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Tensão e guerra

Escrevo estas notas enquanto o céu de Talabib se ilumina com as bombas que chegam do Irã. Era de se esperar que a República Islâmica do Irã, mais cedo ou mais tarde, iria fazer a sua necessária retaliação aos ataques sionistas. Entretanto, sabemos bem que a agressividade de Israel é a maior demonstração de sua fragilidade. Tanto no plano internacional quanto interno, o país está em frangalhos. É impossível esconder hoje, como foi feito durante quase oito décadas, as atrocidades e os crimes cometidos contra a população da Palestina.

A operação de 7 de outubro destruiu o projeto sionista de uma forma irrecuperável. Não há mais como sustentar a ideia racista e supremacista que se constitui na estrutura central de Israel, sua espinha dorsal. O genocídio, as matanças de crianças, a diretiva Hannibal, o bloqueio de ajuda, a destruição dos hospitais, a mortandade de 10% da população, em sua maioria mulheres e crianças, as torturas denunciadas nos calabouços israelenses, a morte de jornalistas, médicos, enfermeiras e toda a podridão do apartheid foram jogadas nas telas de TVs e celulares do mundo todo. Ao contrário dos massacres cotidianos dos últimos 77 anos, agora a Internet expõe de forma crua o sofrimento do povo palestino e a perversão homicida da sociedade israelense. Não há mais como desver o que testemunhamos, e não há mais como Israel se tornar uma nação entre as nações. Israel é um cadáver que apodrece à vista de todos, mas enquanto o corpo não é enterrado, somos obrigados a ver o horror de sua decomposição, enquanto o mundo inteiro testemunha o horror e o racismo que imperam na sociedade israelense. Ficou claro que esse ataque israelense ao Irã foi puro desespero do Império em decadência. Fica evidente que Israel está morrendo, se desfazendo, e esse ataque revela um corpo em decomposição. Não há mais como sustentar Israel, uma aberração supremacista e genocida, um enclave europeu fascista encravado no Oriente Médio.

A meu ver, esse país não tem mais muitos anos de vida. É sintomático que 10% da população já tenha abandonado o país, voltando para seus lugares de origem, e por certo muitos mais vão trilhar esse caminho. Essa guerra provocada – com a desculpa do enriquecimento de urânio – é o sintoma do fim de Israel. Fica claro que está se comportando como a Argentina dos anos 80, entrando em colapso e nos estertores da ditadura militar, provocando uma guerra contra a Inglaterra para unificar o país em torno de uma ameaça externa. De nada adiantou; o regime caiu de podre.

Este é um sintoma inquestionável do fim de um projeto racista e colonial. É evidente que por trás das decisões agressivas de Israel existe a conivência ou a explícita cooperação americana, basta ver que os mísseis que atingiram Teerã partiram do Iraque, enclave imperialista no Crescente Fértil. A esperança de Israel é que os Estados Unidos mantenham a decisão de bancar o conflito, entrem na “guerra santa” e ajudem seu protegido.

Entretanto, isso não é certo, porque a situação interna dos americanos é caótica, com tropas nas ruas, motins, manifestações populares e um presidente fragilizado. Será difícil convencer a opinião pública americana a fazer sacrifícios e enviar tropas em nome de Israel. Principalmente agora, no momento em que o apoio a este país atingiu seus níveis mais baixos na história americana – sem falar do rechaço internacional. Alguém crê que mais uma vez veremos jovens americanos morrendo em uma guerra estúpida? Colocar os Estados Unidos em guerra contra um país distante, que não ameaçou diretamente os Estados Unidos, e com o risco de colocar o comércio de petróleo do mundo em colapso? Serão eles tolos o suficiente para produzir um novo Vietnã?

A situação é desesperadora para a velha ordem. Enquanto o mundo multipolar não se configura como a força hegemônica no planeta, viveremos a tensão, o medo e as guerras.

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Porto Alegre e o Sionismo

A Câmara Municipal de Porto Alegre instalou uma Comissão Parlamentar Brasil-Israel por iniciativa da vereadora Fernanda Barth.

Trata-se um fato grave na cena atual: uma representação parlamentar de uma capital brasileira cria um grupo de apoio a Israel, no momento em que este país pratica um genocídio cruel e covarde contra o povo palestino em Gaza e na Cisjordânia. Para dar suporte a esta matança, lançam mão das velhas mentiras repetidamente contadas sobre um suposto antissemitismo, um vitimismo interminável e fantasioso que tornaria justas as medidas desumanas e cruéis contra mulheres e crianças em Gaza. Parece que mais de 50 mil mortos, 70% deles mulheres e crianças, e a nova ofensiva covarde contra palestinos abrigados em tendas – que já matou quase 500 pessoas nas últimas 24h – não mobiliza a alma desses parlamentares representantes da extrema-direita da cidade.

Esta iniciativa parlamentar se ocupa de falsear a verdade sobre Israel. Não é mais possível esconder o verdadeiro caráter desse enclave dos interesses europeus no Oriente Médio. A ideologia sionista, racista e colonial, é financiada pelo imperialismo e pelos Estados Unidos desde o evento do Nakba, em 1948, e sua existência se assenta na opressão insistente e sistemática da população nativa da região. Só podemos imaginar que os responsáveis por esta comissão parlamentar ignoram a história ancestral e recente da região, talvez recebendo financiamento das instituições sionistas como o Mossad ou a CONIB, ou quem sabe apoiados financeiramente pelos empresários sionistas da cidade.

Antes de propor uma comissão de apoio ao massacre sionista, estes vereadores deveriam estudar os escritores judeus que escreveram sobre a realidade dos fatos ocorridos na Palestina. Entre os principais críticos do racismo e do Apartheid estão Shlomo Sand, ex-professor em Tel Aviv; Norman Finkelstein, professor em Princeton, Estados Unidos e Ilan Pappé professor na Universidade de Exeter, Reino Unido. Além deles, Max Blumenthal (jornalista do Greyzone), Gideon Levy (jornalista israelense, colunista do Haaretz), Miko Peled (ativista), Noam Chomsky (escritor) e Gabor Matté (médico e especialista em trauma). No Brasil, o jornalista judeu Breno Altman desenvolve um trabalho essencial de conscientização sobre os crimes do sionismo contra a população palestina. São dignas de nota também duas figuras históricas da ciência e da psicanálise, como Albert Einstein e Sigmund Freud que rejeitaram de forma explícita as propostas racistas, supremacistas e sectárias do sionismo nascente, talvez porque anteviam que esta ideologia fascista acabaria produzindo a limpeza étnica, o Apartheid e o genocídio palestino.

Estes intelectuais condenaram com veemência o massacre, os crimes, o genocídio e a limpeza étnica na Palestina, e são todos judeus. Entre eles cito especialmente Miko Peled, que contradiz todas as mentiras sobre as “guerras de defesa” e é um israelense cujo pai foi general (Matti Peled) na guerra de 67. Essa comissão espúria e imoral, que apoia genocidas e opressores, não conseguirá enganar por muito tempo com sua narrativa fraudulenta!!! Ao fim vai sobressair a verdade: os verdadeiros judeus apoiam a Palestina e Sionismo não é judaísmo. Na verdade, o sionismo racista e supremacista trai os principais valores universalistas do judaísmo.

Faz-se necessário um contraditório urgente dos representantes progressistas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, e que se crie na Câmara uma Comissão de Apoio à Soberania da Palestina.

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Supremacismo

Toda vez que alguém vem me dizer que o identitarismo é algo bom, que alguém precisa “proteger mulheres, gays, negros, trans, etc”, que ele nasceu para dar voz às populações oprimidas e historicamente perseguidas e que seu objetivo é a equidade e a justiça social eu lembro que esta é a exata definição dada pelos supremacistas sionistas, ao explicar porque a violência destrutiva desproporcional no ataque aos palestinos é justa. Também os sionistas aparentemente tinham um objetivo nobre; após séculos de perseguições, expurgos e pogroms, era justo que desejassem um lugar seguro para si. O problema é que, para esta tarefa, era necessário roubar a terra onde há séculos vivia outra população, e aqueles que se opusessem a este plano. Por esta razão, ainda hoje matam de forma genocidária seus inimigos e depois exigem que seus crimes sejam vistos de forma condescendente por nós. Afinal, “depois de tudo que nos aconteceu”.

O sionismo que massacra crianças na Palestina surge exatamente desse pensamento exclusivista e supremacista. Essa perspectiva é o embrião de inúmeras tragédias como o nazismo, a KKK (Ku Kux Klan) e o sionismo, que nada mais são que o resultado direto de uma visão de mundo onde um grupo – ou uma identidade – exige ter mais direitos do que os outros grupos, seja porque são o “povo escolhido”, por ser este seu “destino manifesto” ou pelo seu sofrimento no passado. Assim floresce entre estes grupos a ideia de que as leis e regras que são aplicadas aos outros não são aplicadas a eles, por serem diferentes, especiais ou superiores, de acordo com sua própria análise. Entretanto, uma das mais importantes conquistas civilizatórias da humanidade foi a compreensão de sermos todos iguais. Assim, a lei e os juízes devem tratar a todos igualmente, independentemente da sua raçagêneroidentidade de gêneroorientação sexualnacionalidadecor da peleetniareligiãodeficiência ou outras características, sem qualquer tipo de privilégio, discriminação ou preconceito. A ideia de grupos ou identidades especiais – inferiores ou superiores – é ilegal e incompatível com os princípios de liberdade e de equidade.

A luta contra os preconceitos só pode ocorrer no lento processo de maturação das sociedades. Uma sociedade igualitária não vai se tornar hegemônica pedindo “mais amor”, criando “diversidade de aparências” ou judicializando preconceitos, mas exterminando a origem dessas distinções. Estas, como bem o sabemos, estão centradas nas iniquidades econômicas brutais construídas pelo processo civilizatório e consolidadas pela sociedade de classes. O combate aos preconceitos todos – raça, gênero, identidade e orientação sexual – é uma necessidade urgente, mas estas chagas planetárias somente serão desmontadas quando nossa sociedade tiver equilíbrio econômico, por meio da distribuição justa das riquezas produzidas. Enquanto tivermos sociedades divididas em classes, onde o trabalho vale menos do que a concentração de capital, nada será modificado. Para mudar esta realidade precisamos menos “amor” e mais luta de classes.

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Armadilha

Hoje tive que me afastar de uma ex-amiga, defensora da “nova era”, daquelas ligadas às “deusas”, ao “sagrado feminino”, à “liberdade” e contra a “opressão dos homens”. Tenho para mim que muitas destas mulheres são o contraponto feminino dos ativistas chauvinistas da extrema direita. Não todas, por certo, mas muitas delas têm o mesmo discurso excludente dos mais arraigados defensores do machismo. A briga surgiu por um texto que mostrava uma mãe e uma filha usando burcas e dizendo que estas mulheres deveriam ser resgatadas da opressão que sofrem em suas culturas. No texto a autora tratava de forma profundamente ofensiva as mulheres muçulmanas, mas com uma pegada “patronizing“, tratando-as como coitadinhas, indefesas, frágeis e submissas, mostrando um profundo desconhecimento do mundo islâmico. Como eu disse anteriormente, o interesse era mostrar que as mulheres no ocidente, apesar da opressão que sofrem, estavam protegidas por uma cultura superior e democrática. Puro suco de orientalismo.

O texto era uma colcha de retalhos de clichês islamofóbicos e etnocêntricos. Entre tantas pérolas de misandria, sobressai a frase que mais me irritou: “Todos sabem que as mulheres maduras são as legítimas condutoras da civilização”. Ou seja, a condução da civilização não será feita pelos humanos, pelos cidadãos, pelos membros de uma sociedade (de preferência os mais aptos e capazes), os políticos ou os sujeitos mais votados em eleições livres. Não… será feito por mulheres maduras. Para a autora existe um gênero que é mais competente e mais capaz de comandar uma sociedade, e com mais sabedoria. Sim, poderia ser uma cor ou uma religião, mas neste caso foi um gênero (e uma faixa etária). Acham exagero? Então façam o exercício de trocar o gênero e me digam como classificariam esta frase: “Todos sabem que os homens maduros são os legítimos condutores da civilização”. Machismo que chama não? Como devemos considerar as pessoas que acreditam que as mulheres são mais capazes do que os homens para controlar a cultura, a política e a sociedade como um todo? Se condenamos manifestação de supremacismo do gênero masculino (machismo), da cor da pele branca (racismo) e da orientação sexual heterossexual (homofobia) porque deveríamos aceitar um texto que exalta a pretensa superioridade moral de um gênero sobre outro?

“Ahhh, mas e os 80 séculos de machismo”… “isso é mimimi de macho”…. “male tears”, etc. Pois eu apenas digo que se as mulheres realmente esperam que os homens lutem contra os desníveis criados pelo modelo patriarcal devem abandonar um discurso supremacista e preconceituoso. Porém, isso não foi o pior. O que me deixou profundamente preocupado com o debate com esta senhora, foi o fato de que o texto era evidentemente uma isca para capturar um tipo de personagem clássico das redes sociais: pessoas que desejam lutar contra o patriarcado mas acreditam que o alvo são os homens – e não o sistema. Uma coisa chamou à atenção logo de início: o texto foi escrito por uma tal de “Anna Park”, um nome tão genérico quanto Maria Souza. Tudo leva a crer que seja um texto apócrifo, escrito por AI, cujo único objetivo é estimular a ideia de uma distância civilizacional entre nós e o Oriente. A disseminação desse tipo de lixo, que visa capturar mentalidades identitárias que seriam simpáticas à pauta das mulheres islâmicas, nada mais é que uma armadilha imperialista cujo objetivo é desviar a atenção do público – em especial as mulheres – do massacre e da carnificina que está sendo realizada na Palestina. Não só isso, mas também para preparar o terreno para uma futura guerra contra os “bárbaros e infiéis”.

O texto, em última análise, quer estimular a desumanização dos árabes e muçulmanos, para que futuras bombas atômicas no Oriente Médio sejam vistas como uma forma de salvar mulheres, gays, trans e vegetarianos da cultura depravada que os oprime. Não sejam ingênuos: este tipo de discurso correu livre na primavera árabe, no golpe frustro na Praça da Paz Celestial e no Irã. É por esta fresta cultural que o imperialismo vai atacar, mas não deveria causar espanto que as mulheres, gays, negros, indígenas serão – mais uma vez – massa de manobra do imperialismo, produzindo uma cortina de fumaça das verdadeiras razões das guerras que estão destruindo o planeta. “É pelo petróleo, seus tolos”, não pelo tamanho da saia, casamento gay, visibilidade negra e pronomes!!! É preciso combater frontalmente este tipo de armadilha das redes, que usam mentes frágeis e compassíveis para dourar a pílula amarga da submissão à ordem imperialista

E vejam, não me cabe tratar de questões particulares; cada um sabe a flor e a cruz que carrega, mas posso entender o que significa um choque cultural. Imagino como seria há 100 anos, antes da Terra se tornar uma aldeia global, se eu fosse me relacionar com uma mulher de uma cultura onde os relacionamentos são, como regra, abertos. Como eu me sentiria? Seria injustificável meu desconforto? Estaria ela errada? E se eu fosse visitá-la em casa e todos de sua família estivessem nus, como indígenas? Seriam eles todos depravados? Estaria errado na minha surpresa? Compreendo o quanto os atritos entre diferentes culturas podem ser complexos, mas prefiro sempre adotar uma posição de relativismo cultural. O etnocentrismo, e o olhar de censura das populações europeias aos povos colonizados, levou a muitos genocídios. Respeitar – mesmo sem concordar!!! – com as posições divergentes é sinal de maturidade, tanto de sujeitos quanto de culturas. Desta forma, é necessário respeitar todas as culturas em qualquer circunstância, o que não significa que não seja necessário debater, questionar, criticar e mesmo condenar as culturas onde a plenitude dos direitos humanos não são obedecidos.

Façamos um exercício: pode o seu corpo ser comandado por alguém além de você? É lícito que alguém esteja no controle dele, acima de sua vontade? Então, partindo desse princípio, deveríamos invadir países onde o aborto é condenado e as mulheres presas? Deveríamos atacar países onde a monogamia é a norma? Ou deveríamos esclarecer os homens e as mulheres das vantagens de um sistema mais libertário? O drama dessa questão do comportamento, em especial a sexualidade, é que ela é usada como bandeira para o imperialismo. Esse é o grande risco!!! Não é por outra razão que os movimentos identitários são mal vistos em muitos países, como na Rússia, por exemplo. Ora, os russos não tem nada contra a orientação sexual de alguém, tanto quanto nós, mas sabem que estes movimentos são utilizados como ferramentas pelo Império para desestabilizar a cultura e o poder político.

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Culpas

Por favor, cuidem dele e o levem ao médico.”

No dia 21 de julho de 2024, um bebê com 5 a 10 dias de nascido, de uma gestação a termo – segundo estimativa de profissionais de saúde – foi deixado porsua mãe em no banheiro de uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em São Bernardo do Campo, São Paulo. Junto da criança foi deixado um bilhete, solicitando que o cuidassem bem e o levassem ao médico.

A culpa essencial e primordial para fatos absurdos como o desta mulher, que abandonou seu filho em um banheiro público, é da sociedade de castas, do capitalismo, da pobreza projetada e estimulada, da injustiça social e da distribuição obscena de riquezas. A miséria é uma construção social perversa desse modelo que nos divide pelo capital, filha direta da sociedade de classes. Entretanto, isso não absolve quem abandona um filho.

Reconhecer de onde vem esse mal não significa ignorar tudo o que vem a seguir. Se assim fosse seríamos obrigados a inocentar todos os assaltantes pobres, os ladrões e os abusadores, jogando a culpa na sociedade e sua estrutura perversa onde estão envolvidos. Não haveria sociedade possível utilizando este tipo de justiça. Não haveria ordem se justificássemos todos os males pessoais pela estrutura que nos controla; algum nível de responsabilização subjetiva é necessária.

Portanto, essa mulher também tem sua parcela de culpa, e se querem saber o quanto, basta pensar como se julga um homem que abandona os filhos. Para esses não existe contexto e nem frases ao estilo “menos julgamento e mais empatia”. Para estes só a dureza da lei. Para os homens que abandonam os filhos não existe contexto, apenas escolhas pessoais baseadas no egoísmo. Por que tratamos esse fato de modo tão diverso?

A empatia não pode ser oferecida apenas para alguns. O nome de um corpo de leis que é compreensivo e bondoso com uns e duro e inexorável com outros é “supremacismo”, pai do racismo e do sexismo. Trata os iguais como desiguais, e quando vemos um rico e branco que cometeu um crime ser tratado diferente de um negro pobre que cometeu o mesmo delito percebemos como este julgamento é errado.

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Diferenças

Hoje em dia vejo muitas manifestações de mulheres nas redes sociais gritando aos quatro ventos que não precisam de homem para nada. São vozes celebrando a independência do jugo multimilenário do patriarcado. Afirmam com toda a autoridade a desnecessidade dos “machos” – e essa palavra é usada com absoluta conotação depreciativa, como que reforçando a condição animalesca de quase metade da população mundial. Claro, dizem que ainda precisam de marceneiros, entregadores, maquiadores, lixeiros etc., homens que fazem serviços que para elas nunca foram interessantes ou desejados, mas explicam que estes apenas oferecem seu trabalho mediante um pagamento. Portanto, por não serem serviços mediados pelo afeto, não se enquadram na sua celebrada independência. Ou seja: dizem que não necessitam que os homens façam para elas algo que demandaria uma dívida, algo que precisaria ser pago de alguma outra forma. Eu sei, é um pouco confuso, mas por trás dessa manifestação eufórica existe uma inequívoca alegria com a libertação feminina da dependência que tinham dos homens em relação a muitas coisas. Não vejo nada de ruim neste tipo de busca pela autonomia, apenas acho curioso o quanto isso não faz parte da história masculina.

Em verdade eu sinto inveja desse sentimento, já que nunca o tive. Eu confesso que preciso das mulheres para ser feliz e nunca me esforcei para esconder essa falta. Sobre isso posso atestar o quanto minha esposa, filhas, irmã, neta, tias e amigas são fundamentais para o que eu poderia chamar de “felicidade”. Sou dependente dos afetos das “fêmeas”, e não tenho nenhuma vergonha em admitir isso. Na dualidade que constitui o mundo, depender do outro é parte integrante do que nos define. Por isso essas manifestações soam engraçadas aos ouvidos atentos dos “machos”: não conheço nenhum homem que orgulhosamente bate ao peito e afirma desprezar qualquer coisa que venha das mulheres, tratando-as como desnecessárias. Mesmo os gays – que não precisam delas para o prazer – têm apreço especial por elas, e alguns as tomam como exemplo de imagem a ser glorificada.

Essa questão da “necessidade do outro” me faz lembrar de dois filmes que assisti na minha juventude, bem na época em que os meus filhos estavam nascendo. O primeiro deles é um filme americano de 1968 chamado “Inferno no Pacífico” com Lee Marvin e Toshiro Mifune, onde dois sobreviventes de uma batalha naval – um soldado norte-americano (Lee Marvin) e um oficial japonês (Toshiro Mifune) – ficam isolados em uma ilha deserta do Oceano Pacífico durante a II Guerra Mundial. Eles são inimigos, desejam matar um ao outro e lutam por potências em guerra, mas percebem com o tempo que, apesar de suas diferenças essenciais, a chance de sobrevivência aumentaria muito para ambos caso resolvessem cooperar ao invés de combater. O outro chama-se Inimigo Meu, uma ficção científica de 1985 com Dennis Quaid. Neste, ao invés a batalha no Pacífico, a luta é interplanetária, entre o nosso planeta e o planeta Dracon. Após uma perseguição com naves no espaço, Davidge (Dennis Quaid) fica preso em um asteroide deserto com seu inimigo Jeriba Shigan (Louis Gosset Jr) e, assim como no filme sobre a guerra dos americanos contra o Japão, descobrem que para sobreviverem seria necessário que esquecessem a animosidade e investissem em uma atitude de cooperação. Assim o fazem, e acabam desenvolvendo uma curiosa amizade, onde ambos aprendem com as diferenças marcantes entre as culturas. Uma parte interessante do filme é que, no meio do enredo, o alienígena Jeriba dá à luz um “bebê Drac” (Zammis) com a ajuda do “parteiro” terráqueo. Ou seja, o bebê nasceu através de uma fecundação assexuada, por partenogênese. Durante o parto (por uma abertura abdominal) Jeriba explicou a Davidge que assim se reproduziam as linhagens no planeta Dracon – sem encontros sexuais, apenas pela clonagem, criando uma cópia de si mesmos em um novo sujeito. Esta, sim, seria autonomia máxima sonhada por alguns: a independência total do outro, sem que houvesse qualquer razão especial para que a sociedade se organizasse em grupos. O sujeito se bastaria, não seria necessária nenhuma troca.

Passei boa parte da minha vida imaginando como uma sociedade assim constituída poderia existir, e a minha conclusão é que este tipo de organização social serviria tão somente para bactérias e protozoários. Não é a toa que a união sexuada foi criada no processo evolutivo: ela permite o aperfeiçoamento pela diversidade, e diversidade em biologia é riqueza e segurança. Uma sociedade onde todos fossem iguais seria catastrófica. Pois é exatamente a diversidade entre homens e mulheres o que mais me encanta. Olhar o mundo pela perspectiva do outro é uma forma de produzir crescimento pessoal. Por isso viajar é tão enriquecedor, além de ser a melhor vacina contra os etnocentrismos – conhecer o estranho é essencial para incorporar seus valores e respeitar sua visão de mundo. Para mim, outra forma interessante – e essa pode ser feita mesmo sem sair do lugar – é olhar o mundo pelos olhos das mulheres, tentando entender como elas configuram as coisas, as pessoas, as relações, os afetos, as características especiais e a forma profunda de decifrar o universo. Meu amigo Max, quando nos deparávamos com alguma coisa estranha ou incompreensível feita por uma mulher, sempre me dizia “Entenda: uma pessoa que sangra todos os meses e é capaz de carregar outra no ventre jamais vai traduzir o mundo com as mesmas palavras que nós”.

Caso as mulheres desaparecessem da face da Terra, depois de 80 séculos de patriarcado, o mundo, as fábricas, os governos, as religiões e a civilização como um todo talvez não sofressem nenhuma mudança drástica em curto prazo; a água continuaria correndo das torneiras e a luz elétrica ainda iluminaria nossas noites. Entretanto, é certo que a humanidade mergulharia numa tristeza sem fim, como se a cor de tudo viesse a desaparecer e o mundo passasse a ser constituído apenas por penumbras e vultos desfocados. Caso os homens, esses inúteis, desaparecessem da face da terra, em uma semana o que restou da humanidade estaria acendendo fogueiras esfregando gravetos. E isso ocorreria por muitas décadas, até que esta sociedade unipolar se desse conta do quanto os homens têm valor, pela sua especial forma de traduzir o mundo. No fundo eu penso que ambos os filmes falam da mesma verdade: muito mais do que digladiar em torno de uma suposta supremacia ou da desimportância do outro em nossa vida, é muito mais proveitoso usar a oportunidade que eles nos oferecem de crescer através das diferenças.

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