Arquivo do mês: agosto 2024

ETs

Curiosamente (mas não de forma surpreendente) as ideologias contemporâneas que falam de migrações interplanetárias e que incluem a interação, aqui na Terra, de seres de outros planetas – reptilianos, sirianos, alienígenas nórdicos, pleiadianos, etc – sempre se estruturam a partir de “raças”, “clãs”, “estirpes” e “falanges”, constituídos de formas distintas e sobre hierarquias morais (seres de luz, de cura, das trevas, guerreiros, etc.), o que diz muito mais sobre as pessoas que adotam estas visões escatológicas e menos sobre as características específicas ou a plausibilidade de tais ideologias. Ou seja: as pessoas criam ficções baseadas em suas próprias visões de mundo, tipicamente estruturadas em classes e hierarquias. Nada muito diferente da maneira como traduzem o contexto à sua volta.

Em uma sociedade que produz diferenças essenciais entre os humanos, do racismo explícito às classes sociais, parece natural que nossa ficção científica reproduza esta perspectiva divisionista. O que me parece mais chocante é que, para analisar a humanidade, ou mesmo estruturas sociais alienígenas, somos levados a fazer uma leitura muito superficial do sujeito. Para quem acredita nestas histórias, os seres humanos podem ser classificados de acordo com sua aparência externa e sua persona social, a imagem que vendemos aos outros, negando o fato de que todos temos um “lado B”, uma sombra escura e ameaçadora, uma história escondida de desejos, mentiras, falsificações, fraudes e ações egoísticas.

Não há santo ou benemérito que sobreviva ao escrutínio selvagem de sua existência. E, ao mesmo tempo, não há criminoso, bandido ou monstro que não tenha doçura, carinho e afeto escondidos nas dobras profundas da sua alma, encobertas pelas crostas sangrantes das feridas abertas. Somos seres múltiplos e complexos; qualquer definição será limitante ou oportunista. Carregamos dentro de nós o germe da santidade e a cicatriz da mais violenta maldade. O que deixamos aparecer em nosso rosto é apenas a maquiagem enganosa do ego.

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Fraqueza

A questão da Venezuela divide de uma forma bem didática a esquerda. De um lado situam-se aqueles movidos pelo fervor anti-imperialista e que reconhecem que os problemas desta região abaixo do Equador têm nas inúmeras intervenções imperialistas a raiz de muitos de nossos males. Para estes, a busca por autonomia plena e o fim da influência danosa dos Estados Unidos na região é um ponto fundamental para a plena independência das nações e a posterior união das nações latinas. Do outro lado encontram-se aqueles que adotam uma perspectiva liberal e identitária, os direitistas que se colocam enganosamente à esquerda do espectro político. Para quem se situa mais à esquerda no matiz progressista ficou muito claro que a esquerda precisa derrotar essa perspectiva esquerdista subserviente aos interesses capitalistas para criar um bloco forte com propostas firmes. O direitismo dentro da esquerda é uma praga que necessita ser exterminada.

A propósito, Maduro teve uma postura digna e …. madura diante da crise com as eleições em seu país. Lula foi frouxo, fraco, pusilânime e irresponsável. Não cabe a Lula questionar as eleições de um país amigo e que tem instituições eleitorais reconhecidas e um sistema de contagem de votos ainda mais sofisticado que o brasileiro. A Venezuela tem uma modelo de voto impresso que deveria ser adotado no Brasil, mas fica claro que para a direita golpista nem mesmo esse tipo de segurança impede sua ação de subverter a vontade popular. A posição do nosso presidente fortalece a direita de toda a América Latina, além de dar respaldo às posições imperialistas na região. Sem uma posição firme de Lula, reconhecendo as instituições venezuelanas, a direita se sentirá livre para questionar qualquer eleição, inclusive as próprias eleições brasileiras. Não se trata de apoiar Maduro, mas as sistema eleitoral venezuelano, um dos 5 poderes constitucionais do país, mas de dar apoio a todas as escolhas livres e democráticas da América Latina. Se não acreditarmos na justiça eleitoral dos países latino-americanos, o imperialismo vai continuar a dar as cartas e sugar nossas riquezas. Esse corvo que Lula soltou agora vai querer comer nossos olhos logo ali na frente.

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Xandão na berlinda

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Por que cargas d’água (essa é do meu tempo) a esquerda brasileira está em peso atacando Glenn Greenwald e a Folha apenas por revelarem o que nós – a esquerda radical – dizemos há muitos anos: Alexandre de Morais é um golpista, demagogo, representante da burguesia fétida que comanda o Brasil e que cometeu inúmeros desmandos enquanto Ministro do Supremo. Por que razão agora esta esquerda resolve que “Xandão” é um “herói”, e pior ainda, um intocável? Por que criticam a forma e não o conteúdo? Por que não analisam o mérito das acusações graves contra o Ministro? Por acaso alguém deveria se surpreender quando um Ministro do Supremo usa de seu poder para artimanhas e jogadas políticas? Por acaso as ilegalidades e inconstitucionalidades do STF não foram, desde sempre, entendidas como “parte do jogo”? Lembram do “não tenho provas, mas a literatura me permite”? Qual o espanto com a existência de ministros venais?

Esse ministro não teve nenhum problema em colocar Lula na prisão desrespeitando frontalmente a Constituição Brasileira. Depois ele votou pela manutenção de Lula na prisão, quando não havia trânsito em julgado para justificar esta detenção. O mesmo Alexandre que brigou com bolsonaristas e prendeu aqueles mambembes que atacaram os prédios de forma desorganizada, foi quem favoreceu a candidatura de Bolsonaro tirando Lula criminosamente da disputa. Ou seja: Alexandre é um representante dos interesses da elite financeira, da Globo, do agro e de todas as forças reacionárias do país. Quem acredita que esse sujeito tem qualquer compromisso com a esquerda – ou mesmo com a justiça – apenas porque é atacado pelos bolsonaristas esteve em coma profundo nos últimos 10 anos, desde o tempo de sua ascensão à secretaria de segurança de São Paulo – local onde todo candidato a monstro faz seu estágio.

Qual a razão para o espanto? Por acaso deveríamos nos surpreender com atitudes pouco republicanas de integrantes do STF? Essa corte apoiou o golpe de 1964 e o de 2016!! Esteve junto, ratificando e aplaudindo, o impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma e a prisão imoral e ilegal de Lula. Aplaudiu (até se tornarem inadequados) os desmandos de um juiz corrupto como Sérgio Moro. Alexandre de Morais esteve à frente de todos os crimes contra a Constituição brasileira dos últimos anos. Por que tanta solidariedade?

Até quando a esquerda cirandeira vai achar que Bolsonaro é o nosso inimigo?? Bolsonaro é o fascista que as elites elegeram e agora estão descartando, como o bagaço de uma laranja chupada. O inimigo das esquerdas são aqueles que puxam os cordéis, os quais movem os marionetes. Os reacionários da vez já foram Collor, FHC, Temer, e tantos outros do passado. O “bolsonarismo” já existia muito antes de Bolsonaro ter sido parido, e nessa corrente liberal Alexandre de Moraes é uma figura notável. Não se deixem enganar!!!

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Break Free

Movido pela curiosidade despertada pela apresentação estranha de uma competidora da nova modalidade olímpica, o Break Dance, eu li a análise de uma articulista sobre a apresentação desta representante australiana chamada Raygun (nome artístico da professora de dança Rachel Gunn). Concordei com vários pontos de sua abordagem sobre a performance desta break dancer de 36 anos que dá aulas sobre a cultura do hip hop e street dance. Por certo que sua apresentação foi chamativa, exatamente por não parecer muito elaborada. Parecia ser realmente um deboche, alguém que se prestou a “brincar” com os movimentos da dança. Não surpreendentemente, ela tirou zero; não recebeu um mísero ponto sequer por sua rotina de movimentos. Isso não é exatamente uma novidade; houve outros competidores fracassados que mal tinham domínio sobre a arte que representavam, como Eddie no salto de esqui ou o nadador da Guiné Equatorial. No caso de “B-Girl Raygun”, muitas pessoas deram gargalhadas de sua aparente “incapacidade” e falta de talento, mas isso deveria nos alertar para uma mensagem subliminar em sua apresentação. Os mais atentos começaram a suspeitar que poderia haver algo mais interessante por trás da sua dança bizarra.

Conhecendo um pouco mais a historia da personagem vamos descobrir que ela é a autora de um artigo acadêmico intitulado “A cena do Breaking Australiano e os Jogos Olímpicos: As possibilidades e a política da esportificação”. Ou seja; ela lança a pergunta sobre a adequação da “esportificação” do break dance, que nada mais e do que o confinamento da modalidade a uma série de regras e limites que oportunizam uma avaliação objetiva. Desta forma, se o break dance for institucionalizado através das Olimpíadas, é provável que perca a sua própria essência. O seu ponto de vista é que, se esta dança nascida nas ruas e criada pela comunidade negra for forçada a aderir a um código rigoroso controlado por um órgão central (como o COI), perderá inevitavelmente sua essência criativa, contestadora e rebelde. Diante dessa informação, cabe a pergunta: Terá sido sua apresentação um ato de profunda rebeldia? Terá ela produzido uma performance de contestação ao próprio evento que participava? Se assim foi, deixo para ela minha admiração.

O mesmo debate ocorreu há alguns anos sobre a institucionalização e regulamentação da função das doulas, auxiliares de parto, que (res)surgiram no cenário do parto e nascimento enquanto movimento social a partir da virada do milênio. Sua aparição foi um sopro de renovação impressionante na atenção ao parto, por duas vertentes igualmente essenciais: em primeiro lugar o suporte afetivo, físico, social e espiritual das gestantes em trabalho de parto, reestabelecendo a ponte que une os aspectos físicos e fisiológicos do parto com os milênios de adaptação psicológica aos desafios de parir. Em seguida, mas não menos importante, está o que se chama efeito Hawthorne. Este fenômeno ocorre quando as pessoas se comportam de maneira diferente ao saberem que estão sendo observadas. Isso pode afetar qualquer tipo de comportamento, desde as atitudes dos moradores da Casa do Big Brother, até o nosso agir banal cotidiano. As doulas, mesmo que reservadas e silenciosas, funcionam como observadores da ação dos médicos, da mesma forma como a entrada dos companheiros e/ou familiares produziu um pouco antes: sua presença ao lado das gestantes fez com que o parto deixasse de ser um evento exclusivo para médicos e demais atores da cena obstétrica.

O efeito Hawthorne explica porque os médicos que trabalham em instituições hospitalares fazendo parte de equipes têm taxas de cesarianas muito menores do que os mesmos médicos trabalhando isoladamente com suas pacientes em hospitais privados. O fato de serem observados e avaliados por seus colegas faz com que suas ações recebam este tipo de contenção; no hospital particular eles não sofrem qualquer tipo de “censura velada”, e suas atitudes médicas tendem a ser mais reguladas pelos seus medos e necessidades pessoais, ao invés de serem guiados pelas evidências científicas e o bem-estar da paciente. O mesmo efeito se faz presente nas câmeras acopladas ao uniforme dos policiais: a queda dramática das mortes causadas por excessos da polícia está ligada ao fato de, usando este equipamento, os policiais sabem que estão sendo observados, e suas ações gravadas para posterior auditagem. Isso produziu uma mudança espetacular, tanto na queda das mortes quanto na brutalidade e violência das abordagens.

No caso das doulas, essas duas características – o suporte holístico das pacientes e o efeito Hawthorne – produziram uma profunda mudança positiva na cena obstétrica; ouso dizer a mais importante deste século na atenção ao parto. Porém, a regulamentação do trabalho das doulas tem a potencialidade de produzir uma alteração muito mais significativa, mas na direção oposta. Regulamentar algo da livre expressão afetiva não vai limitar a sua individualização? Haverá elementos contraindicados na fala de uma doula? Quem avalia os movimentos corretos na atenção subjetiva de uma gestante em trabalho de parto?

A partir dessa perspectiva, deixo estas perguntas: Qual a vantagem de institucionalizar, burocratizar e regulamentar atividades humanas tão antigas quanto a própria existência da nossa espécie? É possivel criar regras rígidas sobre as expressões artísticas? Por acaso alguém regulamenta o balé? Alguém regulamenta a música? Por que o break dance deveria ter regras, se é da sua origem e da sua essência “quebrar as regras”? A maior visibilidade dessa dança – que ao contrário do atletismo, natação e demais esportes não tem na competição seu elemento inicial – vale o preço de conter, restringir e amordaçar a natural versatilidade criativa desta arte? Se posso dizer que regulamentar as doulas coloca sobre elas uma constrição inadequada e prejudicial, digo o mesmo sobre as regras e limites aplicados a uma expressão artística que nasceu pela necessidade de produzir arte pela exaltação da liberdade nos corpos em movimento.

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Scribo

Escrever significa marcar com um cinzel, “traçar uma linha, marcar, assinalar, gravar, marcar com cunho”. Toda escrita fere, marca, risca, separa. Escrever significa deixar no mundo um pedaço de si, um sinal de sua passagem. Por outro lado, também faz todo o sentido olhar para a escrita como um abraço que se abre em direção ao outro. Para quem escreve, usando as letras como um lenitivo manuscrito de suas dores, a leitura por outra alma solidária e atenta é um acréscimo, mas igualmente um bálsamo que alivia o sofrimento de quem grita em solidão.

Entretanto, a escrita é uma forma de expressão que suplanta a necessidade de ser lido. Mais do que uma forma de comunicação, ela é um modo de expressão, distinto da voz, do cinema, da música ou do teatro. Escrever extrai do sujeito o sumo mais refinado de seus lamentos, aquilo que oferece sentido e direção à sua luta. Desta forma, os cadernos de poesia da velha senhora, os diários da adolescente, os contos eróticos do senhor ranzinza são válvulas de escape para sua verdadeira essência. Não são peças para simples leitura, mas para o autoconhecimento. Não importa que tenham sido por tantos anos escondidos no fundo de uma gaveta, infensos ao olhar de qualquer curioso; eles ainda representam o que de mais verdadeiro sempre habitou os escrevinhadores.

A partir de um vídeo da atriz Denise Fraga e uma conversa com Giane Flora

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Esportes e mulheres

“E você acompanha o boxe feminino para opinar?”

Ora, esse argumento é absurdo. Dizer que não se pode opinar sobre a condição da atleta Imane Khelif, foco da atenção mundial por sua aparência diferente do padrão das mulheres, apenas porque “não acompanha o boxe feminino” é algo ridículo e tolo. Caso fosse admitido na competição um homem que se identifica como mulher (uma mulher trans) no levantamento de peso eu me posicionaria contra, mesmo sem jamais ter visto sequer uma competição desse esporte, pois não se trata de debater boxe, mas de discutir o espaço das mulheres no esporte; qualquer um. E não se trata de atacar atletas ou pessoas trans, muito menos de combater a diversidade. Pelo contrário, o objetivo é defender as mulheres e possibilidade de conquistarem títulos concorrendo com pessoas com sua mesma condição de gênero.

A questão é simples: se ela é mulher e não usa drogas, pode competir nas competições femininas, inobstante sua condição hormonal. Ao que tudo indica, ela é mesmo uma mulher com condições fisiológicas raras (níveis altos de testosterona). Sei que existem controvérsias, mas a questão extrapola em mundo o “boxe” e se ocupa de responder uma questão elementar nos dias atuais: o que em verdade define uma mulher. Podemos analisar pela genitália, pelos órgãos reprodutores internos, pelos cromossomos, ou por uma mistura de todos esses marcadores biológicos de gênero. Desta forma, fica evidente a necessidade de definir o que é uma mulher, algo que há alguns poucos anos era fácil, mas agora se tornou complexo, entre outras questões pela onda woke no mundo – que só agora parece estar arrefecendo. A ideia de “identificar-se” com um gênero e impor essa percepção subjetiva (legítima) aos outros gerou estas confusões.

“A boxeadora argelina nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher, lutou boxe como mulher, tem um passaporte feminino”, disse o porta-voz do COI, Mark Adams, na sexta-feira.

O debate sobre os níveis de testosterona natural (hiperandrogenismo) é desnecessário. Sim, é uma vantagem sobre os outros concorrentes, mas tanto quanto ter mais de dois metros de altura em esportes como o basquete ou o vôlei. O mesmo também ocorre nos jogos de futebol em altitude, onde os jogadores que vivem nestes locais têm níveis de hemoglobina mais altos por causa do ar rarefeito. Por certo que é uma vantagem, mas é um efeito adaptativo natural, não exógeno ou artificial. Portanto, não se trata de questionar as vantagens que um lutador possui sobre os outros, mas a própria divisão das modalidades esportivas em gêneros, que foi criada para que as mulheres – em desvantagem física pelo dimorfismo sexual da nossa espécie – tivessem condições de vencer competições disputando provas apenas com outras mulheres.

Essa lutadora da Argélia, sendo mesmo uma mulher assim definida pelos órgãos esportivos, tem todo o direito de competir, mas não é necessário para isso que tenha perdido lutas para outras mulheres e muito menos é preciso acompanhar o boxe feminino para ter uma posição honesta e lúcida sobre esta questão.

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Os idosos

A maioria das pessoas da minha idade são conservadoras na política e nos costumes; isso é um fato que não é difícil de constatar. “Eu gosto desse político porque ele não é radical”, dizem. Ou, em contrapartida, “não gosto do fulano; ele é um radical, e os extremos são sempre ruins”. Quando elogiam uma personalidade pública fica nítido que se deixam ofuscar pela imagem de mídia que é produzida sobre ela, na maioria das vezes fantasiosa, produzida nos laboratórios de imagem das empresas que se ocupam da vida de celebridades. “Ahh, o fulaninho é uma pessoa super simples. Sabe que ele doou 1 milhão para os flagelados?”. Nessa fase da vida é muito comum que os “maduros” comecem a se interessar pela religião, pela morte, pelo cristianismo e coisas afins. Também os coroas se tornam céticos em sua visão política, alguns no nível do negacionismo; tornam-se ranzinzas, rabugentos e não acreditam haver possibilidade de que suas utopias da juventude possam se materializar.

“É sempre a mesma coisa, os políticos são todos iguais, é a roubalheira de sempre”. Via de regra, colocam os problemas políticos como afecções de caráter, máculas morais, não estruturais. Muitos acreditam na ideia de um “messias” no governo, no “bom ditador”, na “censura do bem”, “na ação enérgica da polícia”. Para estes, as pessoas que chegam ao poder político são corruptas, egoístas, espertas e desonestas. Curiosamente, não dizem o mesmo dos banqueiros, dos mega empresários, dos herdeiros, dos rentistas e nem sequer do próprio empresário que corrompeu o político. “Ahh, mas ele só fez isso para sobreviver e manter o emprego dos seus empregados”. Os políticos são sempre os que mais apanham: “Não sobra um, é preciso acabar com tudo isso que está aí, e colocar pessoas técnicas em posição de comando”. Assim, o Ministério da Indústria seria de…. um industrial, o da saúde deveria estar na mão de um médico, o ministério da agricultura, controlado por um latifundiário, etc., mas os coroas não pensam que estas posições sejam ocupadas por um operário, uma técnica de enfermagem ou um agricultor familiar, por certo. Seria radical demais.

Na maturidade o vigor das utopias e o colorido dos sonhos de uma sociedade mais igualitária vão desbotando paulatinamente. Não passa um dia sequer que eu não veja um colega de escola ou faculdade fazendo coro às manifestações mais reacionárias do momento, agindo de uma forma absolutamente individualista, falando de seus interesses próprios e sem qualquer perspectiva para a sociedade. Seu pensamento parece ser “Bem, já que meus sonhos de igualdade não vão acontecer, melhor que eu garanta um pouco de conforto na minha velhice; afinal, quem mais do que eu merece um descanso digno?”

Os antigos já diziam que o grande avaliador da honestidade é ter em mãos a possibilidade de efetuar o delito e mesmo assim recusar (ou recuar), o que me parece justo. Afinal, denunciar o suborno de alguém quando nunca teve sua honestidade realmente colocada à prova é sempre tarefa muito fácil. Da mesma forma eu digo que a grande prova do idealista e do sonhador é envelhecer mantendo jovens e vibrantes os seus ideais, sem deixar-se sucumbir pelo negativismo, pelo derrotismo e pelo cinismo. Manter suas ideias joviais, nutridas pela esperança e pela visão positiva do mundo é o que nos mantém jovens, mesmo quando a carroceria já não tem mais o vigor dos anos dourados. Por isso eu aceito ser comunista, espirita laico, internacionalista, anti-imperialista e ativista pelo parto normal, mesmo tendo plena consciência de que não estarei aqui para ver nenhum dos meus sonhos de adolescência se tornarem realidade.

Tomem aí, meus netos, a semente que vos deixo…

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Conciliação e ruptura

As estratégias de combate à expropriação do parto não se resumem a debates estéreis e filigranas filosóficas. Existe uma materialidade evidente que emerge dos estudos e que nos oferece uma rota segura – porém mais difícil – de transformação. Por muitos anos, diante do crescimento evidente e sustentado da intervenção no processo de nascimento, ocorreu um debate sobre qual seria o futuro da obstetrícia. De um lado se situam aqueles que, entusiasmados por uma perspectiva tecnológica e movidos (mesmo sem o saber) pelo “imperativo tecnocrático” (que impulsiona as ações humanas em direção à complexidade tecnológica), acreditavam que o absoluto domínio da tecnologia sobre o ciclo gravídico-puerperal era o nosso porvir radiante. Para estes a gestação e, em especial, o parto, eram fardos demasiadamente pesados para serem carregados pelas mulheres. Liberadas destes encargos – gestar e parir – estariam livres de suas imposições fisiológicas para alçarem voos muito mais altos, conquistando espaços historicamente exclusivos para os homens. Os “casulos humanos” e as exterogestações povoam o imaginário de quem sustenta a tese de que as mulheres têm direito a esta liberdade, e que não recaia mais sobre seus ombros o peso de garantir a sobrevivência da espécie.

Do outro lado se encontram aqueles que percebem que o parto, assim como o concebemos, é constitutivo da nossa espécie. “Somos como somos porque nascemos de uma forma bizarra, particular e única”, e modificação das bases fisiológicas e afetivas do nascimento tem a potencialidade de transformar de tal maneira a nossa estrutura de sujeito que as gerações futuras em nada serão semelhantes àquelas de hoje, onde o parto ainda ocorre através do esforço e da resiliência das mulheres diante das dificuldades inerentes ao processo. Por certo que o movimento de Humanização do Nascimento no mundo inteiro foi criado diante do risco de abandonar a configuração multimilenária do parto em nome de uma aventura tecnológica, causando estragos semelhantes ao que ocorreu três décadas antes quando fizemos o mesmo projeto para a alimentação infantil, trocando a amamentação pelas mamadeiras e fórmulas artificiais. Tal processo, como bem sabemos, produziu uma tragédia incalculável para a saúde – em especial para as crianças de povos menos favorecidos economicamente. Por esta razão, muitas instituições se lançaram em projetos multicêntricos de valorização do parto normal, desde as pequenas ONGs locais de proteção ao parto normal até a OMS (Organização Mundial da Saúde). Porém, desde o princípio ficou claro que as estratégias para este combate eram duas que são, ao meu ver, inconciliáveis.

A primeira desejava uma “conciliação” com as forças hegemônicas da obstetrícia – os médicos, as instituições, os hospitais, a mídia – enquanto a outra percebia não haver possibilidade de conciliação e sequer cooperação, posto que não se trata de uma disputa ideológica, mas pelo poder, o domínio sobre os corpos grávidos. Para estes últimos, enquanto a obstetrícia for controlada por cirurgiões – com pouco ou nenhum apreço pelo parto normal e nenhuma habilidade para os desafios emocionais do processo – a taxa de cesarianas continuará alta, assim como o risco inerente a estas cirurgias para ambos, mães e bebês. Só os lucros aumentam com a intervenção, tanto para médicos quanto para as instituições hospitalares, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc. A solução para a questão da expropriação do parto não será através da academia, dos estudos e das pesquisas (importantes mas insuficientes), mas através da luta das mulheres exigindo partos com mais segurança e autonomia.

Um estudo de 2021 publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology deixa clara a existência de uma conexão entre os controladores do parto e as taxas de intervenção – como a cesariana. Existe um decréscimo sustentado de nascimentos cirúrgicos nos últimos anos concomitante com o aumento da atenção ao parto sendo realizada por enfermeiras obstetras. O gráfico acima não deixa dúvidas sobre a importância de abandonar a perspectiva conciliatória – tentando convencer os cirurgiões a não usar sua arte cirúrgica nos partos – e transformar o atendimento de forma radical, retirando dos médicos a primazia para a atenção aos partos normais. Para mudar a face do parto é essencial mudar quem exerce poder sobre ele.

O estudo de 2021 apenas demonstra o que falamos há mais de duas décadas: não existe possibilidade de mudança se continuarmos a usar o mesmo sistema fracassado. É preciso mudar pela raiz. Controlar o parto é uma questão de poder, e este deve estar nas mãos das próprias mulheres, para que possam decidir seu destino e o de seus filhos. Educar médicos para o valor e a importância do parto normal se mostrou um fracasso para o objetivo de humanizar o parto e garantir sua segurança; a forma mais eficiente de fazer esta revolução é garantir que o nascimento esteja nas mãos das especialistas na fisiologia de nascer: as parteiras profissionais – enfermeiras obstetras e obstetrizes. Sem isso continuaremos o autoengano que nos iludiu nos últimos 25 anos.

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Pensamentos e emoções

Correto. Acontece que para chegar no pensamento as ideias precisam percorrer inúmeros filtros; não existe pensamento que seja a perfeita expressão do que você sente. Já a emoção brota de forma rebelde, livre e espontânea. Por isso o sujeito se revela de forma mais pura nas epifanias e nos paroxismos de medo, raiva e paixão. O terapeuta atento e isento de preconceitos precisa prestar a máxima atenção nestes episódios, e ter uma desconfiança radical com racionalizacões e autoavaliações que o sujeito produz. Somos mentirosos e dissimulados sobre nós mesmos; condescendentes e parciais. Na profundeza do inconsciente, onde impera a escuridão e o segredo, tudo é úmido, sujo, empoeirado e feio; porém, quando as ideias emergem à consciência aparecem penteadas e de banho tomado.

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Culpas

Por favor, cuidem dele e o levem ao médico.”

No dia 21 de julho de 2024, um bebê com 5 a 10 dias de nascido, de uma gestação a termo – segundo estimativa de profissionais de saúde – foi deixado porsua mãe em no banheiro de uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em São Bernardo do Campo, São Paulo. Junto da criança foi deixado um bilhete, solicitando que o cuidassem bem e o levassem ao médico.

A culpa essencial e primordial para fatos absurdos como o desta mulher, que abandonou seu filho em um banheiro público, é da sociedade de castas, do capitalismo, da pobreza projetada e estimulada, da injustiça social e da distribuição obscena de riquezas. A miséria é uma construção social perversa desse modelo que nos divide pelo capital, filha direta da sociedade de classes. Entretanto, isso não absolve quem abandona um filho.

Reconhecer de onde vem esse mal não significa ignorar tudo o que vem a seguir. Se assim fosse seríamos obrigados a inocentar todos os assaltantes pobres, os ladrões e os abusadores, jogando a culpa na sociedade e sua estrutura perversa onde estão envolvidos. Não haveria sociedade possível utilizando este tipo de justiça. Não haveria ordem se justificássemos todos os males pessoais pela estrutura que nos controla; algum nível de responsabilização subjetiva é necessária.

Portanto, essa mulher também tem sua parcela de culpa, e se querem saber o quanto, basta pensar como se julga um homem que abandona os filhos. Para esses não existe contexto e nem frases ao estilo “menos julgamento e mais empatia”. Para estes só a dureza da lei. Para os homens que abandonam os filhos não existe contexto, apenas escolhas pessoais baseadas no egoísmo. Por que tratamos esse fato de modo tão diverso?

A empatia não pode ser oferecida apenas para alguns. O nome de um corpo de leis que é compreensivo e bondoso com uns e duro e inexorável com outros é “supremacismo”, pai do racismo e do sexismo. Trata os iguais como desiguais, e quando vemos um rico e branco que cometeu um crime ser tratado diferente de um negro pobre que cometeu o mesmo delito percebemos como este julgamento é errado.

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