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O Labirinto

Minotauro é uma criatura da mitologia grega que tem o corpo de ser humano, mas a cabeça e o rabo são de touro. Nasceu fruto da relação de Pasífae, esposa de Minos, o rei de Creta, com um touro dado a Minos por Poseidon. O Minotauro é uma criatura que está presente na mitologia grega aprisionado em um labirinto construído por Ícaro e Dédalo (lembram? Aqueles das asas de cera) a mando do rei de Creta. Minotauro era descrito como um ser monstruoso que devorava pessoas vivas. Quando chegou a Creta, Teseu conheceu Ariadne, filha do rei, e a jovem o presenteou com uma espada e um novelo de linha para derrotar o monstro e conseguir escapar. Teseu matou o Minotauro, fugiu do labirinto e salvou seus companheiros.

O parto humano está preso em um labirinto cuja saída, até então, não conseguimos encontrar. Entramos por um caminho sedutor no início do século passado, com a introdução da tecnologia na atenção ao parto. Parecia que a absoluta artificialização do parto permitiria ultrapassarmos os ancestrais medos que acompanham a sociedade desde épocas primevas. Ao contrário do fato inesperado, a previsão de todos os eventos: ao invés da surpresa, o controle dos tempos. Ao invés das mortes e das dores, a vida resplandecente em cada nascimento. Bastaria para isso a absoluta alienação do processo: o parto passaria das mãos das parteiras às mãos dos cirurgiões; ao invés da do ambiente cálido e acolhedor da casa, o frio asséptico e luminescente das salas cirúrgicas. No lugar dos silêncios, os ruídos metálicos, a conversa dos médicos e o choro das mães. Também trocaríamos as bactérias maternas pelos micro-organismos hospitalares, as antissepsias, as roupas esterilizadas e os necessários antibióticos. Quem ousaria não se contaminar pelo entusiasmo da ciência vencendo a natureza, até então, indomável?

Como toda solução mágica, depois do seu esplendor é possível avaliar suas contradições. A alienação das mulheres cobra hoje um preço muito alto. A troca das especialistas, parteiras altamente capacitadas forjadas nos milênios de vigilância do parto, por cirurgiões, teve como resultado o afastamento da arte ancestral da parteria de sua prática cotidiana. Ao mesmo tempo, a epidemia de intervenções se tornou a norma: internações, drogas, isolamento, partos instrumentais, extrações cirúrgicas, infecções, desmame, banhos de luz, afastamento e solidão foram os resultados. Com o tempo fomos percebendo que até a segurança apregoada não era verdadeira: as modalidades cirúrgicas são muito mais arriscadas para mães e bebês do que a vivência puramente fisiológica do parto.

O caminho tecnocrático nos levou a um beco. Mães hoje percebem o quanto lhes foi subtraído com a adesão a um modelo alienante que lhes retirava o controle e a autonomia sobre o próprio corpo e as afastava da vivência plena do processo. Mães e bebês, a díade mais sagrada da história humana, se afastavam mutuamente, e o vazio que se produzia era preenchido com mais tecnologia, mais intervenção. Enquanto isso, a morbidade aumentada relacionada ao abuso das intervenções não podia mais ser escondida. A crise se estabeleceu e a insatisfação surgida entre as mulheres no final do século passado hoje está na voz de toda a gestante esclarecida.

Perdemos o fio, e o Minotauro ainda nos espreita. Nesse cenário, somente Ariadne pode nos conduzir. Ela, que conhece os meandros e os desafios do labirinto, precisa nos oferecer o seu novelo de ciência, conhecimento e sabedoria, para ser nosso guia na busca pela saída. Ela sabe que sem o protagonismo garantido à mulher, sem a visão transdisciplinar no nascimento e sem o embasamento na ciência, estaremos perdidos no labirinto do parto humano, acreditando em soluções ilusórias e em promessas vazias.

PS: Escrevi esse texto a partir do convite de Jan Tritten para participar da “Midwifery Conference”, uma conferência sobre parto e a preservação da arte ancestral da parteria, de 25 a 29 de setembro, na ilha de Creta, na Grécia. Provável participação especial do Minotauro, Ariadne e Teseu. Obrigado, Jan.

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Minotaur is a creature from Greek mythology that has the body of a human being, but the head and tail from a bull. It was born out of the relationship of Pasiphae, wife of Minos, the king of Crete, with a bull given to Minos by Poseidon. The Minotaur is a creature that is present in Greek mythology that was imprisoned in a labyrinth built by Icarus and Daedalus (remember? those of the wax wings) at the behest of the king of Crete. Minotaur was described as a monstrous being who devoured living people. When he arrived in Crete, Theseus met Ariadne, the king’s daughter, and she presented him with a sword and a ball of thread to defeat the monster and escape. Theseus killed the Minotaur, fled the labyrinth, and saved his companions.

Human childbirth is stuck in a maze whose exit, until then, we have not been able to find. We entered a seductive path at the beginning of the last century, with the introduction of technology in childbirth care. It seemed that the absolute artificialization of childbirth would allow us to overcome the ancestral fears that have accompanied our species since early times. Contrary to the unexpected fact, the prediction of all events; instead of surprise, the control of the times. Instead of death and pain, life resplendent at every birth. The absolute alienation of the process would suffice for this: childbirth would pass from the hands of midwives to the hands of surgeons; instead of the warm and welcoming environment of the house, the aseptic and luminescent cold of the operating rooms. Instead of silences, metallic noises, the talk of doctors and the cry of mothers. We would also exchange maternal bacteria for hospital microorganisms, antisepsis, sterilized clothing, and the necessary antibiotics. Who would dare not be contaminated by the enthusiasm of science overcoming nature, hitherto indomitable?

Like any magic solution, after its splendor it is possible to evaluate its contradictions. The alienation of women today takes a very high price. The exchange of specialists, highly trained midwives forged in the millennia of childbirth surveillance, by surgeons, resulted in the removal of the ancestral art of midwifery from their daily practice. The epidemic of interventions became the norm: hospitalizations, drugs, isolation, instrumental deliveries, surgical extractions, infections, weaning, light baths, withdrawal and loneliness were the results. Over time we realized that even the security touted was not true: surgical modalities are much riskier for mothers and babies than the purely physiological experience of childbirth.

The technocratic path has led us to a dead end. Mothers today realize how much was subtracted from them by adhering to an alienating model that removed their control and autonomy over their own body and kept them away from the full experience of the process. Mothers and babies, the holiest dyad in human history, drifted apart from each other, and the void that was produced by this distance was filled with more technology, more intervention. Meanwhile, the increased morbidity related to the abuse of interventions could no longer be hidden. The crisis has settled and the dissatisfaction that emerged among women at the end of the last century today is in the voice of every enlightened pregnant woman.

We’ve lost the thread, and the Minotaur is still stalking us. In this scenario, only Ariadne can lead us. She, who knows the intricacies and challenges of the labyrinth, needs to offer us her novel of science, knowledge and wisdom, to be our guide in the search for the way out. She knows that without the guaranteed agency of women, without the transdisciplinary vision of birth and without the foundation in science, we will be lost in the labyrinth of human childbirth, believing in illusory solutions and empty promises.

PS: I wrote this text after the invitation of Jan Tritten to participate in the “Midwifery Conference”, a conference on childbirth and the preservation of the ancestral art of the parteria, from September 25 to 29, on the island of Crete, Greece. Probably special participation of the Minotaur, Ariadne and Theseus. Thanks, Jan.

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Vozes

É possível falar de humanização do nascimento sem ser político? Seria a humanização da atenção ao parto um tema técnico, científico, positivo, que nada tem a ver com as questões sociais ou com temas mais abrangentes como direitos humanos, reprodução e sexualidade e mesmo o direito à vivência sexual plena?

Lembro de um encontro traumático com um membro do Conselho de Medicina quando este, do alto de sua imperial arrogância, disparou: “Não existe ideologia em Medicina, apenas boa ou má prática médica“. Ou seja: para este conselheiro, a medicina é uma expressão positiva da atividade humana; aplicá-la pressupõe que a verdade precisa ser comprovada a partir de técnicas científicas válidas. Além disso, traz a ideia de ciência cumulativa, ou seja, transcultural, atingindo toda a humanidade, inobstante qual cultura surgiu ou se desenvolveu. Parte da ideia de corpos sem alma, sem história, sem subjetividade, onde um muro se ergue entre os aspectos físicos e as questões anímicas. Por certo, o que este profissional pretende se contrapõe a experiência cotidiana de milhões de médicos que se deparam com as características subjetivas de cada sujeito que os procura. Além disso, é evidente que na manifestação de doenças concorrem aspectos emocionais, psicológicos, afetivos e sociais. Desta forma, na análise das doenças como manifestações de transtornos sociais, a política é uma das ferramentas mais importantes para compreender e tratar o adoecimento.

Partindo deste pressuposto – a influência da cultura e da política na saúde e na doença – eu não acredito ser possível defender a humanização do nascimento sem assumir uma posição ideológica, o que não significa necessariamente adotar uma posição partidária. Mais ainda: eu considero o abandono do debate político um dos grandes erros cometidos pelo movimento da humanização do nascimento nos últimos 25 anos. Sem o saber, adotamos uma posição claramente revisionista, almejando uma ilusória “conciliação de classes” com os detentores do poder, sem nos darmos conta de que, assim como em qualquer luta social, aqueles que tem nas mãos o poder jamais o entregam de forma pacífica. Além disso, a revolução do parto só vai acontecer quando abandonarmos as ilusões juvenis e assumirmos a necessidade de um enfrentamento firme. Sem entendermos que o “direito de parir direito” é uma luta social e que “revolução” significa câmbio de poder, não vamos atingir os fins últimos a que nos propomos.

O mesmo descaso que observo como regra para as vozes femininas na política também observei durante décadas no silêncio das mesmas vozes no que diz respeito ao parto. Portanto, não se trata de silenciar uma mulher em especial, mas reconhecer o temor inconfesso da sociedade patriarcal em escutar vozes dissonantes que possam questionar os “poderes naturais”. Quem teria mais autoridade para questionar como as mulheres são tratadas em seus partos do que elas próprias? Quando gestantes são desprezadas e diminuídas, eu escuto o eco silencioso de centenas de vozes suprimidas, brotando do peito de mulheres assustadas com seus partos, caladas e impedidas de decidir sobre seus corpos. E aqui não ser trata de questionar a fala de Janja sobre o TikTok – sobre a qual discordo – mas de analisar a repercussão violenta contra essa personagem.

Ou seja: os ataques às mulheres que alcançaram, de alguma forma, o poder nada mais são do que reflexos de uma cultura que ainda receia escutar o que elas têm a dizer. Muito do sofrimento que escutamos das mulheres mais velhas está relacionado às palavras não ditas em sua juventude, guardadas no peito, trancafiadas em silêncios dorosos que se transformam em sintomas e lágrimas. Permitir que as energias do parto tenham vazão é cuidar da saúde de todos, tanto quando reconhecer o direito às mulheres de expressarem suas ideias e sentimentos.

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O Parto Sitiado

É para mim uma realidade inconteste que a obstetrícia está sofrendo um cerco; a prática de atenção ao parto está sitiada, enclausurada e amordaçada, e as consequências para a sociedade podem ser trágicas. De um lado, os profissionais sofrem a pressão da sociedade, intoxicada pela mídia que coloca a cesariana como um “avanço civilizatório”, tratada como uma forma superior de atenção às mulheres, um direito garantido às “consumidoras”, uma prática limpa, higiênica, moderna, tecnológica e segura. Sabemos o quanto isso é falso, mas também temos noção da dificuldade de resistir ao paradigma hegemônico. Como consequência, se percebe na atualidade que a demanda pelos partos sem “sacrifício” (sacro ofício, trabalho sagrado) é uma realidade social e jurídica, que obriga médicos a adaptarem suas condutas às demandas do cliente, e não mais às bases científicas que normatizam o proceder e a conduta médica.

Além disso, obstetras são perseguidos de forma cruel e inexorável quando resultados negativos ocorrem, inobstante sua culpa, bastando para isso que não sigam o catecismo da sua corporação – mesmo quando estas regras se afastam claramente dos pilares de respeito à integridade física de mães e bebês. Outro problema urgente surgido pela enxurrada de cesarianas realizadas a pedido, é que esta situação torna inviável a ação ética de obstetras que levam a sério a ideia de não causar dano aos seus clientes. Mais ainda, está cada vez mais claro que não existem recursos – materiais e humanos – para dar conta de tantas cirurgias e suas consequências, em especial aquelas que ocorrem no sistema público de saúde. Portanto, se trata de um drama ético, jurídico e econômico. Por certo que esta tendência alienante da obstetrícia contemporânea agrada aos poderes corporativos e institucionais – médicos, hospitais, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc – mas não é o mais seguro para os pacientes que atravessam o desafio do parto e do nascimento.

Alguns dirão que esta situação ocorre pela liberdade de escolha das mulheres, e qualquer cerceamento desta seria um retrocesso. Sempre foi minha visão de que é necessário respeitar aquilo decidido pelos sujeitos, mesmo quando sabemos que se tratam de escolhas ruins. Todavia, numa sociedade de controle massivo pela propaganda, esta escolha das mulheres não pode ser julgada como “livre e consciente”; elas sofrem um bombardeio brutal e cotidiano dos meios de comunicação, os quais moldam seu pensar e constroem seus valores. Portanto, a escolha pela alienação no parto não é livre; é fruto de uma construção social que criminaliza a vivência fisiológica e protagonista do nascimento.

Cabe à sociedade, e em especial às mulheres, a mudança desse cenário. “O parto humano será o que fizermos dele” e, portanto, é nossa responsabilidade construirmos alternativas ao modelo tecnocrático do nascimento. Ele não surgirá por decreto ou por dádiva, mas pelo debate, pela escuta do contraditório, pela elaboração de propostas e acima de tudo por meio da luta incessante por sua implementação.

E que assim seja…

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Macartismo obstétrico

Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.

O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.

Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.

Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.

Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.

A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?

Crucial choice

We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.

The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.

To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.

It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.

This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.

The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?

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Cesarianas

“Mulheres que fazem cesarianas são muito corajosas. Afinal, são sete as camadas de tecido cortadas. Vocês devem se orgulhar de suas cirurgias”.

Sempre que vejo este tipo de publicação eu fico confuso. Será mais uma peça de exaltação da tecnologia como forma superior de lidar com os desafios do parto? Será o elogio à escolha por uma grande cirurgia, mesmo quando temos milhares de estudos comprovando ser a via natural a melhor e mais segura forma de trazer um bebê à luz?

Não, as cirurgias não são feitas porque as pacientes são corajosas; esta é uma leitura muito errada do que realmente ocorre. Pelo contrário: para alcançarmos taxas obscenas de cesarianas, as mulheres são assustadas, apavoradas e reduzidas aos seus temores mais primitivos até o ponto em que são obrigadas a ceder à pressão do cirurgião. A estrada do abuso de cesarianas é pavimentada com medo e pintada com as tintas do desmerecimento das qualidades inatas de gestar e parir.

Não há como considerar as mulheres levadas à cirurgia como “corajosas”, porque sequer são adequadamente informadas dos múltiplos riscos associados a esta operação. Se tivessem pleno conhecimento dos riscos e ainda assim escolhessem a cirurgia, talvez pudessem ser chamadas de “corajosas”, mas ainda seria necessário acrescentar outro adjetivo: “temerárias”. Mulheres devidamente informadas sobre o que significa privar o bebê de um nascimento natural conhecem os riscos que vão correr e entendem as múltiplas vantagens do parto fisiológico. Estas dificilmente são convencidas a abandonar a via natural de nascimento.

Em várias partes do mundo, e no Brasil em especial, mulheres se submetem a um número abusivo de cesarianas porque, inegavelmente, esta cirurgia traz inúmeros benefícios…. mas para médicos e hospitais, e não para mães e bebês. Nas cesarianas o hospital organiza com mais eficiência os horários dos procedimentos e as enfermeiras controlam melhor o trabalho a ser realizado. Os médicos não perdem seu descanso, nem suas férias, sequer as madrugadas ou fins de semana; muito menos as cesarianas irão atrapalhar seus horários de consultório. Além disso, a cesariana confere aos profissionais blindagem jurídica – não importa quantas cesarianas faça e nem o resultado trágico delas, o cirurgião sempre se protegerá atrás do escudo do “imperativo tecnológico”. A indústria de drogas e equipamentos lucra – e muito – com o excesso de cesarianas; os anestesista e auxiliares cirúrgicos também ganham seu quinhão na “roda da fortuna” das cirurgias sem indicação. A mãe, desempoderada e sem voz, ganha a ilusão de que fez o melhor possível. Afinal, que mais poderia ela fazer, além de alienar seu parto a “quem entende”?

Um dos resultados práticos da aventura intervencionista na assistência ao parto é a crescente incompetência dos obstetras na assistência ao parto. Habilidades de outrora, como as técnicas para atenção ao parto pélvico (bebê sentado), parto gemelar (de gêmeos), partos longos ou distócias de vários tipos estão sendo perdidas. Estas capacidades foram construídas durante milênios de aprimoramento por meio da observação, mas agora estão sendo aniquiladas pelo atalho cirúrgico – sem que existam claros benefícios para o binômio mãebebê. Na verdade, a assistência ao parto no contexto ocidental mais se assemelha a um teatro onde o espetáculo coloca em risco os figurantes (mães e bebês) para que os atores principais (equipe de assistência) fiquem seguros; só a saúde dos pacientes caminha na corda bamba.

A solução? Somente uma revolução do parto liderada pelas próprias mulheres e com a ajuda substancial de médicos, enfermeiras obstetras e obstetrizes, e o suporte luxuoso das doulas e da população em geral – homens e mulheres. Enquanto o parto for controlado por cirurgiões, o nascimento humano será um evento cirúrgico, que apenas ocasionalmente será fisiológico. O parto controlado por parteiras profissionais será fisiológico, humanizado, centrado na mulher e suas necessidades, e apenas ocasionalmente será cirúrgico. Esta é a escolha que as sociedades vão precisar fazer. O abuso de cesarianas não é um ato de coragem ou bravura; é tão somente desinformação de um lado e oportunismo do outro. E a solução para este dilema não está na conciliação de poderes, mas na tomada de consciência por parte das mulheres e na ação política de todos os atores sociais relacionados ao nascimento seguro.

(E, vamos lembrar apenas, mais uma vez, que este texto fala de cesarianas sem uma clara indicação, não a sua… que, todos sabemos, foi muito necessária.)

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Submissão

Uma mulher deitada de costas é como uma tartaruga encalhada. Nessa posição a tartaruga não consegue chutar, lutar, arranhar e correr tão facilmente. Quando a mulher está deitada de costas, a estrela do show se torna o “cuidador”. Afaste este personagem – ou faça-o agir apenas quando deve – e ela se tornará a “estrela” em seu próprio parto. Para o cuidador é importante manter aquela parturiente de costas, submissa, pois esta é a forma de manter o controle sobre ela. Não por acaso a posição “civilizada” de parir é idêntica a todas as formas de submissão entre mamíferos superiores. Por esta razão, mais do que um ato operacional, a posição de decúbito dorsal tem um importante valor simbólico no sentido de controlar e domesticar as forças reprodutivas.

Apud Glória Lemay

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Confusão planejada

Nas redes sociais:

“Gael nasceu alguns meses depois. Nara, contudo, teve complicações durante o parto, sofreu uma hemorragia e precisou ficar intubada na UTI.”

Na verdade, não houve parto algum; o bebê nasceu por meio de uma cesariana. Não vou discutir a indicação da cirurgia, e prefiro até pensar que foi bem indicada. Porém, a narrativa da imprensa corporativa (aquela controlada por quem paga mais) sempre tenta misturar partos normais com “cirurgias para a retirada de bebês” – cesarianas –  como se estes eventos fossem da mesma natureza. A gente sabe bem a quem serve essa confusão.

Quando eu vi a notícia de hemorragia logo pensei em cesariana, onde esse tipo de intercorrência é muito mais comum, por isso resolvi pesquisar. Mesmo na notícia abaixo, que esclarece sobre a realização da cesariana, ainda assim inserem a palavra “parto”, o que gera confusão e colabora com o medo crescente que o parto exerce entre as meninas. Esse temor disseminado entre as mulheres é uma construção social que tem por objetivo dominar a reprodução através do controle da sexualidade feminina.

“A influenciadora digital Nara Paraguaia, namorada de Toguro, recebeu alta hospitalar após passar por complicações no parto de seu filho, Gael. Ela estava internada desde a última quarta-feira, 6, após sofrer uma hemorragia durante uma cesariana que lhe colocou em estado grave de saúde.”

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Partos, fases e luas

Em meados dos anos 80, um pouco antes da minha formatura e o início da residência em ginecologia e obstetrícia, decidi fazer uma análise da relação entre as fases da lua com dois fenômenos conhecidos: o inicio do trabalho de parto e o parto propriamente dito. Meu objetivo era bem simples: esclarecer a influência das fases da lua com o nascimento humano, já que popularmente esta relação era feita, mas sem uma metodologia adequada para sua avaliação. Era muito comum encontrar, inclusive entre os médicos, comentários ao estilo: “plantão passado foi terrivel, mas é compreensivel: era lua cheia”. Entretanto, eu sempre achei que este era um viés de observação. Ou seja: por ter sido um dia com excesso de atendimentos o observador se preocupava em saber a fase da lua; fosse um dia sem partos ele sequer se importaria com isso.

Diante disso, resolvi tabelar todos os nascimentos e as internações em trabalho de parto de 1⁰ de janeiro a 31 de dezembro de um ano especifico do hospital escola onde eu havia estudado e estava prestes a cursar a residência. Fui aos arquivos do hospital e dividi essas ocorrências entre as fases da lua para ver se alguma correlação poderia ser encontrada entre estes dois fenômenos: a posição do nosso satélite em relação sol e a emergência dos sinais que iniciam a expulsão fetal. Feito isso, era necessário tabular e usar fórmulas matemáticas de bioestatística para encontrar – ou não – uma relação de causalidade.

Nesse interim eu me formei e comecei a fazer plantões no centro obstétrico do hospital. Num desses plantões eu recebi na emergência uma paciente com queixa de contrações. Era mais de meia-noite e o plantão estava bem calmo. A gestante chegou acompanhada do marido e ambos pareciam muito ansiosos. Mostrou seu cartão do pré-natal e os exames protocolares. Primeiro filho, 39 semanas de gestação, pressão ok, batimentos fetais idem. Sem intercorrências na gestação. Fiquei avaliando os exames com uma demora proposital, esperando testemunhar uma contração. Nos 15 minutos em que ficou na sala, ao lado do companheiro, nenhuma contração foi relatada. Pedi que a atendente a ajeitasse na mesa de exames, e só quando se ergueu da cadeira relatou que estava sentindo uma cólica no útero, que foi rápida e sem muita intensidade. Ao fazer o exame vi que ela tinha não mais do que 2 centímetros de dilatação, contrações frágeis e somente duas cada 10 minutos. No jargão obstétrico, “pródromos” (pró – dromo, precursor, aquele que corre na frente). Recomendei que voltassem mais tarde. Diante da minha indicação o marido me encarou de forma preocupada dizendo:

– Doutor, não há condições. Já é madrugada e moramos na Restinga (bairro afastado da cidade). Não temos dinheiro para pagar um taxi de novo. Para nós é muito caro; somos pobres e esse gasto seria impossível. Como o senhor mesmo disse, ela pode iniciar as dores fortes dentro de 1 ou 2 horas, talvez até antes. Ou depois, mas como saber? Não tem como ela ficar aqui aguardando?

Senti a angústia do casal e entendi a preocupação. Resolvi conversar com o contratado de plantão, o qual aceitou a ideia de deixá-los no hospital esperando as contrações, já que o centro obstétrico estava vazio e, para eles, um retorno mais tarde seria por demais dispendioso. Era o que chamávamos de “baixa social”, uma internação determinada por fatores não médicos, mas relevantes. Essa é uma prática muito comum, que existe em qualquer lugar até hoje. O casal agradeceu, ficaram a noite toda dormindo, as contrações desaparceram e apenas voltaram ao amanhecer. Passei o caso para o novo plantonista que estava assumindo o plantão e este resolveu induzir, usando soro com oxitocina. Sim, precisavam fazer aquele bebê nascer, “já que a paciente havia ficado a noite inteira sem desenvolver um franco trabalho de parto e ocupando um leito que poderia ser necessário mais tarde”. Foi instaurada a indução e eu fui para casa.

Ao sair do plantão ainda estava escuro e percebi que aquela noite havia sido de lua cheia, mas o plantão tinha sido monótono e com poucos casos. Cheguei em casa, peguei todas as minhas anotações sobre partos e fases da lua e guardei em uma pasta, onde então até hoje. Nunca mais me interessei por este estudo. Aquele caso corriqueiro me havia feito perceber que, no mundo ocidental e nas sociedades complexas, é impossível observar a relação dos fenômenos da natureza com as gestantes e o parto. As influências externas são tantas e tão mais intensas que seria impossível depurar os casos de suas interferências de ordem social. A paciente daquela noite internou sem necessidade médica real e recebeu um soro pela manhã igualmente sem ser preciso, apenas porque seu parto tinha que se enquadrar na ideologia obstétrica de nossa época e na grade dos tempos de seus assistentes. Nada naquele nascimento foi natural; inobstante a fase da lua, e se ela poderia ter alguma influência no parto, tudo foi atropelado por fatores sociais e por crenças médicas, impedindo que qualquer correlação pudesse ser observada.

Lacan deixou claro que a “palavra matou o real”. Não existem mais “partos naturais”, pois que estes ficaram perdidos num passado muito remoto, sobrevivendo apenas enquanto fantasia ou utopia. O parto, inserido na linguagem, é o que nossas mentes fazem dele; é um evento da cultura que ocorre no corpo das mulheres, carregando consigo o reflexo dos nossos valores e das nossas crenças. Envolto nesse contexto simbólico ele não pode ser mais avaliado pela suas características primitivas, fisiológicas e “naturais”. A mulher que poderia parir esse “bebê natural” já não existe mais; expulsos do paraíso, somos todos condenados a parir e nascer no contexto da palavra.

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Madame Durocher

No teaser do filme sobre a Madame Durocher, pioneira na medicina do século retrasado – por ousar ser mulher e atuar em uma profissão historicamente dominada pelos homens – fui obrigado a ver mais uma vez os números fantasiosos atribuídos aos atendimentos realizados pelos profissionais do parto. Esta é uma prática comum, tanto entre parteiras quanto entre médicos. Sobre estas afirmações, peço apenas que façam a seguinte ponderação. À Madame Durocher foram atribuidos 8 mil nascimentos, um número redondo e grandiloquente que já deveria nos despertar atenção. A média de duração de um parto é de 8 horas para uma multigesta (que já teve filhos) e 12 horas para uma primigesta (que espera seu primeiro bebê). Isso se levarmos em consideração os partos atendidos no século XX, quando estas medições foram realizadas. Para alem disso, estamos falando de fatos ocorridos no século XIX onde a imensa maioria das crianças nascia em casa numa época onde não havia transporte rápido. Para atender essa quantidade de partos ela teria que passar por volta de 15 horas diárias entre a atenção ao parto e o deslocamento de ida e volta até a casa da paciente. Não havia hospitais de grande porte e muito menos plantões, que são invenções do seculo XX.

As pessoas que criam esses números (tipo 8 mil!!) não se dão conta do que seja atender essa quantidade imensa de partos. Para se ter uma ideia, isso significaria atender um parto por dia durante 27 anos seguidos, sem férias, descansando apenas um dia por semana. Num tempo onde os partos eram em sua imensa maioria domiciliares, determinando deslocamentos que por vezes demoravam horas, não haveria tempo para realizar essa atividade nessa frequência, e nenhuma parteira teria força ou saúde para realizar esta tarefa. Esses números são sempre falsos, inflados, criações fantásticas para garantir valor para o profissional; são criações numéricas mágicas, sem qualquer embasamento, porque quase nenhum médico tem anotações com o registro de cada paciente atendida. Além disso, se esta parteira atendeu um parto por dia durante décadas essa foi a única atividade que foi capaz de fazer durante esses anos todos; não poderia ter filhos, conquistar um marido, cozinhar, lavar roupas, namorar ou mesmo ler um livro para estudar e se atualizar. Simplesmente impossível.

“Ahh, mas talvez ela tenha atendido mais de um por dia” por menos tempo, mas isso é algo insano. Atender dois partos domiciliares no mesmo dia é uma tarefa gigantesca mesmo que você tenha carro e atenda na mesma cidade. Mais do que isso é loucura, mesmo se houvesse uma epidemia de partos “relâmpago”. Além disso, não se trata apenas do tempo entre as contrações e o nascimento; é importante levar em conta que após o parto é necessário pelo menos duas a três horas de observação do bebê e dos secundamentos maternos para garantir a segurança de ambos. O trabalho com o nascimento humano congrega em um só evento vida, morte e sexualidade. A carga imensa que esse trabalho gera produz um desgaste para além das questões físicas. Obstetras e parteiras trabalham se equilibrando sobre a fina lâmina que divide a vida e a morte, em um labor de profunda tensão, angústia, alegrias e tristezas profundas, onde o desgaste emocional é tão terrível quanto inevitável. Atender um parto por dia, mesmo que cada um deles durasse apenas 2 horas, já seria insano, insuportável na prática privada. Fazer isso durante décadas sem tirar férias é apenas impossível.

“Ahh, mas quem sabe em boa parte deles ela estava apenas acompanhando suas instrutoras”, mas nesse caso ela não seria a principal atendente do processo então não há como contabilizar como tendo “atendido” o parto. O número de partos funciona como a cicatriz do soldado que chega da guerra: é um sinal de valor e bravura. Infelizmente, entre os profissionais do parto, se criou o costume de inventar números para que isso seja a tradução explícita de sua experiência profissional e, portanto, do seu valor.

PS: faço essa observação apenas para alertar sobre os números fantásticos e fantasiosos que parteiras e obstetras apresentam como atendimentos realizados. De resto penso que esse tema e esse filme são especiais, pois mostram o trabalho árduo das parteiras e das pioneiras da medicina. Um filme que vale a pena ser visto. Parabéns aos realizadores.

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Antigamente

Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?

Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.

Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.

A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?

Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.

PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.

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