações municipais e estaduais se multiplicam. Lutar contra elas é perda de tempo, e a atitude correta é essa mesma: adaptar-se a essa nova realidade, firmar parcerias, regulamentar e assimilar. As doulas representam um avanço com embasamento científico e aceitação popular, uma viagem que não tem volta. Quanto à violência obstétrica, o mesmo. Fingir que não existe é estupidez. Uma atitude sábia é reconhecer e, pelo menos, se comprometer em combatê-la. Negar é suicídio, tolice, burrice.

Ser a favor da descriminalização e posterior legalização do aborto não é uma questão moral, mas de saúde pública. Ponto. Os médicos deveriam estar na linha de frente da defesa desse DIREITO.

É triste ver como as organizações médicas frequentemente andam a reboque da história. Há alguns anos apoiaram descaradamente a candidatura de Aécio. Depois disso foram parceiros no golpe de 2016 e ainda agora associam-se ao bolsonarismo, assumem posturas anacrônicas como o combate à liberalização do aborto, a exaltação da Cloroquina, o desmonte do SUS e o apoio à um genocida na presidência. Não acredito que a saúde do Brasil pode se fortalecer sem a presença de médicos comprometidos com o oposto destas posturas, que alguns integrantes de relevância nas suas entidades abraçam. Por enquanto a medicina brasileira está tristemente parecida com o pior de sua política.

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Objeção de Consciência

“Deveríamos abolir a “objeção de consciência” com relação ao aborto, já que os profissionais que assim se manifestam estão negando direitos reprodutivos e sexuais às mulheres?”

Esta é uma questão muito tensa. A atenção ao aborto – assim como o direito à cesariana sem indicação médica – se encontram em uma interface entre cultura, religião e valores subjetivos e por isso mesmo são trazidos à tona com frequência. Ao mesmo tempo nunca escutamos debate algum – e no mundo inteiro – sobre negativa de atendimento a membros de outra religião, negros, gays ou imigrantes, pois que nenhum conselho de Medicina ou legislação pública tem dúvidas sobre esse tipo de ação, por todos considerada como crimes contra a vida. São exemplos teóricos que não existem na prática, ou não geram dúvidas no mundo médico ou jurídico.

Mas podemos usar um exemplo melhor e que cabe ser usado neste debate: clitoridectomia. Eu pergunto: “E se você estivesse trabalhando em uma aldeia na África setentrional e fosse solicitado a usar seus conhecimentos médicos para auxiliar neste procedimento? Poderia usar de SEUS valores subjetivos para se negar a infligir dano ao corpo de uma menina?

E se fosse para a mudança cirúrgica de sexo? Deveríamos obrigar profissionais que discordam dessa prática de participar destas cirurgias? Creio que é muito fácil colocar nossas crenças como sendo “direitos inalienáveis” e desconsiderar as repercussões entre os profissionais que dela participam. Mas, creia, quem já participou de abortos sabe dos possíveis impactos que eles podem causar no psiquismo dos obstetras.

Na Alemanha nazista diz-se que as câmaras de gás foram criadas muito em função das repercussões danosas das execuções entre os soldados alemães. Depois de um certo número de execuções à bala o psiquismo dos carrascos ficava tão deteriorado que eles mesmos cometiam suicídio em bom número. “Ora, diriam, não podem se negar. É importante para a Alemanha. Se quiserem trabalhar aqui devem se comprometer com este serviço, mesmo quando ele agride seus valores humanos mais profundos”.

Não funcionou. Desconsiderar os sentimentos dos soldados se tornou desastroso. Era preciso respeitar os valores do executor. Ele também sofria pelo ato, assim como os profissionais se afetam pelo que fazem.

Apesar de apoiar a descriminalização do aborto de forma ampla, irrestrita, livre, sem constrangimentos, com suporte social e psicológico acho inaceitável obrigar médicos – treinados a valorizar a vida desde sua mais tenra manifestação – a participar de atos que a exterminam. Que isso seja feito por profissionais especialmente contratados pelo Estado para esta função e que não se obriguem estes procedimentos aos profissionais que enxergam a vida de outra forma.

Como eu disse, esta é uma interface muito rica no debate, e por isso mesmo ela é tão debatida. Ninguém usa “objeção de consciência” para não trabalhar no sábado ou para não tirar vesículas, mas a vida e a produção voluntária de dano no sujeito sempre será o motivo de debate.

E há que se respeitar quem pensa diferente de nós, enquanto exigimos do Estado uma postura que ofereça às mulheres esse recurso. Desconsiderar os valores do médico – neste caso em especial – é um erro que pode custar caro. Sobre a ideia proposta de que haveria vantagens com a supressão da “objeção por consciência” por parte dos médicos:

Acho essa posição muito vulnerável. Sou a favor da liberação do aborto até 12 semanas, além dos outros casos já previstos em lei, como malformações incompatíveis com a vida e estupro. E, como já disse, que ele seja livre, sem constrangimentos, pelo SUS, gratuito e com suporte emocional. Apesar das minhas objeções ao término voluntário de gestações, creio que este é o caminho com menor dano e que pode, inclusive, salvar muitas vidas.

Entretanto, eu jamais faria, por questões pessoais, emocionais, e considero uma violência obrigar um médico a participar disso. O acesso ao aborto legal por parte das mulheres deverá ser obrigação do Estado, assim como é hoje nos casos já previstos em lei. Porém, não é justo exigir que médicos participem de um ato contra sua vontade. O empoderamento das mulheres sobre seus corpos não pode ocorrer pela completa supressão do médico e seus valores.

E também não é justo fazer confusão: chama-se “objeção de consciência” e não “objeção religiosa”. A laicidade do estado não tem nada a ver com os valores éticos subjetivos de cada profissional. E vamos combinar… essa é uma questão que acontece teoricamente. No dia em que o Estado permitir o aborto e regulamentá-lo acredito que a maioria dos ginecologistas não terá problema algum com este procedimento.

Aliás, a discussão das cesarianas a pedido tem a mesma base argumentativa. Mesmo acreditando no direito que as mulheres têm sobre esta escolha, é injusto obrigar um médico a participar de um procedimento cirúrgico que agride suas convicções sobre produção de dano, tanto para mães quanto para os bebês. Todavia, se este pedido é mantido pela futura mãe, cabe ao Estado encontrar alguém que o faça. Como no caso do aborto legal, a cesariana legal não terá nenhum problema em encontrar quem a realize.

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Propaganda médica

Justiça seja feita…

Estávamos reunidos no Hospital de Clínicas para os preparativos da formatura quando fomos avisados que havia uma reunião marcada para os formandos. A “rádio corredor” avisava que o Laboratório X estaria fazendo uma palestra na sala Y sobre seus produtos, onde seriam distribuídas amostras grátis, brindes e um livro de especialidades farmacêuticas – por eles editado.

“Grátis”. A palavra mágica tilintou nos meus ouvidos. Assim que nossa reunião terminou me dirigi à sala X para escutar a “palestra” e receber meus presentes. No meio do caminho encontro meu colega Marcelo Zubaran Goldani e o convido a me acompanhar à sala de reuniões.

Má ideia. Com genuína indignação meu colega me deu uma verdadeira “carraspana”. Explicou, nos cinco minutos que durou nossa breve conversa, todos os elementos constitutivos da “propaganda médica” e porque todos nós, jovens médicos, deveríamos no envergonhar deste tipo de aliciamento.

Por certo que minha reação às suas palavras foram exatamente o que se espera de um jovem “doutor” arrogante e prepotente.

“Ora, o que pode haver de mal em receber estes agrados se nada é pedido em troca?“, pensei eu. Ou talvez o meu pensamento fosse ainda mais ingênuo: “Eu sou mais esperto que isso, eles não podem me enganar”, como se os gigantes da BigPharma não conhecessem nossas frágeis resistências e as formas de quebrá-las.

Ainda surpreso, agradeci as palavras do meu colega e me despedi. Sim, sem dúvida fui ao encontro e saí de lá com o meu livro (que guardo até hoje como lembrança) e a minha sacolinha de bugigangas “grátis”. Claro, deixei a sala também com minha reluzente canetinha no bolso, com o nome da droga da moda escrita em dourado. Minha inquietude ainda era muito adolescente para entender os profundos significados desse encontro. Fui, como todos, gado…

Meu colega estava certo. É profundamente humilhante a conduta dos médicos que trocam – mesmo que inconscientemente – sua preciosa prescrição por presentinhos, agrados e conversa sedutora. É inaceitável que ainda hoje aceitemos a publicidade ostensiva aos médicos por parte da indústria farmacêutica nos moldes em que ainda é feita. A relação da Nestlé com sociedades médicas me mostra que esta é uma relação atual e recente, e não uma reminiscência antiga e suplantada.

O fato de, passados 35 anos, eu ainda me lembrar da rápida conversa com Marcelo é a prova que este encontro foi importante e fortaleceu a semente de uma postura crítica sobre a ação médica. A necessária indignação com os (des)caminhos da arte médica é uma das mais importantes matérias que nos falta no currículo da faculdade.

Ao meu amigo Marcelo meu agradecimento. É muito provável que ele não se lembre desse breve encontro, mas é justo que ele saiba a ação que suas palavras tiveram no meu pensamento. Cada dia tenho mais certeza que as Escolas Médicas precisam de sujeitos chatos como ele.

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Adeus Renan

Depois de uma longa espera, o jornalista Renan Antunes (do DCM) finalmente recebeu um rim novo por meio de um transplante. Trabalhei muitos anos com doentes renais antes de me formar em Medicina e sei o quanto um transplante significa para um doente renal crônico amarrado a uma máquina. Depois da cirurgia – que teve o sucesso esperado – Renan estava feliz e radiante com a oportunidade de recomeçar sua vida ao lado da família. Poucas semanas depois do transplante eclode a pandemia do Covid. Renan era do grupo de risco pelas medicações imunossupressoras utilizadas como estratégia para evitar a rejeição do rim transplantado. Era natural que ficasse angustiado e com medo da contaminação.

Surgem sintomas respiratórios e ele vai ao hospital. Avisa de sua falta de ar assim como de sua condição especial de imunodeprimido. Faz o teste para Covid e logo depois é liberado para casa, mas com uma receita nas mãos que se mostraria desastrosa. Premidos pelo medo e pela pressão da opinião pública – onde se encontram figuras públicas como o presidente da República – os médicos receitam Hidroxicloroquina; muito provavelmente “por via das dúvidas”. Complicações cardíacas tiraram sua vida poucas horas depois. Arritmia, disseram. Logo depois vem o resultado do exame para o corona vírus: negativo.

O que matou Renan Antunes?

Não vou jogar os médicos aos leões, por certo. Tenho certeza que fizeram o que lhes parecia melhor. Vão sofrer ataques e agressões, mas prefiro me colocar no lugar de quem toma decisões dramáticas em situações críticas. Atire a primeira pedra aquele que…

Entretanto, creio que está é uma morte que poderia ser evitada não fosse a ideologia que EMPURRA os profissionais a usarem tecnologia, mesmo quando sua utilidade não é garantida ou quando seus malefícios aumentam – ao invés de diminuir – os riscos em uma determinada enfermidade. A isso chamamos de “imperativo tecnológico”, que não é um mito da medicina, mas cultural; não apenas os médicos são afetados, os pacientes também. Renan morreu por uma série de mitos. O mito da transcendência tecnológica, o mito da inocuidade das drogas, o mito da autoridade suprema dos médicos. Acabou sendo vítima do medo que os profissionais da saúde tem de esperar e não medicar. Medo de “nada fazer”.

Como no parto, a suprema sabedoria da clínica está na “lentidão dos atos que se aproxima da imobilidade”, reservando a ação heroica apenas para os casos dramáticos onde a ação se faz imperiosa. Talvez – e aqui apenas uma suposição – o nada fazer seria a mais justa e correta atitude. Renan estaria hoje fazendo um escalda-pés em casa e tomando chá de limão com mel (além das drogas para prevenir a rejeição). Mas para que isso acontecesse teríamos que abrir os olhos para tantos mitos (do grego mythós, de mýein = fechado) que não nos permitem enxergar que em Medicina, na maioria das vezes, menos é mais.

Siga em paz, Renan…

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Medicina e arte

(a partir de uma conversa com Eva Saints)

Lembro de ter comentado que o uso da máscara cirúrgica satisfaz muito mais a nossa fantasia da proteção do que a própria efetividade do recurso. Nós nos sentimos protegidos, mesmo que essa sensação não tenha um suporte muito claro em evidências. Durante muitos anos usamos máscaras para a atenção ao parto normal e só com muito esforço e convencimento reconhecemos sua inutilidade na assistência ao parto vaginal. Da mesma forma os médicos indicam repouso numa situação de ameaça de aborto porque sabem que, caso o aborto efetivamente ocorra, é natural que os pacientes – premidos por suas próprias culpas imaginárias – tracem uma linha entre não repousar e abortar. Ao fazerem isso resolvem dois problemas: estabelecem uma causalidade para sua tragédia pessoal e encontram um culpado fácil e próximo para sua desgraça: o médico descuidado que não enfatizou o repouso. Enchem a boca para dizer “erro médico”.

Os médicos sabem que em casos de aborto muito inicial as causas quase sempre são desacertos genéticos incompatíveis com a vida. Nem a bênção do Papa poderia criar um embrião que sequer chegou a se formar por falhas na conjugação dos gametas. Por esse entendimento, o sangramento seria a limpeza natural de um projeto que não seria passível de continuação.

Entretanto, mais do que simplesmente tratar o inevitável há que se reconhecer os medos e angústias que dominam um cenário de perda – como os abortos ou os óbitos fetais precoces. Acima de tudo o paciente que sofre perdas se acha culpado pelos que causou a si mesmo e aos que o amam. Essa culpa é insuportável para a maioria, e a forma mais fácil de se livrar dela é através da “diversão”, ou seja, desviando a responsabilidade da sua perda, livrando-se do peso da culpa através do encontro de um culpado outro. Por isso mesmo, por saberem da natural propensão humana de autoproteção, os médicos SEMPRE vão procurar se proteger diante da inevitável busca que os seres humanos fazem pelos culpados – verdadeiros ou não – das suas mazelas.

Assim, mesmo sabendo ser uma recomendação inútil, ele indica repouso absoluto. Melhor determinar uma ação desnecessária – e por vezes enfadonha – do que suportar os dedos injustamente apontados para si.

Há um exemplo ainda mais curioso de práticas “mágicas” que aprendi com os cirurgiões plásticos. Eles sabem muito bem que o resultado das suas cirurgias dependem – em grande monta – das características subjetivas de cicatrização dos seus pacientes. Mesmo com a mão mais qualificada e a técnica mais apurada e moderna, nenhum cirurgião está livre de encontrar um queloide (cicatriz grossa e larga) em seus clientes. Desta forma, para evitar serem acusados de má prática usam de um estratagema esperto.

Depois da cirurgia – por exemplo, cirurgia de redução de mamas ou uma abdominoplastia – eles fazem uma recomendação absurda e praticamente impossível de cumprir: pedem para a paciente ficar 14 dias imóvel na cama sem se mexer, fazendo inclusive suas necessidades com auxílio de uma “comadre” e um “papagaio” (coletores de fezes e urina).

Essa é uma determinação praticamente impossível de cumprir para um paciente que se submeteu a uma cirurgia simples e não cavitária como as descritas acima. Depois de 3 dias deitado, e não sentindo dores fortes, a paciente normalmente vai se levantar – mesmo com auxílio – e vai fazer suas necessidades de forma autônoma – e digna, pois não sente nenhuma necessidade de se manter imóvel em uma cama, o que por si só já é uma “tortura”.

Quando volta ao médico para revisão, diante de qualquer problema de cicatrização, o médico vai imediatamente questionar: “Mas diga lá, quantos dias ficou imóvel?”

O paciente constrangido responde: “Ah. Doutor, eu fiquei 5 dias (mentira, ficou 3) mas depois não aguentei e fui fazer xixi no banheiro, que fica bem pertinho“.

Ahhh“, grita o médico sem esconder a euforia. “O que foi que eu disse? Não obedeceu minhas recomendações e agora aconteceu isso“.

Pronto, o médico está livre de qualquer acusação e o paciente baixa os olhos, sentido para si uma culpa que não é de ninguém, mas que o médico espertamente desviou antes que pudesse acertá-lo.

A medicina, é muito mais a arte da compreensão das fantasias e angústias de seus pacientes do que a ilusória busca por uma droga salvadora.

PS: é claro que uma comunicação livre e honesta entre o paciente e seu médico poderia evitar boa parte desses jogos e dessas performances. Entretanto, nossa medicina procura se aprofundar muito mais nas tecnologias de afastamento (exames, imagens, drogas, cirurgias) do que nas práticas que promovem a conexão íntima e profunda entre o doente e seu cuidador. Se esta ligação entre os personagens desse encontro fosse entendida como primordial, as consultas que hoje duram não muito mais do que 15 minutos passariam a durar mais de uma hora, mas isso se choca com o tempo que os médicos aceitam despender para cada con$ulta. As lacunas de explicações que se formam nesse contato são preenchidas por determinações fantasiosas, homogeneizantes, por vezes inúteis e que não respeitam a unicidade de cada sujeito, o que deveria ser a alma de todo encontro médico-paciente. Sem conexão e vínculo não existe uma verdadeira e profunda medicina, apenas o exercício alienante e ilusório do paciente em colocar no outro a glória ou o fracasso de sua cura.

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