Arquivo do mês: dezembro 2014

Cidadão de bem

Cidadao de bem

Auto proclamar-se “Cidadão de bem” é pejorativo, sim. Eu acho que não é à toa que a direita mais retrógrada usa tanto essa expressão. E ela se estabelece pela divisão essencialista da sociedade, baseada em critérios morais criados pelas classes hegemônicas. Assim, um cidadão racista, homofóbico, misógino, preconceituoso e golpista como o Bolsonaro pode se considerar um cidadão “de bem”, porque nunca precisou “bater” uma carteira ou roubar um supermercado para conseguir o que comer, ou apenas para ter acesso à felicidade que ilusoriamente vem com o consumo. Já estes últimos, “ou outros”, os “vagabundos”, mesmo sendo pessoas em que o crime existe por contingência – e não por convicção perversa, como em Bolsonaro – são considerados da “banda de lá”, meliantes, criminosos, safados, que merecem cadeia ou, de preferência, a morte.

Uma frase que li em um desses sites de extremistas em apoio à intervenção militar: “Na ditadura se você for uma pessoa de bem não terá o que temer“. Desta forma, para ser “pessoa de bem”, é necessário baixar a cabeça para os poderosos ou ser forte e violento o bastante para obrigar que os outros se curvem quando você passar. Sim, “cidadão de bem” me ofende, pois sou um cidadão IGUAL a todos os outros, e não pertenço a uma estirpe ou casta superior, aquela que pode atirar pedras nos outros por se julgar isenta de pecado.

Abaixo o jornal “Cidadão de Bem” de 1926 (Good Citizen), uma famosa publicação da Ku Kux Klan. Podemos considerar coincidência que esta expressão seja usada pelos defensores de Bolsonaro e outros fascistas contemporâneos?

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Medicina e Medo

Medicina e Medo

Fiquei sabendo que a Faculdade de Medicina da UFRGS, assim como a de Pelotas, foram reprovadas na avaliação do governo. Acredito que esta reprovação nada tem a ver com insuficiência de notas, mas com o boicote realizado pelos alunos contra a realização da prova. Isso me faz lembrar um incidente acontecido no hospital onde fiz a minha residência, há muitos anos.

Naquela época, em uma universidade de Porto Alegre, foi estipulada uma prova para avaliação dos residentes da GO. Após uma reunião com os residentes de 1º, 2º e 3º anos, a referida prova foi solenemente boicotada pelos mesmos, ainda que houvesse a promessa de que nenhuma nota viria a ser publicada.

Eu entreguei minha prova – neguei-me a boicotar – e fui falar com o professor responsável. Disse a ele que poderia publicar a nota com meu nome em letras garrafais na porta do departamento. Se minha insuficiência existia queria reparti-la com todos os responsáveis: eu mesmo e quem deveria estar me treinando. Nada disso ocorreu, e o assunto morreu por aí. Não houve avaliação da residência médica, pelo menos naquele ano.

Entretanto, sempre fiquei com dúvida sobre as razões pelas quais meus colegas celebraram a ideia de boicotar uma avaliação. A desculpa “oficial” era de que a residência médica, por ser tão “falha” no treinamento que nos oferecia, não tinha condições morais para nos avaliar. Discordei imediatamente desta ideia. Talvez fosse justo dizer que o sistema não poderia nos “CULPAR”, mas tinha a obrigação de nos avaliar, até para ter elementos para aquilatar as suas próprias falhas no processo de ensino. Nossa atitude, entretanto, refletia mais do que indignação com a falha pedagógica e a escassez de treino. Mesmo sendo justo o descontentamento com a ausência total de professores para nos ensinar a atenção ao parto, coisa que era realizada por residentes mais antigos e contratados desinteressados, nossa ação continha elementos inconscientes e não revelados.

Sim, havia muito mais do que o meramente manifesto nas palavras e atos superficiais. Existia, em verdade, um sentimento de profundo medo com a avaliação que pudesse ser feita sobre o nosso desempenho. Havia o pânico de que nossa verdadeira capacidade fosse desvelada, escancarando os meninos e meninas que se escondiam por debaixo de jalecos brancos, estetoscópios no pescoço, receitas decoradas, protocolos rígidos e infinitas fórmulas dialéticas de dissimular a nossa mortal insegurança. Havia um temor de que a construção arrogante e falsa de nosso saber fosse exteriorizada, mostrando nossos pés de barro.

A negativa dos alunos mais festejados – medalhas de Ouro no quesito “universidade” – em realizar uma prova que demonstraria objetivamente a sua qualidade ou competência segue a mesma linha. Muito mais do que um protesto contra o ensino – que até pode ser verdadeiro, como era a negligência do corpo docente em minha época com relação ao ensino da atenção ao parto – existem elementos mais profundos que podem dar conta da negativa peremptória em realizar a a avaliação.

Medo explica. Só o medo pode nos garantir o elemento essencial para entender. Oferecer aos outros a imagem da nossa incapacidade é sempre um ato heróico. Expor com bravura nossas fragilidades e temores é algo que dificilmente encontramos em meninos recém saídos das fraldas da universidade.

No famoso artigo “Obstetric training as a rite of passage” de Robbie Davis-Floyd existe um parágrafo que explica muito sobre o medo, a tensão constante, a angústia e a “visão em túnel” que o residente desenvolve sobre este tema.

“A maioria de nós entrou para a faculdade de medicina com ideais muito humanitários. Eu sei que cheguei dessa forma. Mas todo o processo de educação médica faz você desumano. Eu vi colegas totalmente devastados quando não sabiam uma resposta A coisa toda pode torná-lo bastante deformado. Eu acho que é aqui que os sentimentos começam, quando você sente que alguém lhe deve alguma coisa, porque você realmente, você sabe, você bloqueou uma boa parte de sua vida. Pessoas perderam namorados e namoradas, noivas e casamentos. Houve algumas tentativas de suicídio. Assim você esquece o resto da sua vida. E então, no momento em que você começa a residência, você termina por não se preocupar com nada além das mais recentes técnicas que você pode dominar e quais os sofisticados testes que você pode executar.”

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O Fantasma do Café

Fui limpar o coletor lotado de cápsulas vazias da minha cafeteira Nespresso (sim, sou chique) e quando derrubei o conteúdo do coletor sobre a pia apareceu um líquido preto, uma espécie de “concentrado de café” que havia no fundo. Sem demora peguei um pano para limpar a sujeira quando apareceu um espírito, uma espécie de elfo com a face um pouco esverdeada, que com olhos suplicantes me pediu: “Por favor, deixe mais um pouco sobre a pia. Quero sentir esse aroma. Eu preciso, por favor.”

Claro que eu não podia fazer outra coisa a não ser autorizar. Não haveria razão para impedir que alguém, mesmo um elfo com a cara esverdeada, pudesse simplesmente cheirar o café concentrado e líquido alojado no fundo da cafeteira que agora manchava minha pia de inox. De imediato lembrei que aquele tom de verde de sua face eu havia visto há muitos anos no filme “Ghost”, onde um viciado em cigarros procurava fumantes no metrô de Nova York para absorver a fumaça que expeliam. Sim, eram da mesma legião, mas com adições diferentes. Dei um passo atrás e fiquei observando sua reação. Nos poucos minutos em que esteve ao meu lado permaneci com o pano na mão e o olhar fixo em sua busca pelas gotas dispersas sobre o balcão. Olhava para cada uma delas com a avidez de um faminto, observando as formas, cores, tonalidades e tamanhos.

Parecia não se importar com a minha presença, ou com a minha pressa em limpar a sujeira restante. Tive ímpetos de apressá-lo, ou mesmo falar que tenho mais coisas para fazer e não posso deixar a pia suja. Todavia, pensei que a simples menção da palavra “suja” poderia ofendê-lo. Temi uma reação exagerada por parte do elfo, como se estivesse ofendendo a “pátria-mãe”, ou algum outro símbolo importante em sua “vida”, se é que se pode falar dessa maneira para alguém que obviamente já morreu. Como poderia ser considerado sujeira algo que ele procurava com tamanha vontade? Seus olhos esbugalhados rastreavam cada centímetro da pia, como um cão farejador, olhando com atenção as formas inusitadas que as gotas enegrecidas faziam em contato com o aço.

Restava-me a opção do pigarro, secularmente usada para manifestar uma contrariedade. “Ahamm”, disse eu timidamente, e foi quando ele se voltou para mim e, como desperto de um longo devaneio, abriu seus olhos com gigantescas aréolas vermelhas ao redor e disse:

Ora, desculpe. Eu me perdi. Boa safra aqui. Ristretto em sua maioria. Talvez 60%, mas pude perceber Arpeggio e Livanto. Porém nesta gota aqui – apontou uma pequena no canto, perto do pé da cafeteira – pude notar traços inconfundíveis de Cosi. Há mulheres na casa, por certo?

Respondi afirmativamente com a cabeça, e ia explicar, mas fui interrompido

Não, senhor, não é necessário se desculpar. Você não é o único. Cafés de baixo teor de cafeína são encontrados até em casas de cafeólatras famosos. Não há como ter um controle tão rígido do que existe em sua casa. Como saber se seu filho apareceu, trouxe uma amiga, ela não gosta de café forte, e uma coisa leva a outra e aparecem rastros de Cosi e Volluto. Não há razão para se envergonhar.

– Pois é, me desculpe. A gente tenta educar os filhos, mas essas coisas eles aprendem na rua. Olha eu queria me desculpar. Se quiser posso passar um agora e…

O elfo deu uma risada histriônica que parou subitamente, voltando à sua face anterior de tristeza desesperançosa.

Não bebo mais café, sinto muito. Meu corpo diáfano e minha capa perispiritual são capazes de absorver apenas porções minúsculas de aromas e eflúvios do vício de outrora. Não queria lhe assustar, apenas percebo quando alguém está derrubando um coletor de Nespresso mesmo quando estou longe. Estava, na verdade, na casa ao lado, quando o tilintar das cápsulas me trouxe até aqui.

– Bem, disse eu, se quiser posso lhe avisar da próxima vez. Sabe como é, isso aqui vai fora mesmo então…

Então… ele havia desaparecido. Da mesma forma sorrateira que veio se foi. Não deixou rastro. Queria saber mais sobre ele e sobre suas adições. Sei de algumas amigas minhas que certamente estarão no mesmo caminho, e gostaria que ele estivesse por perto para recebê-las quando chegassem no plano espiritual. Um mundo sem café deve ser triste e sombrio, porém um mundo em que a única alegria é o “pó negro das estrelas” também deve ser complexo.

Olhei para a formação de pingos escuros à minha frente mais uma vez e deixei o pano de lado. Acho que a pia pode ficar mais um tempo manchada. Talvez apareça outro elfo que precise dessas preciosas gotinhas.

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Memória

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Tenho uma memória condizente com a minha idade. Isto é: uma porcaria. Nomes de ruas, atores de Hollywood, nomes de antigas pacientes e seus filhos e títulos de filmes me fogem à lembrança com muita frequência. Por sorte eu pergunto algumas coisas pra Zeza, o que ajuda um pouco. Não que ela tenha uma boa memória, mas os “black spots” dela são diferentes dos meus. No “conjunto” nós dois juntos temos uma boa memória.

Eu gostaria de ter a memória prodigiosa do meu irmão Roger sobre jogos do Grêmio nos campeonatos gaúchos dos anos 80, ou a memória da minha filha Bebel para qualquer coisa, porém não tenho estes dons. Entretanto, minha memória é seletiva e peculiar.

Tenho uma memória visual muito boa, e eu mesmo me surpreendo com ela. Há alguns dias repeti com surpresa um desses momentos. Estava no shopping, na “praça de alimentação” (nome pomposo para refeitório ou comedouro) quando, distante uns 15 metros de onde eu estava, um senhor careca se ergueu da cadeira e encaminhou-se para pegar sua bandeja. Esteve o tempo todo de costas para mim. Nesse instante, vendo-o caminhar, um sinal acendeu em minha memória.

– Esse cara estudou comigo na escola.

– É médico? perguntou Zeza.

– Não, respondi, ele estudou comigo no segundo grau, e eu não o vejo há mais de 40 anos.

Quando voltou com sua bandeja pude ver seu rosto, mas esta imagem apenas confirmou minha impressão inicial. Eu o reconheci pelo jeito de caminhar, a forma como esconde a cabeça entre os ombros, como encolhe os braços a cada passo e como gira a cabeça sem que o corpo acompanhe. E vejam… ele é calvo agora, mas na época da escola ostentava uma longa cabeleira.

A memória me parece composta de fragmentos que apenas fazem sentido quando justapostos. As coordenadas físicas do meu colega, quando colocadas lado a lado, levaram a um ponto único e especial no mapa da minha memória. Quando o ponto foi descoberto girou a chave do reconhecimento. E isso sem que fosse necessário ver seu rosto!

Passei o almoço pensando nas peculiaridades da memória porque antes de chegar à cafeteria quase esbarrei em um bela menina de sorriso meigo que foi uma paquera de escola quando tínhamos 15 anos. A mesma simpatia e timidez cativantes, o mesmo rosto redondo com covinhas. Eu a reconheci pelo sorriso e o jeito de olhar, baixando o queixo e olhando de forma reservada, de baixo para cima. A única dificuldade, e o que efetivamente me impediu de cumprimentá-la, foi que ela tem realmente 15 anos, e eu inequivocamente envelheci. A imagem que vi era apenas uma projeção paralisada há 40 anos. Será que ela congelou seu corpo nas últimas 4 décadas e acabou de ser desperta do seu sono criogênico? Será a menina que vi o clone que fez de si mesma?

Nunca saberei. Ela passou e apenas a lembrança permaneceu. Queria perguntar a ela como a vida vida a tratou, que plantas semeou, que amores, filhos, ideias e sonhos colheu. O que fez ela com a vida que ganhou?

O nome? Não lembro. Tenho uma memória péssima.

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De Ponta Cabeça

1 – A queda

Trabalhava eu em um hospital militar de Porto Alegre há mais de 20 anos. Eu, e um pequeno grupo heterogêneo de obstetras, trabalhávamos no ambulatório e fazíamos cobertura para os partos que ocorriam no centro obstétrico. Esta pequena unidade hospitalar possuía um grupo maravilhoso de enfermeiras obstetras que atendiam o plantão obstétrico, muitas delas hoje são professoras de enfermagem na universidade federal. Minha opinião é que – grande novidade – o plantel de enfermeiras era muito mais qualificado do que os obstetras que lá atendiam; alguns francamente desinteressados, outros cesaristas tecnocráticos e apenas um criticava o modelo cesarista e tinha um vívido interesse em atender de forma humanizada e com base em evidências. Naquela época encontrei um destes médicos numa praia catarinense sentado em uma cadeira de praia olhando fixamente para o mar. Era um obstetra cinquentão e solteiro que morava com sua mãe. Imediatamente me veio à lembrança a imagem de um personagem riquíssimo da literatura mundial, o compositor austríaco Gustav von Aschenbach, imortalizado por Dirk Bogarde no filme “Morte em Veneza” de Luchino Visconti (baseado na obra homônima de Thomas Mann). Talvez seu olhar perdido no oceano fosse, em verdade, uma busca angustiosa pela estética perfeita nas formas andróginas de um Tadzio insular.

Pois neste hospital as enfermeiras obedeciam uma regra muito restritiva: só poderiam atender um parto, mesmo em emergência, se houvesse um médico ao seu lado para se responsabilizar. Certamente que o diretor do hospital – um cirurgião geral militar absolutamente arrogante – jamais aceitaria (ou compreenderia) a excelência do trabalho das enfermeiras obstetras para o atendimento ao parto eutócico. A regra era baseada na desconfiança essencial de uma corporação sobre o trabalho da outra, mas estamos falando de um fato ocorrido há mais de 20 anos. Sejamos um pouco condescendentes.

Pois o fato que ficou em minha lembrança até hoje ocorreu por causa de um parto de emergência. Na verdade ele me foi relatado pela enfermeira que o protagonizou, e tenho em minha memória apenas as cenas imaginadas, construídas por sobre o seu relato.

Durante o seu plantão noturno a enfermeira recebe uma paciente atendida no ambulatório do hospital em pleno trabalho de parto. Encaminha-a para a sala de exames e descobre dois fatos que seriam a base de todo o caso: a dilatação estava completa e o bebê estava sentado. Sendo ela uma boa enfermeira e parteira de vocação, apenas sorriu para a paciente enquanto explicava a situação, deixando clara a ela que o bebê nasceria em alguns minutos. Imediatamente correu para o telefone e ligou para o obstetra de sobreaviso. Este disse que estava saindo imediatamente de casa mas, como morava na zona norte, levaria 30 minutos – na melhor das hipóteses – para chegar ao hospital que ficava no outro extremo da cidade.

Não haveria tanto tempo, e a enfermeira bem o sabia. Ela mesma teria que atender o parto de um bebê na posição pélvica completa. Entretanto, lembrou da normativa do hospital de só atender partos na presença de um médico e lembrou que o único plantonista daquela noite era o Dr. Fagundes Mayo (nome fictício), pneumologista e intensivista, que estava no andar de cima de plantão na UTI. Imediatamente ligou para o setor e convocou o médico a assistir ao parto junto com ela.

– Preciso mesmo ir?, perguntou ele, visivelmente contrariado.

– Sim doutor, são as normas, desculpe.

Mais uma contração e a ponta branca da nádega apareceu no introito. A mãe estava de cócoras com as mãos atrás apoiadas no solo, por sobre um campo esterilizado azul que a separava do chão. Sua face estava coberta de gotículas de suor, que coalescendo, escorriam pelos sulcos de seu rosto jovem. A sala de parto possuía uma curiosa construção. No canto do acanhado aposento havia uma escada espiral que foi construída para produzir um acesso direto e rápido para o andar de cima, onde ficava a UTI. Era por ali que o Dr Fagundes desceria para acompanhar o parto que a enfermeira atendia. Cada contração que se finalizava e a enfermeira olhava para o alto da escada, aguardando a chegada do médico, não porque esperasse qualquer tipo de ajuda real, mas apenas para não quebrar as normas da instituição e receber uma reprimenda imerecida.

Outra contração forte e a nádega saltou para fora da vagina, pipocando como um cubo de gelo que se solta da forminha que colocamos no congelador. O tempo agora se contava em minutos apenas. A cabeça da enfermeira virou-se mais uma vez para o alto da escada espiral, mas nada do plantonista aparecer. Mais uma contração e o corpo todo do bebê surgiu, sendo contido apenas pelos braços que se mantinham ainda enclausurados. Foi nesse exato momento em que ela escutou os passos apressados do Dr Fagundes descendo os primeiros degraus da escada. Após o primeiro giro ele parou e ficou paralisado observando a cena. Talvez as poucas experiências do meu colega fossem com partos um pouco mais “normais”. A visão de um bebê “sem cabeça”, uma espécie de alien disforme brotando de uma vagina, rodeado por gritos e suores, foi demasiada para a curta experiência de um pneumologista de formação. Com o olhar fixo na imagem e ainda tentando entender que parte do corpo se apresentava diante dos seus olhos, seu cérebro escolheu a forma mais simples de lidar com a situação. Simplesmente apagou.

Do alto da escada o jovem médico caiu desmaiado, rolando abaixo em total apagamento sensorial, para o pavor da enfermeira e da paciente.

Talvez o assombro da queda tenha sido frutuoso, pois o susto ofereceu à paciente o influxo final de adrenalina necessário para a expulsão. “Ploct“. O bebê veio ao mundo de olhos arregalados e repousou imediatamente no colo da mãe. Nunca uma enfermeira ofereceu um bebê à sua mãe com tamanha rapidez, mas neste caso foi pela existência de um outro “paciente” a atender. De pronto acolheu o colega de plantão, que aos poucos se recuperava sem nenhum trauma importante ou evidente. Claro, um pouco da sua onipotência saiu arranhada, como evitar?

“Desculpe, desculpe… não sei o que me deu. Perdão, acho que foi alguma coisa que eu comi no refeitório do hospital”.

Sim, a comida, eterna culpada universal das nossas fragilidades. Das náuseas gravídicas aos nossos mais recônditos e inconfessos temores. Uma lástima que hoje em dia os médicos reconhecem os minúsculos tumores e cistos em imagens borradas de ultrassons e tomografias, mas a vida pura, viva, intensa, pulsante e misteriosa escapa-lhes à compreensão. Um bebê nascendo não poderia ser algo espantoso para um profissional que jurou dignificar a vida em todos os seus momentos. Mas o mundo da tecnocracia oferece o distanciamento e a objetualização de quem nos procura, e os corpos animados se transformam em figuras impressas em papel ou gráficos complexos, onde cada ponto é uma vida que se vai, ou uma que acaba de chegar.

2 – A Lição

Com 21 anos de idade, imberbe e extasiado com as lições que o mundo me oferecia, eu cumpria um ritual cansativo mas empolgante: todas as sextas feiras cumpria meu plantão de 24h no hospital de uma cidade vizinha, na função que na época era chamada de “interninho”.

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Um “interno” era um estudante de medicina, entre o segundo e o quinto ano, que cumpria funções braçais, simples e por vezes extenuantes no hospital. Cabia a nós fazer suturas nas cabeças de bêbados brigões, repetir prescrições de internações sem sentido, preencher guias de internação, avaliar pulso e temperatura de pacientes, liberar a dieta e até fazer constatação de morte quando algum velhinho partia para o mundo espiritual no meio da madrugada. É claro que a maioria dessas atividades seriam vistas com outros olhos hoje em dia, mas estou contando uma história do início dos anos 80, com várias décadas a nos separar.

Entre as atividades rotineiras dos internos estava o auxílio em cirurgias. Foi neste hospital que eu dei meus primeiros pontos, minhas desajeitadas suturas e minhas absurdas episiotomias. Não havia nenhum controle rígido sobre esta atividade. Estudantes com cara de criança, como eu, entravam despudoradamente para auxiliar cirurgias em hospitais, mas é importante lembrar que alguns poucos anos antes eram as auxiliares de enfermagem, com quase nenhum treinamento, quem realizavam estas funções.

Uma tarde durante meu plantão sou chamado ao bloco cirúrgico para auxiliar em uma cirurgia de “urgência”, assim me foi dito. “Uma cesariana, corra aqui!!”, disse pelo telefone a freira mal encarada, a chefona superior do bloco cirúrgico. Lá fui eu escada acima. Troquei de roupa em segundos e quando entrei na sala de cirurgia encontro a paciente deitada na cama, ostentando um barrigão reluzente por sobre a mesa de operações.

– Vai, menino. Escova essas mãos. O Dr. Wenceslau já vai chegar e precisamos operar agora, imediatamente!! disse quase gritando a enfermeira chefe.

Corri para a larga pia da sala contígua e me escovei o mais rápido que pude. Terminei exatamente quando o Dr. Wenceslau apareceu, com cara de cansado. Ainda tive a oportunidade de lhe perguntar a razão da cirurgia e da emergência, mas ele não teve tempo de responder. Enquanto eu me dirigia de volta à sala de cirurgia escutei um grito agudo e estridente. Mais dois passos, e já dentro da sala, percebi que o grito veio de uma menina da enfermagem, e não da paciente. A cena ficou embaralhada na minha cabeça, pois eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Aproximei-me da paciente e perguntei à enfermeira o que ocorria, e foi neste momento que a técnica de enfermagem levantou o lençol que cobria as pernas da paciente, escancarando a inesperada cena. Com os joelhos levantados e ainda deitada na mesa cirúrgica a paciente tinha metade de uma criança dentro de sua vagina, e a outra metade repousando sobre o lençol da mesa. Entretanto,  a metade que eu podia ver era a metade de baixo; era um bebê na posição pélvica que estava nascendo.

Já com as luvas calçadas, automaticamente segurei o corpo do bebê, mas sem saber o que fazer a seguir. Com 21 anos de idade eu jamais havia presenciado um parto assim, quanto menos dado assistência a um. No afã de fazer algo tracionei levemente o bebê em minha direção e percebi que algo trancava a progressão do restante do corpo. Logo em seguida ao meu gesto mais brusco ouvi um grito vindo de outra sala: “Não puxe!!!” Era o Dr. Wenceslau que ainda estava se escovando. Da porta, e ainda esfregando a escova nos braços pintados de iodo, ele continuou a me orientar:

– Seja gentil. Puxe o corpo do bebê para um lado e com a outra mão libere sem fazer força o braço do lado oposto. Muito bem. Agora, com a mesma delicadeza faça do outro lado. Certo. Continue, só falta a cabeça. Agora é a parte final, e você precisa ir com calma. Levante o bebê em direção à mãe… devagar, muito bem… Isso !!

Pronto, o bebê havia nascido. Assustado e extasiado eu havia atendido meu primeiro bebê pélvico, que foi salvo da cirurgia por uma coincidência e pela insistência inconsciente de uma mãe em parir seu bebê numa velocidade superior à pressa dos profissionais. Também foi minha primeira experiência com “tele conferência”, muito antes da invenção da internet. As orientações da sala de escovação me ajudaram a cumprir minha função simples, mas essencial, de ajudar um bebê a nascer. Não sei se ainda ensinam alunos de medicina a atender partos pélvicos. Hoje em dia o medo é tão grande que esta habilidade aos poucos se desfaz. Reconheço que nos últimos 30 anos as técnicas de atenção às apresentações pélvicas mudaram substancialmente, e percebo que o bebê daquela tarde foi assistido de um modo que hoje em dia não se justificaria. A nádega da mãe apoiada na mesa, o excesso de intervenções do “médico”, a manobra de levantar o bebê estão todas defasadas, mas na ocasião era o melhor que se sabia, e o melhor que pude fazer.

Espero que a nova geração de médicos tenha uma vivência mais próxima dos desafios que um parto nos apresenta, e que eles não sejam resolvidos da forma bruta e simplista da cirurgia. Preservar o nascimento de forma livre é um projeto ecológico e essencial para preservar o que de humano existe em nós.

3 – Função Paterna

Maria Clara me procurou já no início de sua gravidez buscando uma experiência mais natural para seu parto. Professora de história na universidade local, casada com um artista plástico “avant-garde”, ela queria que seu primeiro filho fosse trazido ao mundo de uma maneira suave e tranquila, para que o início desta vida pudesse ser o melhor possível. Dona de um temperamento enérgico e agitado ela parecia o centro estelar do casal, em volta do qual um marido carinhoso, mas apático e tímido, gravitava, com circunvoluções lentas e pacienciosas. As consultas eram sempre guiadas por ela; ele apenas sorria e mantinha-se silencioso. Com seus cabelos ora verdes, ora roxos, pintados como forma de trazer a arte ao seu semblante, ele se limitava a concordar com as determinações firmes de Maria Clara. Ela era a empoderada protagonista de uma história escrita por ela.

O pré-natal seguiu sem maiores sobressaltos até que na consulta da 36ª semana confirmou-se o que há algumas semanas estávamos suspeitando: a sua pequena filha teimava em permanecer sentada, pélvica, com o dorso à direita e a cabecinha, como um pequeno abacate, repousava logo abaixo das costelas. Como Maria Clara era de compleição magra foi fácil constatar a posição alterada, que a ecografia posterior apenas confirmou.

– Podemos tentar fazer uma versão externa, suave e tranquila, para tentar mover a pequena. Que achas?

Ela olhou para o marido que me observava ao seu lado, mas ele nada disse, apenas deu de ombros. Em seu olhar ele parecia dizer “se for para ajudar, porque não?”. Expliquei a ela que a versão só poderia ocorrer se fosse absolutamente suave, o bebê estivesse desencaixado e não causasse nenhuma pressão ou dor. Ela aquiesceu e deitou-se na mesa de exames. Algumas poucas e delicadas trações foram suficientes para perceber que ela não cooperaria. Estava por demais tensa e preocupada. Não entendia bem o que havia ocorrido e a ideia de fazer um bebê girar massageando sua barriga lhe pareceu invasiva. Assim que pressionei a cabeça do bebê em sentido anti-horário ela aumentou o tem da voz e disse:

– Não quero! Pode parar. Estou nervosa, não tenho condições de continuar. Deixe que ela fique na posição que escolheu. Desculpe.

Expliquei a ela que não deveria se desculpar e que aquela era apenas uma tentativa. Sem uma cooperação plena de confiança nenhuma tentativa prosperaria. O marido continuava em silêncio, observando nossa conversa. Disse, finalmente, que poderíamos continuar tentando com moxabustão, homeopatia, rebozo e exercícios. Pedi que voltasse na semana seguinte para conversarmos e me despedi. Uma posição alterada sempre suscita uma série de questões. O percentual é de 4 a 6% de bebês que permanecem pélvicos até o final do ciclo gestacional, mas a pergunta que sempre me fiz foi: eles têm alguma razão para escolher esta postura? Será coincidência ou haverá alguma causalidade recôndita a guiar seu posicionamento? Sentar-se, de braços cruzados sobre o colo uterino é uma determinação fetal, ou um ordenamento materno? Se pudermos “viajar” para mais além, haveria um conluio secreto entre ambos para que aquela posição imprimisse um destino especial, conhecido apenas por ambos? Porque um bebê insiste em colocar-se de costas para o mundo? Talvez eu jamais tenha a resposta para estas perguntas.

Nas semanas seguintes houve pouca modificação. Maria Clara voltava a cada consulta convencida de que nada havia se modificado. Dizia que, se houvesse uma mudança de posição, ela certamente acabaria sabendo. Entretanto, sua gestação mantinha-se plácida, tranquila, serena e imóvel. Nenhuma diferença visual, e os batimentos cardíacos continuavam a ser percebidos como um tropel de cavalos bem acima da cicatriz umbilical. Era teimosa a menina, mesmo diante dos nossos exercícios, tratamentos e súplicas. Com 39 semanas de gravidez Maria Clara, entre decepcionada e constrangida, veio me comunicar sua decisão.

– Ricardo, não tenho condições de passar por um parto deste tipo. Falta-me a coragem. Minha família, com exceção do meu marido, não me apoia sequer para um parto normal. Quando souberam que o bebê estava sentado queriam me internar na hora e operar. Foi uma dificuldade explicar que tudo estava bem e que eu ia manter o meu pré-natal como havia planejado. Entretanto, ter a minha filha nessas condições está para além das minhas forças e minhas capacidades.

Olhei para seu marido que permanecia em silêncio. Minha pergunta silenciosa e insistente era se a sua atitude era de respeito à autonomia que ela requisitava para si ou apenas um desinteresse. Havia um “respeito aos espaços” ou uma falta de aptidão para questionar e opinar sobre uma questão que parecia lhe fugir ao controle? Resolvi perguntar a ela sobre sua decisão.

– Maria Clara, existe alguma coisa que eu possa dizer para lhe demover da decisão de partir para uma cesariana?

Ela mais uma vez olhou para o marido, que por sua vez permaneceu imóvel.

– Não. Esta é a minha decisão.

Estimular o protagonismo tem este preço. Se você realmente quer promover a autonimia plena precisa estar preparado para as decisões que não lhe agradam. Entretanto, como negar à uma paciente que seja honesta com seus limites? Como assumir como meta o protagonismo restituído a elas sem pagar o preço – por vezes muito alto – da decepção? Como ousar subverter a ordenação centenária que coloca o médico em posição superior sem correr o disco de encontrar pelo caminho uma escolha que não lhe parece sensata? Não há como fazer uma omelete sem quebrar os ovos.

– Ok, se não há o que dizer, quem sabe ainda exista espaço para planejarmos a sua cesariana da melhor maneira possível. Um parto pélvico planejado apenas pode ocorrer com a plena aquiescência e colaboração da mãe. Não há, dentro da humanização, espaço para imposições deste tipo. Bem sabemos o quanto um corpo pode se fechar e combater a própria fisiologia, seja por uma contrariedade consciente ou por um medo que brota do território obscuro das emoções inconscientes. Entretanto, creio que uma cesariana seria menos danosa se o bebê pudesse ao menos dar seus sinais de nascer. Assim teríamos o nascimento de sua filha na data que ela determinou, e não no momento que seria melhor para os outros. Que acha da ideia de sua filha escolher a data do seu aniversário? Ela pela primeira vez sorriu durante aquela consulta. Olhou para o marido que, como de costume, concordou com a ideia.

– Como seria? perguntou-me.

– Quando começarem as contrações me chamem. Elas não precisam sequer ser fortes o suficiente para dilatar o colo, basta que sinalizem o início do trabalho de parto. Como é seu primeiro filho espera-se que este processo leve algumas horas, portanto teremos tempo de ir para o hospital, chamar a equipe e fazer a sua cirurgia. O que lhes parece?

Concordaram com a ideia sem questionar. Ficou combinado que tão logo as primeiras contrações chegassem o chamado seria feito e a equipe se encontraria no hospital para ajeitar os pormenores da chegada de sua filha. Não se passaram mais do que alguns dias até que recebi o telefonema de Maria Clara me avisando que havia percebido umas frágeis e esparsas contrações, além da perda de uma gota de sangue, percebida após urinar.

– É o momento, disse eu. Podemos ir para o hospital. Arrume suas coisas que eu chamarei a equipe. Nos encontramos lá.

Imediatamente liguei para meu colega anestesista, parceiro de décadas. Avisei que se tratava de uma cesariana por apresentação pélvica e que podíamos ir para o hospital agora, para evitar que ela tivesse contrações sem necessidade. Ele concordou de imediato e eu arrumei as coisas para ir ao hospital. Nessa ocasião houve uma coincidência curiosa. Quando estacionei meu carro no apertado estacionamento do hospital percebi que um carro fazia o mesmo ao meu lado. Pois era Marco, o anestesista. A piada óbvia não pôde ser evitada: “Se tivéssemos combinado isso nunca aconteceria”. Caminhamos lado a lado pelos corredores e pegamos o elevador até o terceiro andar, onde fica o centro obstétrico.

Quando a porta do elevador se abriu fomos surpreendidos por gemidos vindos do CO. Ao escutá-los ainda tive a oportunidade de brincar com meu colega e dizer “Pelo menos algum parto normal vai ocorrer neste hospital hoje”. Estávamos em um dos hospitais líderes de cesarianas na cidade, que já na época ultrapassava os 80%. Poucos médicos ainda ousavam atender partos normais por lá, e hoje em dia o número diminui de forma marcada, aproximando-se tristemente de zero. Apertei a campainha do centro obstétrico ainda conversando alegremente com Marco. A enfermeira abriu a porta rapidamente, e sorriu ao me ver.

– Graças a Deus o senhor chegou doutor. A sua paciente está muito ansiosa. Não para de gritar e disse que está com muita contração.

– Minha paciente quem?, perguntei eu

– Ora, a Maria Clara. O senhor não pediu a ela que viesse para cá? Ela está em franco trabalho de parto e disse que tem vontade de fazer força!!

Não é possível. Eram dela os gemidos que ouvimos do corredor! Eu havia falado com ela havia menos de uma hora, com leves contrações espaçadas e frágeis. Não poderia ter progredido de forma tão rápida e intensa em poucos minutos. Eu precisava avaliar para confirmar o que estava acontecendo. Ao lado esquerdo da porta de entrada ficava a sala de exames, para onde as pacientes iam para o exame inicial e a avaliação dos sinais vitais, e de lá se dirigiam para a sala de pré- parto e parto. Abri lentamente a porta e pude ver Maria Clara transtornada, segurando a mão de um silencioso marido de cabelos verdes. Quando me viu, gritou a todos os pulmões.

– Porque demorou? Estou com muita dor! Quero a minha cesariana agora! Nós combinamos a cirurgia, você concordou! Não me deixe esperar mais, por favor!

O marido parecia atônito e não ousava falar, talvez com medo da reação de sua histriônica esposa. Olhou para mim timidamente, e de forma educada perguntou se poderíamos dar seguimento ao nosso acordo inicial.

– Claro que sim, o anestesista está aqui comigo. Tudo foi rápido demais, você recém tem uma hora de trabalho de parto. As contrações surgiram de forma inesperada, intensas e frequentes. O anestesista já está pronto, do lado de fora desta porta. A nós basta apenas passar para a sala de cirurgia, chamar meu auxiliar e avisar a neonatologia. Isso não ultrapassa uns poucos minutos. Tente aguentar firme.

Ela ainda esboçou um “mas vai demorar?”, mas enquanto ela ensaiava esta queixa eu e seu marido a levantamos da maca onde estava e a levamos caminhando até a entrada da sala cirúrgica. Entretanto, antes que pudéssemos fazer isso, ela parou para mais uma contração, e pude ouvir o som inconfundível da guturalidade, a conexão sonora grave entre a glote e o colo uterino, o som das expulsões que antecipa os nascimentos.Surpreso pelo som que acabara de ouvir, segurei sua mão com firmeza e pedi que parasse.

– Espere, entre na sala de parto, disse eu. Preciso avaliar imediatamente onde está o seu bebê.

Colocamos Maria Clara na cama de lençol branco e acendemos a luz. Pedi à enfermeira uma mão de luva para realizar o toque vaginal. Esperei por menos de um minuto pela próxima contração e, quando a nova onda surgiu, pude avaliar o que acontecia no íntimo de suas contrações. Uma nádega pequena cobria inteiramente a cavidade vaginal. A dilatação tsunâmica havia se completado em minutos, e a descida do bebê foi espetacular. Afastando-se os lábios vaginais já era possível vislumbrar a bolsa protusa e a nádega pálida que se escondia por detrás, no aquário de bolsa, vérnix e água. Levantei os olhos para o casal e lhes disse, sem pestanejar:

– Não há como segurar. Este bebê vai nascer. Está dentro da vagina, e nada mais o segura. Não há tempo, e muito menos razão, para se fazer uma cesariana. Sua filha vai nascer dentro de instantes.

Maria Clara me olhou com olhos de pavor. Fitou os olhos do marido e depois os meus. Colocou-se de joelhos na cama e clamou aos céus:

– Por favor, Ric, faça alguma coisa. Uma criança não pode nascer assim!! Ela vai ficar presa, vai entalar, vai sofrer!! Eu não quero que ela venha ao mundo desta forma! Nós havíamos combinado que você ia me operar, e eu fiz tudo o que foi combinado. Eu não tenho culpa da velocidade, mas você pode resolver isso. Por favor, me opere, agora!!

Olhei para os olhos de Maria Clara e tentei, da forma mais calma do mundo explicar as características emergenciais do caso.

– Acho que você não entendeu. Não se trata de querer ou não operar. Não se trata muito menos de cumprir ou não o acordo anteriormente firmado. Sua filha vai nascer em instantes, basta que você solte o corpo e a ajude. Ela está praticamente saindo. O anestesista está ali, do lado de fora, mas até levar você para o bloco e operar ela já estaria nos seus braços.

Aponto para a porta da sala de parto onde o anestesista estava nos acompanhando pela fresta. De lá ainda pôde dizer “estou aqui se precisarem de mim”. Depois disso mais uma contração e pude constatar o “sinal do bochecho”, que é como chamo a apresentação que empurra o períneo fazendo duas “bochechas” ao lado do óstio vaginal. Não adiantou muito a minha fala, e antes que a próxima contração chegasse ela despejou seu derradeiro esforço de capitulação.

– Você me enganou! Disse que faria a cirurgia e está me enrolando. Eu não mereço ser tratada assim, quero minha filha!!

Finalmente, a cartada final. Virou seu rosto para a esquerda e olhando duramente para o marido disparou sua queixa mais grave, entre gritos, gemidos e choro.

– E você não faz nada? Está me deixando aqui sofrer e não diz coisa alguma, nenhuma palavra, nenhuma defesa? Estou lidando sozinha com toda essa contrariedade e de você não recebo nenhuma ajuda. Quando é que você vai…

– Cale-se. Fique em silêncio por um minuto apenas. Pare de falar e concentre-se no que você tem a fazer. Eu mesmo vi que nossa filha está saindo. Ela vai mesmo nascer agora. O doutor está certo, e isto é o melhor a fazer. Confie e pare de tagarelar sem parar! Chega de choramingos inúteis e vazios. Faça força e feche a boca!

Depois disso apenas o silêncio, que durou a eternidade de alguns poucos segundos. Sim, eu não poderia falar isso; jamais teria esse direito. Os gritos severos vieram do seu esposo, o mesmo que se mantivera quieto por todo o tempo, e cuja voz eu havia escutado não mais do que meia dúzia de vezes durante todo o pré-natal. Imediatamente, como se fosse banhada por uma cachoeira de sensatez, ela silenciou. Olhou para mim e depois para o marido. Fungando e secando o rosto umedecido pelas lágrimas, perguntou:

– Então vai nascer mesmo? Devo fazer força? Vai dar tudo certo?

– Claro, dissemos os dois. E vai ser agora.

Ela reconheceu a chegada da contração e pela primeira vez vi seu corpo relaxar e entregar-se à força de seu útero. Solta dos arreios da tensão de seu corpo, que se contrapunham às forças expulsivas, e seu bebê pôde finalmente escorregar pela vagina. Mais uma última força e o desprendimento da cabeça foi suave e tranquilo.

– Nasceu!! gritou ele, e de sua garganta veio um grito trancado há muito tempo. Sua cabeça voltou-se para cima e começou uma mistura incompreensível de lágrimas, choro e gargalhadas ruidosas. O homem do cabelo verde extravasava de alegria pela tensão concentrada de um parto cuja rapidez desafiou toda a nossa paciência e sangue frio.

Ela aconchegava seu bebê ainda com estranheza. Nem 15 minutos haviam se passado desde que chegamos, e ela já estava com sua menina no colo. Ria e chorava, olhava para os primeiros lamentos de sua filha, limpava-lhe o rosto e acariciava seus cabelos. O marido a abraçou e ambos choraram em uníssono uma grande vitória sobre o inesperado.

Por quase duas décadas este parto ocupou meus pensamentos, e acho que nele existem vários temas que podemos perseguir. O que mais me estimula é a atitude inesperada e firme do marido. Em verdade, creio que sua ação forte e impositiva, estabeleceu um limite para o descontrole de sua esposa. Ao meu ver, este foi o fator essencial que permitiu o nascimento na contração seguinte. Não fosse o tom, a voz e a sua autoridade e ela continuaria numa espiral de desconfiança, medo, angústia e tensão, exatamente os elementos que estavam impedindo a progressão do parto e o nascimento. Muito se diz da função paterna, o estabelecimento de limites, aquilo que constitui o pai em uma relação. Pois para mim, a ação súbita, inesperada e firme daquele pai, selou de forma intensa e duradoura a sua função na vida daquela criança. O grito primal fez um dueto com a voz forte e decisiva do pai, e juntos formaram a harmonia de sons que culminou em um nascimento vitorioso.

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A Trágica História de Mastuf e Marisca

Mastuf, o pastor manco, tropicava pelas colinas e sonhava cortejar a bela Marisca, dona de olhos azuis tão cristalinos que mal nos apercebíamos da moldura que os rodeava, a sua face corada e brilhante, coberta pela franja resplandecente a lhe descer pela testa. Marisca trabalhava no Salão “Harod” no vilarejo de Kungrat. Todos os dias tirava leite de camelo para fazer o queijo que alimentava seus irmãos, limpava o estábulo, arrumava a mesa para o café – onde comiam o Tigrith, pão feito de cevada e azeitonas, e depois caminhava dois quilômetros até o centro da cidade, onde ganhava uns poucos trocados como esteticista. Era linda e meiga, mas muito infeliz, pois lhe faltavam duas coisas: um prendedor de cabelos de cor verde que havia perdido quando foi tirar água do poço e um grande amor em sua vida. Sempre fora cortejada, e por por muitos homens, mas jamais havia se decidido, pois eles apenas se interessavam pelo seu corpo e seu cheiro (as azeitonas do pão Tigrith lhe deixavam com um aroma inconfundível). Isso era pouco.

– Quero que me amem pelo que “sou”, dizia ela, mas poucos conseguiam entender o que uma menina podia querer além de um marido forte e trabalhador.

Mastuf podia ser este homem, pelo menos em suas próprias infindáveis fantasias. Ele sim via nela mais do que um belo par de ancas e uma franja sedutora. Ela era carinhosa com as crianças, em especial seus irmãos menores. Era gentil com os mais velhos e muito esperta. Dificilmente errava quando fazia um penteado ou aparava as unhas de uma cliente. Era hábil com o arado e boa cozinheira. Como não se apaixonar por uma mulher tão cheia de virtudes, belezas e atrativos? O aldeão um dia resolveu que seria o momento adequado para cortejá-la. Passando próximo ao salão em que ela trabalhava adentrou o pequeno espaço para ver se conseguia vê-la. Não sabia o que dizer, muito menos como iniciar uma conversa com alguém que jamais havia trocado palavras diretamente. Mesmo que ela fosse uma personagem frequente de seus sonhos, um encontro até então havia sido algo impensável. Entrou no modesto salão e girou o olhar pelo ambiente. Umas poucas mesas vazias e um espelho grande na parede eram toda a mobília do lugar. Antes que pudesse falar ou dizer qualquer coisa uma bela jovem se aproximou e, segurando-o pelo braço, perguntou se desejava cortar o cabelo ou arrumar as unhas. Mastuf congelou. Era ela, a moça bela da aldeia, a quem seus olhos perseguiam sem descanso. Ainda em pânico, e lembrando sua aparência rude e simples, deu a única resposta que lhe parecia sensata:

– Vim cortar as unhas, disse ele com voz trêmula.

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Assim, ajeitou-se na modesta cadeira e viu a bela jovem sentar-se à sua frente, segurando delicadamente sua mão calejada de pastor. Provavelmente em toda a sua vida sofrida ele jamais havia sentido tamanha emoção. Imediatamente foi invadido por uma sensação profunda de contentamento e plenitude, sem comparação com qualquer outra em sua vida. Nos poucos minutos em que sua mão esteve sob a guarda das mãos de Marisca o mundo pareceu interromper seu curso e estancar seu giro celeste.

– Vamos começar pelas unhas do polegar, que é o mais forte e o que tem a unha mais suja e grossa, disse ela com um sorriso envergonhado. Retirando delicadamente camadas de sujeira sob a unha, esta foi paulatinamente tornando-se mais clara, límpida e translúcida. As cutículas grosseiras e espetadas foram aos poucos sendo desbastadas, e a poeira que cobria o leito das unhas aos poucos foi saindo. Uma lixa terminaria o serviço, deixando uniformes as irregularidades da unha.

Mastuf fechou os olhos e sua mente vagou para o infinito cósmico, o lar celestial das ninfas. A luz que emanava dos olhos de Marisca perfurava suas pálpebras que, mesmo fechadas, não impediam que este brilho ofuscante impregnasse suas retinas. As ninfas dançavam alegremente ao som de milhares de harpas, embaladas pelos cânticos angelicais da Falange de Herwitt, a deusa dos amores virginais. Não foi possível a Marisca passar para o próximo dedo, pois foi neste instante que o céu das ninfas se fechou com um trovão avassalador. Subitamente desperto de seu sono, Mastuf pôde observar Korgut, o Alcaide, entrando ruidosamente na pequena sala do Harod. Seu corpo volumoso e seu chapéu pontiagudo assustavam a qualquer um que ousasse cruzar o olhar com ele. Todos sabiam das suas investidas em direção à Marisca, mas ela jamais acolhera nenhuma de suas tentativas. “Ele cheira a alcachofra molhada“, dizia ela aos seus irmãos mais velhos, que apenas davam de ombros e lamentavam que ela refutasse um bom partido.

Certamente que Korgut estava a procura dela, mas não gostou nada de vê-la sozinha na sala atendendo o jovem aldeão. Enfurecido de ciúme apontou-lhe o indicador, acusando-a de vadia, irresponsável, fácil e de “oferecer sorrisos a estranhos como quem vende arenque no mercado“. Marisca só fazia chorar diante do furacão violento de acusações maldosas e injustas. Mastuf, surpreso, nada podia fazer a não ser se afastar. Depois de uma saraivada de ofensas cuspidas por Korgut em direção à pobre moça, o Alcaide levantou a mão ao ar, para desferir a derradeira ofensa sobre o corpo esquálido da pequena Marisca. Entretanto, para sua surpresa, seu gesto congelou no ar, e seu punho fechado paralisou-se sobre sua cabeça. Mastuf segurava o pano de sua camisa de seda. Tremendo de medo pela represália, o pobre rapaz ainda assim juntou a coragem suficiente para impedir a pancada do monstro enfurecido pelo ciúme. Korgut, virando-se para o lado, respondeu, atônito, a ousadia do pequeno Mastuf.

– Como ousa me impedir, moleque? Como ousa colocar seu braço sujo de pastor em minha camisa de seda? Quem você pensa ser? Nada mais é do que um mísero cuidador de ovelhas, catador de bolotas, analfabeto e estúpido. Como pensa me interromper? Acaso trouxe seus irmãos e primos? Tem uma armadura a proteger seu peito contra os golpes que vou desferir? Como acha que vai impedir que eu faça a justiça contra uma mulher que me iludiu com seu sorriso meigo e sua face cândida?

Mastuf prendia-se ao braço de Korgut como quem se agarra a um bote salva-vidas. Não ousava largar, pois o punho livre poderia terminar o que havia começado. Temia por si, mas muito mais por Marisca a quem, apesar de amar com toda sua alma, jamais havia confessado seus sentimentos. Korgut não esperou que Mastuf livrasse seu braço direito, e com um golpe de esquerda jogou-o para longe. O corpo esquálido cruzou a sala e foi chocar-se contra a parede à frente, fazendo estilhaçar o espelho em milhões de imagens de horror e pânico a refletir seu rosto. A dor era menor do que o medo da próxima investida. O sangue escorria pela boca, cujo lábio rasgado permitia o curso livre de um córrego de sangue. Os ouvidos zuniam pela potência do soco, que fizera balançar toda a arquitetura de seu crânio. Levantando-se sofregamente segurou-se na cadeira rústica que até então estivera sentado e derrubou a mesa de utensílios usada por Marisca para corrigir os defeitos de seus dedos toscos. Ainda tentando se erguer viu o corpanzil de Korgut aproximar-se para mais um ataque.

Desta vez a potência do choque foi sentida diretamente na boca do estômago. O pobre aldeão teve a sensação de sentir as vísceras saltarem pela boca afora. O sangue inundava seu rosto e sua boca, pintando de rubro a cena de violência brutal. Korgut tinha os olhos inflamados, saltados para fora de suas órbitas e totalmente cegos de ódio e ciúme. Seus ouvidos também eram surdos para os gritos de Marisca, que implorava piedade, que não atacasse o pobre rapaz e que tivesse compaixão pela sua alma, a meio passo entre este mundo e Astárides, o céu das ninfas que há poucos minutos enchera de alegria o agora moribundo. Caído ao solo com o estômago esmagado e o rosto desfigurado nada mais restava a Mastuf do que esperar o derradeiro golpe. Que viesse com presteza, sem dó, para que a passagem fosse rápida, o mais indolor possível. Preferia assim, mesmo que soubesse a dureza de partir sem a despedida de suas ovelhas amadas, mas, acima de tudo, sem ter a oportunidade de declarar a Marisca todo o seu amor e seu desejo.

O monstro gigante ficava cada vez maior a cada passo que dava ao se aproximar de seu corpo caído. Os objetos da manicure espalharam-se pelo chão da sala fazendo uma aterradora algazarra. Um pequeno pote de barro, uma jarra d’água vazia, sangue, cabelos, minúsculas unhas cortadas, lágrimas, afastadores de cutícula e uma tesoura. O cenário à frente de Mastuf parecia ser a derradeira imagem que ele veria nesta curta e sofrida vida. Fechou os olhos e esperou o golpe final. Um grito surdo e longo, aterrador e dramático, cruzou a sala. Marisca calou suas súplicas e um vazio eterno de alguns segundos encheu a sala da manicure de silêncio. O Alcaide abre os olhos pela última vez e cai ao chão fulminado. Estatelado ao solo, quase sem vida, ainda olha para o peito e encontra, cravada em seu coração, a tesoura de Marisca. No limiar de suas forças Mastuf rastejou até a pequena tesoura cortadora de unhas que jazia próximo de seus pés. Tão preocupado estava Korgut de aplicar o golpe mortal derradeiro que sequer se importou com o rápido movimento de seu oponente. O golpe foi sutil, rápido, preciso e fatal. A pequena tesoura de ponta aguda penetrou o peito do homenzarrão entre as costelas, atingindo a câmara inferior esquerda de seu coração.

Marisca voltou a chorar e atirou-se sobre o corpo de Mastuf, que jazia inerme. Com o pouco de força que tinha em seus braços a moça ergueu o corpo ferido de Mastuf e colocou-o sentado contra a parede. O sangue estava por toda a parte, seus dentes eram pura vermelhidão, e sua face era pálida como Zillut, a águia branca da neve. Sua respiração era ofegante e seu olhar pesado. Suas mãos trêmulas seguraram as de Marisca sem força e sem cor.

– Perdão Marisca…

– Porque me pedes perdão, Mastuf, se acaba de me salvar a vida?

A voz desaparecia como os últimos raios de sol ao entardecer, mas ainda conseguiu completar sua derradeira frase.

– Perdão por nunca dizer que te amei desde que te vi pela primeira vez. Perdão por deixar o tempo passar e só te dizer quando nada mais importava. Desculpe por nunca ter te oferecido o amor que merecias. Perdão, perdão…

Marisca chorava a dor irreparável. O amor que sempre sonhou, construído na nobreza e na bravura, se esvaía por entre seus dedos. O rosto de Mastuf ficava cada vez mais frio, sua voz mais baixa. Ele estava partindo. Marisca aproximou seu rosto mais uma vez para poder olhar o corpo caído quase sem vida de seu salvador. Se existe nobreza e virtude em uma morte aquela seria a escolhida pelos mais puros e fiéis servidores do Criador. Soltou o corpo de Mastuf e com suas mãos suaves e limpas fechou-lhe os olhos vítreos. O peão simplório cerrou as pálpebras enquanto sua cabeça se aconchegava no colo da amada. Soltou o ar contido nos pulmões pela última vez e dormiu o sono dos mártires.

Haakon Mikkelsen, “Fortællinger fra det Mistede Land” (Contos da Terra Perdida), Ed. Sandhed, pág 135

Haakon Mikkelsen é um escritor e roteirista dinamarquês, nascido em Nykobing Falster. Ficou famoso em seu país por ter trabalhado na produção de roteiros de um famoso programa de humor aos sábados à noite chamado “Griner i København” (Gargalhadas em Copenhague). Ao lado disso escreveu inúmeros sketchs de humor e roteiros para filmes, incluindo aí o premiado “St. Bernard Frossen” (São Bernardo Congelado) e “Isdukke” (Boneco de Gelo). Em 2010 lançou seu primeiro livro de contos, chamado “Contos da Terra Perdida”que teve uma boa recepção da crítica. Atualmente trabalha na TV2 da Dinamarca e mora em Copenhague com sua mulher Hilda.

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Deficiência Carnavalística

Carnaval 01

Acabo de ver meu neto Olizinho fantasiado para participar de uma festa infantil de carnaval e fico pensando que talvez ele consiga alcançar algo que nunca fui capaz: o gosto pelo Carnaval.

Entretanto, a minha não gostância em relação à “festa da carne” não se baseia em qualquer critério moral (é uma falta de pocavergonha essas mulher pelada!), de saúde pública (são esperadas centenas de mortes no trânsito e nas estradas, ocasionadas pela bebida) ou o descritério econômico (tanta criança sem escola e o governo gastando com carnaval!). Não, pelo contrário. Eu acho o Carnaval extremamente importante do ponto de vista da cultura, pelos seus aspectos democráticos – todo mundo brincando e se fantasiando como quiser – pelo turismo que ele atrai e pela economia que gira, principalmente nas classes mais baixas.

Minha questão tem a ver com uma obliteração emocional, a mais pura falta de conexão com este tipo de alegria exuberante e extrovertida que se exige do folião. Vejo as pessoas cantarolando as velhas marchinhas, sentindo a letra em seus corações, dançando e pulando sem parar, bebendo cerveja de forma irrestrita… mas não consigo ver nenhuma graça, nenhuma alegria, mesmo reconhecendo (e invejando!!!) a inequívoca felicidade que os foliões experimentam durante as festividades de Momo.

Tenho a mesma impressão com o álcool e as drogas. Sei o quanto elas podem ser agradáveis para quem fuma ou bebe, mas não consigo sentir isso em mim. Sou obrigado a imaginar a sensação de prazer que elas percebem, mas neste caso pelo menos não me martirizo invejando.

Sim o Carnaval tem múltiplas formas de expressão, mas infelizmente nenhuma delas me atrai: blocos, carnaval de rua, carnaval de clube, trio elétrico, escolas de samba, pagodes na esquina, frevo de Recife, Galo da Madrugada, da noite ou da tarde. Nada disso me diverte, e fico esperando que isso tudo passe e a vida volte ao normal depois da quarta-feira. Todavia, longe de mim criticar quem gosta do Carnaval; adoraria que, com um passe de mágica, eu pudesse escutar as músicas que bombardeiam meus ouvidos e extrair delas algo feliz e grandioso, que meus pés pudessem sambar livremente ao som dos tamborins, e que a alegria inequívoca das folias pudesse encher minha alma do prazer inebriante que as pessoas descrevem.

Sou um deficiente carnavalístico, e não acredito que haja prótese ou cura. Sinto muito.

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Outra História de Horror

Porta Horror

Um homem chamado Hans está jantando, já de madrugada, com sua esposa Helga e suas duas filhas, Gertrude de 15 e Mathilda de 19. Na mesa da cozinha estão dispostos os pães, a margarina, o queijo e os assuntos do dia. Em uma pausa entre uma fala e outra ouviu-se um barulho vindo da entrada da casa. Parecia alguém tentando abrir a fechadura.  

“Psiu!!”, disse ele, e todos suspenderam os comentários e a própria respiração. O silêncio tomou conta da acanhada cozinha, fazendo os grilos subitamente fazerem parte do ambiente. Mais alguns segundos e o barulho novamente surgiu, como se um artefato estivesse sendo forçado na abertura externa da porta. Os cabelos dos braços se ergueram, e os olhos se arregalaram, e podia-se sentir o cheiro de adrenalina sendo expelida pelas suprarrenais em alvoroço. No entanto, nenhum som se escutou quando a esposa de Hans se abraçou às duas filhas e mirou em súplica aterradora para os olhos do nosso herói.  

Hans mais uma vez repetiu o “psiu“, e encaminhou a mulher e as filhas para a sala contígua. Levantou-se e, caminhando em direção à porta de entrada, quando subitamente parou…   Enquanto caminhava para o que poderia ser o encontro último de sua vida, onde poderia encontrar a morte na porta que teimava em fazer barulho, subitamente parou a dois passos da porta e percebeu o quão machista era sua atitude.  

“Porque eu tenho que averiguar a porta? Porque eu tenho que garantir a segurança da casa? Não seria mais justo se todas as tarefas fossem compartilhadas, se todas as funções fossem igualmente distribuídas, para que o poder fosse repartido de forma igual entre os gêneros? Não seria correto que também a função de proteção fosse repartida, para que as mulheres tivessem igualmente este tipo de responsabilidade? Mas, se tanto lutamos por equidade, porque foi tão natural a atitude de  levantar e me dirigir para a porta, enquanto minha mulher se abraçava às filhas, à família? Por que me parece tão normal protegê-las?”  

Olhou para trás e pôde ver sua mulher espiando-o, abraçada às meninas, enquanto permanecia estaqueado no meio do corredor que terminava exatamente na fatídica porta.   Mais uns poucos segundos de tensão e terror, até que uma folha de papel surgiu por debaixo da porta. Ainda tremendo curvou o corpo para frente e, com inusitado cuidado, abriu a folha de papel cuidadosamente dobrada ao meio.  

Caro vizinho, percebi seu carro está com os faróis acesos no estacionamento. Não quis bater na porta para não acordar a família. Procure apagá-los assim que possível. Abraços, Simone

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Machismo

Soldadas

(*) post scriptum:

Este foi o texto que gerou a cisão dentro do antigo blog que eu escrevia,  que depois de dois anos de convivência fui convidado e me retirar. Existe um outro artigo em que eu deixo aclaradas algumas posições sobre este texto e que se chama “Algumas Explicações Necessárias”  que também contém alguns escritos que foram publicados no Facebook após o incidente.  No final deste artigo original eu transcrevi em itálico – para diferenciar do texto publicado no blog – minhas falas em uma conversa privada com uma amiga feminista que lamentava o ocorrido. Espero que este fato triste seja um degrau na construção de uma interlocução cada vez mais intensa entre a humanização do nascimento e o feminismo. Estou certo de que são aspectos diversos na cultura, mas suas interfaces são tão claras que a necessidade de um contato entre humanistas e feministas é mais do que necessário: é urgente.

MACHISMO

A segregação que o patriarcado determinou forçou a invasão que hoje testemunhamos nos espaços antigamente entendidos como “naturais”. Eu não creio que o patriarcado seja “machista”, pois penso se tratar de dois aspectos da organização social diferentes em essência. Minha tese é de que o machismo é a naturalização de um modelo social artificial baseado na posse e com o objetivo de garantir segurança. O patriarcado não é um sistema de valor; o machismo é.

A separação das atividades por gênero, por vezes absolutamente RÍGIDAS na sociedade, é milenar. Poderia me cansar citando, mas lembro que a atenção ao parto era proibida para os homens até o final do século XVI.

“Em 1522, um certo doutor Wortt de Hamburgo travestiu-se de mulher para assistir a um parto, mas seu disfarce foi descoberto e ele foi queimado na fogueira “por sua indecência e por degradar sua profissão” (Rich, 1986:140), o que ilustra que, pelo menos em certos contextos, aos varões era vedada a presença na sala de parto, delito que poderia ser punido com a morte. Por outro lado, foi no começo do século XVI que se iniciou a publicação de edições dos livros de ginecologia e obstetrícia dos antigos, por varões, em língua vernacular, como é o caso do Rosengarten, o Jardim das Rosas.”  (www.mulheres.org.br/mestrado_3.html)

Mulheres nas Igrejas são discriminadas até hoje (e não apenas na Igreja Católica), e não se vislumbra uma invasão neste terreno em curto prazo. Nenhum sinalizador na Santa Sé ou outras denominações para que o modelo misógino e androcêntrico seja modificado.

As invasões de território, na esfera de gênero, não ocorrem com facilidade e nem com plena aceitação. Por isso o termo invasão está correto, pois os espaços não “estão aí” para serem ocupados, pois já tinham “dono”. A posse é garantida pela cultura, mas como sabemos, as culturas são cambiantes, mutantes e plásticas. Mais uma vez, o termo “invasão” se refere exatamente a estes caminhos de lutas para desbravar espaços ocupados por OUTROS. Mulheres e homens assim constroem a sociedade. As mulheres o fazem de forma mais intensa na atualidade porque muitos espaços sociais foram ocupados pelo patriarcado (e não pelo “machismo”). Todavia, vemos – como acima – espaços sendo invadidos pelos homens de maneira corajosa e consistente, como na atenção ao parto nos últimos 3 séculos, ou nos cuidados com mães e bebês nos últimos anos.

O machismo é um sistema de poder como qualquer um dos outros sistemas existentes, como o racismo. Quem não se deixa cativar por eles? Quem não os incorpora e os naturaliza? Se você fosse da realeza no século XVII ou XVIII certamente acreditaria que sua essência é diversa daquela da plebe, e olharia seus braços todos os dias para confirmar que seu sangue é azul. Não se trata de justificar qualquer desses sistemas de exclusão, mas incorporá-los à natureza humana. É preciso coragem para abrir mão de suas prerrogativas culturais. Quando se sugeriu a presença de doulos no parto algumas corporativistas de gênero “subiram nas tamancas” e reclamaram dessa invasão de território. Elas estavam cativas em seu sexismo, não lhes parece?

O patriarcado ofereceu a posição política preponderante ao mais forte, para proteger a sociedade. Essa é sua essência. É ingenuidade acreditar que ele foi criado por “ódio às mulheres”. Este sentimento até pode existir em muitos homens, mas não é pelo ódio que se cria um modelo e uma estrutura social de absoluto sucesso como este, de abrangência universal. Em qualquer canto da terra ele foi utilizado como ferramenta de progresso, e qualquer sociedade que ousou desafiar o patriarcado no passado veio a fenecer.

Entretanto, hoje em dia – depois da pílula e da Magnum, diriam algumas – sua necessidade não se faz mais tão evidente. A força física dos homens não é mais tão fundamental em um mundo tecnológico, o que permite que grandes nações do mundo – Alemanha, Chile, Brasil, Argentina – sejam governadas por mulheres, de compleição física mais frágil, mas igualmente poderosas. Agora já é possível trocar a configuração política do mundo por um modelo mais justo e equilibrado, onde os gêneros sejam respeitados e tratados com equidade.

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Vou acrescentar algumas coisas que eu disse depois no texto original para que a minha posição possa ficar mais clara. Mas não se preocupem comigo… isso não me atinge tanto assim. Pois é, isso é ruim, mas na minha opinião faz parte do jogo. É natural que isso aconteça, e temos que nos preparar para isso. Com o tempo as melancias se ajeitam com o balançar da carroça.

Minha argumentação é bem simples: o patriarcado é uma estratégia de sobrevivência, estabelecida no fim do paleolítico superior e a partir das mudanças estruturais da sociedade, de um modelo nômade para um agrário. O surgimento da posse (terra, animais) nos obrigou a colocar em posição de poder os machos testosterônicos de nossa espécie, daí surgindo o patriarcado. Isto é: o patriarcado NÃO surgiu por um ódio às mulheres. Um sentimento estranho como esse não poderia ter criado um modelo de “sucesso” como este na manutenção da propriedade e na expansão territorial, com consequente bem estar para as populações sob seu domínio. Não só isso: o patriarcado permitia que um homem tivesse várias mulheres, o que apoia o incremento populacional, o que era fundamental para as novas tarefas incorporadas, na agricultura e pecuária..Isso nada tem a ver como machismo, que é a NATURALIZAÇÃO de um sistema ARTIFICIAL, como o patriarcado. Entretanto, algumas feministas se encheram de raiva por eu aparentemente ter uma visão “condescendente” do patriarcado. Não é verdade, mas eu acho que se você confundir patriarcado com “ódio às mulheres” será muito mais difícil combatê-lo.

O machismo é a tentativa de fazer uma simples estratégia (como uma ditadura, o racismo ou a escravidão) ser naturalizada, como se fosse “natural” o homem ser superior à mulher. Mas TODA a briga foi por eu ter dito exatamente isso o que muitas pessoas disseram antes de mim.
Mas é ÓBVIO (!!!!!) que o patriarcado é um estupendo sucesso !! Fosse ele um fracasso não haveria porque combatê-lo !!! Ele ainda é, mas é claro que percebemos a sua decadência dia a dia, e é para isso que lutamos. Quando falo no sucesso do patriarcado falo de sua abrangência planetária, sucesso em abrangência e em poder de transformação social. Somos todos herdeiros do patriarcado.

Mas isso de deu as custas de sufocar o feminino. E o patriarcado precisa ser substituído por um modelo mais justo e igualitário. Ele agora é insuportável. A origem das ofensas está nessas simples ideias. Podem ser combatidas e aceito argumentos em contrário, mas as ofensas foram pela minha pessoa, e não pelas minhas ideias. Eu tenho uma visão próxima da marxista sim, dialética e histórica, mas o problema é tocar na ferida do feminismo, e isso deixou as feministas em pé de guerra. Todavia meus argumentos são límpidos e translúcidos. Pode-se discordar deles, mas é absurdo pensar que “existe algo por trás”, desejos ocultos ou uma visão diminutiva da mulher. Pelo contrário; no próprio texto eu falo da importância capital de combater a ambos: o machismo por ser preconceituoso, e o patriarcado por ser um modelo anacrônico.

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Poderes

Humanis Corporis

Queria desenvolver mais o tema da fixação dos obstetras brasileiros de fazer seminários em que dedicam algumas horas para combater – das formas tradicionais – o parto domiciliar. Via de regra escolhem-se profissionais que apresentam os conhecidos trabalhos que confirmam o que se pretende acreditar. Falam exaustivamente dos riscos, dos problemas, dos transportes, das cidades grandes. Mostram a Inglaterra como um país completamente diferente, assim como a Holanda, e explicam que os partos domiciliares de lá podem ser estimulados pelos respectivos governos porque…. bem, eles são ingleses e holandeses, não é?

Mas o que mais chama a atenção é que os riscos, se existirem, são muito pequenos, o que os transformaria em riscos normais da vida humana. Jogar futebol na escola é muito mais arriscado do que jogar xadrez, mas nem por isso se proíbem jogos no colégio por existir uma alternativa mais segura. Há que se considerar riscos relativos e riscos absolutos, o que frequentemente não se faz, por interesse. Todavia, qualquer pessoa percebe a existência de VALOR nos jogos de futebol, o que faz com que os riscos sejam absorvidos como parte da vida, do preço que se paga por existir. O mesmo raciocínio se usa para viagens de avião e automóvel; o segundo não é proibido por ser o primeiro mais seguro. Porém, muitos se negam a perceber qualquer valor associado ao rito de passagem atravessado pelas mulheres chamado “parto”, e tentam de todas as formas desconsiderá-lo.

Partos extra-hospitalares no Brasil não chegam a 3% do total de nascimentos, mas os partos “urbanos” domiciliares e planejados, em mulheres de classe média, não chegam a 1%. A quantidade de mulheres que optam por um modelo domiciliar é desprezível diante do modelo hospitalar. Por isso cabe a pergunta: porque tanta preocupação? Porque se ocupar destas mulheres, normalmente MUITO informadas, e que optam por ter filhos em suas casas?

Minha tese é que o parto domiciliar, mais ainda do que o parto realizado em Casas de Parto, incomoda pelos seus significados invisíveis. Como dizia a professora Robbie Davis-Floyd no seu livro Birth as an American Rite of Passage a obstetrícia contemporânea se estabelece sobre a crença da defectividade essencial da mulher. Este é seu marco teórico mais importante, e menos percebido. No paradigma tecnocrático os sujeitos são máquinas, coisificados pelo modelo cartesiano, De Corporis Humani Machina. Já no que tange às mulheres, elas são dotadas pelo Criador de uma máquina defeituosa em essência, cuja fabricação é equivocada e sujeita a erros, que podem ser consertadas pela razão humana personificada na figura masculina do médico. Mulheres são seres passíveis de falhas, e cabe aos profissionais a tarefa de resgatá-las das garras cruéis de uma natureza madrasta.

O parto domiciliar é o avesso dessa crença. Muito mais além das teses da humanização do nascimento, o que sustenta o parto domiciliar planejado – com sua tecnologia simplificada (mas eficiente, como provam os estudos) – é a postura contrária (muito mais do que discordante) à visão corrente da defectividade feminina. Desconsiderando a visão médica tradicional da “bomba relógio” prestes a explodir, as parteiras modernas (enfermeiras e obstetrizes) que acompanham partos domiciliares enxergam a mulher na plenitude de suas capacidades, e na excelência de seus corpos. Mulheres parindo são exemplos de “perfeição” da natureza, expondo a delicadeza do processo adaptativo da espécie aos desafios da altricialidade e da encefalização.

Essa atitude ofende o modelo médico. Mais do que preocupar-se com possíveis problemas para mães e bebês – o que seria uma atitude nobre da corporação – o parto, sem os aparatos e os profissionais que configuram o modelo hegemônico, desafia os poderes constituídos sobre a visão catastrofista do nascimento. Fosse o bem estar de mães e bebês a questão preponderante e estaríamos combatendo um problema MUITO mais óbvio, e sobre o qual já não recai nenhuma dúvida: a epidemia de cesarianas. Nenhum médico sério questiona a mortalidade e a morbidade aumentadas com o avanço das cesarianas no mundo todo, mas as lideranças da corporação quase nada dizem ou fazem para estancar a hemorragia de cirurgias obstétricas. E por quê?

Ora, porque as cesarianas estão alinhadas com o modelo ideológico que coordena o nascimento. Elas se adaptam como uma luva à ideologia predominante de corpos mal feitos, gestações problemáticas, ciclos vitais fisiológicos tratados como patologia e o uso salvador das técnicas, hospitais e recursos de toda a ordem para “salvar” mulheres condenadas pela sua própria condição de “ser mulher”.

Os partos domiciliares ameaçam a estrutura de poderes; cesarianas em desvario não. Pelo contrário: quanto maior o número de nascimentos cirúrgicos maior será a artificialização do nascimento e mais importantes serão aqueles que o controlam. Por esta razão é que se dedica um tempo anormal para combater um modelo de assistência que está LONGE de colocar pessoas em risco, mas que ameaça poderes instituídos e hierarquias sociais estabelecidas.

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