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Consensos

“Todos na sala discordaram dele, e mesmo assim ele se negou a reconhecer que estava errado. Fez isso porque escolheu se manter ignorante”.

Vamos ponderar que, dizer que alguém está errado apenas porque 4 ou 5 pessoas (ou mesmo 500) afirmaram o contrário e refutaram as provas apresentadas, não é um bom argumento. Não se pode aceitar que a verdade seja decidida por votação. “A Terra é plana ou esférica? Não sei, vamos votar?” ou então “Existe (ou não) aquecimento antropogênico porque a maioria dos cientistas concorda”. Isso, para a ciência séria, tem pouco valor. Quando Copérnico anunciou sua teoria sobre o heliocentrismo, muito mais do que 5 ou 6 de seus pares afirmaram que ele estava errado. Com Galileu ocorreu o mesmo, e por isso mesmo foi até julgado e condenado. Copérnico e Galileu seriam, para suas épocas, “negacionistas do geocentrismo”?

Não apenas eles, este é um mal que acomete a quase todos os gênios da humanidade: o isolamento e a incompreensão. Poderia citar milhares de outros exemplos de pensadores como Freud, Espinoza, Nietzsche, Marx, entre tantos que sofreram rechaço por parte da imensa maioria de seus colegas em seu tempo, mas que apesar da solidão produzida por suas ideias, carregavam a verdade em suas ideias. Isso prova a todos nós o quanto a verdade não é democrática; em verdade é poderíamos dizer que ela é “aristocrática” e “meritocrática”. Nietzsche, inclusive, afirmava que o verdadeiro gênio só teria sua obra reconhecida um século após a sua morte. Em vida, seria fatalmente maltratado, desprezado e incompreendido. Ele foi a prova de suas próprias ideias.

Certa vez Albert Einstein recebeu um manifesto assinado por inúmeros cientistas reunidos em um congresso, o qual, de maneira enfática, refutava uma de suas teses. Quando viu o número de assinaturas, ele comentou: “Meu Deus, mas para que tantos? Bastaria apenas um, munido de bons argumentos”. Ou seja: o número de pessoas que discorda de você é irrelevante; os argumentos que ela traz ao debate é que são os elementos essenciais.

Além disso, as pessoas não “escolhem se manter ignorantes”; elas apenas não conseguem enxergar o mundo por uma perspectiva diversa daquela que lhes oferece uma explicação segura e confortável do mundo. O medo delas é trocar aquilo que lhes garante uma compreensão mais coerente do universo e que lhes oferece mais segurança (que pode ser qualquer coisa, como a crença em Deus ou a descrença num princípio criador), por um salto no escuro, que lhes deixa com o medo e as incertezas de um novo paradigma.

Não tenha medo de carregar uma verdade solitariamente, mesmo quando muitos a contestam. Esteja sempre aberto a mudar sua posição e transformar o modo como enxerga o mundo, mas não se deixe atemorizar pelas falsas unanimidades. A verdade não é amiga da popularidade; muitas verdades que hoje nos abrem portas para o conhecimento foram, no seu tempo de despertar, tratadas como anátemas perigosos ou tolices inaceitáveis. 
 

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Queixa

“Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria”

A música “Queixa” de Caetano Veloso foi lançada em 1982 no álbum “Cores e Nomes”. Ela me cativou desde sempre, porque fala de uma questão universal, afeita a cada um de nós: o desamor, a subversão da paixão, que “quando torna-se mágoa é o avesso de um sentimento; oceano sem água”. Muitas vezes ouvi diferentes histórias sobre as razões pelas quais Caetano compôs essa música, tão dolorida e ressentida. Todavia, pouco importa: ele a fez para todos nós, para cada dor de amor pela qual já passamos, pois, de uma maneira ou de outra, esses sentimentos a todos nós pertencem e a eles tivemos acesso.

Entretanto, não é sobre o sentido último da música e sua poesia que eu me detive estes anos todos, mas sobre esta específica estrofe, que retirei da Internet. A razão para a minha curiosidade é que eu acredito que a letra de “Queixa” poderia, neste ponto preciso, oferecer uma interpretação dúbia, e eu sempre me diverti mentalmente explorando essa dualidade.

Sim, a música pode ser cantada como “Um amor assim delicado, nenhum homem daria”. Tenho certeza que assim Caetano pensou ao escrevê-la, até porque faz sentido na estrutura lírica da canção. Ele estava magoado, sentindo-se traído, ressentido e com raiva. Estava dizendo à sua amada que o amor que lhe ofertou nenhum outro homem seria capaz de lhe oferecer. Claro, faz sentido. Por outro lado, existe uma forma homofônica de cantá-la, mas diversa na escrita, que pode transformar completamente a ideia que a estrofe nos apresenta. Na minha cabeça eu cantava assim:

“Um amor assim delicado, nem um homem daria”

Eu adorava pensar que Caetano desejava dizer que “a delicadeza deste amor era tão grande que sequer um homem seria capaz de oferecê-lo”. Ou seja: (só) os homens seriam capazes de garantir a necessária delicadeza ao amor, mais do que as próprias mulheres. Um amor “delicado” seria um atributo de homens, e “um amor tão delicado” somente um homem seria capaz de entregar a uma mulher. Por certo que esta é uma interpretação bem pessoal, baseada em algo que – quase certamente – Caetano jamais pensou ou desejou colocar na música. Porém, eu pensei muito sobre este tema, e acho que de uma forma pode fazer sentido.

Vejam… o amor é um tema feminino. Para a humanidade as mulheres são as guardiãs do amor, algo que a elas pertence. Os homens, por certo, bebem dessa fonte, mas o amor é uma criação feminina, surgida da relação primitiva entre um bebê e sua mãe. Tamanha é a altricialidade (dependência do outro) dos bebês em relação a quem lhes cuida, pela saída prematura do claustro materno, que se produziu de forma espelhar um sentimento único de amor dessa mãe em direção ao seu rebento. Nesse momento na história do universo formou-se a fissura aberrante da ordem cósmica, falha colossal na tessitura da biologia. O amor surgiu da profundidade desses sentimentos inesperados e bizarros, e por esta razão Freud nos ensinou que “se o amor existe, este é o sentimento de uma mulher por seu filho, sendo todos os outros amores dele derivados”. Desta maneira, partiu das mulheres a criação do amor, mas graciosamente o ensinaram à humanidade, inclusive aos homens.

Por esta perspectiva, para o homem o amor não é natural; ele é um aprendizado bem mais complexo. É preciso que uma mãe (função) lhe conte essa história, com todos os detalhes do seu enredo amoroso. Esse ensinamento vai ocorrer desde os primeiros instantes em que a criança escuta os sons do mundo e reconhece seus brilhos e nuances. Portanto, para que um homem ame, é necessário que se torne delicado e pelo seu esforço torne do avesso o que dele se espera. Para isso, fragiliza-se, coloca-se de joelhos e à mercê daquela que o subjuga. Baseado nessa interpretação, eu escutei a música de Caetano como um elogio ao esforço do masculino de tornar-se delicado, frágil e inseguro para, só assim, ter acesso à energia hipnotizante do amor.

Ok, eu sei o quanto disso é puro devaneio, mas acredito que para mim, de forma absolutamente subjetiva, esta música abriu um portal através da vida própria que as músicas desenvolvem, a despeito das intenções e gostos de seu criador. Penso nela como um elogio ao homem que, apesar da brutalidade da qual sempre se sentiu devedor, é capaz de amar de forma aberta, frágil e …. delicada.

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Elogio

Meu pai, em sua longa vida, jamais se abateu com os ataques que lhe foram dirigidos por aqueles que não aceitavam suas ideias ou propostas, e nunca cedeu à tentação do revide ou do ressentimento. Entretanto, não gostava de elogios e homenagens, pois sabia do poder altamente destrutivo dos aplausos. Nesse aspecto era freudiano; entre suas frases mais famosas, o mestre austríaco deixou esta sobre o tema: “podemos nos defender dos ataques, mas somos indefesos diante de um elogio”.

O elogio penetra em nossa mente pelas frestas criadas pela vaidade. É por ali, e não pela potência dos murros, que se derruba um sujeito. Meu pai bem sabia de suas fragilidades; dizia ele que é preciso ser excepcionalmente forte para receber um elogio e não se deixar contaminar por ele. Freud, quando se dirigia aos médicos, inebriados pelos elogios e juras de amor de suas pacientes, alertava: “Não sejam tolos, estes elogios não são para vocês mas para quem representam no imaginário dessas moças”. O mesmo acontece conosco: muitos elogios que lançamos são, em verdade, autoelogios, que exaltam nossa capacidade de enxergar virtude no outro, esperando que, em contrapartida, as nossas qualidades sejam igualmente notadas. Em verdade, caso queira destruir um sujeito, não é necessário que as investidas venham de fora, seja por ataques físicos ou atingindo a sua moral; basta inflar seu ego e esperar que a ilusão de grandeza o destrua por dentro.

Não há como discordar desta posição do meu pai. Os elogios e as bajulações são perniciosos e destrutivos, e as críticas nossos melhores conselheiros. Aceitar os elogios e rejeitar as reprovações é um passo certeiro para o fracasso de nossos mais altos projetos. Uma postura reservada e comedida impede que a vaidade nos destrua por dentro, através do engano e da ilusão.

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Aos mestres com carinho

Meu sonho sempre foi ser professor, como meu pai. Sempre achei esta a profissão mais charmosa, mais desafiante, mais complexa. As vezes vejo pessoas escrevendo sobre as agruras dos seus ofícios e o quanto são difíceis, complexos, profundos e desafiadores. Quando me descrevem seus desafios eu sempre vejo minha imagem de menino, sentado na sala de aula com outros 40 alunos enquanto assistia uma aula sobre assuntos que não me interessavam – como matemática, por exemplo. Na minha frente uma professora, lutando contra o desinteresse de uma multidão, tentando provar o quanto aquele conteúdo poderia ser útil em suas vidas. Aquelas cenas ficaram marcadas na minha mente como a mais fidedigna descrição de um cavaleiro andante solitário enfrentando moinhos de vento ranhentos e inconvenientes. A sua coragem e força de vontade hoje me impressionam.

Somente muitos anos depois da minha experiência escolar eu tive a oportunidade de me colocar na posição de professor. Em todas as vezes que recebi elogios eu respondi de forma direta: “Eu estou dando um curso para adultos, ávidos por um conhecimento específico, pelo qual pagaram e que vai lhes abrir portas na vida profissional. Desta forma, 80% do trabalho – o interesse – já está feito por quem assiste a aula. Como acha que me sairia com crianças ou adolescentes, sem interesse nesse tema, garotos e garotas que naquele momento gostariam de estar conversando ou namorando? Como acha que eu me sairia se o conteúdo que eu ofereço não fosse capaz de abrir portas para alguma vantagem na vida?”

Um bom professor lhe oferece insegurança e angústia; não lhe garante a paz, e sim a espada. O mestre lhe oferece a certeza das incertezas, a compulsão pelo pensamento crítico e segurança para não aceitar respostas fáceis ou definitivas. Um mau professor carrega você para onde desejar, enquanto o bom professor lhe mostra o caminho. Já o mestre lhe descortina a vastidão à frente, aponta para o horizonte e diz: “faça seu caminho”. O mestre Freud já nos ensinava que “as certezas absolutas nos cegam perante novos horizontes; nunca tenha certeza de nada, porque a sabedoria começa com a dúvida”. Desta forma sua pedagogia nos afastava da sedução das convicções inamovíveis e do alívio que elas proporcionam. Pelo contrário: sua sabedoria nos apontava que o crescimento se dá exatamente pelo enfrentamento da angústia de nada saber.

Aos mestres minha reverência e minhas desculpas. Fui um aluno chato, irritante, conversador e irreverente. Desafiava constantemente a autoridade que os pobres professores tinham diante da turma. Fui muitas vezes chamado à atenção, e todas de forma merecida. Essa minha relação de atrito com todas as formas de poder transformou-se, com o passar dos anos, em genuína admiração, a ponto de que agora vejo os professores como os profissionais mais sofisticados. Da mesma maneira, hoje vejo a arte de curar como sendo, em essência, uma pedagogia, e não uma intervenção mecânica sobre organismos disfuncionais. Quanto mais o médico se aperfeiçoa, mas se parece com um professor: ao invés de intervir auxilia o paciente a encontrar dentro de si mesmo a cura que tanto necessita.

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Entre Marx e Freud

Nossa herança animal nos oferece uma característica peculiar na história da vida no Planeta. Carregando a herança de milhões de anos de processo evolutivo, mas subitamente dotados de razão, caminhamos sobre a fina lâmina que divide a mais instintual animalidade das características angelicais de quem pensa e raciocina. Inobstante a grandeza do nosso avanço tecnológico, somos governados por um núcleo de medos coberto por uma camada de crenças irracionais. Estas crenças nos oferecem a falsa certeza de termos controle sobre a natureza e o caos do universo, e nos protegem das sombras da desesperança. Sobre nossas crenças se assenta uma fina e translúcida camada de racionalidade, quase insignificante, mas que nos oferece a ilusão de termos suplantado nossos atávicos temores.

A psicanálise nos mostra, em essência, a fragilidade de nossas escolhas, não apenas em termos subjetivos, mas também no que diz respeito às opções sociais e políticas. Por mais que tentemos entender de forma racional os diferentes modelos e sistemas políticos, haverá sempre dentro de cada sujeito um choque interno determinado pelos nossos valores, os quais dominam e direcionam nossas escolhas. Para o pai da psicanálise, “Não há sujeito sem cultura e nem cultura sem sujeito”. Freud deixou claro, desde o surgimento da psicanálise, que o sujeito é inseparável da cultura; a vida subjetiva implica, inexoravelmente, na referência do sujeito ao Outro – objeto de amor e de ódio – e à linguagem. A psicanálise atua na sutileza, na delicadeza, nas filigranas do discurso; sua busca é pela imbricação de afetos, o conflito dos amores, a disputa de desejos e o desatar destes nós que carregamos.

Desta forma, quando o sujeito se situa à direita ou à esquerda do espectro político, existe nesta definição uma série de elementos psíquicos intangíveis, escondidos nos porões úmidos do inconsciente, agindo sobre suas ações. E assim o fazem escondidos atrás de discursos lógicos e racionais, mesmo que a opção por uma perspectiva ou outra seja determinada por questões inconscientes. O inconsciente controla, sem que o próprio sujeito se aperceba. O verniz de intelecto que cobre nossas crenças nos impede, à primeira vista, de entender as verdadeiras e profundas razões pelas quais escolhemos um caminho em detrimento do outro.

A escolha pelo marxismo como modelo de compreensão da realidade e organização política das sociedades se faz através dessa complexa rede de interações entre elementos racionais e questões afetivas e psíquicas – como qualquer outra decisão em nossas vidas. Todavia, a perspectiva socialista é ainda pequena em nossa cultura, colocando aqueles que ousam aceitá-la como minoritários, sofrendo todos os reveses possíveis dentro de uma sociedade capitalista organizada em classes. Mais do que isto, estes que abraçam as teses marxistas foram historicamente perseguidos, caçados, calados, censurados, torturados e até mortos, o que confere aos socialistas uma perspectiva emocional peculiar e significativa. É por estas circunstâncias que é necessário ter suporte emocional e conhecimento dos elementos constitutivos do psiquismo humano para empreender a tarefa de construção de uma sociedade que pretende abolir as classes que nos separam, transformando um mundo marcado pela desigualdade em um que seja baseado na equidade e na justiça social. Compreender o funcionamento da alma humana é tarefa precípua de todo aquele que se aventura pelo socialismo.

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Imortal

A mãe do meu avô se chamava Charlotte, mas todos a conheciam por dona Iaiá e eu nunca a conheci, pois que ela morou toda sua vida adulta no nordeste. Dona Iaiá perdeu o marido muito jovem, quando ele tinha menos de 40 anos, e meu avô foi criado pelo seu próprio avô – um avôhai, como tão bem descreveu Zé Ramalho. Esse avôhai se chamava Herbert John, e em homenagem à sua memória meu pai, eu, meus irmãos, meu filho e meus netos carregamos o nome “Herbert” como patronímico hereditário. As histórias de Herbert John, que viveu no século XIX e que presenciou muito de perto a escravidão nas fazendas de açúcar do nordeste, são deveras interessantes, mas serão contadas em outra oportunidade.

Minha bisavó morreu com mais de 90 anos. Era uma mulher miúda, magrinha, serelepe e ágil, que com o passar dos anos foi encolhendo ainda mais e se encurvando, como um galho que seca e verga sob o peso do tempo. Entretanto, era dona de grande vivacidade e senso de humor ímpar, segundo os relatos do meu avô. Uma de suas conversas com Daddy (meu avô) ficou marcada na minha memória, conforme contada por meu pai. Estava já meu avô com quase 70 anos e sua mãe chegando aos 90 (ela morreu com 92) quando, tomando um cafezinho, fez esta observação a ele:

– Meu filho, sabe essas moças que trabalham nas ruas, que viajam com os circos, que dançam nos cabarés? Essas que colecionam namorados, que tiveram muitos homens e que todos dizem ter “vida fácil”? Pois eu acho que fui uma destas mulheres em uma outra encarnação. Acho mesmo…

Meu avô tentou segurar o riso diante das palavras surpreendentes de sua mãe nonagenária, mas manteve a seriedade e observou:

– Mas mãinha, por que uma pessoa tão séria, educada, respeitosa, religiosa, devotada à família, de bons princípios e temente a Deus como a senhora teria no passado uma vida dedicada à luxúria, ao desvario e à vida mundana?

Ela sorriu encabulada e lhe entregou uma confissão:

– Ahh meu filho, não que eu concorde com essa vida, mas é que eu tenho uma tendência, isso não posso negar…

Para a minha bisavó, em seu mundo surgido no século XIX, a única forma de expressar a plena liberdade seria fugir do padrão patriarcal falocêntrico e aderir ao mundo da devassidão, das mulheres “sem dono”, da vida sem amarras e do sexo prazeroso e livre. Mas por certo que essa era, apesar de comum, tão somente uma fantasia que percorria o imaginário de uma parte considerável daquelas meninas de sua época. Aliás, foi esse sentimento – a repressão sexual das mulheres e suas manifestações físicas e psíquicas – que propiciou o surgimento da psicanálise, através dos Estudos sobre a Histeria, de Freud e Breuer.

Essa história pitoresca e curiosa da minha antepassada me fez lembrar de outros relatos contados para mim por meu pai, onde ele falava de algo que aprendeu muito cedo, mas que só foi possível confirmar quando seu tempo de envelhecer também chegou: o desejo é inexoravelmente imortal. Ele pode se transfigurar e se escamotear, escondido pelos sulcos na pele que chegam na velhice; entretanto, ele estará lá, vivo e pulsante enquanto houver vida. Podemos teimar em não aceitá-lo quando fechamos os olhos para o desejo dos velhos, mas nossa negativa em enxergá-lo jamais o anula. Talvez se manifeste apenas nos sonhos e nas fantasias, nas lembranças e nos devaneios, mas estará sempre presente. O desejo é o que nos faz agarrar a vida.

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Westworld

Sigmund Freud em “Mal-Estar na Civilização” (1930) tratou da supressão das pulsões inerente à vida em sociedade, e o consequente desconforto que ela determina para nós. O psicanalista Contardo Calligaris em “Hello Brasil” mostra a diferença entre colonos e colonizadores, sendo estes últimos aqueles que empreendem uma aventura que objetiva “gozar sem interdição”. A busca do colonizador está centrada em gozar, extrair tudo que encontra na nova terra, sem limites, sem barreiras. Por isso, todos as invasões coloniais são marcadas pela brutalidade, a violência crua, a anulação do “outro”, a limpeza étnica e a perversidade sádica que, ao ignorar a existência do outro nega sua humanidade, sendo esse o elemento essencial e inescapável para todos os projetos colonialistas.

Hollywood criou este mundo futurista na premiada série “Westworld“, onde autômatos, construídos à semelhança indistinguível dos humanos, servem ao nosso gozo absoluto e livre, o que inclui sexo, morte, abuso e violência. Um lugar onde ricos e poderosos podem usufruir de todas as emoções humanas, pagando para isso uma módica quantia. Se a processo civilizatório produz esse mal-estar, porque não seria lícito criar uma sociedade paralela onde fosse possível driblar tantas e tão angustiantes proibições?

Hollywood criou este mundo futurista na premiada série “Westworld“, onde autômatos, construídos à semelhança indistinguível dos humanos, servem ao nosso gozo absoluto e livre, o que inclui sexo, morte, abuso e violência. Um lugar onde ricos e poderosos podem usufruir, pagando para isso uma módica quantia. Se a processo civilizatório produz esse mal-estar, porque não seria lícito criar uma sociedade paralela onde fosse possível driblar tantas e tão angustiantes proibições?

É chamativo o fato de que, enquanto a série se desenvolve, os robôs aos poucos vão adquirindo consciência de sua condição não-humana (desumana) e começam a se rebelar. Mesmo robôs, criados para a obediência e a servidão, com o tempo adquirem consciência de classe. Também faz parte do núcleo dramático da série a paixão que vai brotar entre uma bela mulher robô e um dos visitantes frequentes do “parque temático”. Por mais que esse sentimento fosse considerado absurdo, ou mesmo ridículo pelos consumidores do parque das emoções sem limite (afinal, trata-se de um mero objeto), ele se manteve por anos a fio. Assim, a trama também está centrada na possibilidade de surgir alteridade entre um opressor e o oprimido.

Qualquer semelhança com a desumanização a que os palestinos são submetidos, e as perversidades explícitas de Israel contra esse povo, não é uma mera coincidência. “Westworld-Israel” é um mundo artificial criado pelo ocidente para ser o lugar onde é permitido o racismo explícito, institucionalizado e sem amarras; um país “fake”, criado para os interesses ocidentais, onde palestinos – habitantes originários da região – são torturados, desprezados, confinados, enganados, expulsos de suas casas, assassinados e tratados como sub-cidadãos. E toda a barbárie lá é feita sem a vergonha e o incômodo que tais atitudes causam nas pessoas de fora. Neste mundo controlado pela ideologia racista do sionismo é possível chamar os palestinos de “animais” as crianças de “pequenas serpentes” e os soldados são autorizados a usar camisetas com desenhos de gestantes palestinas, onde se lê “One Shot Two Kills” (um tiro, duas mortes). Também é permitido aos seus habitantes cantar nas ruas e nos estádios de futebol que “não haverá aulas em Gaza porque suas crianças estarão mortas”

As regras com as quais os habitantes originais da Palestina são tratados tem sentido apenas dentro desse mundo à parte, como em Westworld, e por isso na série ninguém é preso por matar robôs – seres criados exatamente para isso – assim como um palestino pode ser morto apenas pelo crime de existir, enquanto dificilmente um terrorista israelense pagará por seus crimes – mesmo queimar bebês vivos. Também é possível matar quase 5.000 crianças em poucas semanas e isso não causar nenhum remorso; afinal como afirmava o Ministro da defesa de Israel Avigdor Liberman, “não há inocentes em Gaza“. Quem acreditou que nada poderia ser mais perturbador do que a distopia de Westworld, esta série de ficção científica criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy e produzida por J.J. Abrams, se enganou. Existe um país onde as perversidades humanas são permitidas e protegidas. Este lugar já existe, e fica na Palestina.

Westworld é Israel.

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Repressões

Shakespeare foi censurado em escolas públicas na Flórida, no governo conservador de DeSantis. Ok, a gente sabe o quanto é diminuta a visão de mundo dos conservadores gringos, em especial ligados ao evangelismo de mercado. Enquanto isso, aqui no sul global, a esquerda liberal quer queimar estátuas, desler Monteiro Lobato e não admite quaisquer críticas ao modelo de visão identitária. Lá, como aqui, direita e esquerda se unem na exaltação da “censura do bem”, uma ideologia que acredita que é melhor privar as pessoas de informações conflitantes do que expor as contradições sociais e mostrá-las à luz do dia. Estas ações têm o mesmo sentido que pedir a alguém que procure esquecer seus sofrimentos e traumas com a ilusão de que, longe da memória superficial, eles vão desaparecer. Freud já nos alertava que o que é reprimido se fortalece, e o crescimento do fascismo no mundo inteiro é um belo e exemplo do quanto o velhinho de Freiburg estava correto.

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Abandono

Talvez a cena que mais me chocou ao ver “Freud além da Alma”, filme de John Huston de 1962 com Montgomery Cliff e roteiro de Jean Paul Sartre, foi a cena em que Breuer, que funcionava para Freud como uma figura paterna, lhe diz que jamais arriscaria sua reputação para defender as ideias sobre as origens da histeria que ele havia formulado, dizendo não acreditar nas tolices por ele escritas. Naquele momento, em que suas ideias eram atacadas de forma vil pelos médicos da Ordem Médica de Viena, o abandono de uma figura tão importante para sua vida teve uma repercussão determinante e decisiva. Talvez tão importante quanto a morte do seu pai, o abandono de Breuer trouxe sombras à relação que ele manteria dali em diante com a própria Medicina.

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Unanimidade

Algo que aprendi muito cedo na vida: “a verdade não é democrática”. No passado os especialistas discordavam do heliocentrismo, inobstante ser a mais acabada expressão das leis cósmicas. Criticaram Darwin até à morte por sua ousadia de colocar o homem em seu devido lugar no espectro da criação, assim como foram violentos com Freud por ele desvendar os fenômenos da histeria. Certa vez apresentaram a Albert Einstein uma lista de mais de 400 cientistas que assinaram um documento refutando seu trabalho. Quando viu a lista Einstein teria dito:

– Puxa, 400? Não precisava tudo isso. Bastaria apenas um, se viesse com bons argumentos.

Einstein estava certo. Aquele sujeito no meio da multidão que se recusou a exaltar o Führer, também. Aqueles que desde o princípio mostraram que Bolsonaro era um desqualificado, idem. Não espere que suas verdades duras sejam aceitas. Em realidade, se forem mesmo a expressão da verdade elas serão naturalmente rechaçadas; só as mentiras e as verdades parciais conseguem aceitação imediata.

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